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Literatura no vestibular da UFPR Leticia Pilger da Silva (Org.). Camila Marchioro Luana Thaísa Portella Milena Woitovicz Cardoso Renata Mocelin Penachio Suéliton de Oliveira Silva Filho © 2022 Curso CWB Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte dos parágrafos de análise. Edição: Leticia Pilger da Silva Capa e projeto gráfico: Leticia Pilger da Silva Revisão: os autores ISBN 978-65-998300-0-6 Projeto realizado com apoio financeiro da CAPES. Para todas as pessoas que farão o vestibular da UFPR em 2022 SUMÁRIO Apresentação Leticia Pilger da Silva...........................................................................5 O Uraguai, de Basílio da Gama Luana Thaísa Portella..........................................................................8 Últimos cantos, de Gonçalves Dias Camila Marchioro..............................................................................30 Casa de pensão, de Aluísio Azevedo Luana Thaísa Portella........................................................................50 Sagarana, de Guimarães Rosa Milena Woitovicz Cardoso...................................................................72 Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto Renata Mocelin Penachio...................................................................95 Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus Leticia Pilger da Silva.......................................................................113 Nove noites, de Bernardo Carvalho Suéliton de Oliveira Silva Filho..........................................................137 O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques Leticia Pilger da Silva.......................................................................159 Sobre os autores.......................................................................................184 Gabaritos.................................................................................................185 5 Apresentação Como pesquisadora e professora de literatura, é com alegria que apresento nosso livro digital dirigido a todos aqueles que farão o vestibular da nossa universidade, principalmente àqueles oriundos de escolas públicas brasileiras. A motivação desta publicação é, na mesma linha de que fala Antonio Candido em seu texto “Direito à literatura”, democratizar não apenas a literatura – aqui, mais crítica literária –, mas também o acesso à universidade pública, com educação gratuita e de qualidade. A literatura se mostra em suas funções formadora e social em dose dupla, porque contribui para a experiência estética da palavra, o contato com realidades outras, assim como é uma ponte para que o leitor acesse o mundo universitário. A partir dos cursos de Letras, as universidades criam críticos, escritores e professores de literatura, de modo que se mostram uma instituição que alimenta a crítica e a construção do cânone. Ao cobrarem livros literários nos seus vestibulares, também estão agindo dentro do sistema literário, tendo em vista que tal ação faz com que milhares de estudantes, no papel de leitores, leiam e analisem determinadas obras. Nesse sentido, é importante analisarmos que textos são cobrados e quais os efeitos das escolhas quando pensamos a construção da identidade literária brasileira, bem como do leitorado. Afinal, o vestibular pode ser determinante como primeiro acesso de leitores a certos livros, principalmente os tidos como clássicos, o que o faz ativo na construção de repertório e ajuda a movimentar o mercado editorial. Vemos, há anos, que a lista de livros literários da UFPR segue um viés conservador, ligado a uma crítica literária mais engessada que afirma o cânone construído ao longo da historiografia literária. Analisar a lista dos últimos anos é um reflexo da pesquisa de Regina Dalcastagné sobre o perfil do escritor brasileiro, mas de forma mais ampla, da cara da literatura brasileira consolidada: homem, branco, do Sudeste, da classe média. Por isso defendo que tal lista deve ser repensada e modificada, como foi feito para o vestibular de 2022/2023. Na lista anterior, dos oito livros, todos eram escritos por homens, majoritariamente brancos (com exceção de Lima Barreto e Gonçalves Dias) e reconhecidos quando estavam vivos (basta ver a trajetória de João Guimarães Rosa e 6 João Cabral de Melo Neto). Como professora de literatura, quando preparava minhas aulas para o vestibular da UFPR, me perguntava: onde estão as mulheres? Onde está a autoria indígena? Onde estão as escritoras negras? Cadê os textos antiquíssimos que foram (arqueologicamente) recuperados recentemente pela pesquisa acadêmica? Por que não há nenhum livro de autoria paranaense, ou curitibana? Eu fazia essas perguntas ao comparar a lista da UFPR com as de outras universidades, que deixavam clara a intervenção literária para fazer que certos textos fossem lidos por meio das provas. Enquanto uma pesquisadora de crítica literária feminista, tamanha foi minha surpresa – positiva – ao me deparar com a lista deste ano. Carolina Maria de Jesus finalmente na lista daqui, depois de passar por tantos outros vestibulares. E Ana Martins Marques, com poesia contemporânea, também marcando presença. Duas mulheres, com identidades, gêneros e propostas literárias bem distintas. Da mesma forma, na lista de filosofia, Djamila Ribeiro – que, inclusive, dialoga fortemente com Carolina Maria de Jesus. A representatividade se mostra um pouco mais forte, fazendo com que o repertório daqueles que fazem o vestibular seja mais diverso, de modo que pensem quem escreve no Brasil e como escreve. As duas escritoras marcam uma mudança na lista de literatura da universidade, e vamos aguardar a formulação de questões, mas ainda há muito a ser feito. Além de uma lista que pense ainda mais a equidade na escolha da autoria, sigo na esperança de autores paranaenses e curitibanos (já sabendo que serei chamada de “bairrista” por alguns), do passado e/ou de hoje, para corromper essa leitura enviesada e inadequada da literatura feita fora do eixo Rio-São Paulo como “regional” e para mostrar aos que estudam e/ou estudarão no nosso estado quem escreve aqui e como a literatura é vivida entre as araucárias. Por hora, analisemos a representação dos indígenas pela escrita de Basílio da Gama e Gonçalves Dias; a construção da História pela metaficção de Bernardo Carvalho; luta pela vida dos retirantes pela escrita de João Cabral de Melo Neto e pela dos favelados pela voz de Carolina Maria de Jesus; a denúncia da hipocrisia humana pelo romance de Aluísio Azevedo; as histórias sertanejas pelos contos de Guimarães Rosa, e a poesia dentro do cotidiano pelos versos de Ana Martins Marques. Leiamos e analisemos. 7 Para finalizar esta apresentação, é importante ressaltar, no entanto, que os textos aqui propostos são um material de apoio para a análise crítica, de modo que não substituem a leitura integral das obras. Cada capítulo foca em um dos oito livros da atual lista da UFPR e apresenta seu autor, o contexto de publicação da obra, seu estilo, temas e informações que devem ser focadas, bem como análise de trechos. Além disso, com o objetivo de testar seus conhecimentos depois da leitura, apresentamos, no final de cada análise, cinco questões autênticas de vestibulares, isto é, criadas pelas bancas de diferentes universidades. Também é necessário dizer que o fato de todos os autores serem pesquisadores da UFPR, esse não é um material oficial da universidade, de modo que não corresponde à voz do Núcleo de Concursos, ao qual não temos acesso. Sugerimos que leiam os capítulos junto dos livros, para que sua leituradialogue com a análise que fizemos de cada texto. Preciso comentar que apresentamos uma leitura possível de cada texto, dada a dimensão pequena de capítulo e o recorte teórico de cada um de nós, visto que os textos são mais amplos e possibilitam que sejam feitas várias entradas temáticas. Desejamos boa leitura e boa prova. Leticia Pilger da Silva 8 O Uraguai, de Basílio da Gama Luana Thaísa Portella Escrito em 1769 pelo poeta luso-brasileiro Basílio da Gama, O Uraguai representa, de modo romanceado, as Guerras Guaraníticas decorrentes da assinatura do Tratado de Madri. O poema épico, ao abordar o episódio que retraçou a geopolítica do sul da América, elogia a política pombalina, canta um hino laudatório aos feitos militares de espanhóis e portugueses na conquista dos Sete Povos das Missões, mas, sobretudo, louva ao indígena. Assim, embora pretendesse enaltecer o poder bélico do colonizador, o que se sobressai no poema é a valorização do nativo e de seu espírito puro, refletido nas figuras indígenas de Sepé, Cacambo e Lindóia. Para tanto, no intuito de oferecer aporte teórico-crítico para o vestibulando, perpassaremos, a seguir, o contexto histórico de produção da obra, seu 9 autor, sua forma e conteúdo e, ainda, o período literário em que se encaixa dentro da historiografia literária brasileira, o Arcadismo. Momento histórico: o Século das Luzes Compreender o contexto de produção de O Uraguai, de Basílio da Gama, faz-se imprescindível para a interpretação de seu enredo. Publicada em 1769, a obra reflete os ideais vigentes no século XVIII – o “Século das Luzes” –, ou seja, contempla preceitos trazidos pelo Iluminismo. O momento, caracterizado pela remodelação do pensamento intelectual, é marcado por grandes revoluções e mudanças de paradigmas históricos, como a Revolução Industrial, a Revolução Comercial, a Independência das Treze Colônias da América do Norte, a Revolução Francesa e, no Brasil, a Inconfidência Mineira. Além disso, governantes europeus, provocados pelo imperativo de transformação, se apropriaram de algumas ideias e práticas iluministas e as inseriram, já moldadas, às suas políticas. Esses reis são chamados de “déspotas esclarecidos”, uma vez que partilhavam com o absolutismo a glorificação do Estado e do poder do dominador e pretendiam uma forma reformista de governar com vistas em acelerar o processo de modernização e aumentar seu prestígio público. Em Portugal, o representante dessa atitude governamental foi Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal ou Conde de Oeiras. Secretário de Estado do Reino durante o reinado de D. José I (1750- 1777), Marquês de Pombal foi responsável por várias reformas administrativas, políticas, sociais, econômicas e religiosas, tanto que o período ficou conhecido como Pombalismo. Neste estudo, dois principais fatos nos interessam – seu papel como restaurador arquitetônico da cidade de Lisboa, após o terremoto de 1755, e, sobretudo, sua responsabilidade pela expulsão dos jesuítas de Portugal e de suas colônias –, ambos figuram na obra O Uraguai. No ano de 1494, Portugal e Espanha haviam assinado o Tratado de Tordesilhas, no intuito de dividir as posses territoriais portuguesas e espanholas na América do Sul, chamado de “Novo Continente”. Entretanto, durante a União Ibérica, 1580 e 1640, os territórios já haviam sido ocupados indistintamente entre os países. Desse modo, numa tentativa mais correta de distinguir os territórios e definir limites, os reis João V de https://pt.wikipedia.org/wiki/Absolutismo 10 Portugal e Fernando VI de Espanha, em 13 de janeiro de 1750, assinaram o Tratado de Madri. A partir desse acordo, a Colônia dos Sete Povos de Missões do Uruguai, pertencente à Espanha, deveria passar a ser de Portugal que, como contrapartida, cederia à Espanha sua Colônia do Santíssimo Sacramento. Além disso, o contrato estabelecia a remoção dos povos guarani da região de Colônia dos Sete Povos de Missões do Uruguai, ou seja, a retirada de cerca de 30 mil nativos que ali constituíam morada. Esse fato culminou na Guerra Guaranítica. Contrários à cláusula do Tratado de Madri, os indígenas que habitavam os Sete Povos das Missões, orientados pelos jesuítas, se negaram a passar para o domínio dos portugueses, sobretudo porque havia um decreto da Administração Colonial Espanhola que permitia mão de obra escrava de indígenas, e puseram-se a lutar pela permanência. Assim, em 1752, organizou-se uma expedição militar, sob o comando de Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, integrada por tropas portuguesas e espanholas, para submeter jesuítas e índios. O conflito, massacre do povo indígena pelos colonizadores, envolvendo indígenas da tribo Guarani e as tropas luso-espanholas, pelo domínio das terras próximas ao rio Uruguai, durou entre 1753 e 1756. Basílio da Gama, em O Uraguai, retrata a Guerra Guaranítica de modo a cumprir sua incumbência política ao criar um poema épico aos feitos das tropas que guerrearam e criticar os jesuítas, agradando Marquês de Pombal, mas subverte a lógica ao mostrar simpatia pelo índio vencido e centrar seu enredo nas virtudes dos indígenas que ali viviam. Basílio da Gama, aspectos biográficos José Basílio da Gama nasceu no arraial de São José do Rio das Mortes, hoje cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, em 1741. Aos 16 anos, em 1757, foi levado para estudar no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, local onde iniciou seu desenvolvimento religioso. Dois anos depois, em 1759, Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, ordenou o fechamento do colégio, como cumprimento da campanha de perseguição aos jesuítas movida pelo governo de Portugal. Basílio da Gama, que tinha envolvimento direto com os jesuítas, passou a ser visto com suspeita pelas autoridades, ainda assim, estudou no colégio episcopal de São José, conservou-se fiel aos preceitos religiosos e, em seguida, seguiu para Roma em busca de subsídio da Igreja para sua fé. 11 Na Itália, Basílio da Gama conseguiu ingressar na Arcádia Romana, modelo de sociedade literária dos sécs. XVII e XVIII que cultivava preceitos do classicismo – possivelmente com o amparo dos jesuítas, visto que era um feito singular entre os brasileiros da época, ainda mais para um poeta principiante –, e assumiu o pseudônimo de Termindo Sipílio. Escreveu, em 1765, a “Ode a Dom José I”, rei de Portugal. Em 1767 passou uma temporada no Rio de Janeiro, onde assistiu, em fevereiro, ao lançamento ao mar da nau Serpente, fato mencionado no Canto Terceiro de O Uraguai. A bordo da nau Senhora da Penha de França com destino a Lisboa para matricular- se na Universidade de Coimbra, em 1768, Basílio da Gama foi preso, por ordem de Marquês de Pombal, sob acusação de estar associado ao jesuitismo. O decreto pombalino sentenciava qualquer pessoa que mantivesse contato com os jesuítas ao exílio por oito anos em Angola, na África. Para livrar-se do degredo, o astuto Basílio da Gama escreveu o “Epitalâmio às Núpcias da Sra. D. Maria Amália” (1769), sendo que Maria Amália era filha de Marquês de Pombal, e o hino nupcial, epitalâmio, além de celebrar o casamento, ainda elogiava o ministro, “a mão que da ruína ergueu Lisboa”, em referência às atitudes diante do, anteriormente mencionado, terremoto de 1755. Com isso, Pombal perdoou o poeta, concedeu-lhe carta de nobreza e fidalguia e, ainda, o admitiu como oficial da Secretaria do Reino. Sob essas condições é que O Uraguai foi concebido. Basílio da Gama passou a se identificar com a política Pombalina e para conquistar estima de Pombal, compôs O Uraguai, publicado em 1769 na Régia Oficina Tipográfica, de Lisboa. Pode-se pensar que o poeta, de fato, soube como fazer política através da poesia, visto que, em 1776 publicou um poema, chamado “Os Campos Elísios”, em que exaltou as virtudes cívicasda família de Marquês de Pombal. Entretanto, com a morte do rei, em 1777, e a consequente queda Pombal, bem como a anulação de seus atos, enquanto muitos passam a desprezá-lo, Basílio da Gama permaneceu fiel a ele e, inclusive, escreveu em sua defesa. Basílio da Gama ainda foi admitido na Academia das Ciências de Lisboa, tempo em que publicou traduções e versos esparsos. Sua última publicação foi em 1791, o poema “Quitúbia”. Aos 54 anos, Basílio da Gama faleceu em Lisboa, Portugal, no dia 31 de julho de 1795. 12 Arcadismo A leitura de O Uraguai, de Basílio da Gama, além de empreender o aspecto contextual anteriormente explicitado, agrupa em si aspectos da escola literária vigente no século XVIII: o Arcadismo. Denominado assim em referência às arcádias, sociedades literárias – ou Neoclassicismo – por buscar inspiração na tradição clássica – foi um estilo de arte fortemente influenciado pelo Iluminismo e que reflete as transformações e intelectualidades do século XVIII. Surgido primeiramente na Europa, em Portugal, a escola literária compreende o período entre 1756 e 1825, e no Brasil abrange os anos entre 1768 e 1808. Como visto anteriormente, ocorriam, nesse momento, por exemplo, a Revolução Francesa, a Independência das Treze Colônias da América do Norte e, no contexto brasileiro, a Inconfidência Mineira. Esse último tem fundamental importância para o desenvolvimento do Arcadismo em nosso país. Faz-se interessante destacar que a Inconfidência Mineira foi uma ação de cunho republicano e separatista, ocorrido em Minas Gerais, que tinha por objetivo a proclamação de uma república independente de Portugal, a criação de uma universidade em terras brasileiras e a proscrição de dívidas junto à Fazenda Real. Conforme sabemos, a revolta foi descoberta antes de sua efetivação, o que culminou na condenação, prisão ou execução de seus líderes. Entretanto, exceto Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, os guias do movimento eram mineradores, latifundiários, padres ou exerciam altos cargos, como, por exemplo, Cláudio Manuel da Costa, que havia estudado em Coimbra e trabalhava na administração colonial, e Tomás Antônio Gonzaga, que era ouvidor, juiz, em Vila Rica, Ouro Preto. Além disso, afora a Inconfidência Mineira, esses homens ilustres, letrados e que tinham acesso a estudo na Europa, importavam ao Brasil conceitos filosóficos do Iluminismo e, sobretudo, ideias artísticas e estéticas do Arcadismo. Desse modo, os inconfidentes, que eram poetas, foram os responsáveis pela estética árcade no Brasil. Razão, conhecimento e ciência perfazem o contexto de surgimento do Arcadismo. Entre os principais aspectos do Arcadismo, podemos destacar a oposição ao Barroco, escola literária anterior e caracterizada, sobretudo, pela tensão entre teocentrismo e 13 antropocentrismo, pelo exagero de formas, contrastes de cores, cultismo e conceptismo. Ao remeter à arcádia – local na Grécia Antiga onde viviam pastores que cultuavam a poesia e viviam em perfeita harmonia com a natureza –, a estética do Arcadismo centra- se na simplicidade. Aos poetas árcades, a expressão latina inutilia truncat, “cortar o inútil”, denotava o equilíbrio em suas obras; para tanto, a linguagem costumava ser simples, sem figuras de linguagem ou inversões sintáticas. Os poemas árcades refletem o movimento intelectual de seu século, o Iluminismo, de modo a desenvolver o racionalismo e ter, como motes, a razão e o equilíbrio. Assim, os autores voltam-se ao Classicismo e realizam a mimese, ou seja, imitam os clássicos gregos e romanos da antiguidade em suas estruturas textuais, como soneto e epopeia, e mencionam figuras mitológicas. O Uraguai, nesse sentido, tenta aproximar-se de Os Lusíadas, de Camões. Os temas árcades podem ser facilmente identificados pelas expressões do latim norteadoras da estética. Por exemplo, carpe diem (“colhe o dia”), no sentido de aproveitar o hoje porque o tempo é efêmero, locus amoenus (lugar agradável), por uma valorização dos cenários bucólicos e primaveris, fugere urbem (fuga da cidade), uma visão de que a vida urbana é associada à ostentação e à vaidade, e aurea mediocritas (equilíbrio de ouro), num elogio à vida simples, sem luxos nem privações. Percebemos, desse modo, que os poetas do Arcadismo tendem ao bucolismo e ao pastoralismo, ou seja, à valorização da vida em comunhão com a natureza campestre, uma vez que o campo é associado a valores positivos como liberdade e verdade. No entanto, esses poetas não viviam, de fato, no campo e nem eram pastores. Longe disso, como vimos, os poetas árcades eram homens ligados a fatores administrativos e políticos de, no caso do Brasil, Vila Rica. O que ocorre é que para compor sua representação das arcádias da Grécia Antiga, os poetas adotavam “pseudônimos pastoris” que valorizavam esse estilo de vida e por isso eram chamados de “poetas fingidores”. Desse modo, Tomás Antônio Gonzaga admitia o pseudônimo de Dirceu, Claudio Manuel da Costa assinava como Glauceste Saturnio e, nosso objeto de estudo, Basílio da Gama subscrevia como Termindo Sipílio. No Brasil, o Arcadismo teve início com a publicação de Obras Poéticas de Cláudio Manuel da Costa. Outras publicações importantes foram Marília de Dirceu, de Tomás 14 Antônio Gonzaga, dividido em partes que denotam tanto traços árcades quanto pré- românticos, Cartas Chilenas, do mesmo autor, texto de caráter político-satírico que faz uma alegoria crítica sobre a má administração das Minas ao colocar Chile, representando Minas Gerais, Santiago, Vila Rica, e Fanfarrão Minésio, Luís da Cunha Meneses, administrador português em Vila Rica. Podemos citar, ainda, Santa Rita Durão e o poema épico Caramuru que, escrito no modelo camoniano de dez cantos, estrofes em oitava rima, versos decassílabos e esquema ABABABCC, descreve o descobrimento da Bahia num elogio da paisagem brasileira e da figura do indígena. Por fim, faz-se interessante notar que o Arcadismo, último movimento literário brasileiro da era colonial, antecipa elementos da era nacional acarretada após a independência e do próprio Romantismo, ao incorporar o contexto histórico peculiar do país e a questão indígena às obras. Sendo esse, o índio, corporatura central de O Uraguai, de Basílio da Gama, para além da inclinação anti-jesuítica, é fruto da influência da racionalidade da filosofia iluminista. Síntese analítica de O Uraguai O Uraguai, de Basílio da Gama, é uma ficção histórica. O poema épico, publicado em 1769, tem a intenção de relatar os conflitos que decorreram a partir da assinatura do Tratado de Madri, no intuito de, sobretudo, exaltar a expedição das tropas portuguesas e espanholas contra as missões jesuíticas, em 1756. Todo o texto se passa ao longo do Rio Uruguai, chamado na época de Uraguai. Nesse local, havia sete povoados de indígenas guaranis, sob o comando de padres jesuítas espanhóis e, ao sul, havia uma colônia chamada Sacramento, administrada por jesuítas portugueses. Com a assinatura do Tratado de Madri, a Colônia de Sacramento deveria ser passada para a Espanha e os Sete Povos deveriam passar para Portugal. Entretanto, os índios que habitavam os Sete Povos das Missões resistiram a essa resignação territorial e, incitados pelos jesuítas, lutaram para defender sua permanência. Para combatê-los, um exército luso-espanhol, formado e chefiado por Gomes Freire de Andrade, de Portugal, e Catâneo, da Espanha, foi enviado. 15 Diante da leitura do contexto histórico do poema e dos fatos biográficos de Basílio da Gama, ficam-nos abertos os propósitos da obra. O poeta a dedica a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do déspota esclarecido Marquês de Pombal, e, ainda, abre o texto com um poema em homenagem ao Conde de Oeiras, no qual exalta sua vida e seus feitos administrativos. Além disso, no intuito de valorizar a política pombalina,O Uraguai prenuncia a metáfora a ser narrada com uma epígrafe extraída de Eneida, de Virgílio, - “Mas a caverna, e o imenso reino de Caco apareceu descoberto, e o sombrio inferno se abriu por completo.” (At specus, et Caci detecta apparuit ingens Regia et umbrosae penitus patuere cavernae) – sobre o momento que Eneias toma nota da história de como Hércules assassinou o gigante Caco, que explorava os povos nativos da Arcádia, numa alusão aos jesuítas e sua influência sobre os indígenas. Dividido em cinco cantos, o poema mistura personagens fictícios com pessoas reais que viveram o fato histórico. Para tanto, temos, de um lado, o general Gomes Freire de Andrade e Catâneo, e, do outro lado, o padre Balda, jesuíta administrador de Sete Povos das Missões, Baldeta, seu afilhado, Sepé, o índio guerreiro, Cacambo, o chefe indígena, Lindóia, esposa de Cacambo, Caititu, guerreiro indígena e irmão de Lindóia, e a feiticeira Tanajura. Assim, cada canto tem um intuito distinto e perpassa um momento diferente dessa Guerra Guaranítica. No primeiro canto, Basílio da Gama se utiliza de um recurso chamado in media res, uma inversão da ordem narrativa, e inicia retratando a vitória das tropas sobre os povos indígenas que viviam às margens do rio Uruguai. Podemos observar, como no trecho a seguir, a dimensão desse massacre da população indígena: Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilharia. MUSA, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! (GAMA, 1998, p. 21). 16 A introdução evoca a vitória do herói Gomes Freire de Andrade, sobre os povos rudes e, em seguida, a história retorna ao eixo normal dos acontecimentos. Desse modo, o general Andrade explica as razões da guerra, a má influência do jesuitismo, enquanto o narrador deixa evidente a dúvida do governo espanhol em relação à batalha, relata a invasão dos indígenas e a prisão deles, as cheias do rio Jacuí e, então, as tropas portuguesas se reúnem para combater indígenas e jesuítas: Tudo em silêncio, e dá princípio Andrade: O nosso último rei e o rei de Espanha Determinaram, por cortar de um golpe, Como sabeis, neste ângulo da terra, As desordens de povos confinantes, Que mais certos sinais nos dividissem. Tirando a linha de onde a estéril costa, E o cerro de Castilhos o mar lava Ao monte mais vizinho, e que as vertentes Os termos do domínio assinalassem. Vossa fica a Colônia, e ficam nossos Sete povos, que os Bárbaros habitam Naquela oriental vasta campina Que o fértil Uraguai discorre e banha. Quem podia esperar que uns índios rudes, Sem disciplina, sem valor, sem armas Se atravessassem no caminho aos nossos, E que lhes disputassem o terreno! (GAMA, 1998, p. 29). O canto II retrata a marcha dos soldados em direção a Sete Povos das Missões e a tentativa de resolver a questão com diálogo e diplomacia. Aqui surgem Sepé e Cacambo, que expõe suas razões para não deixar o lugar: E começou: Ó General famoso, Tu tens à vista quanta gente bebe Do soberbo Uraguai a esquerda margem. Bem que os nossos avôs fossem despojo Da perfídia de Europa, e daqui mesmo Co’s não vingados ossos dos parentes Se vejam branquejar ao longe os vales, Eu, desarmado e só, buscar-te venho. Tanto espero de ti. E enquanto as armas Dão lugar à razão, senhor, vejamos Se se pode salvar a vida e o sangue 17 De tantos desgraçados. Muito tempo Pode ainda tardar-nos o recurso Com o largo oceano de permeio, Em que os suspiros dos vexados povos Perdem o alento. O dilatar-se a entrega Está nas nossas mãos, até que um dia Informados os reis nos restituam A doce antiga paz. Se o rei de Espanha Ao teu rei quer dar terras com mão larga Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes E outras, que tem por estes vastos climas; Porém não pode dar-lhes os nossos povos. (GAMA, 1998, p. 39). Cacambo denuncia, em um discurso de viés iluminista, a crueldade dos brancos, embora confie que as armas podem dar lugar à razão. A fala de Andrade enuncia o desejo de paz contra a tirania dos padres jesuítas. O acordo, entretanto, é impossível e o combate torna-se inevitável, nas palavras de Sepé: Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo Fez mais do que devia; e todos sabem Que estas terras, que pisas, o céu livres Deu aos nossos avôs; nós também livres As recebemos dos antepassados. Livres as hão de herdar os nossos filhos. Desconhecemos, detestamos jugo Que não seja o do céu, por mão dos padres. As frechas partirão nossas contendas Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo, Se nele um resto houver de humanidade, Julgará entre nós; se defendemos Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria. Enfim quereis a guerra, e tereis guerra. (GAMA, 1998, p. 47). A guerra então tem início. Os índios lutam com bravura, mas não têm chances diante das armas de fogo dos brancos europeus. Sepé, o índio guerreiro, acaba morrendo em combate: Que regada de sangue aos pés cedia A terra, ou que pusesse as mãos em falso, Rodou sobre si mesmo, e na caída Lançou longe a Sepé. Rende-te, ou morre, 18 Grita o governador; e o tape altivo, Sem responder, encurva o arco, e a seta Despede, e nela lhe prepara a morte. Enganou-se esta vez. A seta um pouco Declina, e açouta o rosto a leve pluma. Não quis deixar o vencimento incerto Por mais tempo o espanhol, e arrebatado Com a pistola lhe fez tiro aos peitos. Era pequeno o espaço, e fez o tiro No corpo desarmado estrago horrendo. Viam-se dentro pelas rotas costas Palpitar as entranhas. Quis três vezes Levantar-se do chão: caiu três vezes, E os olhos já nadando em fria morte Lhe cobriu sombra escura e férreo sono. Morto o grande Sepé, já não resistem As tímidas esquadras. Não conhece Leis o temor. (GAMA, 1998, p. 53). Com a morte de Sepé, Cacambo comanda a retirada dos demais indígenas do campo de batalha: Tinha-se retirado da peleja Caitutu mal-ferido; e do seu corpo Deixa Tatu-Guaçu por onde passa Rios de sangue. Os outros mais valentes Ou eram mortos, ou feridos. Pende O ferro vencedor sobre os vencidos. Ao número, ao valor cede Cacambo: Salva os índios que pode, e se retira. (GAMA, 1998, p. 54). O canto III descreve o breve descanso após o combate. De um lado da margem do Rio Uruguai, as tropas portuguesas e espanholas acampam, enquanto, na outra margem, os indígenas acampam. Durante o descanso, Cacambo acaba por sonhar com o espírito de Sepé que o incentiva a incendiar o acampamento inimigo: Ao longe o rio, e menear-se o vento. Respirava descanso a natureza. Só na outra margem não podia entanto O inquieto Cacambo achar sossego. No perturbado interrompido sono (Talvez fosse ilusão) se lhe apresenta A triste imagem de Sepé despido, Pintado o rosto do temor da morte, Banhado em negro sangue, que corria 19 Do peito aberto, e nos pisados braços Inda os sinais da mísera caída. Sem adorno a cabeça, e aos pés calcada A rota aljava e as descompostas penas. Quanto diverso do Sepé valente, Que no meio dos nossos espalhava, De pó, de sangue e de suor coberto, O espanto, a morte! E diz-lhe em tristes vozes: Foge, foge, Cacambo. E tu descansas, Tendo tão perto os inimigos? Torna, Torna aos teus bosques, e nas pátrias grutas Tua fraqueza e desventura encobre. Ou, se acaso inda vivem no teu peito Os desejos de glória, ao duro passo Resiste valeroso; ah tu, que podes! À fortuna de Europa: agora é tempo, Que descuidados da outra parte dormem. Envolve em fogo e fumo o campo, e paguem O teu sangue e o meu sangue. Assim dizendo Se perdeu entre as nuvens, sacudindo Sobre as tendas, no ar, fumante tocha; E assinala com chamas o caminho. Acorda o índio valeroso, e salta Longe da curva rede, e sem demora O arco e as setas arrebata, e fere O chão com o pé:quer sobre o largo rio. (GAMA, 1998, p. 59). Movido pelo heroísmo e dominado pela vontade de defender a conservação de seu povo, Cacambo atravessa o rio e incendeia o acampamento inimigo: Viu abrasar de Tróia os altos muros, E a perjura cidade envolta em fumo Encostar-se no chão e pouco a pouco Desmaiar sobre as cinzas. Cresce entanto O incêndio furioso, e o irado vento Arrebata às mãos cheias vivas chamas, Que aqui e ali pela campina espalha. (GAMA, 1998, p. 62). A cena que se segue mostra a construção de caráter do indígena em contraponto ao do padre jesuíta. Antes, porém, é necessário entender os escopos dessa constituição. Entusiasmada pelas ideias iluministas, a estética do Arcadismo inspira-se em Jean Jacques Rousseau, especificamente na teoria do Bom Selvagem, e transmite ao índio a atitude de ser humano puro e inocente por estar em seu estado natural, enquanto aos padres 20 jesuítas cabe a designação de mal-intencionados. Além disso, ao exaltar a política pombalina, a guerra seria benéfica aos indígenas, pois, segundo os versos, os portugueses e espanhóis representam a possibilidade de restaurar a vida natural dos nativos, após derrotar os padres. Como podemos perceber nos versos do Canto II abaixo: Não queiras ver se cortam nossas frechas. Vê que o nome dos reis não nos assusta. O teu está muito longe; e nós os índios Não temos outro rei mais do que os padres. Acabou de falar; e assim responde O ilustre General: Ó alma grande, Digna de combater por melhor causa, Vê que te enganam: risca da memória Vãs, funestas imagens, que alimentam Envelhecidos mal fundados ódios. Por mim te fala o rei: ouve-me, atende, E verás uma vez nua a verdade. Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres Era viver errantes e dispersos, Sem companheiros, sem amigos, sempre Com as armas na mão em dura guerra, Ter por justiça a força, e pelos bosques Viver do acaso, eu julgo que inda fora Melhor a escravidão que a liberdade. Mas nem a escravidão, nem a miséria Quer o benigno rei que o fruto seja Da sua proteção. Esse absoluto Império ilimitado, que exercitam Em vós os padres, como vós, vassalos… (GAMA, 1998, p. 43). Após incendiar o território do inimigo, Cacambo foge para casa para contar a notícia. Entretanto, como afirmação do caráter maléfico dos jesuítas anteriormente exemplificada, o indígena encontra o padre Balda, que manda prendê-lo e envenená-lo porque deseja que seu afilhado Baldeta se torne Cacique no lugar de Cacambo e se case com Lindóia: Mas não sabia que a fortuna entanto Lhe preparava a última ruína. Quanto seria mais ditoso! Quanto Melhor lhe fora o acabar a vida Na frente do inimigo, em campo aberto, 21 Ou sobre os restos de abrasadas tendas, Obra do seu valor! Tinha Cacambo Real esposa, a senhoril Lindóia, De costumes suavíssimos e honestos, Em verdes anos: com ditosos laços Amor os tinha unido; mas apenas Os tinha unido, quando ao som primeiro Das trombetas lho arrebatou dos braços A glória enganadora. Ou foi que Balda, Engenhoso e sutil, quis desfazer-se Da presença importuna e perigosa Do índio generoso; e desde aquela Saudosa manhã, que a despedida Presenciou dos dous amantes, nunca Consentiu que outra vez tornasse aos braços Da formosa Lindóia e descobria Sempre novos pretextos da demora. Tornar não esperado e vitorioso Foi todo o seu delito. Não consente O cauteloso Balda que Lindóia Chegue a falar ao seu esposo; e manda Que uma escura prisão o esconda e aparte Da luz do sol. Nem os reais parentes, Nem dos amigos a piedade, e o pranto Da enternecida esposa abranda o peito Do obstinado juiz: até que à força De desgostos, de mágoa e de saudade, Por meio de um licor desconhecido, Que lhe deu compassivo o santo padre, Jaz o ilustre Cacambo - entre os gentios Único que na paz e em dura guerra De virtude e valor deu claro exemplo. Chorado ocultamente e sem as honras De régio funeral, desconhecida Pouca terra os honrados ossos cobre. Se é que os seus ossos cobre alguma terra. (GAMA, 1998, p. 63). Lindóia, ao tomar ciência da morte do amado, procura ajuda da feiticeira Tanajura para também morrer. A velha índia prepara um feitiço, no entanto, ao invés de conseguir o que queria, Lindóia alucina e tem visões dos grandes feitos de Marquês de Pombal, em Portugal. Entre as visões está a do já referenciado Terremoto em Lisboa: Três vezes Girou em roda, e murmurou três vezes Co’a carcomida boca ímpias palavras, E as águas assoprou: depois com o dedo 22 Lhe impõe silêncio e faz que as águas note. Como no mar azul, quando recolhe A lisonjeira viração as asas, Adormecem as ondas e retratam Ao natural as debruçadas penhas, O copado arvoredo e as nuvens altas: Não de outra sorte à tímida Lindóia Aquelas águas fielmente pintam O rio, a praia o vale e os montes onde Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa Entre despedaçados edifícios, Com o solto cabelo descomposto, Tropeçando em ruínas encostar-se. Desamparada dos habitadores A Rainha do Tejo, e solitária, No meio de sepulcros procurava Com seus olhos socorro; e com seus olhos Só descobria de um e de outro lado Pendentes muros e inclinadas torres. Vê mais o Luso Atlante, que forceja Por sustentar o peso desmedido Nos roxos ombros. Mas do céu sereno Em branca nuvem Próvida Donzela Rapidamente desce e lhe apresenta, De sua mão, Espírito Constante, Gênio de Alcides, que de negros monstros Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria. Tem por despojos cabeludas peles De ensanguentados e famintos lobos E fingidas raposas. Manda, e logo O incêndio lhe obedece; e de repente Por onde quer que ele encaminha os passos Dão lugar as ruínas. Viu Lindóia Do meio delas, só a um seu aceno, Sair da terra feitos e acabados Vistosos edifícios. Já mais bela Nasce Lisboa de entre as cinzas - glória Do grande conde, que co’a mão robusta Lhe firmou na alta testa os vacilantes Mal seguros castelos. Mais ao longe Prontas no Tejo, e ao curvo ferro atadas Aos olhos dão de si terrível mostra, Ameaçando o mar, as poderosas Soberbas naus. Por entre as cordas negras Alvejam as bandeiras: geme atado Na popa o vento; e alegres e vistosas Descem das nuvens a beijar os mares As flâmulas guerreiras. No horizonte 23 Já sobre o mar azul aparecia A pintada Serpente, obra e trabalho Do Novo Mundo, que de longe vinha Buscar as nadadoras companheiras E já de longe a fresca Sintra e os montes, Que inda não conhecia, saudava. (GAMA, 1998, p. 66-68). Lindóia não entende nada e volta para casa e, no canto IV, são retratados os preparativos de seu casamento com Baldeta, que agora liderava, por vontade do padre Balda. Entretanto, Lindóia está melancólica, sofrendo por ter perdido seu amado Cacambo, não quer se casar e decide fugir para um bosque. A índia, angustiada, cansada de viver, é encontrada por seu irmão, Caitutu, adormecida, tendo enrolada em seu corpo uma verde serpente venenosa: Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço e braços, e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim, sobressaltados, E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la, e temem Que desperte assustada, e irrite o monstro, E fuja, e quem apresse no fugir a mortes Porém o destro Caitutu, que treme Do perigo da irmã, sem mais demora Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Soltar o tiro, e vacilou três vezes Entre a ira e o temor. Enfim sacode O arco faz voar a aguda seta, Que toca o peito da Lindóia, e fere A serpente na testa, e a boca e os dentes Deixou cravados no vizinho tronco. Açouta o campo côa ligeira cauda O irado monstro, e em tortuosos giros Se enrosca no cipreste, e verte envolto Em negro sangue o lívido veneno. Leva nos braços a infeliz Lindóia O desgraçado irmão, que ao despertá-la Conhece, com que dor! No frio rosto Os sinais do veneno, e vê ferido Pelo dente sutil o brando peito. Os olhos, em que amor reinava,um dia, Cheios de morte, e muda aquela língua Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes Contou a larga história dos seus males. 24 Nos olhos Caitutu não sofre o pranto, E rompe em profundíssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta De sua mão já trêmula gravado O alheio crime e a voluntária morte. E por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. Inda conserva o pálido semblante Um não sei quê de magoado e triste, Que aos corações mais duros enternece. Tanto era bela, no seu rosto a morte!” (GAMA, 1998, p. 82). Ao descobrir o suicídio, o padre Balda proíbe o sepultamento ou mesmo a tristeza pela morte de Lindóia e exige que seu corpo seja deixado exposto às feras. Em seguida, procura vingança, condenando Tanajura à morte. Enquanto isso, o general Andrade chega em Sete povos das Missões. Os indígenas já abandonaram o local e fugiram, mas antes, ordenados pelo padre, colocaram fogo em tudo. Diante das ruínas, Andrade e os soldados adentram ao santuário jesuíta, observam, destruídas pelo incêndio, as imagens sagradas e, na abóbada, uma grande pintura. Defronte a essa imagem, o narrador conclui o canto invocando o artista da inculta América para inspirá-lo a continuar a história: Salvas as tropas do noturno incêndio, Aos povos se avizinha o grande Andrade, Depois de afugentar os índios fortes Que a subida dos montes defendiam, E rotos muitas vezes e espalhados Os tapes cavaleiros, que arremessam Duas causas de morte em uma lança E em largo giro todo o campo escrevem. Mas neste tempo um índio pelas ruas Com gesto espavorido vem gritando, Soltos e arrepiados os cabelos: Fugi, fugi da mal segura terra, Que estão já sobre nós os inimigos. Eu mesmo os vi, que descem do alto monte, E vêm cobrindo os campos; e se ainda Vivo chego a trazer-vos a notícia, Aos meus ligeiros pés a vida eu devo. Debalde nos expomos neste sítio, Diz o ativo Tedeu: melhor conselho É ajuntar as tropas no outro povo: Perca-se o mais, salvemos a cabeça. 25 Embora seja assim: faça-se em tudo A vontade do céu; mas entretanto Vejam os contumazes inimigos Que não têm que esperar de nós despojos, Falte-lhe a melhor parte ao seu triunfo. (GAMA, 1998, p. 85). A pintura no teto suscita muitas interpretações. Andrade enxerga nela uma alegoria da Companhia de Jesus e, a partir da imagem, interpreta e descreve os crimes e corrupções cometidos pelos jesuítas. Mortes, massacres, influência clandestina no oriente, comércio clandestino, tudo é atribuído às maquinações do jesuitismo. O quinto canto traz as intenções e opiniões de Basílio da Gama acerca dos padres jesuítas, algo que agradava muito ao Marquês de Pombal. Assim, preparado para a última batalha, o general Andrade segue para surpreender os inimigos, mas o que encontra é a demonstração, novamente, do caráter e da atitude maldosa dos padres, pois, ao invés de lutarem ao lado dos nativos, eles abandonaram a batalha e, sobretudo, os indígenas. Sozinhos e com medo, o general português desiste da batalha, mostra-se acolhedor com os nativos e, assim, é cercado por eles em sinal de gratidão, dando fim à república jesuítica no sul do Brasil: Cai a infame República por terra. Aos pés do General as toscas armas Já tem deposto o rude Americano, Que reconhece as ordens e se humilha, E a imagem do seu rei prostrado adora. Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. Tu vive e goza a luz serena e pura. Vai aos bosques de Arcádia: e não receies Chegar desconhecido àquela areia. Ali de fresco entre as sombrias murtas Urna triste a Mireo não todo encerra. Leva de estranho céu, sobre ela espalha Co’a peregrina mão bárbaras flores. E busca o sucessor, que te encaminhe Ao teu lugar, que há muito que te espera. (GAMA, 1998, p. 99). Assim se encerra O Uraguai, um poema-épico que tem como pano de fundo um fato histórico, mas em que se sobressaem a bravura dos índios e a paisagem brasileira. Sobre sua estrutura, são cinco cantos, em versos decassílabos, sem esquema de rimas 26 (brancos) e sem estrofação; o poema obedece à tradição épica das cinco partes – proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo –, mas não segue essa sequência. Além disso, é repleto de referências e homenagens ao poeta classicista português Camões, mas difere em estrutura e conteúdo do poema épico Os Lusíadas, sua possível inspiração. Ainda que atrelado à estética do Arcadismo, o texto afasta-se de referências mitológicas clássicas, mas apoia-se na mitologia indígena, trazendo à tona, além do anti- jesuitismo e da exaltação de tropas bélicas, o choque cultural entre o dito como civilizado e o dito como selvagem. Desse modo, embora a exigência intencional do texto fosse exaltar o espírito guerreiro do português e do espanhol e desmoralizar o jesuíta, é o indígena quem recebe o protagonismo, por sua natureza simples e caráter bondoso, tornando-se o verdadeiro herói do poema épico e antecipando, como já dissemos, a estética nacionalista da literatura brasileira. Ainda que as descrições recebam um caráter exótico, o tema tratado em O Uraguai – a possibilidade de permanência de um povo – merece muita e cada vez mais atenção, visto que hoje em dia, os povos indígenas ainda lutam para estabelecer seu espaço. Referências CASTELLO, José Aderaldo, Manifestações Literárias da Era Colonial, Vol. I, São Paulo, Cultrix, 1969. GAMA, Basílio. O Uraguai. Rio de Janeiro, Record, 1998. VERÍSSIMO, José, Obras Poéticas de José Basilio da Gama, São Paulo, Garnier, 1920. Questões 1. (UPF) Analise as afirmativas abaixo, sobre a obra O Uraguai, de Basílio da Gama. I. Nas cenas iniciais de guerra descritas pelo poeta Basílio da Gama, os indígenas aparecem como heróis gloriosos, lembrando os protagonistas de guerras de épicos antigos. Cacambo, por exemplo, ao incendiar o acampamento do inimigo europeu, lembra Ulisses, que incendiou Troia. Entretanto, no decorrer do texto esse mesmo indígena é ridicularizado, passando a ser apresentado como um derrotado ou covarde. II. Nos versos "Tem por despojos cabeludas peles/ De ensanguentados e famintos lobos/ e fingidas raposas.", o poeta, fazendo referência ao que cabe aos heróis depois da luta, 27 deixa clara a sua condenação à ação dos jesuítas nas Missões. Assim, afirma a ideia de que a guerra guaranítica prestou-se à libertação dos índios do poder dos jesuítas. III. A heroína indígena Lindoia, diante da dor pelo amor que se tornou impossível, procura a morte na floresta. Na cena em que se deixa picar por uma serpente, realizando, assim, o desejo de morrer, observa-se uma relação harmônica entre a natureza e a personagem, visto que aquela age sobre esta com suas plantas e seus animais. Está correto o que se afirma em: a) I, II e III b) I e II c) II e III d) I e III e) II 2. (UFPR) O Uraguai foi publicado pela primeira vez antes da independência do Brasil, em 1769, e narra as disputas entre espanhóis e portugueses pelos territórios do sul do continente, envolvendo os índios e os jesuítas. No fragmento abaixo, podemos conferir um trecho da fala do comandante português: O nosso último rei e o rei de Espanha Determinaram por cortar de um golpe, Como sabeis, neste ângulo da terra, As desordens de povos confinantes, Que mais certos sinais nos dividissem. (GAMA, Basílio da. “Canto Primeiro”. O Uraguai. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 47.) O talento de Basílio da Gama, que transforma o árido assunto em matéria literária, recebe, cem anos depois, o elogio de Machado de Assis. Ao compará-lo com seu contemporâneo, Tomás Antônio Gonzaga, o escritor afirma: “Não lhe falta, também a ele, nem sensibilidade, nem estilo, que em alto grau possui; a imaginação é grandemente superior à de Gonzaga, e quanto à versificação nenhum outro, em nossa língua, a possui mais harmoniosa e pura” (MACHADO DE ASSIS. A nova geração. In. Obras completas. Riode Janeiro: José Aguilar Editora, 1973. p.815). Sobre o poema de Basílio da Gama, considere as seguintes afirmativas: 1. O contexto histórico trabalhado no poema de Basílio da Gama é fundamental para o seu entendimento: a descentralização do poder colonial, protagonizada pelo Marquês de Pombal, e a disputa de territórios coloniais entre Espanha e Portugal, mediada e pacificada pelos jesuítas, na segunda metade do século XVIII. 2. Ao longo dos cinco cantos de O Uraguai, compostos em decassílabos sem rima, podemos perceber a marca da epopeia, na narração da guerra e dos feitos dos heroicos portugueses, e a presença da sátira, na caricatura dos jesuítas, particularmente na figura do Padre Balda. 28 3. O grande destaque dado aos índios e à defesa da sua terra, a exaltação lírica da natureza e a centralidade do par amor/morte, presente na relação de Lindoia e Cacambo, deram ao poema de Basílio da Gama o lugar de inaugurador do romantismo em todos os manuais de história da literatura brasileira. 4. Para narrar acontecimentos reais da ação de portugueses e espanhóis na disputa dos territórios delimitados pelo rio Uruguai, que hoje correspondem ao noroeste do Rio Grande do Sul e ao norte da Argentina, Basílio da Gama toma o cuidado de inserir apenas personagens ficcionais no seu poema, para não se comprometer. Assinale a alternativa correta. a) Somente a afirmativa 1 é verdadeira. b) Somente a afirmativa 2 é verdadeira. c) Somente as afirmativas 2 e 3 são verdadeiras. d) Somente as afirmativas 1, 3 e 4 são verdadeiras. e) As afirmativas 1, 2, 3 e 4 são verdadeiras. 3. (UM-SP) Sobre o poema O Uraguai, é correto afirmar que: a) o herói do poema é Diogo Álvares, responsável pela primeira ação colonizadora na Bahia. b) o índio Cacambo, ao saber da morte de sua amada, Lindoia, suicida-se. c) escrito em plena vigência do Barroco, filiou-se à corrente cultista. d) os jesuítas aparecem como vilões enganadores dos índios. e) segue a estrutura épica camoniana, com versos decassílabos e estrofes em oitava rima. 4. (UFSM) O poema épico O Uraguai, de Basílio da Gama, é uma: a) composição que narra as lutas dos índios de Sete Povos das Missões, no Uruguai, contra o exército espanhol, sediado lá para pôr em prática o Tratado de Madri; b) das obras mais importantes do Arcadismo no Brasil, pois foi a precursora das Obras Poéticas de Cláudio Manuel da Costa; c) exaltação à terra brasileira, que o poeta compara ao paraíso, o que pode ser comprovado nas descrições, principalmente do Ceará e da Bahia; d) crítica a Diogo Álvares Correia, misto de missionário e colono português, que comanda um dos maiores extermínios de índios da história; e) exaltação à índia Lindoia, que morre após Diogo Álvares decidir-se por Moema, que ajudava os espanhóis na luta contra os índios. 5. (UFRS) Assinale a afirmativa incorreta em relação à obra O Uraguai, de Basílio da Gama. a) O poema narra a expedição de Gomes Freire de Andrada, Governador do Rio de Janeiro, às missões jesuíticas espanholas da banda oriental do rio Uruguai. b) O Uraguai segue os padrões estéticos dos poemas épicos da tradição ocidental, como a Odisseia, a Eneida e Os Lusíadas. c) Basílio da Gama expressa uma visão europeia em relação aos indígenas, acentuando seu caráter bárbaro, incapaz de sentimentos nobres e humanitários. 29 d) Nas figuras de Cacambo e Sepé Tiaraju está representado o povo autóctone que defende o solo natal. e) Lindoia, única figura feminina do poema, morre de amor após o desaparecimento de seu amado Cacambo. 30 Últimos cantos, de Antonio Gonçalves Dias Camila Marchioro Antonio Gonçalves Dias, mais conhecido apenas como Gonçalves Dias, foi poeta, professor, crítico de história e etnólogo. Nascido em Caxias, no Maranhão, em 10 de agosto de 1823, era filho de um comerciante português que, ao se separar da mãe do poeta, levou-o consigo e o matriculou no curso do Prof. Ricardo Leão Sabino, no qual aprendeu Latim, Francês e Filosofia. Gonçalves morreu em um naufrágio (sim, ele era bastante aventureiro e curioso) no ano de 1864. Em 1838, consegue ir para Portugal a fim de estudar Direito em Coimbra (foi lá que escreveu o famoso poema “Canção do Exílio”, em 1843). Em Portugal, entrou em contato com o Romantismo europeu, conhecendo escritores portugueses como Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Feliciano de Castilho. 31 Gonçalves só voltou para o Brasil em 1845, quando foi morar no Rio de Janeiro, lá permanecendo por 10 anos (nesse período, foi apenas uma vez visitar o Maranhão). Muitos de seus poemas foram escritos quando ainda estava em Coimbra. No Brasil, Gonçalves então publica Primeiros Cantos, em 1847, cujo nome se justifica pelo fato de que pretendia ainda escrever mais. Em 1848, publicou Segundos Cantos. Nos anos seguintes, contribuiu para jornais da época, como Jornal do Comércio, a Gazeta Mercantil e Correio da Tarde. Em 1851, publica Últimos Cantos. Considerando a historiografia literária brasileira, o poeta faz parte da primeira geração de poetas românticos do Brasil. Com a independência política de 1822, a consciência para a formação de uma nação cresce entre os brasileiros, que seguem o ritmo dos Estado-nação da Europa. Essa consciência faz com que uma cultura brasileira passe a ser buscada a partir da identificação com a história, as culturas e as línguas faladas no país. O Romantismo surgiu na Europa e tinha uma conexão muito forte com os ideais burgueses, pois coube a essa escola literária desvincular-se da retomada que o Arcadismo havia feito do Classicismo e criar uma linguagem nova, mais simples e vinculada aos ideais da nova classe dominante. Sendo assim, no Brasil, a busca por essa nova linguagem encontrou terreno fértil na obra de Gonçalves Dias. O poeta modernista Manuel Bandeira notou que a famosa “Canção do Exílio” é um dos primeiros poemas brasileiros a apresentar uma sonoridade, ritmo e jeito de falar típicos da nossa terra. Esse movimento se caracteriza por uma série tão diferente de motivos que fica difícil defini-lo adequadamente. No Romantismo, juntaram-se elementos como conservadorismo, desejo libertário, inovação formal, repetição e valorização de formas consagradas ou populares e revolta radical; apesar de contraditórios, todos fizeram parte desse movimento multiforme. Podemos dizer, no entanto, que há algumas marcas recorrentes tais como o anticlassicismo (oposição ao Arcadismo), maior espaço para a individualidade, desejo de romper com a normatividade e aversão ao racionalismo. Dessa maneira, encontramos um grande apelo à emoção, à liberdade e à paixão nas obras desse período. 32 Os românticos encontraram suas referências ao se voltarem para o passado próximo da industrialização e da Revolução Francesa, fosse para louvá-las ou para negá- las. Desse modo, passam a valorizar espaços rurais, o Oriente (de forma estigmatizada, pois viam nos países orientais um “aspecto selvagem” que contrastavam com o modo de vida ocidental), a imaginação e a sensibilidade. Ao darem maior espaço a esses valores, acabam negando deliberadamente a racionalidade que o Iluminismo havia sistematizado (tendo a Enciclopédia como principal símbolo desse processo), sendo que um dos filósofos mais importantes do período foi o francês Jean-Jaques Rousseau. Para além do campo das ideias, o Romantismo ganha uma forma mais visível, que chamamos de estética, assim, poemas e pinturas da época dão espaço para a imaginação, com motivos tidos como exóticos, melancólicos ou aterradores. Outros nomes importantes do período foram os escritores e poetas Victor Hugo, Goethe, Keats, Lord Byron e os compositores Beethoven, Schubert e Chopin (você deve conhecer alguns deles, não é mesmo?). Por ter vivido em Portugal em meados do século XIX, Gonçalves Dias teve contato próximo com os acontecimentos do período na Europa e assimilou essas ideias, todavia,por todas as singularidades de nosso país, o movimento romântico tomou formas diversas por aqui. Gonçalves e outros românticos brasileiros escolheram os elementos que faziam sentido para a nossa realidade e deixaram de lado outros. Desse modo, no Brasil, um dos traços principais do Romantismo foi o nacionalismo, a partir do qual se desenvolveram o indianismo, o regionalismo, a pesquisa histórica, linguística e cultural, que tinham por objetivo a criação de uma identidade nacional. O Romantismo estreou por aqui em 1836, com o livro Suspiros poéticos, de outro Gonçalves (o Gonçalves de Magalhães), mas o movimento só se solidificou com o trabalho do poeta de que estamos tratando aqui, Antonio Gonçalves Dias. A nossa recente independência naquele período era algo bastante particular, além de que nossa população diversificada, formada por etnias indígenas e africanas, possuíam uma cultura vasta e línguas diferentes, trazia elementos que nenhum país europeu poderia ter. Nesse ponto, uma informação sobre a vida de Gonçalves Dias se torna muito importante para entendermos o seu romantismo: a origem de sua mãe. 33 Gonçalves era filho de pai português e mãe maranhense, Vicência Mendes Ferreira, que, segundo a pesquisadora Marisa Lajolo, era mestiça de índio e de negro. Sendo assim, o nosso poeta tinha nas suas raízes os povos originários do Brasil e os africanos escravizados trazidos no processo mais doloroso e marcante de nossa história. Uma informação importante para analisarmos os poemas de Últimos cantos e que dialoga com esse seu traço biográfico é que Gonçalves também foi etnólogo (aquele que estuda povos e suas culturas) e estudou com muito interesse os povos indígenas do Maranhão, sendo um dos primeiros a fazer isso. Estar em contato com suas raízes e com parte de sua história materna parecia ser de suma importância para ele e é por isso que o indígena assume um espaço central na sua poesia. Assim, não é por mero acaso que se tornou o mais célebre poeta indianista. Infelizmente, muitos livros que contam a história de Gonçalves se esquecem de mencionar esse fato importantíssimo. Gonçalves apreciava a cultura indígena dos povos do Maranhão que, em certa medida, era também a sua cultura e esse contato cultural era um modo de estar mais próximo da memória de sua mãe. Por todo esse interesse, entre 1859 e 1862, ele fez parte da Comissão Científica de Exploração, viajando pelo Norte e Nordeste do Brasil a fim de estudar as suas culturas e povos. A obra Últimos Cantos é de 1851, anterior a essa expedição. No entanto, em um artigo publicado em 1850, na Revista Guanabara, o poeta justificou a importância de estudar os povos indígenas do Brasil ao dizer que um estudo etnográfico faria nascer um poeta conhecedor do passado, pois, segundo ele, conhecer as culturas também era poesia. Gonçalves era curioso e nutria um carinho especial pela língua Tupi e suas tribos, interessava-se pelos ritos, religião, objetos de caça e guerra. O poema “I-Juca-Pirama” demonstra todo o seu vasto conhecimento sobre o tema. O indígena de Gonçalves Dias representa o nacionalismo e a independência e não é um mero cavaleiro medieval fantasiado com a roupagem histórica brasileira. Nas palavras de Gonçalves, os indígenas “são instrumento do quanto aqui se praticou de útil ou de glorioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os que deram a base para o nosso caráter nacional; ainda mal desenvolvido, e será a coroa da nossa prosperidade o dia da sua inteira reabilitação”. (GUANABARA, 1850, p. 28-29). 34 Últimos Cantos se inicia com uma carta de Gonçalves (datada de 1850) ao amigo Alexandre Theophilo de Carvalho Leal dizendo que o livro reunia seus últimos poemas esparsos. O poeta explica que se trata de um livro que reúne os últimos “arpejos de uma lira”, ou seja, versos que foram escritos “ao balanço” da desventura e com as de um espírito doente, ainda, muitos poemas são baseados em dores imaginadas, mas nem por isso menos tristes “como se a realidade já não fosse por si bastante penosa”. Esse tom que ressalta o sofrimento se refere à parte lírica do livro, em que encontramos os poemas que apresentam as tais dores. Você deve ter notado que o tom de Gonçalves ao amigo revela algumas das características dos poetas românticos, como um aguçado sentido da individualidade “dores de um espírito” e uma atenção especial aos motivos melancólicos 35 e arrebatadores. Veja como o tom de Gonçalves na carta reforça o cenário do Romantismo de sua época: Desejar e sofrer — eis toda a minha vida neste período; e estes desejos imensos, indizíveis, e nunca satisfeitos,— caprichosos como a imaginação,— vagos como o oceano, — e terríveis como a tempestade ; — e estes sofrimentos de todos os dias, de todos os instantes, obscuros, implacáveis, renascentes, — ligados a minha existência, reconcentrados em minha alma, devorados comigo,— umas vezes me deixaram sem força e sem coragem, e se reproduziram em pálidos reflexos do que eu sentia, ou me forçaram a procurar um alívio, uma distração no estudo, e a esquecer-me da realidade com as ficções do ideal. (DIAS, 1851, p. IV). Essa exaltação dos sentimentos promove uma jornada rumo à idealização; assim, como fuga das mazelas da realidade, o poeta se refugia em um mundo imaginado de ideais. É interessante notar como Gonçalves estava consciente da forma que os seus poemas tomavam, dos temas e do modo como foram compostos, a carta deixa as características românticas bem evidentes e é um aparato textual importante para entendermos o livro Últimos Cantos, pois ele é fruto de um contexto histórico bem específico: o século XIX brasileiro. O poeta também demonstra, na carta, satisfação por ter contribuído com sua poesia para a formação do país e fica muito feliz por ter sabido que muita gente que não sabia ler recitou seus versos de cor. Ainda na carta, Gonçalves compara o seu ofício de poeta com o de um soldado ou desbravador, porque escrever era uma luta e só o fazia por incentivo do amigo: “Entrei na luta, e por mais algum tempo continuarei nela, variando apenas o sentido dos meus cantos” (DIAS, 1851, p. V), o poeta revela que seu maior desejo era que sua poesia sobrevivesse ainda por mais uma geração (felizmente ele conseguiu muito mais do que isso!). As divisões do livro O livro é dividido em três partes, que separam os poemas de acordo com a temática e a estrutura. 36 37 A primeira parte do livro é chamada de “Poesias Americanas”. Hoje, é muito comum que o termo “americana” seja sinônimo para os EUA, uma infeliz apropriação do nome do continente. Naquela época, “americana” se referia a qualquer característica ou elemento relacionado a todos os povos e territórios da América e é nesse sentido que Gonçalves o emprega. O primeiro poema, chamado “O gigante de pedra” – longo e dividido em 5 partes – é o que dá origem à famosa expressão “o gigante acordou”; nesse poema, um gigante de pedra e ferro fundido dorme enquanto as terras brasileiras se desmantelam pelos constantes massacres e guerras, desfazendo e extinguindo etnias indígenas, todavia, paradoxalmente, é esse mesmo processo que forma o próprio país: Brilha a lua cintilante, E sempre mudo o gigante, Imóvel, sem acordar (DIAS, 1851, p. 4) E o gérmen da discórdia Crescendo em duras brigas, 38 Ceifando os brios rústicos Das tribos sempre amigas, —Tamoy a raça antígua, Feroz Tupinambá. (DIAS, 1851, p. 7). Na sequência, o eu lírico narra a chegada de embarcações flamejantes soltando “Um troço ardido e forte/ Cobrindo os campos úmidos/ De fumo, e sangue, e morte” (DIAS, 1851, p. 7). Aqui, o poeta se refere à chegada dos portugueses e às correntes invasões que o país sofria também de outros europeus, espalhando a tragédia entres os povos originários do Brasil. Adiante, o poema apresenta as cidades, quecomeçavam a crescer. Nesse ponto, fica claro que o gigante adormecido simboliza o próprio país. Ao fim, o eu lírico se conforma com a dormência do gigante, mas pede que acorde caso a pátria venha a se desfazer, provavelmente com o propósito de mantê-la unida: Porém se algum dia fortuna inconstante Poder-nos a crença e a pátria acabar, Arroja-te às ondas, oh duro gigante, Inunda estes montes, desloca este mar! (DIAS, 1851, p. 9). O segundo poema das “Poesias Americanas” é um poema de amor chamado “Leito de folhas verdes”, que dialoga com a tradicional cantiga de amigo trovadoresca, já que uma mulher chora a ausência de seu amado. Nesse caso, os versos louvam a beleza do amado indígena; o eu lírico é a amada que, zelosa, constrói um leito de folhas verdes: “Eu sob a copa da mangueira altiva/ Nosso leito gentil cobri zelosa/ Com mimoso tapiz de folhas brandas,/ Onde o frouxo luar brinca entre flores” (DIAS, 1851, p. 9). Toda a cena amorosa se desenrola em meio à mata, louvando as belezas naturais da pátria, apesar dos chamados da amada, Jatyr não a ouve ou não aparece e o poema finda de modo triste: Não me escutas, Jatyr; nem tarde acodes À voz do meu amor, que em vão te chama! Tupan! lá rompe o sol! do leito inútil A brisa da manhã sacuda as folhas! 39 (DIAS, 1851, p. 11). Outro poema dessa primeira parte é “I-Juca-Pirama”. Dividido em dez partes, é uma das obras mais conhecidas, importantes e bem-sucedidas do romantismo indianista. Esse poema épico tem por herói o guerreiro tupi I-Juca-Pirama. Seu nome, em tupi, significa “o que há de ser morto”, nesse caso, você já sabe o que esperar do desfecho dessa história, mas vale ressaltar que o desenvolvimento dela é muito interessante. O poema se inicia em tom forte anunciando o espaço da floresta como lugar em que a ação épica acontecerá, assim, o eu lírico apresenta a tribo dos Timbiras, famosa por seu tamanho e por suas habilidades nas artes da guerra. Essa tribo é apresentada como a grande vencedora de várias guerras em que outras etnias caíram vencidas. Desse modo, o foco avança para o momento em que, no centro da taba Timbira, está um prisioneiro de guerra: No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora se aduna o concilio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados praticam d'outr'ora, E os moços inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno d'um índio infeliz. Quem é?— ninguém sabe: seu nome é ignoto, Sua tribo não diz: — de um povo remoto Descende por certo— d'um povo gentil; (...) Por casos de guerra caiu prisioneiro Nas mãos dos Timbiras:— no extenso terreiro Assola-se o teto que o teve em prisão, Convidam-se as tribos dos seus arredores, Cuidosos se incumbem do vaso das cores, Dos vários aprestos da honrosa função. (DIAS, 1851, p. 13). Na sequência, o prisioneiro começa a ser preparado pelas mulheres timbiras para um ritual; além do guerreiro desconhecido preso, um timbira de função importante no grupo, também recebe seus adornos de pena, como parte importante do ritual que está 40 sendo preparado. O prisioneiro tem os cabelos raspados e é tingido de vermelho. A primeira parte é formada por versos de 11 sílabas, mantendo um ritmo constante, estrofes de seis versos e esquema de rimas AABCCB. Entanto as mulheres com leda trigança, (A) Afeitas ao rito da barbara usança, (A) O índio já querem cativo acabar: (B) A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, (C) Brilhante induápe no corpo lhe cingem, (C) Sombreia-lhe a fronte gentil kanitar. (B) (DIAS, 1851, p. 14). A segunda parte muda de ritmo. Essas mudanças são muito importantes ao logo do poema, pois a silabação mais longa na primeira parte, por exemplo, reforça a tristeza do prisioneiro. Já na segunda parte, o ritmo acelera. Nesse caso, as estrofes são de quatro versos que se alternam entre 10 e 4 sílabas, rimando entre si apenas os versos curtos: A dura corda, que lhe enlaça o colo, Mostra-lhe o fim Da vida escura, que será mais breve Do que o festim! (DIAS, 1851, p. 15). Desse modo, o eu lírico nos apresenta a subjetividade do prisioneiro, que ainda não sabemos exatamente quem é. Suas expressões e sentimentos são descritos e fica anunciado que ele não chegará a ver o sol se pôr. O terceiro momento é formado por versos decassílabos e mostra a chefe da tribo Timbira se dirigindo ao prisioneiro anônimo para anunciar-lhe a morte. Toda a ação acontece dentro dos limites do ritual indígena da antropofagia e o chefe da tribo pede que o prisioneiro se apresente. Nesse ponto, chegamos à parte IV, na qual finalmente conheceremos nosso personagem. O presente canto é um dos mais conhecidos do poema. Cada verso tem 5 sílabas poéticas, o ritmo veloz do canto endossa a força de I-Juca- Pirama, que finalmente se apresenta em primeira pessoa. Esse é o ápice do épico e as rimas e metrificação fazem com que o canto de I-Juca parece uma marcha de guerra: 41 Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. (DIAS, 1851, p. 18). Adiante, ainda na mesma parte, I-Juca-Pirama conta a sua história, dizendo que é guerreiro da tribo Tupi e que foi capturado enquanto andava pela floresta. I-Juca implora pela vida, pois diz que precisa cuidar de seu pai, que é velho e cego. Aqui temos uma demonstração de amor filial. No canto V, os decassílabos voltam, pois volta o ritmo da fala do chefe Timbira que, após ouvir o apelo do guerreiro Tupi para ficar vivo e cuidar de seu pai, dá a ordem para que seja liberado. Nos rituais antropofágicos, apenas guerreiros fortes e muito bem posicionados em suas tribos são mortos para o festejo final, sendo assim, quando I-Juca- Pirama chora, o Tibira o considera covarde e indigno de passar pelo ritual. O guerreiro Tupi percebe a falha e tenta argumentar que voltaria assim que o pai morresse a fim de morrer dignamente, todavia, o chefe da tribo inimiga não quer mais saber: — És livre; parte! —Ora não partirei; quero provar-te Que um filho dos Tupis vive com honra, E com honra maior, se acaso o vencem, Da morte o passo glorioso affronta. — Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!... parte; não queremos Com carne vil enfraquecer os fortes. (DIAS, 1851, p. 23). 42 A parte de número VI nos leva para a tribo Tupi, onde o herói (que até o momento não apresentou muitas características heroicas) é recebido pelo pai cego. O velho Tupi quer saber por onde o filho havia andado e, ao tatear seu rosto e corpo, o pai logo percebe a tintura e os cabelos raspados. Sentindo lágrima em seus olhos, entende que o filho havia sido capturado pelos inimigos e agora estava solto, então compreende que algo estranho se passara e questiona o filho, que tudo lhe conta. No canto VII, ao saber que o rapaz havia chorado diante do inimigo, o velho pai fica extremamente envergonhado e irritado, pois seu filho rompera com a tradição milenar, de modo que o velho pai vai aos Timbiras e leva o filho para ser morto, mas nada pode convencer a tribo inimiga. Assim, no canto VIII, o pai diz: “Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés. (DIAS, 1851, p. 30). O filho é renegado, na sequência do canto, o ancião Tupi lança a I-Juca-Pirama todos os tipos de maldições: “Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste,Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és.” (DIAS, 1851, p. 31). Essa é uma parte muito emocionante do épico. Após dar vazão ao desgosto do pai, chegamos à parte de número IX, em que as características heroicas de I-Juca-Pirama 43 aparecem. Assim que o velho Tupi termina seu lamento, ouvem-se os gritos de guerra do filho, que ataca a tribo Timbira e luta bravamente como o guerreiro Tupi que de fato era, reconstituindo sua hora e emocionando a todos ali presentes. I-Juca-Pirama cai morto no colo do pai que, feliz, finaliza o canto IX dizendo: O guerreiro parou, caiu nos braços Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lágrimas de júbilo bradando: “Este, sim, que é meu filho muito amado! “E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, “Corram livres as lágrimas que choro, “Estas lágrimas, sim, que não desonram.” (DIAS, 1851, p. 34). Depois de ter a honra restaurada, sua e de sua tribo, o canto X inicia com a narração de que um velho Timbira recontava a história para as pessoas de sua tribo, isso mostra que a bravura de I-Juca-Pirama havia virado mito até mesmo na tribo inimiga: Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: “Meninos, eu vi!” (DIAS, 1851, p. 36). Desse modo termina o poema épico. O herói do poema apresenta algumas características que são atribuídas ao conhecimento que Gonçalves tinha dos textos medievais, nos quais os cavaleiros demonstravam uma grande fidelidade ao seu senhor e ideais de honra. Porém, o poeta romântico também tinha muito conhecimento sobre tribos brasileiras e seus modos de guerra, portanto, I-Juca-Pirama também apresenta elementos e características de um guerreiro Tupi, sobretudo quando assume essa identidade e aceita morrer como tal. Por fim, o herói acaba por representar um ideal de brasileiro, representativo de nossa nacionalidade e da fidelidade a ela devida. Esse poema épico é uma reviravolta na literatura indianista, pois transforma as manifestações antes coloniais em manifestações nacionais, abrindo espaço para uma vertente literária nova, 44 apartada das complexas relações com Portugal, portanto, finalmente brasileira. De fato, o poema mais importante do livro é “I-Juca-Piram”, por isso, as questões de vestibular tendem a girar em torno dele. Os outros poemas dessa parte são poemas líricos, muitos dos quais têm por eu líricos jovens indígenas, relembrando um pouco da tradição das cantigas de amor e de amigo do medievalismo galego português. Temas da natureza brasileira são retomados, marcando o caráter nacionalista da geração romântica a que Gonçalves pertence. O poeta traduz várias lendas indígenas para a sua lírica e tudo isso se condensa nessa terceira parte. Temos, então, o canto de uma indígena Marabá, mestiça que, por ser branca, ter cabelos ondulados e loiros e olhos azuis, é negada pelos guerreiros indígenas, que preferem a beleza das mulheres da tribo; a “Canção do Tamoio”, cujo subtítulo é “Natalícia”, se trata de um aconselhamento de um indígena tamoio a seu filho que acabou de nascer sobre a força da tribo; “Mangueira”, que consiste no louvor a um pé de manga, e um poema para “Mãe d’água”, mais conhecida como Iara no nosso folclore, com um fim trágico: Era figura tão bela! E que expressão tão singela, Que riso o seu! Oh! minha mãe certamente Só por não me não ver contente, Me repr'hendeu! Espreita, sim, mas duvida Que a bela imagem querida Torne a volver; E na fonte cristalina Para ver lodo se inclina Se a pode ver! (DIAS, 1851, p. 51). Por fim, a segunda parte traz poemas diversos e recebe esse mesmo título: “´Poesias diversas”. Nela, encontramos poemas ligados à realidade política da época alternados com poemas líricos, marcando bem o nacionalismo do poeta. O primeiro poema é em louvor a D. Pedro. Na sequência dos poemas cívicos ou de crítica 45 política/social: um poema sobre voto, “Cumprimento de um voto”; “As duas coroas”; “O que mais dói na vida”, “A história”, entre outros. Já o primeiro poema lírico dessa parte é feito em louvor de uns “olhos verdes”, bastante conhecido ainda hoje, mostra toda a habilidade de Gonçalves nessa vertente: Olhos verdes São uns olhos verdes, verdes, Uns olhos de verde-mar, Quando o tempo vai bonança; Uns olhos côr de esperança, Uns olhos por que morri; Que ai de mi! Nem ja sei qual fiquei sendo Depois que os vi! (DIAS, 1851, p. 68). De poemas líricos, ainda temos: “Lira quebrada”, “A Pastora”, “A Infância”, “Urge o tempo”, “Sobre o túmulo de um menino”, “Menina e moça”, “Como eu te amo”, “Harpejos”, “Triste do trovador”, “Velhice e mocidade”, “As flores”, “Flor de beleza”, “Anjo da harmonia”, entre outros. Temas do amor, da morte de pessoas queridas e da solidão fazem do livro um espaço para reflexão e conhecimento histórico. “Lira quebrada”, por exemplo, fala do cansaço de alguém que já não pode mais fazer versos, ou não quer: Mas não peças um hymno ao triste bardo Verde ramo d'uma arvore gigante O raio no passar queimou-lhe o viço, Deixando-o por escarneo entre verdores. Uma febre, um ardor nunca apagado, Um querer sem motivo, um tédio á vida Sem motivo também,—caprixos loucos, Anhelo d'outro mundo, d'outras coisas; (DIAS, 1851, p. 76). O poema “Sobre o túmulo de um menino” remete ao ano de 1818 e descreve um túmulo onde está enterrada uma criança, os versos não revelam de quem se trata, mas deixam clara a dor experenciada pela perda: 46 O invólucro de um anjo aqui descança, Alma do céu nascida entre amargores, Como flor entre espinhos!—tu, que passas, Não perguntes quem foi.—Nuvem risonha, Que um instante correu no mar da vida; Romper da aurora que não teve occaso, Realidade no céu, na terra um sonho! Fresca rosa nas ondas da existência, Levada à plaga eterna do infinito, Como oferenda de amor ao Deus que o rege; Não perguntes quem foi, não chores: passa. (DIAS, 1851, p. 91). “Flor de Beleza” parece ter um tom mais alegre e louva a beleza de uma mulher, todavia, ao final, há uma leve indicação de que a mulher está morta: Mas antes que nos curvemos Ante a belleza que vemos, Tua angélica bondade Conquista a nossa affeição: Não és mulher, mas deidade, Uma fada seductora, Que nos pede amor agora, Logo mais—adoração. (...) Mas d'alma a vida é mais fina, Exhala essência divina, Que avigora e fortifica O dorido coração; Morto o corpo, ainda fica, Como em rosai arrancado, Leve aroma derramado Dos espaços na extensão. (DIAS, 1851, p. 428-430). Por fim, a terceira parte do livro, denominada “Hinos”, é composta por três poemas: “O meu sepulcro”, “A harmonia” e “A tempestade”. O primeiro trata das alegrias que tomarão o ser do eu-lírico com a chegada de sua própria morte. O eu-lírico encara a morte com tranquilidade, pensando em um descanso merecido, portanto, não tem medo de encontrá-la: Grato descanço aos membros fatigados 47 Presta igualmente a relva das campinas E os torrões pelo sol endurecidos. Como o trabalhador que asésta aguarda, O meu termo fatal sem medo espero! (DIAS, 1851, p. 256). O segundo – “A harmonia” – fala da harmonia do mundo, dos astros, anjos, animais e homens como parte de um grande concerto harmonioso em que cada coisa está no seu devido lugar. Esses elementos são ouvidos pelo poeta que os coloca em forma de hino/poema: E tristes gemidos E incerto rumor; —Quem ouve?—0 poeta Que imita e suspira Nas cordas da lyra Mais doce cantar. (DIAS, 1895, p. 266). O terceiro – “A tempestade” – descreve uma tempestade, começando os versos com apenas uma palavra, os versos aumentam conforme a intensidade dos raios e da chuva também cresce, decorre a destruição proveniente da tormenta e os versos voltam a diminuir. Assim, ao fim, quando a tempestade termina
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