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CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL ÍNDICE (clique no capítulo desejado para ir diretamente até ele) INTRODUÇÃO Direito Constitucional e Constituição - Conceito, objeto, Conteúdo E Fontes Do Direito Constitucional Capítulo I Direitos, deveres e garantias fundamentais constantes no artigo 5º da Constituição Federal brasileira de 1988 Capítulo II Direitos trabalhistas, sindicais e sociais Capítulo III Direitos relativos à nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos Capítulo IV Da organização política e administrativa do estado e da divisão de competências Capítulo V Da organização dos poderes e da divisão de competências e funções Capítulo VI - Da defesa do Estado e das instituições democráticas. As intervenções Capítulo VII - Da tributação e do orçamento Capítulo VIII - Da ordem econômica e financeira e da ordem social INTRODUÇÃO • Conceito Como falar em Direito Constitucional sem antes relembrarmos o que é o Direito? Segundo as noções mais básicas, mais primárias, temos que o Direito é um sistema de comandos, de normas impositivas, obrigatórias, que orientam os homens que vivem em sociedade e que são acompanhadas de sanções para o caso de eventual não-cumprimento das mesmas. Esse complexo conjunto de regras impostas aos indivíduos (que se denomina ordenamento jurídico do Estado) possui caráter de universalidade e de generalidade, sendo emanado dos órgãos competentes, segundo os ditames da Constituição. Relembradas estas obviedades, já podemos falar especificamente a respeito do Direito Constitucional. Tendo firmado-se como disciplina acadêmica autônoma em 1834, na Faculdade de Direito de Paris, o Direito Constitucional é o principal ramo do Direito Público Interno que estuda a lei definidora e regulamentadora da estrutura jurídico-política de um Estado; esta norma fundacional do Estado recebe o nome genérico de Constituição. Na órbita do Direito Constitucional gravitam todos os demais ramos do Direito Público1 (Direito Administrativo, Penal, Tributário, Financeiro, Processual, Internacional Público e Privado, Econômico, Urbanístico, Militar, Eleitoral, Marítimo) e também do Direito Privado2 (Civil, Comercial), bem como daquelas áreas do Direito tidas como Direito Social ou Misto (Direito do Trabalho e Direito Previdenciário). Quer dizer, o Direito Constitucional é a base, é o fundamento, o tronco de todos os demais ramos do Direito. Para o constitucionalista pátrio José Afonso da Silva, o Direito Constitucional é o ramo do Direito Público que expõe, interpreta e sistematiza os princípios e normas fundamentadoras do Estado (1997, p. 38). Aqui é pertinente fazermos uma observação: de todas as disciplinas jurídicas, a de Direito Constitucional é a menos jurídica! E justamente pela influência que recebe dos fatores sociológicos e políticos, presta-se a análises conjunturais, pois, do contrário, não seria possível abordar amplamente o fenômeno Estado ou, conforme Pedro Salvetti Netto (1975, p. 11), sem aqueles fatores não se explica a organização e a estrutura do Estado, ainda que formalizada em um código de leis. É a disciplina que mais próxima está da Ciência Política. Em função disso, Maurice Duverger nos passa a lição de que o estudo do Direito Constitucional não deve limitar-se tão somente a uma análise jurídica das instituições políticas, mas abarcar também aquelas instituições que o Direito ignora, mais ou menos completamente, como os partidos políticos, a imprensa, a propaganda, os grupos de pressão, etc. E, para além disso, o estudo isolado do fenômeno político sob o único prisma do fenômeno jurídico também deixa de oferecer a visão completa da organização da sociedade política, da criação e do exercício do poder político. • Objeto do Direito Constitucional O objeto de estudo do Direito Constitucional é a própria Constituição. Antecipamos que o conceito de Constituição abrange tanto normas (estas sempre escritas) quanto princípios constitucionais (sendo que estes podem ser escritos e também, eventualmente, não-escritos). • Conteúdo do Direito Constitucional A disciplina Direito Constitucional subdivide-se em Direito Constitucional Geral ou Teoria Constitucional, Direito Constitucional Positivo, Particular ou Especial, e Direito Constitucional Comparado. Ressaltamos de antemão, no entanto, que nenhuma destas três subdivisões sobrevive ou é estudada puramente, de maneira rigorosamente isolada; o que há é uma interpenetração dos conteúdos. Dito isto vemos, a seguir, a que se referem e o conteúdo científico abrangido por cada uma destas subdivisões: Direito Constitucional Geral ou Teoria Constitucional - como já diz o nome, nesta matéria tratam-se das teorias gerais constitucionais, aquelas que podem ser utilizadas como instrumento de análise de qualquer ordenamento jurídico constitucional, que podem ser aplicadas em relação a qualquer Constituição. É a disciplina que fornece os parâmetros para a interpretação das Constituições, que classifica as normas constitucionais, que diz de quem é a titularidade do poder constituinte originário, etc. Direito Constitucional Positivo, Particular ou Especial - trata especificamente do Direito de um determinado Estado, ou seja, estuda a organização e o funcionamento dos poderes constitucionais específicos. É disciplina que pertence ao Direito Positivo, ao Direito posto de um dado Estado, tendo por objeto a análise e a interpretação de sua Constituição, de forma tanto dogmática quanto jurisprudencial. Direito Constitucional Comparado - tem por objeto de estudo várias Constituições, e não apenas uma, como o faz o Direito Constitucional Positivo. Podem ser feitos estudos comparativos entre as Constituições de um mesmo Estado, usando-se o critério da confrontação temporal para verificar as evoluções ou os retrocessos constitucionais, assim como se podem realizar estudos comparativos do Direito Constitucional no espaço, com a análise das Constituições de vários Estados. Esta segunda possibilidade, qual seja, a comparação do Direito Constitucional nacional com o Direito Constitucional estrangeiro, tem merecido mais larga aplicação pelos estudiosos. O grande mestre italiano, Biscaretti di Ruffia (1975, p. 13) esclarece que, servindo-se do método comparativo, ao comparar os vários textos constitucionais, do presente e do passado, tem-se o propósito de pôr em evidência, além das características mais significativas, as semelhanças e as diferenças entre os ordenamentos constitucionais. Em geral, no entanto, realizar estudos comparativos não é atividade comum em cursos de graduação, e sim nos de pós-graduação, até porque muitas vezes exige o conhecimento de vários outros idiomas. • Fontes do Direito Constitucional Seguindo os ensinamentos do constitucionalista pátrio Paulo Bonavides (1996, p. 36), a partir de Xifra Heras e Biscaretti di Ruffia, tem-se que as fontes aparecem como "formas de manifestação" da norma jurídica constitucional, assumindo duas modalidades: Fontes escritas: estas abrangem as leis constitucionais propriamente ditas; as leis complementares ou regulamentares (que servem para auxiliar a aplicação das Constituições); as prescrições administrativas, contidas em regulamentos e decretos, de importância para o Direito Constitucional, desde que o governo tenha entrado no exercício da delegação legislativa; os regimentos das Casas do Poder Legislativo, ou do órgão máximo do Poder Judiciário; os tratados internacionais; as normas de Direito Canônico; a legislação estrangeira; as resoluções da comunidade internacional dadas pelos seus órgãos representativos, sempre que o Estado as aprovar ou reconhecer internamente; a jurisprudência e a doutrina, sendo que esta última é, na verdade, fonte "auxiliar", funcionando como técnica de "conhecimento" das normas constitucionais e não de criação destas. Fontes não-escritas: os usos e os costumes constitucionais. Estes, de enorme importância para o Direito Constitucional, são de criação pública e baseados no consentimento tácito que o uso reiterado autoriza. Aqueles, possuem maior relevância nos países desprovidos de Constituições escritas ou que, em as possuindo, têm-nas em textos sumários; na Inglaterra, por exemplo, certos usos constituem matérias constitucionais de fundamental importância, o mesmo ocorrendo nos Estados Unidos. 2 Um Intróito Necessário: Histórico Evolutivo Do Estado E Do Constitucionalismo 2.1 Delimitação dos conceitos de Estado e de Estado Constitucional de Direito Como a Constituição "cria" toda a estrutura político-jurídico-administrativa e confere a vocação ideológica de um Estado, não podemos estudá-la dissociada deste. Assim, necessário faz-se um exame preliminar da natureza e das principais características do Estado, o que podemos brevemente fazer por meio do resgate de suas fases históricas. É muito provável que os alunos já tenham visto algo do que agora trataremos em Ciência Política; ainda assim, válido é retomar. Mas, de início, faz-se necessário delimitarmos o entendimento acerca de duas categorias fundamentais para este estudo, quais sejam, Estado e Estado Constitucional de Direito. Em primeiro lugar, o que entendemos por Estado? Trazemos um conceito de Estado dado por Max Weber, para quem o Estado é o detentor do monopólio da força legítima, isto é, do monopólio da Justiça (punição), da cobrança de tributos fiscais, de cunhar moeda, etc. Verdadeiramente, um dos mais antigos preceitos da Filosofia Política diz que o Estado tem o monopólio do uso da força, isto é, apenas o poder público pode usar a violência (e mesmo assim, na medida necessária) para garantir o cumprimento da lei e evitar que surja a guerra de todos contra todos. Logo, o Estado é a Instituição com poderes para organizar a sociedade em um dado território, coercitivamente, isto é, para disciplinar o convívio social humano através do Direito, por meio de normas jurídicas obrigatórias, acompanhadas de sanções. Já quanto ao caráter a um só tempo abstrato e concreto do Estado, Georges Burdeau nos diz que "ninguém jamais viu o Estado, porém, quem se atreveria a negar sua existência?" E Estado Constitucional de Direito, o que é? É o Estado limitado pelo Direito, cujo poder se baseia no respeito a uma Constituição, que o auto-limita. Este Estado foi o resultado dos processos revolucionários dos séculos XVII e XVIII, marcado pela preocupação com a limitação do poder soberano, significando o reconhecimento, ao indivíduo, de uma esfera de liberdade intangível pelo próprio Estado. 2.2 Estado - Histórico de sua formação Procuramos, neste item, reconstruir minimamente os vários tipos de Estado e suas fases históricas correspondentes, para que os alunos possam facilmente localizá-los, conforme os contextos históricos que serão referidos ao longo desta obra. É importante frisar que o Estado, como o conhecemos, é uma invenção moderna, que adveio com o surgimento dos grandes Estados-Nações, mas mesmo assim é importante que se tenha uma visão panorâmica de como se organizava o poder político desde a Antigüidade Clássica. a) Antigüidade Clássica. Estados Escravistas Caracterizava-se a organização política da Antigüidade Clássica pela multiplicidade de Cidades-Estados gregas (polis), tais como Atenas, Esparta, Tebas, Cartago, Itaca, e pela Civitas Romana, que era um Estado-Cidade. Todos eram, de regra, Estados de tipo escravistas. b) Feudalismo. Europa Medieval. Estado Feudal O Feudalismo foi o sistema social que vigiu na Europa durante quase toda a Idade Média. Nele, os Estados eram caracterizados pela debilidade do poder central e pela dispersão do poder público entre inúmeros senhores feudais, para os quais o exercício da função estatal confundia-se com o interesse privado. A principal característica do Estado feudal era, portanto, a fragmentação da autoridade. Cada feudo fazia as vezes de um Estado (exatamente porque todas as tarefas e funções hoje centralizadas no Estado eram realizadas por cada feudo, eis que possuíam poder local autônomo economicamente, exércitos próprios, aparelhos jurídicos - prisões e tribunais -, tributação e administração próprias, etc.) e, assim, o poder era fragmentado. O Estado em si era descentralizado em relação ao Rei (este revelava-se fictício, submisso ao Papa, verdadeiro poder temporal e representante do poder espiritual na Terra). Para o declínio do sistema feudal contribuiu o início das Grandes Navegações (o que originou a fase "metalista" do mercantilismo, ou seja, país rico seria aquele que lograsse possuir metal precioso) e o conseqüente comércio de especiarias, sedas e outras mercadorias, o que deu destaque aos mercadores e artesãos e fez cair radicalmente o preço da terra. Com a desvalorização fundiária, as pestes, as guerras internas entre senhores feudais, tomou força a evasão dos servos para os "burgos", dando origem à incipiente burguesia, a qual, em pouco tempo, passou a ter a proeminência econômica. Mas faltava-lhe a centralização econômica total, o que passava pela centralização do poder político, notadamente para destruir alguns obstáculos às suas atividades, como por exemplo a necessidade de pagar tributos aos feudos para transportar as mercadorias de um burgo para outro, a falta de um exército nacional, a necessidade de moeda única, etc. E, assim, em fins da Idade Média e primórdios da Idade Moderna, essa mesma burguesia aliou-se ao Rei para absolutizar o poder na figura deste. Para isso, contribuiu também o inicial esclarecimento das pessoas por meio da invenção da imprensa, em 1440, por Gutemberg, a apologia do Absolutismo Monárquico feita por Thomas Hobbes (que viveu de 1588 a 1679), já que, para ele, os homens eram maus por natureza (lobos entre si) e, para evitar um estado de permanente violência, o poder deveria ser centralizado no monarca; após, também contribuiu a nova ideologia nacionalista pró-unificação dos Estados Nacionais, desenvolvida pelo florentino Maquiavel (1469-1527), em seu famoso livro "O Príncipe", escrito em 1513. Maquiavel, que foi o primeiro grande pensador da Idade Moderna, inclusive desprezava o pensamento deísta da Idade Média e proclamava que a origem do poder não era divina, mas se encontrava na força. c) Idade Moderna. Estado Absolutista ou Absolutismo Monárquico Por fim o Rei, aliado à burguesia, cumpriu a tarefa de unificar o Estado e passou a governar de forma absoluta, tendo sido o francês Luis XIV o paradigma dos monarcas absolutistas (foi ele, o Rei Sol, que proferiu a célebre frase L'État c'est moi: "o Estado sou eu"), revelando a completa identificação entre o Rei e o Estado. O poder centralizado nas mãos do monarca substituiu de vez a fragmentação da autoridade que caracterizava o Estado medieval. Como já adiantado anteriormente, o filósofo moderno Thomas Hobbes representava o reacionarismo, o totalitarismo, o domínio do indivíduo pelo Estado, representado este pela figura do Leviatã, que serviu de nome à sua obra fundamental. Hobbes defendia, então, a teoria do Governo Absoluto, e é por isso que nestes Estados Absolutos Unificados, os direitos do homem enquanto indivíduo não tinham condições de ser exigidos, pois, na verdade, eram os habitantes do reino apenas "súditos" e não titulares de direitos. Aliás, não havia um Estado de Direito, e sim algumas tolerâncias por parte do monarca, em um regime de privilégios, sendo que estes poderiam a qualquer momento ser violados ou derrogados pelo próprio monarca, conforme sua única e exclusiva vontade. No Absolutismo Monárquico (muitas vezes "Despotismo Esclarecido"), tinha-se como base e justificativa dos mandos e desmandos o Poder Divino dos Reis, e assim fazia-se o "Pacto Social", pelo qual os súditos contratavam a própria submissão perante o Estado. Para além disso, a burguesia, que havia lutado pela unificação dos Estados Nacionais, ficou de fora do poder político, da gestão pública, pois o monarca, na hora de compor sua corte, não deu lugar de destaque aos burgueses, indo buscar os membros nos antigos feudos, isto é, na aristocracia. Descontente com este estado de coisas, a burguesia decide tomar de assalto aquele mesmo poder que ajudou a construir e investe contra o Rei. A partir daí vêm os desdobramentos da Revolução Francesa, o que pode ser visto com bastante didática em análises ao filme "Danton", que consegue recriar a época em que se bradava a "morte ao Rei"! Ressaltamos que John Locke (que viveu de 1632 a 1704) foi, juntamente com Hobbes, o outro grande filósofo da época moderna, porém, de idéias contrárias, movidos por espíritos diferentes, já que Hobbes era absolutista e Locke anti-absolutista. Aqui importa frisar que Locke, inspirado no liberalismo inglês, advogou o regime de liberdade individual e de equilíbrio político, procurando proteger o homem contra os abusos do Estado e os abusos do poder. Sua obra fundamental recebe o nome de "Dois Ensaios sobre o Governo Civil" e nela vamos encontrar a filosofia política do princípio de Liberdade, de equilíbrio, que constitui a base do Regime Democrático. Para ele, o pressuposto da liberdade era a propriedade. d) Início da Idade Contemporânea. Estado Liberal Clássico, Gendarme (Estado Polícia, Estado Segurança ou Estado Guarda-Noturno), Não-interventor No início da Idade Contemporânea, outro discurso passa a justificar e a fundamentar o exercício do poder político: da teoria da Soberania Divina dos Reis passa-se à teoria da Soberania Popular, tendo para isso contribuído as formulações teóricas de grandes ideólogos, com destaque para John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu (que viveu de 1678 a 1755) e Emmanuel Joseph Sieyès. Para derrubar a Teoria do Direito Divino dos Reis, Rousseau apregoava que o soberano não era o representante de Deus na terra, mas que deveria ser o representante do povo. Assim, a soberania popular seria a expressão da vontade soberana de todos os homens, considerados livres e iguais por natureza. Nascem aí os Estados Constitucionais limitados pelo Direito. Do mesmo modo, o famoso abade Sieyès (que será melhor estudado quando formos tratar do Poder Constituinte Originário) havia lançado, com seis meses de antecedência à Revolução Francesa, a sua não menos famosa obra "Que é o Terceiro Estado?", que acabou se traduzindo na grande palavra de ordem destruidora da monarquia tradicional, isto é, do Antigo Regime. Para Sieyès, o Terceiro Estado representava a Nação, entidade abstrata e indefinível, mas que se concretizava na representação do povo e da burguesia. E a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, acolhendo as teorias de Sieyès, enunciou solenemente: "O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação". Passou a ser a nação, por conseguinte, titular do poder supremo. Para os ideólogos da burguesia revolucionária o Estado era uma criação da sociedade civil, devendo a ela subordinar-se e somente teria legitimidade o Estado que fosse representativo, isto é, cujos órgãos dirigentes fossem eleitos pelos cidadãos. Este modelo de Estado dos primórdios da Idade Contemporânea, isto é, logo após os feitos revolucionários franceses de 1789, passou a receber a designação de Estado Gendarme, isto é, aquele Estado que apenas fazia as vezes de um "Guarda Noturno", no sentido de que se limitava a policiar a ordem pública, ou seja, era não-intervencionista. É este o Estado Liberal Clássico: aquele que governa e administra, porém não interfere nas atividades econômicas privadas, nas relações contratuais dos indivíduos, deixando isso para a "mão invisível do mercado". Diz-se liberal clássico porque foi centrado no valor "liberdade", isto é, garantia a ampla liberdade dos cidadãos perante seu poder, especialmente em relação à propriedade privada. Naquele contexto, o aforismo econômico laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai passar) traduziu o ditames da escola liberal: liberdade de produção e liberdade de circulação, sendo defeso ao Estado intervir na ordem econômica, bem como proibido limitar o direito de propriedade. Mas ocorre que a alta burguesia, tão logo realizada a Revolução e ter ascendido ao poder, transformou-se em uma força conservadora, contrária a qualquer outro avanço revolucionário fazendo com que, dentre todas as camadas sociais que integravam o Terceiro Estado, tivesse sido a que colheu os melhores frutos da Revolução. Nasceram aí as desigualdades fáticas, que, tempos mais tarde, com o acirramento das exclusões e das explorações sociais, iriam culminar com a imperativa necessidade de entrar em cena um Estado que, pela intervenção na economia, pudesse corrigir esses defeitos de origem do Estado liberal individualista. e) Idade Contemporânea. Início do século XX. Estado-Providência, Estado do Bem-Estar Social, Welfare State, Estado Intervencionista Como já adiantamos acima, com o incremento do liberalismo e da Revolução Industrial, as explorações cometidas aos seres humanos pelo regime capitalista foram se acirrando, devendo os trabalhadores laborarem sem qualquer proteção social ou legal, em jornadas diárias trabalhistas em torno de 12 a 18 horas, muitas vezes chegando a 20, por salários miserentos e inclusive diminuindo sobremaneira a expectativa de suas vidas. 3 E o Estado Liberal Clássico, que não intervinha neste tipo de relações privadas (entre trabalhadores e patrões) passou a não dar conta da crescente situação de extrema pobreza e desigualdade social. A partir daí, os trabalhadores, sem a proteção do Estado ausente, recorreram à violência como represália às relações trabalhistas não-regulamentadas e a todas as demais injustiças cometidas à época. Neste contexto é escrito por Marx e Engels, em 1848, o Manifesto do Partido Comunista, conclamando os "trabalhadores do mundo inteiro" para unirem-se na defesa de seus interesses. No início do século XX ocorrem duas revoluções de cunho socialista (a Revolução Russa e a Revolução Mexicana, de 1917), entre 1914 e 1918 ocorreu a Primeira Guerra Mundial e tudo isso fez com que o Estado, de mero espectador passasse a ator, passasse a atuar a serviço do bem comum. Em suma, foi preciso que os horrores da I Guerra Mundial alterassem profundamente as condições econômicas e políticas do Estado para que se realizassem reformas de base e estrutura. Foram estas complexidades da sociedade contemporânea, aqui sumariamente referidas, que retiraram o Estado daquela passividade em que se viu imerso ao longo de quase dois séculos. A partir daí, nasce o que se passou a chamar Estado Social, ou Estado do Bem-Estar Social, ou Welfare State, todos sinônimos para designar um Estado intervencionista, providente, ou seja, aquele Estado que se obrigou a implementar um sistema de previdência e de seguros sociais, de seguro desemprego, de habitação e educação às suas populações pauperizadas. Foi o Estado obrigado a dirigir, a traçar normas, ao mesmo tempo restringindo um tanto o indivíduo em sua autonomia contratual e contemplando interesses sociais, através da intervenção nas atividades econômicas. O grande marco do surgimento deste modelo de Estado são as Constituições Mexicana, de 1917 e a de Weimar, de 1919. Mais tarde, após o crack da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, esta teoria do Intervencionismo estatal ganhou mais um aliado, o teórico economista John Keynes (Keinesianismo = Intervencionismo). f) Fase atual. Globalização. Estado Neoliberal, Gestor ou Gerencial Após o já referido crack da Bolsa de Nova Iorque, veio a II Guerra Mundial e, com a quebra quase total da Europa, foi preciso apelar para o Plano Marshall de reconstrução do continente europeu, o que demandou novamente uma forte intervenção dos Estados de cunho social. Com o passar do tempo, nas décadas de 80 e 90, foi-se percebendo que este tipo de Estado onerava muito os cofres públicos e teve início uma "campanha" para enfatizar a idéia da necessidade de diminuir gastos com seguro-desemprego, com previdência social, etc. Este movimento acaba por retirar o Estado da economia, como se estivéssemos voltando ao liberalismo clássico, mas como o processo assume novas feições, denomina-se neo; daí "neoliberalismo". Atualmente, esse encolhimento do Estado (teoria do Estado mínimo) está sendo efetivado por meio de uma onda de privatizações e por um processo de "Desregulamentação" das relações trabalhistas, incluindo flexibilização para as contratações trabalhistas (contratações e dispensas temporárias), o que acaba sendo uma regulamentação por outros meios, já que passa a garantir a sobrevivência dos grandes na área econômica, dos oligopólios. O Estado sai, aos poucos, da intervenção econômica e passa a ser um mero "Gestor"; este é o modelo do Estado gerencial apregoado pelo Ministro brasileiro da Administração e Reforma do Estado, Sr. Bresser Pereira. Para se ter uma idéia básica e geral a respeito desse processo de globalização e das nefastas conseqüências disso nas vidas dos trabalhadores, sugiro a leitura da obra "O Horror Econômico", da francesa Viviane Forrester. E, lamentavelmente, parece que esse processo globalizador neoliberal veio para ficar, fazendo com que os trabalhadores cheguem ao cúmulo de se submeterem a salários menores (o que inclusive é inconstitucional para nós brasileiros), a jornadas menores, à desproteção legal, tudo para poderem manter um emprego. E como diz Joan Robinson, na abertura da obra "Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano": "Só há uma coisa pior do que ser explorado pelo imperialismo: é não ser por ele explorado". A propósito, quando em sala de aula perguntei em que Estado estávamos vivendo, um aluno prontamente respondeu: "em estado de necessidade". 2.3 Histórico do Constitucionalismo Como a cada tipo de Estado corresponde um tipo de Constituição, procuraremos dar, em rápidas pinceladas, uma visão a respeito do nascimento do que se chamou "constitucionalismo". Embora o Constitucionalismo dito "moderno" só tenha iniciado em fins do século XVIII, iniciaremos pela Antigüidade Clássica, pois lá já havia Constituições, embora com outras características, haja vista que o próprio modelo de Estado de antanho possuía características bem diversas das que modernamente se firmaram. Neste sentido, esclarece Pedro Salveti Netto (1975, p. 16) que o Direito Constitucional parte da existência das Constituições, que, escritas ou não, deram forma a um Estado específico em um certo tempo. Assim, é possível fazer-se um levantamento do Direito Constitucional na Roma Antiga, nas cidades gregas da época clássica, nos países que viveram sob a égide do regime monárquico absolutista, na Itália fascista, na democracia inglesa, na Alemanha nazista, etc. E, indo mais além, Karl Löewenstein (1976, p. 154-157), ao tratar justamente da evolução histórica do Constitucionalismo, esclarece que a existência de uma Constituição escrita não se identifica com o constitucionalismo, pois, muito antes que isso acontecesse (no ambiente racionalista da Ilustração, século XVIII), organizações políticas viveram sob um governo constitucional, sem sentir a necessidade de articular os limites estabelecidos ao exercício do poder político, eis que tais limitações estavam tão profundamente enraizadas nas convicções das comunidades e nos costumes nacionais, que eram respeitadas tanto por governantes quanto pelos governados. E cita o grande constitucionalista, o exemplo dos hebreus, para ele, o primeiro povo que praticou o constitucionalismo. Sua forma de sociedade teocrática (sistema político em que os súditos vivem ou pretendem viver sob o domínio de uma autoridade divina), comum nos impérios orientais da Antigüidade, caracterizou-se pela limitação do poder secular (poder religioso, confiado por Deus aos detentores do poder na terra) através da lei moral, é dizer: o dominador, longe de ostentar um poder absoluto e arbitrário, estava também limitado pela Lei do Senhor, pois esta submetia igualmente a governantes e governados. a) Antigüidade Clássica (época da fundação de Roma - século VIII a.C. - em diante) A grande maioria dos autores de Direito Constitucional não menciona a existência de Constituições na Antigüidade Clássica. Mas que as havia, havia. 4 Porém, com outras funções e características, e isto nos atesta o próprio Aristóteles, que buscou estudar as Constituições gregas. Naquela época, a Constituição apenas organizava a Sociedade, como algo natural, e não o poder na Sociedade, eis que não havia distinção entre Estado e Sociedade Civil. Assim, a idéia era a de uma relação natural, a de uma constituição para o perfeito funcionamento do corpo social. Aliás, a própria gênese da palavra CONSTITUIÇÃO demonstra que a mesma não vem da Ciência Política, mas sim da Biologia, da idéia de Natureza, de constituição física de um corpo. E é por isso que era natural que existissem escravos, que as mulheres e filhos fossem considerados res nulius ("coisas de ninguém") e que obedecessem aos patriarcas e livres fossem apenas estes, que obedeciam apenas a Deus. Mas Karl Löewenstein afirma que durante dois breves e brilhantes séculos existiu na Grécia um regime político absolutamente constitucional, chegando a dizer que a nação grega alcançou o mais avançado tipo de governo constitucional: a democracia constitucional. Isto teria se dado no século V a.C., em que a democracia direta das Cidades-Estados gregas é o único exemplo conhecido de um sistema político com plena identidade entre governantes e governados, no qual o poder político estava igualmente distribuído entre todos os cidadãos ativos. Afirma, inclusive que, frente ao permanente impacto que os gregos ocasionaram na evolução política do mundo ocidental, tem pouca importância o fato de que a polis-Estado fosse o domínio oligárquico de uma classe ociosa, relativamente reduzida, montada sobre a infra-estrutura de uma economia de escravos. E ressalta que todas as instituições políticas gregas refletiam uma profunda aversão a todo o tipo de poder concentrado e arbitrário, tendo devoção quase fanática pelos princípios do "Estado de direito" de uma ordem que era regulada democrática e constitucionalmente, em que as diferentes funções estatais eram acessíveis a todos os cidadãos ativos, dado que não se exigia nenhuma qualificação especial, exceto para certos postos encarregados de tarefas técnicas. Cita, como exemplo, o fato de o poder dos magistrados ser restringido por engenhosas instituições de controle (dentre as quais: os detentores dos cargos eram nomeados por sorteio, havia prescrição de curtos períodos e rotações nos cargos, não poderiam os detentores dos cargos ser reeleitos). Do mesmo modo, Karl Löewenstein refere a República Romana, que durou muito mais tempo (desde o século V até o final do século II a.C.), como o exemplo clássico de uma sociedade estatal que, sendo fundamentalmente constitucional, não cometeu o erro de uma excessiva democratização. Em Roma, a organização estatal republicana foi um sistema político com complicados dispositivos de freios e contrapesos para dividir e limitar o poder político dos magistrados estabelecidos. b) Idade Média - século XIII Podemos dizer que a Inglaterra escreveu um primeiro capítulo na história do Constitucionalismo dito "moderno", o que se deu em 1215, com a assinatura da Magna Cartha Libertatum, sendo esse o primeiro documento em defesa das liberdades, resultado da marcha dos barões ingleses sobre Londres, em protesto às tiranias do Rei João Sem-Terra. É por isso que se considera a Inglaterra o berço do Liberalismo. Conta-nos Pontes de Miranda (1955, p. 11-4) que, morto Ricardo I [Ricardo Coração de Leão], sucedeu-lhe no trono da Inglaterra seu tio João, que tantas anarquias, desastres e arbitrariedades cometeu no novo governo até que a nação, por seus representantes mais tradicionais, reagiu: os barões acordaram que era preciso obter do rei uma carta de liberdades, o que aconteceu a 19 de junho de 1215. Depois de outorgada, no entanto, João Sem-Terra violou por várias vezes essa declaração de 1215. c) Idade Moderna Um segundo capítulo na história do Constitucionalismo tem como protagonistas novamente a Inglaterra e suas ex-colônias na América do Norte. Os acontecimentos que marcam o que chamamos "Constitucionalismo Moderno" tiveram vez nos últimos quartéis dos séculos XVII e XVIII. Primeiramente, há que se destacar, em 1689 (logo após a Revolução Inglesa, de 1688), a afirmação do Bill of Rights, que foi uma Declaração de Direitos para limitar o Poder Absoluto. Na seqüência, em 1776, tem-se a Declaração de Independência de Virgínia, após a rebelião das 13 colônias de origem britânica, formando a Confederação dos Estados Norte-Americanos. E, por fim, em 1787, em Filadélfia, assina-se a primeira Constituição escrita da história do Constitucionalismo, marcando a criação da Federação dos Estados Unidos da América do Norte. Tal Constituição ainda está em vigor. É interessante ressaltar que a Revolução Inglesa, de 1688, a revolução que marcou a independência norte-americana e a Revolução Francesa formam o conjunto das assim denominadas grandes "Revoluções Burguesas", sendo a francesa a mais radical revolução anti-feudal, conforme veremos a seguir. d) Idade Contemporânea. Constitucionalismo Liberal Clássico Na França, em fins da Idade Moderna, a Monarquia Absolutista dos Bourbons mantinha a divisão social em três classes: a nobreza, o clero e o povo, sendo que este compunha o que se denominava Terceiro Estado, vivia na miséria e não participava no plano governamental, sequer para fiscalizá-lo. E foi em tal contexto que, marcando o início da Idade Contemporânea, um importantíssimo passo foi dado na erradicação dos resquícios do poder feudal e do absolutista monárquico: a Revolução Francesa, eclodida em 1789, com a literal queda da Bastilha (símbolo maior do poder monárquico), tendo sido capitaneada pelo assim denominado Terceiro Estado (burguesia, artesãos, operários e camponeses) e excluído das benesses do Reino a nobreza parasitária que às suas custas vivia. Sobreveio-lhe, ainda no mesmo ano, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e, logo após, em 1791, criou-se, de forma popular representativa, a Primeira Constituição escrita da Europa, contemplando a laicização do Estado (isto é, a separação entre a Igreja e o Estado) e registrando em seu texto outras tantas vitórias das idéias democráticas, embora o Poder Executivo tenha continuado a ser exercido pelo Rei (a República só foi proclamada em 1792) e houvesse sido instituído o voto censitário. A Nova Ordem foi instituída sob a tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade, justamente o lema da bandeira francesa. Esta Constituição Liberal Clássica continha como conteúdo básico, exatamente o teor do art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Toda a sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição". Assim, seu duplo conteúdo essencial era: a) a tripartição do Poder em Executivo, Legislativo e Judiciário, visando com isso limitá-lo, já que, pela teoria clássica elaborada por Montesquieu5 "todo aquele que exerce o poder tende a dele abusar" e "só o poder freia o poder" (le pouvoir arrête le pouvoir), limitação feita através do sistema de cheks and balances: "freios e contrapesos"; b) a declaração dos direitos fundamentais do homem, que haviam sido negados durante séculos e que agora passaram a ser exigidos como inatos, inalienáveis, imprescritíveis, anteriores e superiores ao próprio Estado. Nasceram, assim, as Constituições, com a fundamental função de proteger a pessoa humana contra os abusos de poder dos governantes. É nesta fase do constitucionalismo que efetivamente o Poder Divino dos Reis cedeu por completo ao Poder Soberano do Povo, ou seja, a partir de então o "contrato social" seria redigido entre o povo e o Estado, por intermédio de representantes eleitos para tal. Assim, a idéia de "contrato social" passa a coincidir com a idéia de Constituição, e de Constituição escrita. E este modelo de Constituição escrita espraiou-se para outros países europeus continentais (isto porque a Inglaterra seguiu na sua tradição de Constituição não-escrita) e por suas colônias americanas, principalmente as de Portugal e Espanha, onde nos incluímos. Mas importa ressaltar que, embora tenha representado um avanço grandioso na conquista e no reconhecimento de direitos e na limitação do poder político, este modelo de constitucionalismo - o liberal clássico - realizou, dentre o tripé que sustentou o movimento revolucionário, muito mais e prioritariamente o valor "liberdade" (e por isso institui direitos que os chamamos "negativos", "de oposição ao Estado", o que era necessário justamente para o exercício da ampla liberdade dos indivíduos), deixando em segundo plano o valor "igualdade". e) Idade Contemporânea. Constitucionalismo Social Esta fase do constitucionalismo tem como principal característica a entrada de direitos sociais e trabalhistas nos textos constitucionais, e isto deu-se grandemente por meio das assim denominadas Normas Programáticas, ou seja, normas portadoras de programas para tentar realizar na prática o valor/direito "igualdade". Aí começou-se a falar em "função social da propriedade", em direitos educacionais e habitacionais, na disciplina das relações entre capital e trabalho, no direito à saúde e à previdência social. O Estado foi, assim, chamado a efetivar direitos que até então só existiam nos textos das leis, especificamente todos aqueles direitos ligados ao Direito à Igualdade. Por isso tais direitos são tidos como "positivos", pois impõem obrigações positivas ao Estado. E isto significou uma guinada daquele individualismo clássico do Liberalismo Clássico para o coletivismo, para o socialismo. Em nível mundial ocidental, a primeira Constituição que teve essas preocupações com o social, com o coletivo, foi a do México, de 1917 (que ainda está em vigor). Após, a Constituição de Weimar, de 1919, teve um programa que contemplava esses direitos. Esta Constituição regeu a vida da Alemanha do imediato pós-guerra até 1931, com a ascenção de Hitler ao poder (o período da história alemã denominado "República de Weimar" foi de 1918 a 1931). No Brasil, a Constituição de 1934 é tida como a versão sul-americana da Constituição de Weimar. Direitos sociais e preocupações coletivistas seriam retomados, após, na Constituição de 1946. f) A Constituição no Neoliberalismo. Fase de "Desconstitucionalização" Como reflexo direto da Globalização e do Neoliberalismo, as reformas à Constituição visam retirar do seu texto aquelas normas que sustentam a tese da ingovernabilidade: em não havendo como cumpri-las, tira-se-as da Constituição. 6 E neste contexto de Nova Ordem Mundial, o Consenso de Washington dita aos países "periféricos" (dentre estes o Brasil) atitudes a serem tomadas pelos governos de plantões, especialmente no que se refere às imposições dos programas de privatizações e descentralizações, isto é, passando para a iniciativa privada o patrimônio que sempre foi público e que foi construído com os tributos pagos pela população trabalhadora do País. Assim, pouco a pouco, o Estado retira-se da economia, deixando tudo mais uma vez nas "mãos invisíveis do mercado" e esse processo passa necessariamente por reformas às Constituições. 3 Constituição 3.1 Conceito de Constituição Podemos dizer, em linguagem simples e corrente, que a Constituição é o documento político-jurídico por excelência de um Estado, que nos regimes democráticos é redigido, aprovado e publicado por uma Assembléia Constituinte eleita pelo povo. É a lei fundamental, a lei magna, que retrata a forma de ser de um Estado e que confere direitos e garantias fundamentais, tanto aos indivíduos quanto à coletividade. Conforme José Joaquim Gomes Canotilho, é a obra fundacional de um Estado, ou seja, o conjunto daquelas normas que fundam um Estado. Além disso, a Constituição indica os poderes do Estado, através dos quais a nação há de ser governada e ainda marca e delimita, no regime administrativo brasileiro, por exemplo, as competências dos três Poderes Constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), as atribuições da União e de cada Estado-membro da Federação, bem como dos Municípios e do Distrito Federal. Vários podem ser os sentidos dados às Constituições, dentre os quais citamos: 1. O Sociológico (Ferdinand Lassalle) - em sentido sociológico, o grande mestre francês afirmou ser a Constituição uma "folha de papel" que deve ser criada pela soma dos "fatores reais de poder" que regem um país, ou seja, cada segmento da sociedade deve ser representado em sua criação, sob pena de a mesma não resultar legítima. 2. O Político (Carl Schmitt) - em sentido político, cujo maior expoente foi o mestre alemão, tem-se que Constituição é a "decisão política fundamental sobre a forma de ser de um Estado". 3. O Jurídico (Hans Kelsen) - o mestre austríaco dá para a Constituição um fundamento puramente jurídico, em que a Norma Hipotética Fundamental, conforme desdobramentos de sua teoria feitos por Norberto Bobbio, teria o seguinte conteúdo: por um lado "faça o poder constituinte originário uma Constituição" e, por outro lado, "obedeçam a tudo o que está na Constituição". Esta verticalidade fundamentadora do ordenamento jurídico com base na Norma Fundamental (que não é escrita, mas apenas pressuposta, ou seja, uma abstração) justifica a existência do Princípio da Supremacia da Constituição. • O Princípio da Supremacia da Constituição Como já adiantado, garante-se, por este princípio, o primado da Constituição, a sua superioridade em relação a qualquer outra norma. Partindo-se da idéia de que o Direito é composto por comandos emanados do Estado para organizar a vida em sociedade, o princípio da supremacia da Constituição faz com que a mesma esteja no ápice das leis, conforme a construção escalonada do ordenamento jurídico do jurista austríaco, o famoso professor de Viena, Hans Kelsen, cuja teoria prevê que cada comando normativo encontra respaldo naquele que lhe é superior e lhe deve obediência, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade da espécie normativa e conseqüente retirada do ordenamento jurídico, uma vez que a Constituição está no topo da pirâmide e é justamente esta verticalidade que confere validade a todo o sistema normativo infraconstitucional. 3.2 Conteúdo, estrutura e elementos da Constituição • Conteúdo da Constituição Quanto ao conteúdo costuma-se fazer uma classificação das Constituições em materiais e formais. Assim: Materiais - Sob o aspecto do conteúdo material, são aquelas Constituições que abrangem o conteúdo básico, o mais importante, o único merecedor de ser reduzido a MATÉRIA CONSTITUCIONAL. São as normas referentes à composição e ao funcionamento da ordem política-estatal (aquelas referentes à organização do poder, à distribuição das competências, ao exercício da autoridade, às formas de governo (monarquia ou república), às formas de Estado (Federação ou Estado Unitário) ao sistema de governo (Presidencialismo ou Parlamentarismo) e as relativas aos direitos e garantias fundamentais das pessoas. Normalmente as Constituições que contemplam apenas este conteúdo básico são de textos extremamente curtos. Porém, importa ressaltar que mesmo que a nossa atual Constituição só fizesse constar em seu texto o conteúdo puramente material, ainda assim seria um texto bastante extenso, haja vista que o art. 5º (que trata da maior parte dos direitos fundamentais) possui, sozinho, setenta e sete incisos. Exemplos de normas puramente materiais na Constituição Federal de 1988: - art. 5º, XXX: "é garantido o direito de herança"; - art. 44: "O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal". Formais - Quando as Constituições inserem em seu corpo textual matéria apenas de APARÊNCIA CONSTITUCIONAL, que aí ingressa de MODO IMPRÓPRIO, apenas FORMALMENTE, especificamente para gozar da garantia e do valor superior conferidos pelo texto constitucional quanto à ALTERAÇÃO: ou seja, qualquer norma que esteja na Constituição deve atender a processo diferente de modificação, mais solene, mais difícil, mais demorado (como por exemplo a exigência do quórum qualificado de 3/5, enquanto que para a alteração ou aprovação de lei ordinária basta o quórum de maioria simples - conforme art. 47 do Regimento Interno do Senado Federal). Ressaltamos que é justamente a entrada de normas de qualquer conteúdo nas Constituições, visando uma maior garantia quanto à mutação e, por conseguinte, buscando a longevidade, que acarreta o inchaço dos textos constitucionais. Exemplos de normas apenas formalmente constitucionais na CF/88: • uma norma sobre desportos: art. 217; ou • uma norma trabalhista: art. 233. Outros exemplos poderiam aqui ser citados, mas estes já são suficientes para comprovar que os conteúdos veiculados pelas normas não são da organização do Estado, tampouco a garantia em si de direitos fundamentais das pessoas, o que significa que poderiam muito bem estar presentes em leis ordinárias, infraconstitucionais, como é o caso de, em relação ao segundo exemplo, haver uma Consolidação das Leis Trabalhistas que poderia pormenorizar tais direitos trabalhistas. • Estrutura da Constituição Geralmente as Constituições trazem suas normas agrupadas em TÍTULOS, os quais, de maneira sistematizada, são divididos em CAPÍTULOS, e estes em SEÇÕES e SUBSEÇÕES, que agrupam os ARTIGOS, com seus INCISOS (algarismos romanos) e ALÍNEAS (letras minúsculas do nosso alfabeto), em função da conexão do conteúdo específico que as vincula. Convém salientar que inciso de art. faz parte do caput (cabeça) desse art., já o parágrafo (§) possui uma certa autonomia em relação ao caput. Frisa José Afonso da Silva (1998, p. 204) que os Preâmbulos Constitucionais têm "eficácia interpretativa e integrativa; mas, se contêm uma declaração de direitos políticos e sociais do homem, valem como regra de princípio programático, pelo menos". Já as normas Transitórias possuem o mesmo valor das Permanentes, e, de regra, eficácia plena e aplicabilidade imediata, porém temporária. Quanto à estrutura de nossa Lei Maior, a Constituição Federal de 1988, é composta por 324 arts., tendo 250 destes em sua parte fixa e 74 dispositivos denominados de "Disposições Constitucionais Transitórias" - ADCT. Estes dispositivos possuem vida útil curta, pois uma vez desenvolvidos, cumpridos, perdem seu valor enquanto ordem, restando apenas como parte histórica no texto da Constituição. Antes da numeração sucessiva dos seus 324 artigos, possui a CF/88 um Preâmbulo, após o qual os 250 artigos referidos encontram-se divididos em 9 grandes TÍTULOS, os quais por sua vez dividem-se em Capítulos, Seções e Subseções, conforme o conteúdo que agrupam, cada um deles representando um assunto específico. Os nove Títulos referidos são: •Título I - Dos Princípios Fundamentais •Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais •Título III - Da Organização do Estado •Título IV - Da Organização dos Poderes •Título V - Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas •Título VI - Da Tributação e do Orçamento •Título VII - Da Ordem Econômica e Financeira •Título VIII - Da Ordem Social •Título IX - Das Disposições Constitucionais Gerais • Elementos da Constituição O poder constituinte sistematiza em um todo unitário as normas constitucionais que julga fundamentais para a coletividade estatal, mas a doutrina constitucional diverge quanto ao número e à caracterização desses assim denominados elementos constitucionais. José Afonso da Silva (1997, p. 47) divisa cinco categorias de elementos: 1) Elementos Orgânicos: referem-se a normas que regulam a estrutura do Estado e do poder. Na CF/88 concentram-se nos Títulos III ("Da Organização do Estado"), IV ("Da Organização dos Poderes"), Capítulos I ("Do estado de defesa e do estado de sítio") e II ("Das Forças Armadas") do Título V ("Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas") e VI ("Da Tributação e do Orçamento"). 2) Elementos Limitativos: normas que consubstanciam o elenco dos direitos e garantias fundamentais, que por sua vez limitam a ação dos poderes estatais e dão a tônica do Estado de Direito. Na CF/88 estão no Título II ("Dos Direitos e Garantias Fundamentais"), exceto o Capítulo II ("Dos Direitos Sociais"). Por que os direitos sociais não entram aí? Porque os elementos limitativos tratam de direitos negativos, contra o Estado, e os direitos sociais são direitos positivos, que requerem prestações concretas do Estado. 3) Elementos Sócio-ideológicos: revelam o caráter de compromisso das Constituições modernas, pactuado entre o Estado Individualista (o Liberal Clássico, não-intervencionista) e o Estado Social/ Providente/Intervencionista. Na CF/88 encontram-se no Capítulo II do Título II ("Direitos Sociais"), no Título VII ("Da Ordem Econômica e Financeira") e no Título VIII ("Da Ordem Social"). 4) Elementos de Estabilização Constitucional: normas destinadas a assegurar a solução dos conflitos constitucionais, a defesa da Constituição, a defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Na CF/88 aparecem no art. 102, I, a (Ações Diretas de Inconstitucionalidade), nos arts. 34 a 36 (da intervenção nos Estados e Municípios), no art. 59, I e 60 (processo de emendas à Constituição), arts. 102 e 103 (jurisdição constitucional) e no Título V ("Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas"), especialmente em seu Capítulo I ("Do estado de defesa e do estado de sítio"). 5) Elementos Formais de Aplicabilidade: normas que estatuem regras de aplicação das Constituições, como o Preâmbulo, o dispositivo que contém as cláusulas de promulgação e as Disposições Constitucionais Transitórias, bem como § 1º do art. 5º, segundo o qual "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". 3.3 Classificação das Constituições Trazemos aqui as quatro grandes classificações em que comumente são as Constituições enquadradas. 3.3.1 Quanto à forma como se apresentam a) Escritas ou Positivas: aquelas postas em documentos formais, em um corpo textual único. Acompanharam o processo de racionalização do Direito e tiveram origem no "Contrato Social" de Rousseau, só podendo ser modificadas pela soberania popular. Em geral, as Constituições dos Estados modernos são escritas e codificadas, por pelo menos três razões comprovadas, conforme Paulo Bonavides (1996, p. 69): a) crença na superioridade da lei escrita sobre o costume; b) a imagem simbólica de que quando se criasse uma Constituição estar-se-ia renovando o "contrato social"; c) a concepção firmada desde o século XVIII de que não há melhor instrumento de educação política do que o texto de uma Constituição. Aqui fazemos uma crítica: esta última razão só se justifica onde a população à Constituição tem acesso! Exemplos: a Constituição dos EUA; todas as do Brasil; a da França, da Espanha, da Itália, da Argentina, do Paraguai, etc. É importante ressaltar que em relação às Constituições Escritas poderia haver ainda uma classificação que as dissessem Imutáveis ou Fixas, mas isto possui apenas valor histórico, mais especificamente referindo-se às Leis Fundamentais antigas, como o Código de Hamurabi e a Lei das XII Tábuas, que, tendo surgido com a pretensão de eternidade, não podiam ser modificadas sob pena de maldição dos deuses. b) Não-escritas, Costumeiras ou Consuetudinárias: por não serem escritas, são praticamente auto-explicativas; aquelas que se baseiam nos costumes e nas tradições observadas espontaneamente por um povo, secularmente transmitidas. Predominaram até os fins do século XVIII, em grande parte coincidindo com os regimes absolutistas. Atualmente são em número muito reduzido e podemos dizer que são "impostas" pela prática. Exemplos: o exemplo clássico vem da Inglaterra (que entretanto também se baseia em alguns textos fundamentais escritos7); a da Hungria e a da Nova Zelândia. 3.3.2 Quanto à origem a) Democráticas, Populares ou Promulgadas: aquelas que têm origem em órgão constitucional eleito especialmente eleito pelo povo para tal finalidade, por meio de sufrágio universal e direto. São elaboradas pelas Assembléias Nacionais Constituintes, como expressão do Poder Constituinte Originário, isto é, exprimindo o princípio político e jurídico de que todo o governo deve ser legitimado pelo consentimento dos governantes. Exemplos: As brasileiras de 1891, de 1934, de 1946 e de 1988, embora seja esta última questionável quanto à legitimidade de sua origem, uma vez que os Deputados Federais e os Senadores da República eleitos em 1986 não o foram com a exclusiva finalidade de criação da Constituição e, além disso, não podemos nos esquecer que, como a renovação do Senado Federal se dá de quatro em quatro anos, por um e dois terços, havia Senadores eleitos em 1982 (cujo cumprimento do mandato de 8 anos dar-se-ia em 1990), os quais, com certeza não foram eleitos para o fim de elaborar a nova Constituição, até porque em 1982 ainda nem se cogitava uma efetiva feitura de novo texto constitucional. b) Outorgadas: são aquelas impostas pelo detentor eventual do poder. Assim, não resultam da manifestação da soberania popular. A outorga aproxima-se das formas totalitárias de governo, uma vez que suprime do povo o exercício do poder de fazer a Constituição, através de seus representantes eleitos. Exemplos: as brasileiras de 1824 (imposta por D. Pedro I), de 1937 (imposta pelo ditador Getúlio Vargas), de 1967 (esta é também denominada "Atípica", por ter sido outorgada pelo Congresso Nacional, mas em função ordinária, isto é, sem delegação constituinte, o que não lhe retira o caráter de outorga) e a de 1969. c) Pactuadas: aquelas que exprimem um compromisso entre duas forças políticas rivais, como por exemplo, na época dos primórdios do constitucionalismo, a realeza absoluta debilitada e a nobreza de um lado e, de outro, a burguesia em franca ascenção. Desse pacto resultou a Monarquia Limitada ou Monarquia Constitucional. Formam uma categoria de Constituições históricas, pois dificilmente as veremos nos dias atuais. Exemplos: o já mencionado documento constitucional Bill of Rights, de 1689 e a Magna Cartha inglesa, de 1215, firmada entre os barões e o Rei João Sem-Terra. 3.3.3 Quanto à consistência, à estabilidade ou à mutabilidade Esta classificação deve-se a James Bryce, referindo-se à maior ou menor facilidade para a modificação dos textos constitucionais, sempre tendo como parâmetro de comparação as leis ordinárias. Assim, quanto à mutabilidade as Constituições podem ser: a) Rígidas: as que exigem a observância de procedimento diferenciado e mais complexo para sofrerem alterações em seus textos, sempre em relação às leis ordinárias. Assim, não podem ser alteradas pelo processo comum de elaboração das leis ordinárias, pois requerem debates mais amplos, prazos dilatados e quóruns qualificados. São adotadas pela maioria dos países contemporâneos. Esta diferença no processo de reforma visa a proteger a Constituição dos golpes de força das maiorias partidárias, de tendências oportunistas de grupos políticos predominantes e da exaltação dos ânimos em momentos de crise nacional. Exemplos: a dos EUA; todas as brasileiras, exceto a Imperial. b) Flexíveis ou Plásticas: aquelas que sofrem alterações da mesma maneira pela qual se elabora ou modifica qualquer espécie normativa, isto é, não exigem nenhum requisito especial de reforma. Certo é que só servem para nações democráticas evoluídas e de alto nível cultural. Exemplo: o exemplo clássico é da Constituição da Inglaterra, onde o Parlamento tem função de Poder Constituinte Originário permanente. c) Semi-rígidas: aquelas que possuem parte de seu texto rígido, parte flexível, mas isto não quer dizer que não possam ser modificadas. Todas as Constituições podem sofrer alterações, o que varia apenas é o grau de dificuldade ou de facilidade para tanto. Assim, nas semi-rígidas, parte do texto é modificado como o são as leis ordinárias, e parte requer para sua mutação os procedimentos rigorosos e difíceis próprios das Constituições rígidas. Exemplo: a Constituição Imperial brasileira (de 1824) que, pela regra do art. 178 criou uma terceira categoria de Constituições, integrando parte de dispositivos rígidos, parte flexíveis, isto é, vindo a ser semi-rígida. 3.3.4 Quanto à extensão a) Concisas: são as sintéticas, breves, sumárias; as que apresentam texto enxuto, sucinto. Abrangem somente direitos e princípios gerais, bem como regras básicas de organização e fundamento dos sistema político-jurídico estatal, deixando as pormenorizações à legislação complementar ou ordinária e, por isso mesmo, atendem à metáfora do "guarda-chuva", como se suas regras básicas fossem as poucas varetas que o compõem. São as Constituições do tipo "clássicas", qual seja, aquelas que contemplam apenas o conteúdo básico apregoada pelo já conhecido art. 16 da Declaração Universal dos Diretos do Homem e do Cidadão. Exemplo: a dos EUA, que, desde 1787, possui apenas 7 artigos e 26 emendas. b) Prolixas: são aquelas ditas inchadas, extensas, longas, que apresentam texto amplo. Também chamadas "Analíticas" por alguns autores, devido justamente à sua extensão. Cada vez mais numerosas, geralmente contemplam regras programáticas e apresentam caráter polifacético por albergarem normas não apenas materialmente, mas sobretudo formalmente constitucionais. Até parece que o que não está na Constituição não está no mundo, mas isso tem uma razão de ser: as matérias de natureza alheia ao Direito Constitucional propriamente dito adentram nos textos das Constituições, visando garantias que só as próprias Constituições proporcionam em toda a amplitude. Exemplos: a brasileira de 1988 - originalmente contendo 315 artigos, atualmente está com 324; a de Portugal (de 1976), que possui 296 artigos mais a Lei do Tribunal Constitucional; a da Espanha (de 1978); a Constituição da República do Paraguai, com 311 artigos e a da República da Índia, com 395 artigos. Longe estão, como vemos, de ser Constituições "Clássicas". Aqui vale uma observação: praticamente todas estas Constituições extremamente extensas surgiram em contextos de larga desconfiança em relação a recém-extintos regimes militares ditatoriais, o que fez com que se quisesse pôr o máximo de direitos nos textos constitucionais justamente para que aí desfrutassem da garantia de não serem suprimidos com tanta facilidade. Ocorre que isto configura uma "faca de dois gumes", pois, se de um lado realmente elevou vários direitos à categoria de constitucionais, por outro lado, dá azo aos argumentos de "ingovernabilidade", ou seja, fortalece aqueles ataques à Constituição que afirmam que é impossível governar com uma Constituição tão inchada e isso vem, paradoxalmente, apressar a sua reforma. 3.3.5 Classificação da Constituição Federal brasileira de 1988 Aplicando as tipologias a respeito das Constituições acima vistas, temos que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é: escrita quanto à forma como se apresenta; promulgada, democrática ou popular quanto à sua origem; rígida quando à sua alteração e prolixa ou analítica quanto à sua extensão. 4 Breve Apanhado Sobre A História Constitucional Brasileira O Brasil tem uma História Constitucional dolorosa, em que poucas vezes se conheceu uma verdadeira democracia. Iniciamos a história constitucional de forma pouco ou nada democrática, já que nossa primeira Constituição, a Imperial de 1824 (outorgada em 25 de março daquele ano), surgida no imediato pós-Independência, acabou sendo outorgada pelo Imperador Dom Pedro I, após este ter dissolvido a "Assembléia Geral Constituinte e Legislativa", de 1923, que, para elaborá-la, havia se reunido naqueles anos (fora convocada para tanto antes mesmo da Proclamação da Independência, sendo composta exclusivamente por membros da elite agrária brasileira) e que efetivamente possuía um "Projeto de Constituição".8 Assim, a "Constituição Política do Império", oferecida e jurada por Sua Majestade o Imperador, perdurou por todo o Império e conferiu ao Estado então Unitário características centralizadoras (as Províncias não gozavam de autonomia para auto-organização, autogoverno e auto-administração) e, a partir da criação jurídica do teórico francês Benjamin Constant, previu uma divisão quadripartite do poder: única fase histórica constitucional em que tivemos quatro Poderes Constituídos (o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Moderador), sendo que o Rei, na qualidade de Chefe Supremo da Nação, concentrava o exercício de dois desses poderes: o Executivo e o Moderador, caracterizando o autoritarismo político que marcou o Império brasileiro. Ademais, em determinado momento da monarquia implantou-se uma prática parlamentarista, vedada pelo texto constitucional. Procurou, enfim, a Constituição, coadunar em seu texto as idéias liberais derivadas das Revoluções Americana e Francesa, mediante algumas concessões à soberania popular (malogradas, eis que instituiu o voto censitário), com a manutenção da monarquia. Traduziu, em realidade, os interesses particulares dos grandes proprietários rurais, eis que foi inspirada na "Constituição da Mandioca", com correções que julgava necessárias. À primeira e única Constituição do Brasil Imperial seguiram-se algumas leis que com ela mantinham estreita relação, a saber: a) Lei, de 12 de outubro de 1932 - "Ordena que os eleitores dos Deputados para a seguinte Legislatura lhes confiram nas procurações faculdade para reformarem alguns artigos da Constituição"; b) Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 - "Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos termos da Lei, de 12 de outubro de 1832" (denominado "Ato Adicional"); c) Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 - "Interpreta alguns artigos da reforma constitucional"; d) Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841 - "Criando um Conselho de Estado". Com a exacerbação do Poder Moderador (desde há muito não exercido por D. Pedro I, que havia renunciado em nome de seu filho, o Príncipe D. Pedro de Alcântara, em 7 de abril de 1831) apressou-se o declínio do Império. Após as longas décadas de vigência da Constituição Imperial (dentre todas as Constituições brasileiras foi a que teve mais longa duração) podemos dizer que uma segunda fase de nossa história constitucional iniciou com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, quando nosso Estado, após longa "Campanha Federalista" de inspiração norte-americana, muda por completo sua estrutura: de um Império unitário e centralizador, passamos a uma República presidencialista, federativa e descentralizadora (autonomia política e administrativa dos Estados-membros da Federação). Adotou-se a teoria tripartite de divisão do poder elaborada por Montesquieu, com um Executivo presidencialista, um Legislativo bicameral (dividido em Câmara dos Deputados e Senado Federal) e um Judiciário independente, com novas funções e prerrogativas. Operou também a separação entre Igreja e Estado, passando o Estado brasileiro a ser laico a partir de então. Inicialmente tivemos a "Constituição Provisória", de 1890 (publicada pelo Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890) e, após, a definitiva - "Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil", de 24 de fevereiro de 1891, sendo esta a segunda brasileira e a primeira republicana. Na prática, esta Constituição teve muitos de seus princípios violados, pela inexistência ou difícil implementação da "verdade eleitoral" (uma vez que as eleições foram, durante toda a chamada República Velha, até 1930, portanto, marcadas e definidas por "votos de cabrestos", fraudes nas urnas por meio dos "bicos de penas", mecanismos pelos quais até defuntos votavam e que, em síntese, evidenciam o predomínio do "coronelismo", das oligarquias locais no cenário político-econômico), pela primazia dos Estados economicamente mais fortes na condução do poder político público (Minas Gerais e São Paulo: "Política do café-com-leite" e "Política dos Governadores"), pelas freqüentes intervenções - muitas vezes abusivas - nos Estados e pelas suspensões das liberdades públicas ante qualquer ameaça de desordem, mediante a decretação do "estado de sítio". Essa Constituição sofreu emendas em 1926. A partir daí, evento relevante foi a chamada "Revolução de 1930", que pôs termo à Primeira República e instituiu o "Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil", pelo Decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930, que acabou derrogando a Constituição de 1891. Outra fase deu-se entre entre 1934 e 1937, período da efêmera vigência da nossa terceira Constituição, a de 1934 ("Constituição dos Estados Unidos do Brasil", de 16 de julho de 1934), tida como a versão sul-americana da Constituição Alemã de Weimar (de 1919), por ter pela primeira vez entre nós incorporado direitos sociais, econômicos, culturais, trabalhistas, sindicais e previdenciários, o que foi feito, em sua grande maioria, pela previsão de "normas programáticas". Essa novel inclusão da "ordem econômica" como matéria constitucional deve-se também ao exemplo da Constituição Mexicana de 1917. É importante observar que na Constituinte de 1934 foi apresentado projeto de instituição de uma Corte Constitucional, inspirada no modelo austríaco, o que não foi acolhido pela Constituição. Esta, de vida curta, foi uma das mais belas Constituições que já tivemos, de caráter marcadamente democrático, onde se reconheceu o voto feminino, se instituiu o voto secreto e a Justiça Eleitoral, bem como se incluiu a proteção à família. Foi emendada em 18 de dezembro de 1935, através do Decreto Legislativo nº 6/1935 e acabou sendo abolida, ou melhor, derrogada por ato do então Presidente da República, em 1937, com a implantação do Estado Novo. Uma quarta fase iniciou-se com o golpe de Estado de 1937, capitaneado pelo então Presidente Getúlio Vargas, que suspendeu o curso da formação e afirmação de nossas instituições democráticas. Ao golpe seguiu-se a imposição da nossa quarta Constituição ("Constituição dos Estados Unidos do Brasil", outorgada em 10 de novembro de 1937), que foi redigida por Francisco Campos, a pedido do ditador Vargas, tendo o apoio das forças armadas e como "modelo" a Constituição polonesa de 1935, do regime do General Pilsudski. Como resultou praticamente em uma cópia literal desta última, ficou alcunhada como sendo a "Constituição Polaca". Alguns autores lhe atribuem inspiração fascista. Certo é, pelo menos, que traduziu-se em uma ruptura com a história constitucional do Brasil. Previa, em seu texto (art. 80) que deveria ser submetida a um plebiscito nacional para ser aprovada, mas tal plebiscito nunca se realizou. A partir daí, até a queda de Vargas em 1945, alijaram-se da vida política os partidos políticos, o Parlamento e o povo; para alguns historiadores de nossa constitucionalidade, a Carta de 1937 operou uma "deformação democrática". Apenas para termos um exemplo disso, chegava a registrar em seu Preâmbulo que ela haveria de conter meios extraordinários para combater o Comunismo. De cunho autoritário, a Constituição de 1937 foi emendada pelo próprio Governo que a editou por inúmeras vezes, por meio de "Leis Constitucionais", chegando-se a dizer que tão violada foi que sequer os privilégios que a si mesmo o governo havia inserido no texto constitucional foram observados; ou, dito de outra maneira, praticamente não foi executada. E, assim, a fase da nossa história que ficou conhecida por "Estado Novo" teve uma Carta Constitucional que para muitos não passou de um engodo, destinado, pura e simplesmente, a disfarçar um regime ditatorial em toda a amplitude do conceito. Conforme Pontes de Miranda, a Carta de 1937 "foi solapada, logo depois, pelos seus próprios autores. Não se realizou; não foi respeitada - quase toda nem, sequer, existiu". (Comentários à Constituição de 1946. v. 1, p. 23). Por fim, o regime autocrático fundado na Constituição de 1937 teve seu termo com a eleição de uma Constituinte para elaborar uma nova Constituição, que viria a ser agora democrática. Assim, uma quinta fase constitucional iniciou-se com o advento democrático da igualmente democrática Constituição de 1946 ("Constituição dos Estados Unidos do Brasil", de 18 de setembro de 1946), tendo ela sido elaborada pela Assembléia Constituinte convocada para tal em 2 de fevereiro de 1946, marcando a superação dos anos ditatoriais de Getúlio Vargas e lembrando em muito o texto constitucional de 1934, mormente em seu aspecto social. Prestigiou grandemente o municipalismo, reimplantou o bicameralismo no Poder Legislativo, alargou a competência do Poder Judiciário e, no campo dos direitos individuais, para além de retomar o rol já contemplado pela Constituição de 1934, acresceu a garantia de acesso incondicionado ao Poder Judiciário, afirmando que nenhuma lesão de direito individual poderia ser subtraída à sua apreciação, bem como inovou com o princípio da liberdade de criação de partidos políticos (pluralismo partidário baseado na garantia de direitos fundamentais e com restrições de não serem contrários ao regime democrático). Os valores coletivos nela também tiveram destaque, o que se pode verificar pela subsunção da propriedade privada ao "bem-estar social", pela coibição do abuso do poder econômico, pelo reconhecimento do direito de greve, dentre outros direitos trabalhistas e previdenciários. Entre 1950 e 1963 recebeu seis Emendas Constitucionais e, após o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, mais quinze. Na verdade, desde 1961 as diversas emendas operadas em seu texto denunciavam uma série de crises institucionais que se davam no Brasil, tendo inclusive a Emenda nº 4/61 instituído o sistema parlamentar de governo que, após plebiscito desaprovando-o, foi substituído pelo já entre nós tradicional presidencialismo, através da Emenda nº 6/63. Muito discute-se a respeito do exato momento em que a Constituição de 1946 deixou de vigorar, eis que, embora inicialmente "respeitada pelo regime militar", já que este afirmava manter "em vigor a Constituição de 1946", com as modificações por ele introduzidas, sob o ângulo jurídico, a partir do Ato Institucional de 9 de abril de 1964, diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "não é propriamente a Constituição de 1946, estabelecida pela Constituinte de 46, que está em vigor. Está em vigor uma Constituição outorgada pelo movimento revolucionário cujo conteúdo corresponde ao da Constituição de 1946, com as alterações que ele próprio introduz." (apud BASTOS, 1997, p. 133) Assim, ainda que tecnicamente tenha vigorado por praticamente 21 anos (de 1946 a 1967), na prática, é possível dizer-se que tenha sido superada já com a edição do primeiro Ato Institucional (de 9 de abril de 1964), por conta das modificações então introduzidas, ou ainda, mais apropriadamente com o impacto que sofreu pelo Ato Institucional nº 2, que, dentre outras medidas, extinguiu os partidos políticos. De todos os modos, certo é que o movimento militar de 1964 rompeu com a ordem constitucional de 1946. Uma sexta fase iniciou-se com a outorga, em 24-1-1967, da primeira Constituição do Regime Militar entre nós implantado desde 31 de março de 1964 ("Constituição do Brasil"), que com vários Atos Institucionais (de números 5 a 17) e entre estes, após o AI n° 5/1968, inseriu-se o Ato Complementar n° 40/1968 que, ao "arrepio da técnica legislativa", fez acréscimos aos artigos 13, 24, 26, 99 e 136 daquele texto constitucional, distorção contornada com a expedição do AI nº 6/1969, instrumento que ratificou as emendas operadas através do referido Ato Complementar. Para a feitura da Carta de 1967 o Congresso Nacional foi convocado para "discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República" - Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966. A Constituição de 1967 teve cunho centralizador no âmbito federal e fortalecedor do Poder Executivo (inclusive com poderosas competências legislativas), podendo sua principal peculiaridade ser resumida na enorme preocupação que dispensou à "segurança nacional" (conceito jurídico indeterminado que permitiu diversas posteriores manipulações
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