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A busca da verdade: Antiguidade e Idade Média CAPÍTULO 9 Escola de Atenas (1506-1510), afresco de Rafael Sanzio. Esse famoso afresco de Rafael Sanzio, que orna uma das paredes do Palácio Apostólico no Vaticano, representa o retorno à cultura greco-latina, incentivado no Renascimento. Vários filósofos e cientis- tas de épocas diferentes estão reunidos na pintura, tendo ao centro Platão – que aponta para cima, como se indicasse o mundo das ideias, enquanto seu realista discípulo Aristóteles aponta para baixo. À es- querda, de túnica bege, Sócrates dialoga com Alexandre, o Grande (de vestimenta militar), Ésquines e Xenofonte. Abaixo, estão a filósofa Hipátia de Alexandria e Parmênides de Eleia. Solitário, sentado ao pé da escada, Heráclito escreve. Na mesma direção, à direita, Euclides, rodeado por discípulos, demonstra um teorema, com um compasso. Ainda à direita, mais para cima, Ptolomeu, de costas, segura um globo terrestre. Inúmeros outros personagens estão representados, como Zenão de Eleia, Pitágoras, Epicuro e até o próprio Rafael. RA FA EL S A N ZI O /P A LÁ C IO A PO ST Ó LI C O , C ID A D E D O V A TI C A N O 104 1 Teoria do conhecimento A teoria do conhecimento é a disciplina filosófi- ca que investiga as condições do saber verdadeiro. Neste capítulo, iniciaremos uma caminhada histórica para examinar como, ao longo do tempo, os filósofos conceberam o conceito de verdade. Os filósofos da Antiguidade e da Idade Média se interessaram por questões relativas ao conhecimento, embora ainda não se tratasse propriamente de uma teoria como disciplina autônoma. Isso se deve ao fato de que, com exceção dos céticos, aqueles filósofos não coloca- vam em dúvida a capacidade humana de conhecer: eles explicavam como conhecemos. A crítica da capacidade de conhecer foi iniciada no século XVII, tema de análise dos próximos capí- tulos desta unidade. O que queremos deixar claro é que a filosofia reflete com base nos problemas do seu tempo, por isso mesmo as concepções sobre o conhecimento e a verdade mudam e se refinam. Comecemos, pois, com as indagações sobre o problema do conhecimento na Grécia antiga, desde os pré-socráticos a Platão e Aristóteles, cujas teorias influenciaram profundamente o pensamento medie- val e ainda hoje ressoam em nossa maneira de pensar. 2 Filosofia pré-socrática O período pré-socrático atravessou todo o sé- culo VI a.C., quando filósofos oriundos das colônias gregas, como Jônia (atual Turquia) e Magna Grécia (sul da Itália e Sicília), iniciaram o processo de desligamento entre filosofia e pensamento mítico. No capítulo 2, “As origens da filosofia”, é explicado como se deu a passagem do mito para a filosofia e como pensaram vários filósofos pré-socráticos. Para eles, o princípio (a arkhé, em grego) não se encontra na ordem do tempo mítico, mas requer um princípio teórico, fundamento de todas as coisas. A seguir, retomaremos as principais ideias de dois daqueles filósofos – Heráclito e Parmênides –, em razão da influência que exerceram sobre os filósofos da era clássica. Heráclito e o devir Vimos no capítulo 2 que Heráclito (c. 544- -484 a.C.) nasceu em Éfeso, na Jônia, e, como seus contemporâneos, procurou compreender a multi- plicidade do real. Ao contrário deles, porém, não rejeitou as contradições e quis apreender a realidade na sua mudança, no seu devir. Todas as coisas mudam sem cessar, e o que temos diante de nós em dado momento é diferente do que foi há pouco e do que será depois: “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também as águas correntes são outras. Para Heráclito, o ser é o múltiplo, não apenas no sentido de que há uma multiplicidade de coisas, mas por estar constituído de oposições internas. O que mantém o fluxo do movimento não é o simples apa- recer de novos seres, mas a luta dos contrários, pois “a guerra é pai de todos, rei de todos”. É da luta que nasce a harmonia, como síntese dos contrários. O dinamismo de todas as coisas pode ser representado pela metáfora do fogo, expressão visível da instabi- lidade, símbolo da eterna agitação do devir: “o fogo eterno e vivo, que ora se acende e ora se apaga”. Parmênides: o ser é imóvel Parmênides (c. 544-450 a.C.) viveu em Eleia, cidade do sul da Magna Grécia. Sua teoria, também chamada eleática, influenciou de modo decisivo o pensamento ocidental. Criticou a filosofia heraclitia- na ao contrapor a imobilidade do ser ao “tudo flui”, proposto por Heráclito. Para Parmênides, é absurdo e impensável afirmar que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo. Com base no princípio estabelecido, Parmênides conclui que o ser é único, imutável, infinito e imóvel. Entretanto, porque não há como negar a existência do movimento no mundo – dado que as coisas nas- cem e morrem, mudam de lugar e se expõem em infinita multiplicidade –, o filósofo explica que o mo- vimento existe apenas no mundo sensível. Portanto, a percepção pelos sentidos é ilusória e fundamentada na opinião. Apenas o mundo inteligível é verdadeiro. Uma das consequências da teoria de Parmênides é a identidade entre o ser e o pensar: ao pensarmos, pensamos algo que é, e não conseguimos pensar algo que não é. Devir. Do latim devenire, “chegar”, “vir de”, “dirigir- -se a”; signifi ca “vir a ser”, “tornar-se”. Etimologia No período clássico, os filósofos – sobretu- do Aristóteles – se apropriaram das ideias de Parmênides para fundamentar a construção da metafísica e formular os princípios da lógica. Um deles é o princípio de identidade, em que “A = A”, ou seja, todo ser é igual a si mesmo, como trata o capítulo anterior. Para saber mais 105 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 3 Sofistas: a arte de argumentar No período socrático ou clássico (séculos V e IV a.C.), o centro cultural deslocou-se das colônias gre- gas para a cidade de Atenas. Desse período fazem par- te Sócrates e seu discípulo Platão, que posteriormente foi mestre de Aristóteles. O século V a.C. é também conhecido como o século de Péricles, governante na época áurea da cultura grega, quando a democrática Atenas desenvolveu intensa vida política e artística. Embora ainda discutissem temas cosmológicos, es- ses filósofos ampliaram os questionamentos para as áreas de antropologia, moral e política. A essa época também pertencem os sofistas, mestres da retórica. Os sofistas vinham de todas as partes do mundo grego e ocupavam-se de um ensino itinerante, sem o compromisso de se fixar em um lugar específico. Por deslumbrarem seus alunos com o brilhantismo de sua retórica, foram duramente criticados por Sócra- tes, Platão e Aristóteles, que os acusavam de não se importar com a verdade, pois, afeitos que eram à arte de persuadir, reduziam seus discursos a meras opiniões. Eram também acusados de “mercenários do saber” pelo costume de cobrar pelas aulas. No entanto, geralmente os sofistas pertenciam à classe média e, por não serem suficientemente ricos, não podiam se dar ao luxo do “ócio digno”. Esse termo era utilizado na sociedade grega para designar o tempo dedicado à atividade in- telectual, costume da aristocracia liberada do trabalho de subsistência – ocupação destinada aos escravos. A visão pejorativa dos sofistas perdurou por longo tempo, até que no século XIX uma nova his- toriografia veio reabilitá-los, realçando suas princi- pais contribuições. Segundo Werner Jaeger, historiador da filosofia, os sofistas exerceram influência muito forte no seu tempo, vinculando-se à tradição educativa dos poetas Homero e Hesíodo. Sua contribuição para a sistematização do ensino foi notável pela elaboração de um currículo de estudos: gramática (da qual são os iniciadores), retórica e dialética; na tradição dos pitagóricos, desenvolveram a aritmética, a geome- tria, a astronomia e a música. Sofi sta. Do gregosophistés, “sábio”, ou melhor, “professor de sabedoria”. Posteriormente, o termo adquiriu sentido pejorativo para denominar aquele que emprega sofi smas, ou seja, alguém que usa de raciocínio capcioso, de má-fé, com intenção de enganar. Sóphisma signifi ca “sutileza de sofi sta”. Etimologia Além disso, os sofistas elaboraram o ideal teó- rico da democracia, valorizado pelos comerciantes em ascensão, cujos interesses passaram a se con- trapor aos da aristocracia rural. Nessas circuns- tâncias, a exigência que os sofistas satisfazem na Grécia de seu tempo é de ordem essencialmente prática, voltada para a vida, pois iniciavam os jovens na arte da retórica, instrumento indis- pensável para que os cidadãos participassem da assembleia democrática. Se os sofistas foram acusados pelos seus detra- tores de pronunciar discursos vazios, essa fama se deve ao fato de que alguns deles deram excessiva atenção ao aspecto formal da exposição e da defesa das ideias. E também porque em geral os sofistas estavam convencidos de que a persuasão é elemento essencial para o cidadão na cidade democrática. Os melhores deles, no entanto, buscavam aperfeiçoar os instrumentos da razão, ou seja, a coerência e o rigor da argumentação. Pode-se dizer que aí se encontrava o embrião da lógica, mais tarde desenvolvida por Aristóteles. Principais sofistas Entre os sofistas mais famosos destacam-se Pro- tágoras de Abdera, Górgias de Leontini, Hípias de Élida, Trasímaco, Pródico e Hipódamos, entre outros. Do mesmo modo que ocorreu com os pré-socráticos, dos sofistas só nos restam fragmentos de suas obras. Examinemos dois dos mais importantes sofistas: Protágoras e Górgias. Protágoras Protágoras de Abdera (c. 485-411 a.C.) dizia que “O homem é a medida de todas as coisas”. Descontextualizado, esse fragmento torna-se um tanto obscuro. Pode ser entendido de várias ma- neiras, mas frequentemente é interpretado como a exaltação da capacidade humana de construir a verdade. Assim, o logos não é divino, mas resulta do exercício técnico da razão humana, responsável por confrontar as diversas concepções possíveis da verdade. O que denota relativismo e subjetivismo, pois a verdade depende das circunstâncias e do lugar em que é discutida. Retórica: arte da oratória; técnica de argumentar de maneira persuasiva. Dialética: conceito com diversos significados. No contexto dos sofistas, habilidade para discutir e argumentar. Relativismo: teoria segundo a qual não existem verdades absolutas, porque qualquer afirmação é sempre relativa à pessoa, ao grupo ou ao tempo a que pertence. 106 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . A teoria de Protágoras foi herdeira da polêmica dos pré-socráticos entre aparência e realidade, opinião e verdade. Tendeu para os heraclitianos, que defendiam a mudança constante de todas as coisas, afastando-se das teorias eleáticas sobre a imobilidade do ser. Fazia sentido seu posicionamen- to, por viver em uma época de confrontos políticos e da necessária participação do cidadão no debate sobre os destinos da cidade. Em outras palavras, Protágoras defende que ninguém detém a verdade ou, pelo menos, que ela resulta da discussão entre iguais, como revela sua célebre frase. Protágoras escreveu uma obra chamada Antilogia – que significa contradição –, na qual ensina a defender posições opostas, usando ar- gumentos para cada uma delas. Se por esse mo- tivo alguns o acusaram de estimular a prática de sofismar, outros viam nele alguém que educava o cidadão para o debate público. Górgias Górgias de Leontini (século V a.C.), assim chama- do por ter nascido nessa cidade da Sicília, foi um dos mais famosos oradores da Grécia. Percorreu diversas cidades, inclusive Atenas, e era muito procurado como mestre de retórica. Do ponto de vista do conhecimento, Górgias era um cético. Criticou o debate dos pré-socráticos so- bre verdade e opinião, admitindo que nada podemos conhecer. Desenvolveu três teses: • o ser não existe; • se existisse alguma coisa, não poderíamos conhecê-la; • se a conhecêssemos, não poderíamos comunicá-la aos outros. Essas teses expressam a separação entre o ser, o pensar e o dizer, aspectos que os filósofos anteriores (e também muitos dos que vieram depois) costuma- vam entrelaçar, ao identificar o pensamento acerca do real à realidade das coisas. Ao contrário, o dizer se faz pela palavra e ela é impotente para conhecer o real, servindo apenas para comunicar opiniões. Górgias critica o conceito de verdade porque o ser não se deixa desvelar pelo pensamento, restando-lhe o caminho pelo qual a razão busca iluminar os fatos, sem chegar a uma conclusão definitiva. Como então explicar sua defesa da retórica? Para Górgias, a retórica não leva à verdade, mas à persuasão. E esta se faz não pela razão, mas pela emoção. Por isso, ao contrário de Protágoras, que destacava o aspecto racional da persuasão, Górgias defende seu caráter emotivo. A verdade, em grego, se diz alétheia, termo formado por a (prefi xo negativo) e léthe (esque- cimento). Designa literalmente o não esquecido, o não oculto; portanto, verdade é o que se desvela, o que é visto, o que é evidente. Como se percebe, não era essa a posição tomada pelo cético Górgias. Para saber mais 4 Método socrático Sócrates (c. 470-399 a.C.) nada deixou escrito. Suas ideias foram divulgadas por Xenofonte e Platão, dois de seus discípulos. Nos diálogos de Platão, Sócrates sempre figura como o principal interlocutor. Já o comediógrafo Aristófanes o ridiculariza ao incluí-lo entre os sofistas. Com base no pressuposto “Só sei que nada sei”, que consiste justamente na sabedoria de reconhecer a própria ignorância, Sócrates inicia a busca pelo sa- ber. Ele costumava conversar com todos, fossem ve- lhos ou moços, nobres ou escravos, mas os métodos de indagação de Sócrates provocavam os poderosos do seu tempo, ao se verem contestados por aquele hábil indagador. Desse modo, criou inimigos que o levaram ao tribunal sob a acusação de não crer nos deuses da cidade e de corromper a mocidade. Por essa razão, foi condenado à morte. Na verdade, Sócrates estava introduzindo uma no- vidade na discussão filosófica por meio de seu método, constituído de duas etapas, a ironia e a maiêutica. • A ironia, termo que em grego significa “perguntar, fingindo ignorar”, é a fase “destrutiva”. Diante do oponente, que se diz conhecedor de determinado assunto, Sócrates afirma inicialmente nada saber. Com hábeis perguntas, desmonta as certezas até que o outro reconheça a própria ignorância ou desista da discussão. • A maiêutica (do grego, “parto”) foi assim denomi- nada em homenagem à sua mãe, que era parteira: enquanto ela auxiliava no parto de crianças, Só- crates “dava à luz” novas ideias. Em diálogo com seu interlocutor, após destruir o saber meramente opinativo (a doxa), dava início à procura da defi- nição do conceito, de modo que o conhecimento saísse “de dentro” de cada um. Esse processo está bem ilustrado nos diálogos de Platão, e é bom lembrar que, no final, nem sempre se chegava a uma conclusão definitiva: nesses casos, trata-se dos chamados diálogos aporéticos. Aporético: que diz respeito à aporia (do grego póros, “passagem”, + o prefixo a, que indica “negação”; portanto, “impasse”, “incerteza”). Os diálogos aporéticos não têm continuidade porque o oponente se retira ou não avança a discussão até solucioná-la, sobretudo se o interlocutor se esquiva do debate. 107 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . A busca do conceito Nas conversas, Sócrates privilegia as questões morais, por isso em muitos diálogos pergunta o que são a coragem, a covardia, a piedade, a amizade e assim por diante. Tomemos o exemplo da justiça: após enumerar diversas expressões de justiça,o filó- sofo quer saber o que é a “justiça em si”, o universal que a representa. Para isso, a filosofia nascente precisa inventar palavras novas ou usar as do cotidiano, atribuindo- -lhes sentido diferente. Sócrates utiliza o termo logos (na linguagem comum, “palavra”, “conversa”), que passa a significar a razão de algo, ou seja, aquilo que faz com que a justiça seja justiça. No diálogo Laques (ou Do valor), os generais Laques e Nícias são convidados a discorrer sobre a importância do ensino de esgrima na formação dos jovens. Sócrates reorienta o debate ao indagar a respeito de conceitos que antecedem essa discus- são, ou seja, o que se entende por educação e por virtude. Dentre as virtudes, Sócrates escolhe uma delas e indaga: “O que é a coragem?”. Laques acha fácil responder: “Aquele que enfrenta o inimigo e não foge no campo de batalha é o homem corajo- so”. Sócrates dá exemplos de guerreiros cuja tática consiste em recuar e forçar o inimigo a uma posição desvantajosa, mas nem por isso deixam de ser cora- josos. Cita outros tipos de coragem que ultrapassam os atos de guerra, como a coragem dos marinheiros, dos que enfrentam a doença ou os perigos da política e dos que resistem aos impulsos das paixões. Enfim, o que Sócrates procura não são exemplos de casos corajosos, mas o conceito de coragem. A arte da esgrima, um dos jogos que os gregos antigos aprendiam nos ginásios, é o assunto inicial do diálogo Laques, de Platão. Sabemos que na esgrima os opositores se confrontam a fi m de ver quem é mais hábil para vencer a luta. Releia o item 3 sobre os sofi stas e responda às questões a seguir. a) Em que sentido a metáfora de “esgrimir com pala- vras” é indicativa das críticas feitas por Sócrates e Platão aos sofi stas? b) Refl ita e posicione-se a respeito: esse é um pro- cedimento adequado para a discussão fi losófi ca? Para refletir 5 Platão: o mundo das ideias A importância de Platão deriva, sobretudo, da teoria do conhecimento, que serve de base para a construção do seu sistema filosófico. Costumava citar mitos e alegorias, no intuito de tornar mais concreta a exposição e preparar o terreno para a exposição abstrata de suas ideias. Comecemos pela alegoria da caverna, que consta do livro VII de A República. Quem é? Platão (c. 428-347 a.C.) era na verdade o apelido de Arís- tocles de Atenas (o apelido “Platão” talvez se devesse aos seus ombros largos ou ao corpo meio quadrado). Nascido de família aristocrá- tica, após a condenação de seu mestre Sócrates, viajou por vários lugares, tentou em vão interferir no governo de Siracusa (cidade na Sicília) e por fi m retornou a Atenas, onde fundou a escola denominada Academia. Seus diálogos – que, em sua maior parte, trazem Sócrates como interlocutor principal – abrangem as várias áreas da fi losofi a nascente, e por isso ele é o primeiro fi lósofo sistemático do pensamento ocidental. Sua infl uência foi sentida no helenismo (neoplatonismo) e adaptada à doutrina cristã, ini- cialmente por Agostinho de Hipona (354-430). Até hoje vigoram muitas de suas ideias sobre a relação corpo-alma, a política aristocrática e a crença na su- perioridade do espírito em detrimento dos sentidos. Busto romano do filósofo Platão (século I d.C.). Autoria desconhecida. Alegoria da caverna Conforme a descrição de Platão, pessoas estão acorrentadas desde a infância em uma caverna, de modo a enxergar apenas a parede ao fundo, na qual são projetadas sombras, que elas pensam ser a reali- dade. Trata-se, entretanto, da sombra de marionetes, empunhadas por pessoas atrás de um muro, que também esconde uma fogueira. Se um dos indivíduos conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia os verdadeiros objetos, ao regressar à caverna seus antigos companheiros o tomariam por louco e não acreditariam em suas palavras. Esgrimir: praticar a arte da esgrima; significa também discutir, debater. O mesmo ocorre com a palavra “florear”, que significa “usar arma branca com destreza” ou “embelezar um texto”. BR ID G EM A N IM A G ES /K EY ST O N E BR A SI L – M U SE U F IT ZW IL LI A M , U N IV ER SI D A D E D E C A M BR ID G E 108 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . O que aprendemos com Sócrates? Que o conhe- cimento resulta de uma busca contínua, enriquecida pelo diálogo. Desse modo, ele parte de exemplos e casos particulares até chegar ao universal, ao con- ceito. Isso é filosofar. A alegoria da caverna representa as etapas da educação de um filósofo ao sair do mundo das sombras (das aparências) para alcançar o conheci- mento verdadeiro. Após essa experiência, ele deve voltar à caverna para orientar os demais e assumir o governo da cidade. Por isso, a análise da alegoria pode ser feita sob dois pontos de vista: • o político: com o retorno do filósofo-político que conhece a arte de governar; • o epistemológico: quando o filósofo volta para despertar nos outros o conhecimento verdadeiro. Platão distingue dois tipos de conhecimento: o sen- sível e o inteligível, que se subdividem em outros graus. Observando a ilustração da caverna, identifica- mos quatro formas da realidade: • as sombras: a aparência sensível das coisas; • as marionetes: a representação de animais, plan- tas etc., ou seja, das próprias coisas sensíveis; • o exterior da caverna: a realidade das ideias; • o Sol: a suprema ideia do bem. O muro representa a separação de dois tipos de conhecimento: o sensível (que corresponde às duas primeiras formas de realidade) e o inteligível (correspondente às duas últimas). A valorização da fi losofi a como conhecimento su- perior leva Platão à idealização do rei-fi lósofo. Para o Estado ser bem governado, é preciso que “os fi lósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem fi lósofos”.1 Para saber mais Dialética platônica A alegoria da caverna é a metáfora que serve de base para Platão expor a dialética dos graus do conhecimento. Sair das sombras para a visão do Sol representa a passagem dos graus inferiores do conhecimento aos superiores: na teoria das ideias, Platão distingue o mundo sensível, o dos fenômenos, do mundo inteligível, o das ideias. O mundo sensível, percebido pelos sentidos, é o local da multiplicidade, do movimento; é ilusório, pura sombra do verdadeiro mundo. Por exemplo, mesmo que existam inúmeras abelhas dos mais va- riados tipos, a ideia de abelha deve ser una, imutável, a verdadeira realidade. O mundo inteligível é alcançado pela dialética ascendente, que fará a alma elevar-se das coisas múltiplas e mutáveis às ideias unas e imutáveis. As ideias gerais são hierarquizadas, e no topo delas está a ideia do bem, a mais elevada em perfeição e a mais geral de todas – na alegoria, corresponde à metáfora do Sol. Os seres em geral não existem senão enquanto participam do bem. E o bem supremo é também a suprema beleza: o Deus de Platão. Como as ideias são a única verdade, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que participa do mundo das ideias, do qual é apenas sombra ou cópia. Trata-se da teoria da participação, mais tarde severamente criticada por Aristóteles. A ascensão dialética Opinião (doxa) Imagens do sensível. Realidades sensíveis, crença. Conhecimento matemático, raciocínio hipotético. Ciência (episteme) Conhecimento filosófico, intuição intelectiva. Ilustração representando a alegoria da caverna de Platão. 1 Para mais informações sobre o conceito de rei-filósofo, consulte o capítulo 19, “Política antiga e medieval”. eD U a rD o F ra n c is c o 109 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Teoria da reminiscência Como é possível ultrapassar o mundo das apa- rências ilusórias? Platão supõe que o puro espírito já teria contemplado o mundo dasideias, mas tudo esquece quando se degrada ao se tornar prisionei- ro do corpo, considerado o “túmulo da alma”. Pela teoria da reminiscência, Platão explica como os sen- tidos despertam na alma as lembranças adormecidas. Em outras palavras, conhecer é lembrar. Esse assunto é abordado na obra Mênon. Nesse diálogo, para ilustrar a teoria da reminiscência, o personagem Sócrates chama um escravo e lhe pede que examine algumas figuras sensíveis e, por meio de perguntas, o estimula a “lembrar-se” das ideias e a descobrir uma verdade geométrica. Se retomarmos o que foi comentado a respeito dos pré-socráticos, podemos constatar que Platão procura superar a oposição entre o pensamento de Heráclito, que afirma a mutabilidade essencial do ser, e o de Parmênides, para quem o ser é imóvel. Platão resolve o problema com a teoria do mundo das ideias – que se refere ao ser parmenídeo – e do mundo dos fenômenos, referente ao devir heraclitiano. A filosofia platônica também foi estimulada pelos sofistas. No esforço de se contrapor criticamente a eles, Platão elaborou uma dialética que conduz à verdade. 6 Filosofia de Aristóteles No século IV a.C., a reflexão filosófica já se encon- trava amadurecida e sistematizada nas suas diversas áreas com Aristóteles. Mais ainda, foi ele que estabele- ceu as linhas mestras da lógica, o principal instrumen- to do filosofar. Discutiu sobre os primeiros princípios, sobre as proposições e argumentos (indução, dedução e analogia). Por meio das regras do silogismo, indicou maneiras de evitar falácias e argumentos não válidos.2 Metafísica Entre as diversas contribuições de Aristóteles, destacam-se os conceitos que explicam o “ser em geral”, área da filosofia que hoje chamamos de metafísica, embora ele próprio usasse a denomina- ção filosofia primeira. O termo “metafísica” surgiu no século I a.C., quando Andrônico de Rodes, ao classificar as obras de Aristóteles, dispôs a obra de filosofia primei- ra após as obras de física: metà physis, ou seja, “depois da física”. Posteriormente, esse “depois”, puramente espacial, foi entendido como “além”, por tratar de temas que transcendem a física, que estão além das questões relativas ao conhecimento do mundo sensível. Para saber mais Nas obras Metafísica e Sobre a alma, Aristóteles desenvolve sua teoria do conhecimento. O conhe- cimento sensível e o conhecimento racional são distintos, mas ambos dependem um do outro. Para Aristóteles, a origem das ideias é explicada pela abstração, por meio da qual o intelecto, partindo das imagens sensíveis das coisas particulares (co- nhecimento sensível), elabora os conceitos univer- sais (conhecimento racional). Fica clara, portanto, a oposição à teoria das ideias de Platão, pois, para Aristóteles, nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pelos sentidos. A filosofia primeira não é primeira na ordem do conhecer, já que partimos do conhecimento sensí- vel. Cabe a ela buscar as causas mais universais e, portanto, as mais distantes dos sentidos. Trata-se da parte nuclear da filosofia, na qual se estuda “o ser enquanto ser”, isto é, o ser independentemente de suas determinações particulares. É a metafísica que fornece a todas as outras ciências o fundamento comum, o objeto que elas investigam e os princípios dos quais dependem. 2 Mais referências à lógica no capítulo 8, “Lógica: aristotélica e simbólica”. Quem é? Aristóteles (c. 384-322 a.C.) nasceu em Estagira, na Macedônia – por isso, às vezes, recebe a designação de estagirita. Com 17 anos foi para Atenas estudar na Academia de Platão. A fidelidade ao mestre foi entremeada por críticas. Após a morte de Platão, em 347 a.C., viajou por diversos lugares e foi preceptor do jovem de 13 anos que se tornaria Alexandre, o Grande, da Macedônia. De volta a Atenas, fundou o Liceu, em 335 a.C., assim chamado por ser vizinho do templo de Apolo Lício. Segundo alguns, Aristóteles e os discípulos caminhavam pelo jardim do Liceu, por isso a filosofia aristotélica às vezes é designada peripatética (do grego peri, “à volta de”, e patéo, “caminhar”). Em meados da Idade Média, seu pensamento ressurgiu com vigor, adaptado às teses religiosas. Apesar das críticas sofridas a partir da Idade Moderna, per- manece até hoje como referência, sobretudo nas áreas de lógica, metafísica, política e ética. Busto romano do filósofo Aristóteles (século I d.C.). Autoria desconhecida. U n iv er sa l H is to ry a rc H iv e/ G et ty im a G es – c o le ç ã o p a rt ic U la r 112 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Por exemplo, podemos dizer de uma coisa que ela é diferente de todas as outras; ou semelhante a algu- mas; ou que pertence a determinado gênero ou espé- cie; que é uma totalidade ou apenas uma parte; que é perfeita ou imperfeita; e assim por diante. Esses são conceitos ligados ao ser, e cabe à metafísica examiná- -los, ou seja, refletir sobre o ser e suas propriedades. O conhecimento pelas causas Aristóteles define a ciência como conhecimento verdadeiro, conhecimento pelas causas, por meio do qual é possível superar os enganos da opinião e compreender a natureza da mudança, do movimento. Desse modo, recusa a teoria das ideias de Platão e sua interpretação radical sobre a oposição entre mundo sensível e mundo inteligível. Para entender a teoria aristotélica, vamos des- crever três distinções fundamentais realizadas pelo filósofo: substância-essência-acidente; matéria- -forma; potência-ato. Esses conceitos, por sua vez, servem para compreender a teoria das quatro causas. Substância: essência e acidente Costuma-se dizer que Aristóteles “traz as ideias do céu à terra” porque, para rejeitar a teoria das ideias de Platão, reuniu o mundo sensível e o inteli- gível no conceito de substância: cada ser que existe é uma substância. A substância é “aquilo que é em si mesmo”, o suporte dos atributos. Esses atributos podem ser essenciais ou acidentais: • a essência é o atributo que convém à substância de tal modo que, se lhe faltasse, a substância não seria o que é; • o acidente é o atributo que a substância pode ter ou não, sem deixar de ser o que é. Por exemplo: a substância individual “esta pes- soa” tem como características essenciais os atributos da humanidade (Aristóteles diria que a racionalidade é a essência do ser humano). Os acidentais são, entre outros, ser gordo, velho ou belo, atributos que não mudam o ser humano na sua essência. Matéria e forma Além dos conceitos de essência e acidente, Aristóteles recorre às noções de matéria e forma. Todo ser é constituído de matéria e forma, princí- pios indissociáveis. • A matéria é o princípio indeterminado de que o mundo físico é composto, é “aquilo de que é feito algo”. Trata-se da matéria indeterminada. Quando nos referimos à matéria concreta, trata-se de matéria segunda. • A forma é “aquilo que faz que uma coisa seja o que é”. Nesse sentido, a forma é geral (o que faz com que todo animal ou vegetal sejam o que são). A forma é o princípio inteligível, a essência co- mum aos indivíduos da mesma espécie pela qual todos são o que são, enquanto a matéria é pura passividade e contém a forma em potência. O movimento (devir) é explicado por meio das noções de substância e acidente, de matéria e for- ma. Para Aristóteles, todo ser tende a tornar atual a forma que tem em si como potência. Por exemplo, a semente, quando enterrada, tende a se desenvolver e a se transformar no carvalho que é em potência. Potência e ato Ao explicitar os conceitos de matéria e forma, é necessário recorrer aos de potência e ato, que explicam como dois seres diferentes podem entrar em relação, atuando um sobre o outro. • A potência é a capacidade de tornar-se alguma coisa, é aquilo que uma coisa poderá vir a ser. Para se atualizar, todo ser precisa sofrer a ação de outro já em ato. O conceito aristotélicode potência não se confunde com força: trata-se de uma potencialidade, a ausência de perfeição em um ser que pode vir a possuir essa perfeição. • O ato é a essência (a forma) da coisa como é aqui e agora. Não se trata de uma atualização de uma vez por todas, porque cada ser continua em movimento, recebendo novas formas: os seres vivos nascem e morrem, o feto se transforma em recém-nascido, depois em criança e, na sequência, em adolescente, jovem, idoso. Recapitulando os conceitos aristotélicos: todo ser é uma substância constituída de matéria e forma; a ma- téria é potência, o que tende a ser; a forma é o ato. O movimento é, portanto, a forma atualizando a matéria; é a passagem da potência ao ato, do possível ao real. Até hoje costumamos nos referir às potencialida- des de cada um de nós. Seguindo o critério aristotéli- co, reflita: quais são suas potencialidades essenciais? E as acidentais? Para refletir Teoria das quatro causas As considerações anteriores tornam mais claro o princípio de causalidade, de acordo com Aristóteles: “Tudo o que se move é necessariamente movido por outro”. O devir consiste na tendência que todo ser tem de realizar a forma que lhe é própria. 113 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Há quatro sentidos para causa: material, eficiente, formal e final. Por exemplo, numa estátua: • a causa material é aquilo de que a coisa é feita (o mármore); • a causa eficiente é aquela que dá impulso ao movimento (o escultor que a modela); • a causa formal é aquilo que a coisa tende a ser (a forma que a estátua adquire); • a causa final é aquilo para o qual a coisa é feita (a finalidade de fazer a estátua: beleza, glória, devoção religiosa etc.). Essas são as causas que explicam o movimento, que para Aristóteles é eterno. Vale lembrar que, para os gregos antigos, a matéria é eterna, portanto Deus não é criador. Segundo Aristóteles, Deus não conhece nem ama os seres individualmente. Ele é puro pensamento, que pensa a si mesmo, é “pensamento de pensa- mento”. Por isso a teologia aristotélica é filosófica, não religiosa. O Primeiro Motor Imóvel – por não ser movido por nenhum outro – é também um puro ato (sem nenhuma potência). Segundo Aristóteles, Deus é Ato Puro, Ser Necessário, Causa Primeira de tudo o que existe. No entanto, se Aristóteles considera Deus o Primeiro Motor Imóvel, como poderia mover algo? Porque Deus não é o Primeiro Motor como causa eficiente, mas como causa final: Deus move por atração, ele tudo atrai, como “perfeição” que é. Crítica de Aristóteles aos antecessores Além da metafísica, Aristóteles estabeleceu os princípios da lógica formal. Com esses princípios lógicos e os conceitos metafísicos, criticou os fi- lósofos que o antecederam, sobretudo Heráclito, Parmênides e Platão. Contra Heráclito, segundo o qual tudo está em constante movimento, Aristóteles demonstra que em toda transformação há algo que muda e algo que permanece; e, pelo princípio de contradição, que um ser não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Do mesmo modo critica Parmênides, por ter afirma- do que o ser é imóvel, reduzindo o movimento ao mundo sensível. Igualmente, rejeitou a teoria das ideias de Platão. Para Aristóteles, se o conhecimento se faz com conceitos universais, esses mesmos conceitos são aplicados a cada coisa individualmente. Com isso, não é preciso justificar a imobilidade do ser (como Parmênides) nem criar o mundo das essências imu- táveis, como pretendeu Platão. 7 Europa cristianizada: fé e razão No período posterior à filosofia clássica, teve início o helenismo, que se caracterizou pela fusão das culturas grega e oriental. Estendeu-se desde o século III a.C. até o século III d.C. As principais ex- pressões filosóficas foram o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo.3 Filosofia (1508), detalhe de afresco de Rafael Sanzio. Ao lado da Filosofia, anjos carregam tabuletas que lembram a base da ciência aristotélica: causarum cognitio (conhecimento pelas causas). A tradução para o latim e os anjos indicam a releitura de Aristóteles levada a efeito pelos filósofos cristãos da Idade Média. 3 Mais referências sobre estoicismo, epicurismo e ceticismo no capítulo 16, “Teorias éticas: abordagem cronológica”. Deus: Primeiro Motor Imóvel A descrição das relações entre as coisas leva ao reconhecimento da existência de um ser superior e necessário, ou seja, Deus. Porque, se as coisas são contingentes – pois não têm em si mesmas a razão de sua existência –, é preciso concluir que são produzidas por causas exteriores a elas. Ou seja, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que também é contingente, e assim por diante. Para não ir ao infinito na sequência de causas, é preciso admitir uma primeira causa, por sua vez não causada, um ser necessário (e não contingente). a lB U m /a K G -im a G es /l a ti n st o c K – m U se U s D o v a ti c a n o , c iD a D e D o v a ti c a n o 114 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Por volta do século II d.C., o cristianismo começou a se expressar em contraposição à cultura greco- -romana então vigente. Diante das diferenças entre o politeísmo greco-romano e o monoteísmo cristão, é possível entender por que o cristianismo, de início perseguido, ao começar a ser aceito e expandido, se contrapôs às concepções tradicionais a fim de conseguir adeptos para sua fé. A principal das fontes utilizadas pelo cristianis- mo era a revelação divina: chama-se revelação a manifestação de Deus ao homem por meio de uma série de verdades ou mandamentos, seja pela pala- vra, seja nos outros signos, geralmente recolhidos nas obras sagradas, como a Bíblia, composta pelo Velho Testamento – herdado dos judeus – e o Novo Testamento – escrito pelos apóstolos após a morte de Jesus. Patrística Além da Bíblia, os teólogos resolveram usar os textos dos filósofos pagãos, adaptando-os à nova fé. Essas fontes eram bastante variáveis, dependendo do que havia disponível, como Cícero, pensador do helenismo romano, e Plotino (c. 204-270), um neoplatônico. Também as teorias estoicas foram bem-aceitas ainda na época do Império Romano e fecundaram as ideias ascéticas do período medieval: o controle das paixões tinha em vista a vida futura, quando, de acordo com os teólogos, realmente os seres humanos poderiam ser felizes. Os religiosos que elaboraram a doutrina cristã foram chamados Padres da Igreja, daí derivando a denominação de Patrística. A Patrística estendeu-se ainda na Antiguidade do século II ao V, portanto, no período de decadência do Império Romano. Distin- guimos na Patrística dois momentos importantes: • do século II ao IV, com os primeiros Padres da Igreja; • nos séculos IV e V, o auge da Patrística, com Agos- tinho de Hipona. No esforço de converter os pagãos e combater as heresias, os primeiros Padres da Igreja escreveram obras de apologética. Os mais antigos são os apo- logistas gregos, entre os quais se destacou Justino (século II). Agostinho, bispo de Hipona O principal nome da Patrística foi Agostinho de Tagaste – também conhecido como Santo Agosti- nho, bispo de Hipona (África). É significativo o fato de ter vivido no findar do mundo antigo, quando os bárbaros avançavam sobre o Império Romano. Portanto, Agostinho encontra-se no eclipsar de um mundo que se extinguia e no limiar de outro que ele efetivamente ajudou a delinear. Teoria da iluminação Agostinho retomou a filosofia de Platão por meio de seus comentadores, sobretudo Plotino, e adaptou-a ao cristianismo. Aceitou a dicotomia platônica entre “mundo sensível e mundo das ideias”, mas substituiu este último pelas ideias divinas. Do mesmo modo, adaptou ao cristianismo a teoria da re- miniscência, que em Platão significava a contempla- çãodas essências no mundo das ideias antes da vida presente. Em contraposição, Agostinho desen- volveu a teoria da iluminação, pela qual possuímos as verdades eternas porque as recebemos de Deus: como o Sol, Deus ilumina a razão e torna possível o pensar correto. Os monges copistas cumpriram uma função importante na Idade Mé- dia ao reproduzir ou tra- duzir obras clássicas. Os manuscritos, em letra gótica, eram ornados com iluminuras – ilustrações com fi guras e arabescos. Cada capítulo geralmen- te começava com uma capitular – a primeira le- tra – em tamanho maior e ricamente trabalhada. Tratava-se de uma arte e, como tal, exigia habilida- de e talento. Refl ita sobre as diferenças ocorridas nesses três momentos: a) Nas bibliotecas medievais, situadas em abadias e conventos, quem decidia o que deveria ser copiado? Quem tinha acesso aos manuscritos? b) O que signifi cou, no século XVI, a invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg, permi- tindo a divulgação mais rápida de livros pela imprensa? c) O que mudou nos tempos atuais, com a infor- mação circulando pelas infovias da internet? Quais as consequências da exclusão digital num mundo em que a informação está cada vez mais digitalizada? Para refletir Página de um manuscrito medieval com iluminura, 1300-1310. Pagão: aquele que não foi batizado ou aquilo que advém de uma cultura que não adota o sacramento do batismo. Assim eram chamados os não cristãos. Ascético: relativo ao ascetismo, doutrina moral que preconiza privações e mortificações para alcançar o domínio de si. Heresia: doutrina que se opõe aos dogmas da Igreja. Apologética: defesa da fé por meio de argumentos racionais. A LB U M /A K G -IM A G ES /L A TI N ST O C K – B IB LI O TE C A B RI TÂ N IC A , L O N D RE S 115 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . De fato, ainda que imperfeito e inquieto, o ser hu- mano é capaz de intuir verdades imutáveis e absolu- tas, superiores à sua capacidade porque elas derivam de Deus, que é a Verdade Absoluta. Ao mesmo tempo, concluiu que reside aí a prova da existência de Deus, pois se a mente, que é imperfeita, intui verdades imu- táveis é porque existe a Verdade Imutável, que é Deus. Para o teólogo e filósofo Agostinho, a aliança entre fé e razão significava reconhecer a razão como au- xiliar da fé e, portanto, a ela subordinada. Agostinho sintetiza essa tendência com a expressão latina “Credo ut intelligam” (“Creio para que possa entender”). Escolástica Após a queda do Império Romano, formaram-se novos reinos bárbaros. Lentamente nascia a ordem feudal, em cujo topo da pirâmide se encontravam os nobres e o clero. Nesse contexto, a Igreja Católica consolidou-se como força espiritual e política. A Igreja representava então um elemento agregador em diversos setores. Atuou de maneira decisiva do ponto de vista cultural, pois a he- rança greco-latina foi preservada nos mosteiros. Os monges eram os únicos letrados, o que explica a impregnação religiosa nos princípios morais, po- líticos e jurídicos da sociedade medieval. No segundo período medieval, conhecido como Baixa Idade Média, notavam-se mudanças funda- mentais no campo da cultura já a partir do século XI, sobretudo em razão do renascimento urbano. Ameaças de ruptura da unidade da Igreja e heresias anunciavam o novo tempo de contestação e debates em que a razão buscava sua autonomia. Fundamental nesse processo foi a criação por toda a Europa de inúmeras universidades, que se tornaram focos por excelência de fermentação intelectual. Com essas mudanças, a Escolástica, que teve em Tomás de Aquino seu principal representante, surgiu como nova expressão da filosofia cristã. Persistia ainda a aliança entre razão e fé, em que a filosofia continuava como “serva da teologia”. Com o aumento das heresias, a partir do século XII os tribunais da Inquisição ou Santo Ofício se espalha- ram pela Europa para apurar os “desvios da fé”. Ordens religiosas, sobretudo a dos dominicanos, assumiram o controle, aplicando a censura a livros e determinando a punição dos dissidentes, até mesmo com a morte. Do século X ao XIV foram fundadas mais de 80 universidades na Europa, nas quais eram estudados teologia, fi losofi a, medicina, direito, física, as- tronomia e matemática. Muitas cons- truções daquela época existem até hoje, como o prédio da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que data do século XII. Na América, devido ao longo pe- ríodo de colonização, foram fundadas apenas duas universidades no século XVI, uma no México e outra no Peru. As outras surgiram apenas no século XIX: a primeira, em 1819, nos Estados Uni- dos. No Brasil, cursos superiores foram implantados no século XIX (médico-ci- rúrgicos, em 1808; jurídicos, em 1827; engenharia civil, em 1874), mas as pri- meiras universidades surgiram apenas no século XX, com a Escola Universitária Livre de Manaus (de duração efêmera), a Universidade do Paraná e a Universi- dade de São Paulo. Ainda assim, todas essas e as que se seguiram atendiam a um número restrito de alunos, até sua expansão, apenas na década de 1970. MAR DO NORTE MAR MEDITERRÂNEO OCEANO ATLÂNTICO ÁFRICAÁFRICAÁFRICAUniversidades criadas antes de 1270 Universidades criadas entre 1270 e 1350 0º 50º N EUROPA Cambridge OrléansAngers Toulouse Coimbra Palência Valladolid Salamanca Lérida Perpignan Avignon Pisa Florença Montpellier LISBOA Cahors Grenoble Vicenza Treviso Pádua Bolonha Arezzo Perúsia ROMA Salerno Nápoles Vercelli Reggio Oxford PRAGAPARIS UNIVERSIDADES EUROPEIAS (DO SÉCULO XIII AO XIV) Fonte: Atlas historique: de l’apparition de l’homme sur la Terre à l’ère atomique. Paris: Perrin, 1987. p. 176. 280 km Fe rn a n D o J o sÉ F er re ir a 116 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . A questão dos universais Desde o século XI até o XIV, uma polêmica marcou as discussões sobre a questão dos universais. O que são universais? O universal é o conceito, a ideia, a essência comum a todas as coisas. Por exemplo, o conceito de ser humano, animal, casa, bola, cadeira, círculo. Em outras palavras, as perguntas eram as seguin- tes: gêneros e espécies existem separadamente dos objetos percebidos pelos sentidos? Ou seja: este cão existe, mas a espécie “canina” e o gênero “animal” teriam existência real? Seriam realidades, ideias ou apenas palavras? As principais soluções apresentadas foram: realismo, realismo moderado, nominalismo e conceptualismo. • Para os realistas, como Anselmo (século XI) e Guilherme de Champeaux (século XII), o universal tem realidade objetiva (são res, ou seja, “coisa” em latim). Essa posição é claramente influenciada pela teoria das ideias de Platão. • O realismo moderado é representado no século XIII por Tomás de Aquino. Como aristotélico, afir- ma que os universais só existem formalmente no espírito, embora tenham fundamento nas coisas. • Para os nominalistas, como Roscelino (século XI), o universal é apenas o que é expresso em um nome. Ou seja, os universais são palavras, sem nenhuma realidade específica correspondente. A tendência nominalista reapareceu com algumas nuanças diferentes no século XIV, com o inglês Guilherme de Ockham, franciscano que representa a reação à filosofia aristotélico-tomista. • A posição do conceptualismo é intermediária entre o realismo e o nominalismo e teve como principal defensor Pedro Abelardo (século XII). Para ele, os universais são conceitos, entidades mentais que existem somente no espírito. As divergências sobre os universais podem ser analisadas valendo-se das contradições e fissuras que se instalaram na compreensão mística do mundo medieval. Nesse aspecto, os realistas são os partidá- rios da tradição e por isso valorizavam o universal,a autoridade, a verdade eterna representada pela fé. Para os nominalistas, o individual é mais real, o que indica o deslocamento do critério de verdade da fé e da autoridade para a razão humana. Naquele momen- to histórico do final da Idade Média, o nominalismo representou o racionalismo burguês em oposição às forças feudais que desejava superar. A questão dos universais não é um problema res- trito à Idade Média. Os filósofos empiristas (Hobbes, Hume e Condillac) são nominalistas ao concluírem que as ideias não existem em si, pois só é possível conhecer algo pela experiência. Nas atuais filosofias contempo- râneas, como na filosofia da linguagem, o que é posto em discussão é a relação entre linguagem e realidade. Para saber mais O nome da rosa, romance de Umberto Eco, conta a história de um franciscano inglês, Guilherme de Baskerville, e seu discípulo, o noviço Adso de Melk, que chegam a um mosteiro dominicano na Itália em 1327. Guilherme conversa com o noviço a respeito de um tema que podemos relacionar com a questão dos universais. Ele diz que, ao observarmos algo a distância, não sabemos dizer o que é: parece um corpo, mas quan- do nos aproximamos vemos um animal. E completa: E somente quando estiveres à distância apropriada verás que é Brunello (ou esse cavalo e não outro, qualquer que seja o modo como decidas chamá-lo). E esse será o conhecimento pleno, a intuição do singular. [...] De modo que as ideias, que eu usava antes para figurar-me um cavalo que ainda não vira, eram puros signos, como eram signos da ideia de cavalo as pegadas sobre a neve: e usam-se signos e signos de signos apenas quando nos fazem falta as coisas. ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 43. Identifique a tendência na qual poderíamos incluir frei Guilherme a propósito da questão dos universais. Para refletir Sean Connery (Guilherme de Baskerville) e Christian Slater (o noviço Adso de Melk) na adaptação para o cinema de O nome da rosa, 1986. 20 tH c en tU ry F o x F il m c o rp /e v er et t c o ll ec ti o n /e a sy pi x B ra si l 117 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Tomás de Aquino: apogeu da Escolástica Vimos que desde o início do pensamento cristão os teólogos sofreram influência do neoplatonismo, porque poucas obras de Aristóteles eram conheci- das. As primeiras traduções, feitas por árabes, foram rejeitadas por conter interpretações consideradas perigosas para a fé cristã. No século XIII, o monge dominicano Tomás de Aquino (1225-1274) teve contato com o pensa- mento de Aristóteles por meio do árabe Averróis, a quem ele chamava de “O comentador”. Seu interesse o aproximou de recentes traduções feitas direta- mente do grego e desse modo pôde investigar mais profundamente o aristotelismo, adequando-o à fé cristã. Sua obra principal, a Suma teológica, consti- tui a mais fecunda síntese da Escolástica e por isso mesmo se tornou a expressão da chamada filosofia aristotélico-tomista. Embora continuasse a valorizar a fé como ins- trumento de conhecimento, Tomás de Aquino não desconsiderou a importância do “conhecimento natural”. De maneira semelhante a Aristóteles, Aquino reconheceu a participação dos sentidos e do intelecto: o conhecimento começa pelo contato com as coisas concretas, passa pelos sentidos internos da fantasia ou imaginação até a apreensão de formas abstratas. Desse modo, o conhecimento processa um salto qualitativo desde a apreensão da imagem, que é concreta e particular, até a elaboração da ideia, abstrata e universal. Por exemplo, se a razão não pode conhecer a essência de Deus, pode, no entanto, demonstrar sua existência ou a criação divina do mundo. Vejamos como se desenvolve a argumentação de Aquino. Provas da existência de Deus As chamadas “cinco vias” da prova da existência de Deus estão baseadas na Metafísica, de Aristóte- les, na qual ele explica o movimento do mundo pela existência necessária de uma causa primeira, que é o Primeiro Motor Imóvel. Tomás de Aquino retoma esse tema na Suma teológica. Vejamos quais são os argumentos racio- nais que fundamentam um dado que, para o filósofo, advém da fé. • O movimento: conforme a teoria do ato e po- tência, só algo em ato pode mover o que existe em potência; portanto, tudo que se move deve ser movido por outro, pois nada se move por si mesmo. A fim de evitar uma regressão ao infinito, o que seria absurdo, é necessário concluir que existe um motor que move todas as coisas e não é movido, ou seja, Deus. • A causa eficiente: nada pode ser causa de si mesmo, senão seria anterior a si mesmo; por não poder seguir um processo infinito, é preciso admitir uma causa primeira que não é causada – Deus. • Contingência e necessidade: um ser contingente é aquele cuja existência depende de outro; mas, se todos fossem contingentes, nada existiria; portanto, deve haver um ser necessário, que é Deus. • Os graus de perfeição: todos os seres têm graus diferentes de perfeição, qualidades que podem ser comparadas, mas só um ser teria o máximo de perfeição, ou seja, o máximo de realização de atributos e qualidades. • A causa final (ou argumento teleológico): toda a natureza tem uma finalidade, um propósito, caso contrário não haveria ordem; deve haver uma inteligência ordenadora, que é Deus. As cinco vias denotam o esforço de Tomás de Aquino para desenvolver uma “teologia natural”, que mais tarde Leibniz chamará de teodiceia, ou seja, o conhecimento racional de Deus. Crise da Escolástica É certo que a recuperação do aristotelismo se revelou recurso importante no tempo de Tomás de Aquino. No final da Idade Média, porém, a Escolástica padecia com o autoritarismo de seus seguidores, o que provocou consequências nocivas para o pensamento filosófico e científico. Posturas dogmáticas, contrárias à reflexão, obstruíam as pesquisas e a livre investigação. O princípio da autoridade, ou seja, a aceitação cega das afir- mações contidas nos textos bíblicos e nos livros dos grandes pensadores, sobretudo Aristóteles, impedia qualquer inovação. Paralelamente às elaborações teóricas que jus- tificavam o poder religioso sobre o poder secular, a sociedade medieval transformava-se, gerando anseios de laicização, isto é, de assumir uma orien- tação não religiosa. O pensamento de Tomás de Aquino ressurgiu no século XIX por obra do papa Leão XIII. O neotomismo representa o esforço de restauração da “fi losofi a cristã”. No Brasil, durante o período colonial, os je- suítas ensinavam o tomismo e, em 1908, foi fundada no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, a Faculdade Livre de Filosofi a e Letras, na qual ministraram aulas fi lósofos belgas seguidores dessa tendência. Para saber mais 118 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 .
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