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Não existe almoço grátis Conselho Editorial Internacional Presidente: Prof. Dr. Rodrigo Horochovski (UFPR – Brasil) Profª. Dra. Anita Leocadia Prestes (ILCP – Brasil) Profª. Dra. Claudia Maria Elisa Romero Vivas (UN – Colômbia) Profª. Dra. Fabiana Queiroz (Ufl a – Brasil) Profª. Dra. Hsin-Ying Li (NTU – China) Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet (PUC/RS – Brasil) Prof. Dr. José Antonio González Lavaut (UH – Cuba) Prof. Dr. José Eduardo Souza de Miranda (UniMB – Brasil) Profª. Dra. Marilia Murata (UFPR – Brasil) Prof. Dr. Milton Luiz Horn Vieira (Ufsc – Brasil) Prof. Dr. Ruben Sílvio Varela Santos Martins (UÉ – Portugal) Comitê Científi co da área Ciências Humanas Presidente: Prof. Dr. Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia) Prof. Dr. Nilo Ribeiro Júnior (Faje – Filosofi a) Prof. Dr. Renee Volpato Viaro (PUC/PR – Psicologia) Prof. Dr. Daniel Delgado Queissada (Ages – Serviço Social) Prof. Dr. Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (Ufba – Sociologia) Profª. Dra. Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia) Profª. Dra. Luciana Ferreira (UFPR – Geografi a) Profª. Dra. Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação) Prof. Dr. Cezar Honorato (UFF – História) Prof. Dr. Clóvis Ecco (PUC/GO – Ciências da Religião) Prof. Dr. Fauston Negreiros (UFPI – Psicologia) Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia) Prof. Dr. Mario Jorge da Motta Bastos (UFF – História) Prof. Dr. Israel Kujawa (Imed – Psicologia) Prof. Dr. Luiz Fernando Saraiva (UFF – História) Profª. Dra. Maristela Walker (UTFPR – Educação) Profª. Dra. Maria Paula Prates Machado (Ufcspa – Antropologia Social) Prof. Dr. Francisco José Figueiredo Coelho (UFRJ – Ensino de Biociências e Saúde) Profª. Dra. Maria de Lourdes Silva (UERJ – História) Profª. Dra. Ivonete Barreto de Amorim (Uneb – Educação, Formação de Professor e Família) Prof. Dr. César Costa Vitorino (Uneb – Educação/Linguística) Prof. Dr. Marcelo Máximo Purifi cação (Uneb – Educação, Religião, Matemática e Tecnologia) Prof. Dr. Everton Nery Carneiro (Uneb – Filosofi a, Teologia e Educação) Profª. Dra. Elisângela Maura Catarino (Unifi mes – Educação/Religião) Profª. Dra. Sandra Célia Coelho G. da Silva (Uneb – Sociologia, Gênero, Religião, Saúde, Família e Internacionalização) Leonardo José Ostronoff Não existe almoço grátis © Brazil Publishing Autores e Editores Associados Rua Padre Germano Mayer, 407 Cristo Rei - Curitiba, PR - 80050-270 +55 (41) 3022-6005 Associação Brasileira de Editores Científi cos Rua Azaleia, 399 - Edifício 3 Offi ce, 7º Andar, Sala 75 Botucatu, SP - 18603-550 +55 (14) 3815-5095 Associação Brasileira de Normas Técnicas Av. 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CDD 364.4 (22.ed) CDU 351.78 Para Olga Rosa, minha mãe. não seja considerado como um balinês (para isso é preciso ter nascido balinês), você é pelo menos visto como ser humano em vez de uma nuvem ou um sopro de vento. Todo aspecto de sua relação muda drasticamente, na maioria dos casos, para uma relação gentil, quase afetuosa – uma cordialidade branda, muito brincalhona, afetada e confusa” (Clifford Geertz). Prefácio Marcos César Alvarez As tecnologias de vigilância e de monitoramento de comportamentos são praticamente onipresentes na vida contemporânea. Câmeras em espaços privados e públicos, sistemas de localização e de rastreamento de pessoas e de objetos, algoritmos que identificam padrões de gostos e de compras no mundo virtual, pulseiras ele- trônicas que indicam sinais vitais para garantir a saúde e o bom desempenho esportivo ou ainda tornozeleiras eletrônicas que expandem os controles penais para além dos muros das instituições de confinamento. Enfim, é difí- cil imaginar as condições de vida na atualidade sem essa profusão de sistemas técnicos que provocam entusiasmo, mas também apreensão. As elaborações artísticas há muito desenham so- ciedades distópicas, nas quais os mecanismos de vigilân- cia e de controle submetem inexoravelmente os cidadãos. Ao mesmo tempo, a experiência histórica dos regimes autoritários e totalitários dos séculos XX e XXI confirmam que os piores pesadelos por vezes se concretizam e a sobreposição de ficção e de realidade tanto pode ter como efeito a multiplicação de teorias conspiratórias, que paradoxalmente se apoiam nos recursos tecnológicos para se propagarem, como estimular um efetivo debate público sobre as dinâmicas sociotécnicas em curso na contemporaneidade. Se o papel da ficção — quer seja na literatura, quer nas artes plásticas ou no cinema — consiste, por vezes, em construir cenários limites que, ao sensibilizarem os contemporâneos, mobilizam corações e mentes contra as piores tendências de dominação já inscritas nas ex- periências cotidianas, no campo das Ciências Sociais, a pesquisa segue caminho paralelo, mas independente, ao buscar descrever como os mecanismos de vigilância e de controle funcionam efetivamente na vida social e seus efeitos políticos, econômicos, culturais etc. Michel Foucault (1987)1 é um dos autores mais lem- brados quando se aborda tal temática, a partir de suas análises sobre o papel das práticas de vigilância em insti- tuições como hospitais e prisões e seus efeitos em termos de relações específicas de poder que ele nomeará, em determinado momento, de “disciplinares”. Sem técnicas que permitissem o “ver sem ser visto” e a multiplicação de registros diversos, obtidos por meio da observação, a cura de doentes em hospitais, o trabalho coletivo nas fábricas, a organização da educação nas escolas, o combate às epidemias que assolam as populações, o planejamento da circulação das massas nas cidades, a manutenção da ordem no sistema prisional, entre outros aspectos, não seriam viáveis. Em grande medida, Foucault demonstra como as técnicas de vigilância e controle são imanentes 1 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. à experiência moderna da ordem social, em dimensões como a saúde, a educação, o urbano, a penalidade etc. Em sociedades disciplinares, passaríamos, ao longo da vida, por muitos espaços sociais permeados por práticas de vigilância, de registro e de monitoramento, do hospital à escola, do exército ao presídio, da fábrica aos espa- ços urbanos permanentemente esquadrinhados. Gilles Deleuze (1992)2, por sua vez, ao observar as mudanças tecnológicas da segunda metade do século XX, indaga se já estaríamos para além das sociedades disciplinares, descritas por Foucault, ao empregarmos massivamente as novas tecnologias comunicacionais e interagirmos nos mundos virtuais, com suas novas formas de controle e monitoramento, como senhas, softwares e algoritmos que expandiriam a vigilância em novas fronteiras. Tal debate só se intensifica nas Ciências Sociais contemporâneas. Frank Pasquale (2015)3, entre outros, emprega a metáfora da “black box society” para diag- nosticar transformações políticas e sociais contemporâ- neas que levariam à expansão da lógica do segredo em dimensões chave davida social — comunicação, ciência, finanças etc. — com o aprofundamento das assimetrias de conhecimento e de poder correspondentes. As formas de poder se atualizariam agora na autoridade expressa pelos algoritmos, com códigos e regras mais difíceis de serem decifrados pelo cidadão comum. Em reflexão pa- ralela, a atual onipresença das tecnologias da informação 2 DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. 3 PASQUALE, F. The Black Box Society. The Secret Algorithms that Control Money and Information. Londres: Harvard University Press, 2015. leva Shoshana Zuboff (2021)4 a caracterizar um verdadeiro “capitalismo de vigilância”, no qual os mecanismos de extração e de processamento das informações sobre os comportamentos sociais passaria a constituir uma dimensão fundamental da acumulação capitalista. Independentemente das polêmicas inevitáveis em qualquer campo de estudo, essas diferentes análises — ao contrário dos posicionamentos mais vulgares, que ora observam as novas tecnologias apenas em suas dimen- sões emancipatórias, ora observam apenas seus efeitos mais deletérios — indicam que os dispositivos sociotécni- cos apresentam dupla face, ao aumentar as capacidades humanas em termos de intervenção no mundo social e natural, mas igualmente ao propiciar novas assimetrias e novas formas de poder entre os homens e também com relação à natureza. A crítica às tecnologias, então, não tem nada de banal, mas consiste sempre, em seu primeiro passo, em reinserir as tecnologias, dispositivos e aparatos, supostamente neutros e técnicos, no plano das intera- ções, instituições e processos sociais e históricos. A investigação realizada por Leonardo Ostronoff, aqui apresentada na forma de livro, cumpre exatamente esse papel de estimular o debate público, tendo em vista mecanismos e práticas de vigilância e de controle que, de tão presentes na vida cotidiana, acabam naturalizados ou passam completamente despercebidos. Realizada nas cidades de São Paulo e no Rio de Janeiro, a pesquisa inicialmente se volta para os aspectos de vigilância e de 4 ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021. controle presentes em supermercados. Contudo, as prá- ticas de vigilância, em princípio circunscritas ao controle da clientela desses estabelecimentos e sobretudo dos trabalhadores envolvidos nesse tipo de atividade eco- nômica, logo revelam-se parte de um sistema muito mais amplo, que envolve da logística à segurança. O campo de investigação se desloca para a significativa atuação da segurança privada no setor, em atividades como de escolta armada, assim como para as potenciais formas de ilegalismos associadas, como o roubo de cargas, com seus operadores especializados e as respectivas ativida- des de receptação. É enfim toda a dinâmica do dispo- sitivo da “prevenção de perdas” que vai se desvelando, aqui apresentada em toda sua complexidade econômica, social e mesmo política, como será explorado no caso da intervenção federal no Rio de Janeiro, em 2018. Desse modo, ao longo do livro, é mais uma “black box” que é decifrada em suas complexidades e nuan- ces, tanto em termos de tecnologias de vigilância e de controle, quanto de condições de trabalho no setor su- permercadista, de atuação das empresas de segurança privada e seguradoras, de redes de roubo de cargas e de receptadores, dos lobbies na área da segurança pública e mesmo das disputas políticas mais amplas. Fica, assim, o leitor convidado a percorrer essas múltiplas dimensões de um dispositivo que vai muito além das mercadorias atrativamente apresentadas nas gôndolas e do corre- -corre diário de atendentes, de caixas e de repositores nos corredores dos supermercados. Abstract At its inception, the aim of the study was Closed Circuit Televi- sion (CCTV) systems in Brazilian supermarkets. However, that was just the tip of the iceberg. During the field work period, the researcher discovered the Loss Prevention System — a device developed for supermarket companies by former military and former police officers — whose aim is to control the flow of people and goods in their distribution chain as a whole, in order to reduce the risk of loss. Cargo theft was identified as the main threat. Therefore, the analysis of the dynamics of this criminal activity was fundamen- tal for the research. Considered a property crime, cargo theft is a high-incidence crime. Howe- ver, from 2015 to 2017, there was a huge increase in cases in cities such as Rio de Janeiro and São Paulo. Public and private initiatives were taken to fight it, underscored by a Federal Intervention in Public Security in Rio de Janeiro. The study of such actions made it possible for the researcher to describe some of the gray areas between public and private sectors in the Brazilian safety system. In all, 35 interviews were conducted with supermarket employees, executives of logistics and loss prevention of those companies, union members, military and civil police officers, officers and non-commissioned officers in the armed forces, armed escort and risk management companies employees and even three individuals arrested by the police for cargo theft. More than quantity, what stands out the most is the variety of this sample of interviews. Sumário Introdução 19 Capítulo 1 Observação direta das lojas 31 1.1 Loja A . . . . . . . . . . . . . . 31 1.2 Loja B . . . . . . . . . . . . . . 35 1.3 Loja C . . . . . . . . . . . . . 37 Capítulo 2 A Prevenção de Perdas 47 2.1 Vigilância, videovigilância e um caso de racismo . . . . 47 2.2 Um deslocamento na pesquisa . . . . . . . . 53 2.3 Vigilância do ramo supermercadista fora dos supermercados: os Centros de Distribuição . . . . . . . . . 58 Capítulo 3 O modus operandi do roubo de cargas em São Paulo 109 3.1 Dados quantitativos . . . . . . . . . 109 3.2 Análise qualitativa . . . . . . . . . . . 131 Capítulo 4 O mercado ilegal do roubo de cargas 149 Capítulo 5 Ações em São Paulo e a Intervenção Militar na Segurança Pública no Rio de Janeiro 201 Capítulo 6 O Trabalho de Campo quanto ao Roubo de Cargas 231 6.1 A Pauliceia Policial . . . . . . . . . . .231 6.2 Trinta dias e trinta noites em Copacabana . . . . 234 Conclusão 247 Referências 257 Posfácio 263 Índice remissivo 265 Sobre o autor 267 Introdução Uma pesquisa nunca é apenas realizada durante seu período de vigência, mas resulta de inúmeras expe- riências que tivemos até chegar ao seu planejamento e execução. Começar estudando supermercados e terminar analisando a Intervenção Militar na SegurançaPública do Rio de Janeiro é um caminho que pode parecer incoerente. Entretanto, fazer pesquisa em Ciências Sociais exige essa capacidade de enxergar conexões e estabelecer relações por meio de tessituras que a Teoria Social permite.5 De antemão, esse livro não pretende agradar às ortodoxias, contudo respeita o pensamento clássico e reivindica sua importância. Minha formação de sociólogo começa exata- mente nesse ponto: no estudo de Marx, Weber e Durkheim, os chamados clássicos da Sociologia (ALEXANDER, 1999). Era ano de 2000, estava no segundo ano da gra- duação de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, filho de uma professora primária do estado, que era chefe de família e sustentava três filhos. Vindo de uma cidade do interior de São Paulo com 60 mil habitantes, viver em uma metrópole era um desafio e um exercício de sobre- vivência. Já estava quase desistindo do curso, quando, na disciplina de Métodos II, ministrada pela profa. Heloísa Martins, tive meu primeiro contato com Florestan Fernan- 5 Este livro é um dos resultados de um projeto de pesquisa de pós-doutorado (processo Fapesp 2016/18464-1), desenvolvido de março de 2017 a março de 2020, na Universidade de São Paulo. 20 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF des. Até então, o mundo sociológico era para mim “coisa de rico”, aparentemente a elitização das Ciências Sociais era intransponível. Então, foi no movimento estudantil que encontrei guarida, mais precisamente naquele setor da esquerda revolucionária, afinal, eu era uma expressão viva da luta de classes. A história de Florestan destaca sua origem humilde e o fato de ele ter trabalhado como engraxate, garçom e ser filho de empregada; é parte do mito do maior so- ciólogo brasileiro ele ter vencido as barreiras sociais tão presentes até hoje nas Ciências Sociais. Um paradoxo, mas real. Não preciso dizer que isso caiu como uma luva em minha mente e lembro que ganhei o livro de sua bio- grafia de uma namorada que cursava graduação comigo e, felizmente, tinha boas condições de vida. Carregava o livro comigo, aonde quer que eu fosse e tivesse tempo, abria e continuava a ler. Certa noite, estava no ponto de ônibus das Ciências Sociais e nem percebi que o ônibus demorou uma hora para passar. Nas aulas, participava ativamente, o que me fez ga- nhar a simpatia da professora e um convite posterior para fazer iniciação científica, claro, enviando um projeto que deveria ser avaliado pela Fapesp. Era uma ótima chance, na qual me agarrei e acabei por enviar o projeto. Contudo, no período de sua avaliação, meu pai faleceu (já estávamos em 2001). Não tranquei o curso, pois isso não permitiria a implementação da bolsa se ela fosse concedida, período de extrema superação. Meses depois a aprovação chegou, na época, enviavam por carta o resultado. Fiz um ano de iniciação estudando a construção da solidariedade nas 21NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS cooperativas de produção, a qual conclui fazendo uma crítica ao cooperativismo. Certamente, para um jovem leninista revolucionário, a reforma da economia sem rup- tura com o modo de produção capitalista não era viável. O tempo muda as pessoas. Depois de formado na graduação, passei um ano trabalhando em um projeto de cooperação internacional do Dieese,6 o qual consistia na análise das relações de trabalho no Carrefour, uma comparação entre França, Brasil e Argentina, com base em uma metodologia qua- litativa chamada de abordagem ergológica do trabalho. O projeto tinha como instituições envolvidas: o Dieese, a Universidade de Provence (França), o Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/Unicamp) e os sindicatos de comerciários de São Paulo, Osasco e Buenos Aires. Nessa pesquisa, fiquei responsável por fazer o trabalho de campo nas lojas do Carrefour em São Paulo, onde comecei a ter contato com o setor supermercadista. Justamente dessa pesquisa que, anos mais tarde, veio a ideia de ana- lisar supermercados no pós-doutorado. No mestrado, investiguei as relações de gênero no sindicalismo brasileiro, cuja importância para o projeto de pós-doutorado foi meu contato com Foucault. Nesse momento, comecei meus estudos da obra desse autor, nos quais permaneço até hoje. Entre o mestrado e o doutorado, tive uma experiência na gestão pública, tra- balhando na gestão municipal em Fortaleza durante dois anos e meio. Primeiro na Secretaria de Desenvolvimento 6 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. 22 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF Econômico e, depois, sendo assessor no Gabinete da Prefeita. Tal experiência somada à participação na coor- denação de campanhas eleitorais e no mundo interno do Partido dos Trabalhadores me permitiu conhecer como o Estado e as políticas de nosso país funcionam, não como pesquisador, mas enquanto parte agente do processo. Tal experiência foi fundamental na discussão que traz esse livro, pois ela me permitiu “afinar” meu olhar de pesquisa- dor para certos processos. No doutorado, estudei o sindicalismo bancário, sempre com Foucault. Fiz o doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra, aprofundando minha com- preensão desse autor. Durante o doutorado, também participei ativamente do seminário sobre Michel Foucault organizado pelo prof. dr. Marcos César Alvarez, que, anos mais tarde, convidou-me para elaborar o projeto de pós-doutoramento para Fapesp, cujos resultados de três anos de pesquisa formam o presente livro. No projeto, o tema desta pesquisa era a hipótese da formação de uma cultura de controle na sociedade contemporânea (DELEUZE, 1992) e seus desdobramentos no cotidiano de trabalho. A proposta era realizar uma pesquisa sobre os sistemas de controle e vigilância em relação ao setor de varejo, mais especificamente nos hipermercados. A questão que se buscava responder era como se organiza a vigilância nos espaços de traba- lho, tendo como locais de observação às lojas dos três maiores grupos supermercadistas presentes no Brasil na cidade de São Paulo. Os critérios para escolha foram faturamento, número de lojas e trabalhadores. 23NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS Na década passada, essas três grandes empresas do setor varejista aumentaram seus investimentos em tecnologias de segurança e videovigilância. Um mercado lucrativo em torno dos sistemas de segurança se desen- volveu, surgindo empresas especializadas que trouxeram inovações tecnológicas para o varejo. Algumas empresas importantes do ramo da vigilância tecnológica são a Arius e a Tyco Integrated Fire & Security, ambas funcionando no Brasil. Por meio da observação direta dos sistemas de vi- gilância, era pretendido investigar os sistemas de punição criados no interior das lojas. Assim, tanto o “vigiar” quanto o “punir” estavam contemplados. Também se pretendia realizar entrevistas semiestruturadas com clientes, traba- lhadores das lojas e executivos dos níveis de gerência e logística. Os manuais de gestão e procedimentos de tra- balho das três grandes empresas selecionadas também foram destacados como fontes de pesquisa. A utilização de dados quantitativos tinha o objetivo de realizar uma morfologia dos trabalhadores, clientes e setor, funcionan- do de modo mais descritivo. O projeto inseriu-se no campo dos estudos sobre controle do trabalho, pois diz respeito à gestão de pesso- as. Contudo, destaca-se a diferença dele em relação aos estudos já realizados: ele não se restringia às maneiras de aumentar a produtividade, mas versava sobre como o controle é exercido no espaço da loja sobre as pessoas em todas as suas expressões. Tratava-se então, mais pre- cisamente, de investigar os sistemas de videovigilância, o 24 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF que incluía os trabalhadores, mas também os clientes, os vigias e todos os sujeitos presentes no espaço das lojas. É importante recapitular os dois primeiros anos de pesquisa, afinal, são três anos de um trabalho que estão imbricados uns aos outros. As atividades com- preenderam a pesquisa e a participaçãoem congressos, seminários e palestras. O início foi em 2017, com uma revisão teórica do projeto. Nesse período, apresentei trabalho no Congresso Latino-Americano de Teoria Social na Universidad de Buenos Aires, discutindo com outros pesquisadores a questão da punição em meu trabalho. A próxima etapa foi a observação nas lojas dos supermercados, onde precisei fazer contatos com os sindicatos dos comerciários de São Paulo e Osasco. Realizei 20 entrevistas e, por meio delas, descobri a questão do loss prevention (prevenção de perdas). No objetivo de me aproximar do sindicato, participei de um programa na Rede Pública Televisiva de Osasco, em que o tema era minha pesquisa. Ao fim de 2017, apresentei trabalho no congresso da Rede Lavits7 em Santiago (Chi- le), contribuindo para a discussão de vigilância em minha pesquisa. No mesmo ano, meu artigo “Videovigilância e punição no trabalho” foi publicado na Revista de Ciên- cias do Trabalho do Dieese (OSTRONOFF, 2017). Em 2018, intensifiquei o trabalho de campo para investigar o sistema de prevenção de perdas, uma des- crição detalhada era o pretendido. Publiquei na Revista Mediações o artigo “Vigilância, controle e tecnologia: um estudo sobre o setor supermercadista em São Paulo” 7 Rede Latino-Americana de Estudos Sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade. 25NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS (OSTRONOFF, 2018). Também apresentei trabalho em dois grupos de trabalho no XIX ISA World Congress of Socio- logy em Toronto (Canadá), bem como, no Congresso da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Apresentei minha pesquisa no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará a convite do Laboratório de Estudos de Violência (LEV) e no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) na Universidade de São Paulo. Em 2019, com a renovação da bolsa por mais 12 meses, o foco da pesquisa foi no roubo de cargas. Para tanto, realizei trabalho de campo entrevistando policiais civis e militares, membros das forças armadas, trabalha- dores das empresas de segurança e de gerenciamento de riscos. Fiz esse trabalho em São Paulo, baseado em con- tatos de minha rede pessoal, o que era uma dificuldade inicial, mas que, ao decorrer da pesquisa, mostrou-se bem eficaz. Passei um mês no Rio de Janeiro, fazendo entrevis- tas sobre a Intervenção Militar. Destaco entre elas a com o chefe de operações do Comando Militar Leste e com o diretor da Divisão de Homicídios. Também tive acesso a documentos utilizados na Intervenção, o que me permitiu entender com mais profundidade e detalhamento a es- tratégia, planejamento e execução dela. Buscar os dados sobre roubo de cargas foi uma tarefa dessa etapa, algo que consegui com apoio da Divecar/Deic,8 do mandato de um vereador da esquerda paulistana e com ajuda da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. 8 Delegacia da Divisão sobre Furtos, Roubos, Receptação de Veículos e Cargas/ Departamento Estadual de Investigações Criminais. 26 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF Ainda em 2019, participei de duas mesas em congressos discutindo o trabalho em andamento, contri- buindo diretamente na elaboração da proposta de ambas. No congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), participei da mesa “Mundo do trabalho e pluralidade epis- temológica: teorias e práticas” e no Congresso da Anpocs fiz parte da mesa sobre Mercados Ilegais. Apresentei trabalho no Governance, Crime and International Security: testing innovations in Policy, Practice and Research, reali- zado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em parceria com a London School. Tais atividades enriquece- ram a pesquisa, pois colocaram em debate seus passos e dados, contando com a comunidade de pesquisadores para tanto. Nos primeiros dois anos, essa pesquisa de pós- -doutorado integrou o quadro de pesquisas do projeto temático “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista”, cuja coordena- dora responsável era a profa. dra. Vera da Silva Telles e o prof. dr. Marcos César Alvarez era o pesquisador principal. Com o encerramento desse projeto, continuei por mais 12 meses minha pesquisa, com renovação aprovada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Com base no que foi proposto no projeto de pós-doutorado, este livro apresenta os resultados obtidos durante os três anos da minha pesquisa de pós-doutora- do. É preciso destacar que o caminho percorrido durante a pesquisa de campo foi importante, trazendo questões inesperadas, que enriqueceram a investigação. Como apontado no relatório de renovação, existiu um desloca- 27NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS mento na minha pesquisa que a trouxe para discussão do crime, com a entrada do roubo de cargas. Entretanto, em nenhum momento a proposta inicial foi deixada para trás, ao contrário, foi o desenvolvimento da pesquisa que con- duziu a tais questões. Era preciso pensar uma forma de conectar essas fases da investigação, o que me conduziu para o conceito de mercados ilegais. Dessa maneira, no terceiro ano da investigação, o esforço foi descrever de modo detalhado o que chamei de “mercado ilegal do roubo de cargas”, fato que minha trajetória em trabalho e economia facilitou muito. O roubo de cargas é crime, portanto, está no campo de estudos da violência, mas somente se mantém porque se desenvolve em seu entorno um mercado estável. Como afirma Max Weber (2000), a sociologia procura nos fenômenos o que é regular, o que é constante. Mesmo após a renovação ter sido aceita, havia um problema nos primeiros dois anos: um campo bastante avançado, sem igual correspondente teórico. Era necessário, então, resolver um descompasso entre essas duas áreas da pesquisa. Para tanto, foi preci- so compreender como funciona um mercado ilegal com base nas características de um mercado legal. Para seguir com objetividade nesta obra, seguirei o caminho feito no trabalho de campo como uma sequência racionalizada para facilitar a compreensão dos resultados da pesquisa. No início da pesquisa, o tema central era a vigilân- cia na sociedade contemporânea e seus desdobramentos no trabalho. Essa questão será explorada no capítulo 2. No projeto, apontei que prisões, hospitais e até mesmo bancos são locais onde normalmente esperamos ser 28 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF vigiados, em que o olhar constante sobre os indivíduos é justificado por questões de segurança. Contudo, na sociedade contemporânea, esses sistemas teriam se espalhado pela vida cotidiana. “Em suas montagens, as imagens das câmeras-olho ou olhos-máquina põem em relação vários domínios: a prisão, o trabalho, a guerra, a administração, o consumo” (BRUNO, 2012, p. 59). Metodologicamente, seria inviável observar todos esses espaços, por isso, a observação direta dos hiper- mercados foi escolhida desde a concepção do projeto e está descrita no capítulo 1. Três lojas foram selecionadas dentre as três empresas escolhidas9. Já durante a exe- cução da pesquisa, foi solicitada às empresas permissão para realizar a observação no interior das lojas, porém, as três negaram. Segue o e-mail enviado pela empresa A: Boa tarde, Leonardo Gostaríamos de esclarecer que é com gran- de satisfação que recebemos seu e-mail, demonstrando interesse em contemplar o [...] como uma das empresas/organizações/ estruturas a servir de referencial de estudo para seu magnífico tema de “Como o Uso de Novas Tecnologias Auxilia na Gestão do Espaço dos Hipermercados”! Sentimo-nos honrados por isso. Porém, como é do seu conhecimento e do público em geral, o [...] acaba de abrir o capital dos seus negócios no Brasil, o que faz aumentar a atenção, cuidados e restrições em geral. 9 O critério para a escolha das empresas foi o faturamento anual, número de trabalhadores e lojas. 29NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS Por conta justamente dessa nova realidade, fomos incumbidos de transmitir-lhe o posi- cionamento por parte das áreas competen- tes do [...], deque infelizmente “Não” pode- remos atender vosso pedido de permissão para conhecer as instalações tecnológicas (CFTV) das unidades do Grupo. Contamos com vossa compreensão e aproveitamos para lhe desejar muito su- cesso no atual trabalho, vida acadêmica estudantil e profissional. Grande Abraço! Como relatado anteriormente, em 2004 participei de uma pesquisa de comparação das relações de trabalho na empresa supermercadista Carrefour. Nessa pesquisa, a empresa também negou acesso aos pesquisadores nas unidades no Brasil, o que já fazia com que eu esperasse a mesma decisão dos supermercados escolhidos no pós-doutoramento. Confirmada a recusa, a solução era usar a mesma técnica empregada na pesquisa de 2004, realizando a observação na condição de cliente. Dentro dessa perspectiva, iniciei o campo nas três lojas. Capítulo 1 Observação direta das lojas 1.1 Loja A Localizada a apenas uma quadra da Avenida Pau- lista, a Loja A da Avenida Brigadeiro Luís Antônio fica em uma área movimentada da cidade de São Paulo. O fluxo de pessoas por dia é enorme, fato reforçado pela proxi- midade à Estação Brigadeiro da Linha Verde, bem como com um ponto de ônibus bem em frente à loja. Possui um grande estacionamento logo na entrada, com subsolo, atendendo tanto clientes da loja, como público em geral que queira estacionar o carro. Ao lado do estacionamento, existe um posto de gasolina, também aberto para público em geral. Ainda fora do espaço interior do hipermercado, existem lojas de serviço: flores, pastel, café, barbearia, massagens, turismo, lanchonete etc. Essa área toda já é cercada e pode-se notar a presença de câmeras de segurança. A entrada do hipermercado fica à direita do estacionamento no sentido de quem entra e existem duas câmeras, uma em cada lado do portão de entrada. Já no corredor interno da loja, do lado de fora da barreira dos caixas, ficam as vitrines de bebidas de valor mais elevado, como uísque. Caixas bancários também podem ser no- 32 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF tados, mas estão no fundo desse corredor, próximo aos banheiros. Em cima dos caixas, identifiquei a presença de câmeras, porém, seriam câmeras com alcance maior do que as da entrada, as chamadas “360 graus”. A loja A possui dois andares, realmente bastante extensa, com oferta de diversos produtos. O desenho é o padrão dos “hipermercados”, a divisão se dá por setores de mercadorias. Logo passando a barreira dos caixas da unidade, está o setor hortifruti, com grandes bancadas de frutas e verduras, algumas armazenadas em refrige- radores. Nesse setor, existem repositores que controlam a quantidade de produtos nas bancadas, bem como o visual deles. Tratam de lustrar frutas e colocar os melho- res produtos por cima. Esses funcionários eram jovens do sexo masculino, a maioria deles negros. Identifiquei a presença de equipamentos que exalam odor artificial de frutas maduras, colocados para gerar maior desejo. Seguindo o caminho na loja, existe uma sala em separado, a adega, onde ficam os vinhos. A presença de câmeras é maior nessa área, havendo uma fileira especí- fica em que ficam os vinhos de maior valor. Conversando com os trabalhadores, constatei que essa é realmente uma área de maior vigilância, pois apresenta maior risco de furtos. Saindo da adega, volta-se para o corpo da loja em geral, onde logo está a padaria/confeitaria. Ela fica separada por vidros, através dos quais é possível ver os funcionários fazendo pães e os demais produtos de pani- ficação e confeitaria, como bolos. Balcões ficam na frente desse espaço, e produtos ficam expostos aos clientes. Há 33NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS um espaço com abertura pelo qual se atende o público. É possível ver tanto dentro do espaço de produção quanto no de atendimento a presença de câmeras. Nos dois lu- gares, os clientes não têm acesso, portanto, as câmeras filmam somente os funcionários. À direita da padaria, ficam gôndolas em que ficam os cosméticos. Nessa parte, além de uma câmera por gôndola, existem monitores que expõem em tempo real o que está sendo gravado e um cartaz amarelo com “Sorria, você está sendo filmado” escrito em letras vermelhas. Ou seja, a presença de câmeras não está disfarçada, ao contrário, é anunciada e pode-se testemunhar o que se filma. Portanto, a presença da videovigilância é usada para intimidar diretamente os clientes. De fato, pelas en- trevistas, pude constatar que cosméticos estão entre os produtos com maior risco de furto, pois são fáceis de es- conder por causa do tamanho. Passando os cosméticos, temos alimentos que compõem a cesta básica, seguidos de bebidas não alcoólicas de menor valor, como cervejas. Exatamente no centro da loja, existe uma câmera no teto, que gira em 360 graus, tendo grande alcance. Segundo alguns entrevistados, essas câmeras teriam a capacidade de achar um alfinete nos extremos da loja, sendo fundamentais para ter uma visão geral do espaço. Segundo o entrevistado B, “Tinham câmeras que podiam ver de 30/40 metros um recibo na mão de um funcionário”. Voltando para a parte do fundo do piso térreo, depois da padaria/confeitaria, está a peixaria. Esse setor segue o mesmo desenho do anterior, uma parte fechada com vidros pelos quais os clientes podem observar os 34 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF cortes e limpeza dos peixes, bem como uma parte aberta para o atendimento dos clientes. Existem câmeras na parte interna com vidros e também na área de atendi- mento ao público. Na frente desse setor, existem balcões em que ficam disponíveis cortes embalados de peixes, e há câmeras fixas acima deles. Passando pela peixaria, está o açougue. Mesmo sistema de organização: vidros e uma parte aberta para atender os clientes. A diferença é que, nesse setor, há utensílios para churrasco: facas, espetos, carvão, churrasqueiras. Nessa área, existe uma presença grande de câmeras, pois são produtos mais caros e fáceis de serem escondidos: cortes nobres de carne, como pi- canha e filé mignon, apresentam risco muito alto de furto. Continuando, ao fim do supermercado, já no ex- tremo diametral à entrada, existe um café onde se pode descansar das compras comendo ou bebendo algo. Além de ser um espaço que gera lucro para a empresa com o que vende aos clientes, também permite que as pessoas passem mais tempo dentro da loja, surgindo tempo para compra de outros produtos que porventura venham à mente. No caminho de saída, antes de passar pela “barrei- ra de caixas”, existe um corredor pelo qual se é obrigado a passar, repleto de pacotes de “salgadinhos”, amendoins, chocolates etc. A racionalização para o consumo é tão forte nas lojas que, nesse corredor, os produtos de apelo infantil ficam nas prateleiras mais baixas, ao alcance das mãos das crianças, portanto, sempre uma ou outra pega um produto e, ficando constrangidos, os pais acabam comprando. Nas entrevistas, pude constatar depois que tal estratégia é também pensada pela gestão dos 35NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS supermercados para aumentar o consumo dos clientes. Segundo o entrevistado A: [...] os produtos de maior sedução para crianças ficam nas prateleiras mais baixas, para estimular mesmo o consumo. Elas sempre pegam e, pelo menos, de 1 em cada 10 pais ficam sem graça de dizerem não. Por quê? Porque criança chora, esperneia [...]. 1.2 Loja B A loja B é localizada na Avenida Jabaquara, bem próxima da estação São Judas da Linha Azul do Metrô. A região também fica próxima dos acessos às saídas da cidade de São Paulo para a Baixada Santista e Litoral Sul paulista. É uma loja grande, com três pavimentos. O pri- meiro é estacionamento. O segundo piso é o que dá aces- so da rua para a loja, por onde entram os pedestres. Nele, existem lojas de alimentação, turismo e uma farmácia, e outra parte é estacionamento também. Subindo a escada rolante para acesso à loja, já existe um monitor no fim da escada. O terceiro piso será abordado mais à frente. Comecei o trajeto no interior da lojapelo setor de hortifruti. Nele, identifiquei duas câmeras dome10 bem à mostra para os clientes. Existe uma pequena parte em 10 A câmera dome é bastante utilizada em locais públicos que precisam conciliar a segurança que uma câmera de vigilância apresenta com a discrição e um acabamento adequado, como shoppings, prédios e condomínios. Além da excelente qualidade de imagem, esse modelo apresenta uma estrutura com formato de domo, em que está acoplada a câmera. A maioria das câmeras dome são exclusivas para locais internos e algumas possuem até infravermelho. 36 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF meio ao respectivo setor e os caixas com produtos como papel higiênico, cerveja, sal, óleo, carvão, gêneros procu- rados pelos consumidores que viajam para o litoral. Nesse local, existe um grande monitor mostrando aos clientes imagens em tempo real. Ao lado, está a adega, com uma câmera fixa justamente acima da prateleira de vidro fe- chada em que ficam os produtos mais caros. Seguindo está a rotisseria, fatiados e padaria, todos no alcance de outra câmera dome que também é visível aos clientes. No meio, estão os congelados, com outra dome acima. Somente nessa parte da loja, são três câmeras de alcance de 360 graus. Ao fundo, a peixaria — conforme o padrão dos hipermercados — possui uma parte de atendimento ao público e é possível ver uma parte entre vidros em que se fazem os cortes. O mesmo padrão segue para o açou- gue. Ao lado deste, existe um setor chamado “salgados” (produtos para feijoada). Segue um corredor com gela- deiras em que se oferecem carnes embaladas, fatiadas e pesadas, com a presença de duas câmeras dome e dois monitores. No meio da loja, em frente às carnes fatiadas, está o setor de laticínios, que apresenta uma câmera dome que também filma o setor de cosméticos, que, por sua vez, tem um monitor exclusivo. Mesmo caso acon- tece na mercearia e setor para pets, que dividem uma câmera de alcance de 360° e um monitor. Ao lado, está o setor de limpeza com duas dome, seguido das bebidas, que possui uma câmera fixa com um monitor pequeno à vista dos clientes. 37NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS Para subir ao terceiro piso, o cliente passa por uma escada rolante, na qual existe uma câmera no começo e outra no final. O primeiro setor é o vestuário masculino e, ao fundo, o de calçados, que também tem uma dome acima. Ao lado, no setor de produtos para bebês, existe uma câmera de igual modelo, que, por sua vez, alcança o setor de automotivos/ferramentas. Há, ainda, a presença de câmeras de alcance 360° no setor de brinquedos, papelaria e eletrodomésticos, sendo que este último possui, ainda, duas câmeras fixas e um monitor para cada uma delas. Essa loja é, dentre as três, a que mais possui tecno- logia de videovigilância, mesmo se comparada à nova Loja C, que faz jus à fama da empresa C nesse meio, conhecida como a empresa supermercadista que mais investe em tecnologias de câmeras para segurança. Com o que é perceptível na condição de cliente, o espaço da loja já fica totalmente “coberto” pelo alcance de vídeo. 1.3 Loja C A loja C fica próxima à loja A, de forma que, durante o trabalho de campo, era possível ir caminhando de uma até a outra. Essa loja, de uma companhia estrangeira, está situada em um bairro de elite de São Paulo, Jardim Paulis- tano, na região sul da Avenida Paulista, perto da Avenida Estados Unidos e próxima ao Parque do Ibirapuera. Em termos de distância, não é tão afastada do metrô, mas é 38 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF preciso descer uma ladeira íngreme de seis quadras até lá, o que torna o entorno das duas lojas bem diferente. Conforme se vai descendo a Rua Pamplona, os condomínios de alto padrão dominam a paisagem. Prédios altos, com fachadas imponentes, em sua maioria com alguma referência à Europa e jardins muito bem cuidados na frente. É possível notar a videovigilância na entrada dos prédios e um corpo de funcionários vigias, em alguns casos vestidos de ternos pretos e óculos escuros, reforçando a diferenciação de status social dos condomínios de elite. A loja C fica já no fim da ladeira e criou em seu entorno o aparecimento de alguns estabelecimentos comerciais. Existem restaurantes e bares para quem trabalha na região, sempre atendendo um público com trajes executivos, que os frequentam nos almoços e nos momentos de happy hour. O bairro onde fica localizada a loja é sempre destacado nas descrições da empresa. A referida loja era antiga, possuindo um esta- cionamento na frente e no subsolo. Como na Loja A, no estacionamento também havia uma parte de lojas: flori- cultura, cafés, lavanderia etc. Eram dois andares também. Contudo, a presença de videovigilância não era tão efeti- va, existiam mais funcionários cumprindo essa função do que câmeras. Por dentro, a aparência era de algo antigo, ultrapassado. O próprio desenho interno parecia adap- tado de uma época anterior, em que a divisão de áreas internas não era tão clara. Na peixaria e açougue, não existiam vidros que separavam o atendimento ao público, o espaço era o mesmo. Na padaria, havia apenas uma pequena parte aberta para os pedidos dos clientes, não 39NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS havendo vidros através dos quais os clientes poderiam ver os trabalhadores exercendo seu ofício. A loja passou por uma grande mudança por ser o primeiro projeto loja/shopping dessa empresa no país. Em geral, no Brasil, nos grandes shopping centers, existe um hipermercado de alguma das bandeiras. A empresa A fez o caminho inverso, em vez de ser a loja dentro do shopping, fez da loja um shopping. A nova Loja C foi reformada no primeiro e segundo andares, onde continua funcionando o hipermercado, mas, a partir do segundo piso, existe um shopping que funciona em três pisos, inclusive com praça de alimentação e cinemas. No último andar, foi construído um terraço gourmet com visão panorâmica e restauran- tes. Segundo descrição da empresa C em seu site: Amplo terraço arborizado convivendo em sinergia com a região, com vista panorâ- mica para a cidade, integrando o verde e o urbano. Nos seis restaurantes, os morado- res e frequentadores poderão aproveitar o melhor estilo de viver o Jardins. A mudança do espaço, segundo a própria empresa, foi realizada para atender melhor o público da região onde está localizada a loja. Ao entrar no primeiro piso, as portas são de abertura automática e o cliente não se depara com nenhum segurança. O teto, antes branco, é agora preto, mesma cor das câmeras, que ficam camufladas. Logo na entrada, existe uma boulangerie11, em que são ofertados 11 Local especializado na produção de pães dos mais variados tipos. 40 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF produtos de origem estrangeira. Vidros estão presentes em toda parte que tem produção e é possível notar pare- des brancas com câmeras sobre os trabalhadores; nesse espaço há uma área com cadeiras no meio, logo seguida de um balcão com comidas prontas para almoço ou para levar. Pratos de origem internacional marcam as opções, característica que é reforçada para ficar em destaque ao cliente. Logo ao lado esquerdo dessa área, fica o setor de hortifruti. Seguindo a mesma abordagem, as frutas de ori- gem estrangeira ficam em destaque, havendo uma oferta que se caracteriza pela qualidade e variedade. Ao fundo, está uma parte apenas de frios, com queijos e embutidos. Apesar do grande fluxo de pessoas, não se vê seguranças. As câmeras estão presentes no teto, mas todas pretas, camufladas no teto de mesma cor, como se fosse para não incomodar os clientes, bem diferente da Loja A. O público é visivelmente diferente entre as duas lojas: na Loja A, é notoriamente mais elitizado. Ao fundo, chega-se ao açougue, seguindo o padrão visto em outras lojas, com vidros na parte em que se fazem os cortes de carnes. A peixaria fica ao lado, e não no fundo da loja, totalmente cercada por vidros, somente havendo uma parte aberta para que os clientes façam pedidos. No açougue e na peixaria,produtos de preço maior ficam expostos nas gôndolas fora do espaço de vidros. Existem câmeras camufladas bem em cima de ambos os lugares. É possível aos clientes pegar os produtos e depois levá-los para pesagem, diferente da Loja A, na qual quem faz isso é o próprio funcionário da loja. Dentro dos espaços, a cor branca domina todas as paredes. 41NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS O desenho no restante é bem parecido com a Loja A, até mesmo a adega segue a mesma lógica. Nessa parte, é possível notar as câmeras: existem duas que se destacam na entrada da sala da adega. Ao longo da loja, a oferta de produtos de preços maiores, importados, é destacada em todo tempo. Existem poucos funcionários e eles estão em áreas específicas. Nos caixas, é possível notar uma forte presença de videovigilância. Cada caixa tem uma câmera e um monitor que mostra o respectivo caixa. Segundo o entrevistado F: “[...] nas baterias de caixa, nos checkouts, existe todo um sistema de câmeras ali focado olhando todo manuseio dos caixas operadores, para ver se não há desvios”. Outra diferença é a presença dos caixas sem tra- balhadores, os automáticos, nos quais o próprio cliente faz a passagem de produtos por meio de uma balança de peso que identifica o produto e seu preço, tecnologia usada na Europa em países como Portugal e Alemanha, porém, esse serviço é apenas para compras de quantida- de pequena de produtos. O segundo andar é reservado aos produtos eletro- eletrônicos, o teto não é mais preto, mas branco. Existem luzes bem claras em todo piso e é possível ver câmeras. Mesmo assim, muito menos presentes do que o mesmo setor na Loja A. Segundo a empresa C: Um novo conceito, alto padrão, diferente dos outros Hipermercados [...], com sorti- mento e serviços premium, alinhados com o posicionamento do shopping. É uma loja precursora em recursos tecnológicos para 42 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF proporcionar uma experiência de compra única, bem como, em iniciativas e melhores práticas de sustentabilidade. Saindo desse espaço de eletroeletrônicos, os clien- tes passam diretamente ao primeiro piso do shopping. Ali existem lojas de moda e beleza e, segundo a empresa A: “[...] possuirá um mix de lojas satélites e âncoras, composto por marcas nacionais e internacionais que trazem nos Jardins as tendências do mundo da moda” (site da empresa). Na passagem interna, na escada rolante de acesso ao segundo piso, fica sempre uma segurança feminina, vestida de terno preto e com comunicação “via microfone portátil”. Essas vigilantes femininas observam e dão infor- mações aos clientes, sempre de maneira muito simpática. Na saída da loja, no primeiro piso, os vigias também ficam vestidos de ternos pretos e são de ambos os sexos. Fica um na entrada e outro na saída do primeiro piso. Isso já se mostra diferente da Loja A, na qual o segurança da entrada/saída é sempre um homem de porte físico forte, com uniforme imitando um militar e usando um cassetete. Segundo o site da empresa C: Mais de cinco mil metros quadrados e 34 mil produtos compõem o primeiro hipermerca- do flagship do [...]. Localizada no Jardim Pam- plona Shopping, em São Paulo, a loja reúne seleção de produtos, serviços especializados e tecnologia. Com o objetivo de transmitir a sensação de vários locais dentro de um só, o hipermercado tem áreas dedicadas a peixa- ria, adega, padaria e açougue 43NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS O objetivo, segundo o varejista, é oferecer uma ex- periência de compra acolhedora, diferenciada e completa aos consumidores. A ambientação, identidade visual e gráfica do projeto, mobiliários, expositores e embalagens da nova Loja C foram pensados pela Market Value, agência de design e arquitetura de varejo da multinacional fran- cesa Team Creátif. Além de estar à frente de todo projeto elétrico e hidráulico, a Interativa Engenharia cuidou da automação e sonorização da nova loja. Entre as inovações estão self-checkouts, que permitem que o cliente escaneie os códigos de barras da mercadoria escolhida e efetue o pagamento via cartão de crédito ou débito. É uma grande tela para campanhas ins- titucionais, totem de autoatendimento — para impressão de cupons, visualização de ofertas, mapa e horário de fun- cionamento, carregadores de celular e wi-fi. A loja de dois pisos possui iluminação em LED e estrutura em madeira e azulejos. A unidade apresenta sistema de refrigeração a gás natural, sistema inteligente de gestão de energia e estação de reciclagem preparada para receber e destinar resíduos. Parceira do Banco Municipal de Alimentos de São Paulo, a loja faz doações regulares de alimentos. A Loja C, que fica em um shopping que pertence à sua empresa, conta com 900 funcionários, sendo 560 trabalhadores diretos. Cada setor possui atendimento es- pecializado e a empresa investiu em mais de 24 mil horas de treinamento para a equipe. Além disso, no segundo andar, é possível encontrar as categorias de casa e eletroeletrônicos. Ao todo, são mais de 800 tipos de eletrodomésticos e eletrônicos de 44 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF diversas marcas, com destaque para a linha branca, tele- fonia, informática e eletroportáteis. No setor casa, são mais de três mil produtos e 400 itens de cama, mesa e banho. A loja ainda possui produtos para pets e jardinagem. Os clientes têm a opção de serviço de entrega em domicílio para compras realizadas no hipermercado. Sobre a praça de alimentação, a empresa ainda afirma que: [...] a iluminação natural oferecerá leveza à ampla praça de alimentação com capa- cidade para mais de 400 lugares e onze opções de fast food, trazendo variedade sob medida para os frequentadores e mo- radores dos Jardins. Segundo site da própria empresa, a nova loja C procura não constranger, investindo em novas tecnologias de vigilância para proteger seus clientes e patrimônio de uma forma eficaz e sutil. Contudo, nas áreas onde estão os trabalhadores, as câmeras são bem aparentes, sobre- tudo na barreira de caixas, em que cada trabalhador tem uma sobre si, mostrando um controle eficiente sobre o trabalho por parte da empresa. Nesse ponto, o controle do trabalho aparece como uma prerrogativa de bom ser- viço oferecido aos clientes, o olhar sobre os funcionários de uma forma intensa é um fator que comprova a eficácia do funcionamento da loja e torna-se um símbolo de qua- lidade. Fato é que a vigilância aparece como um elemento que oferece uma condição privilegiada aos clientes, para que se sintam à vontade, sem qualquer incômodo. 45NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS O “viver os Jardins” também é marcado por isso. Quando descrevi a descida na ladeira da Avenida Paulista até a loja C, destaquei a presença de videovigilância e vi- gias nos condomínios. Ser morador dessa parte da cidade de São Paulo significa ter a condição, por meio das tecno- logias de segurança, de se sentir protegido. Entretanto, tal fato não é uma exclusividade dos Jardins. A preocupação com vigilância é um traço marcante nas sociedades, sem- pre relacionada ao controle12 da conduta dos indivíduos. 12 Para entender melhor o conceito de controle usado nesta passagem, ver Alvarez (2004). Capítulo 2 A Prevenção de Perdas 2.1 Vigilância, videovigilância e um caso de racismo No projeto de pesquisa, havia uma discussão que é preciso retomar. Empresas de segurança passaram a desenvolver tecnologias para controlar pessoas nos mais diferentes ambientes da vida cotidiana, entre elas o cir- cuito interno de TV. De acordo com Latour (2006), esse circuito consistiria em um sistema sociotécnico que visa à vigilância e controle dos corpos e comportamentos em espaços fechados das sociedades contemporâneas, não somente transmitindo as imagens, mas interpretando-as em uma cena. “A máquina de visão não simula o olho, mas as faculdades de seleção e análise do que se vê” (BRUNO, 2012, p. 51). Em estudo sobre o videovigilância no Rio de Janei- ro, Cardoso (2013) afirma que a Assembleia Legislativa do Estado,no período de 1998 até 2009, aprovou sete leis com respeito à instalação de câmeras de segurança em locais tais como berçários, unidades de terapia intensiva neonatal, casas noturnas, praças de pedágio, estabele- cimentos financeiros, transporte metroviário, bailes funk ou eventos de música techno, caixas eletrônicos etc. 48 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF Segundo o autor, cada local recebeu um sistema de vi- deovigilância com objetivo de aumentar a segurança dos cidadãos. Um fato interessante relatado foi a solução de crimes com base em imagens de câmeras de shoppings centers, lojas de conveniência e supermercados. Como exemplo, o documentário alemão “Gefängnisbilder”13 — em inglês “Prison Images”, em português “Imagens da Prisão” — faz menção a um sistema que não mostra os corpos dos prisioneiros em detalhes nas telas, mas como pontos que são rastreados e identificados. Essa mesma tecnologia das prisões é também usada em supermerca- dos, e os pontos na tela são clientes cujos movimentos são rastreados para auxiliar na logística (BRUNO, 2012). Segundo Foucault (1998), na modernidade é que se desenvolve um sistema de controle ainda mais eficaz, baseado no micropoder sobre o corpo: vigilâncias infi- nitesimais, controles constantes, ordenações espaciais de extrema meticulosidade, exames médicos ou psico- lógicos diversos. Existem intervenções ao nível do corpo, das condutas da saúde e da vida cotidiana. Estaríamos na sociedade do dispositivo da sexualidade, em que: [...] os mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capaci- dade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala de sexualidade para sexualidade (FOUCAULT, 1998, p. 160-161). 13 GEFÄNGNISBILDER. Direção de Harun Farocki. Alemanha, 2001. 120 min. 49NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS Foucault (2010) afirma a existência de uma técnica de controle específica sobre os enclausurados, agindo sobre os corpos por meio de relações de poder. Essa téc- nica verifica-se para além das prisões, mas também em hospitais, nas forças armadas, nas escolas e nas fábricas. É o que o autor conceitua como poder disciplinar, que se constitui em um mecanismo fundamental para o desen- volvimento do capitalismo industrial e uma das grandes invenções da sociedade burguesa. A proteção se tornou integrante do negócio e mais até do que isso, ela transfor- mou-se em um negócio em si, uma fonte de gerar lucros.14 É o que fica aparente nos relatos das lojas, principalmente no tocante à nova Loja C. Há sem dúvida uma oferta de um lugar onde se pode consumir de forma segura, de acordo com o nível daqueles moradores da região. Um espaço onde podem usufruir da sua condição de renda, sem sofrerem riscos ou constrangimentos que ocorreriam pelas ruas da vizinhança. Um espaço controlado pela tec- nologia, que proporciona segurança e bem-estar dignos dos cidadãos daquele bairro. A vigilância torna-se, conforme afirma Garland (2005), condição necessária para garantir a segurança e o prazer dos consumidores e cidadão decentes, por isso, está presente, mas de forma a ficar pouco perceptível, pois seu alvo não são os clientes, e seu objetivo é, so- bretudo, conferir essa possibilidade de segurança e um serviço de “melhor qualidade”, ou seja, com proteção e 14 No fim da década de 1990, De Waard (1999) já observava um rápido desenvol- vimento internacional da indústria de segurança privada. 50 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF sem constranger quem está ali para fazer valer seu po- der de consumo elevado. No caso da Loja C, a vigilância tem outro perfil: ela serve para constranger aqueles que porventura queiram furtar algum produto, sejam clientes ou trabalhadores, furto externo ou interno. Ela visa expor diretamente as pessoas, havendo na comparação com a loja A nos Jardins, uma clara relação de classe. Na Loja C, a vigilância está mais para parte do aparelho de produção, sendo uma engrenagem específica de controle de furtos e, principalmente, dos trabalhadores. Na observação, presenciei um caso de abordagem por suspeita de furto que é emblemático. Um jovem negro, aparentemente pobre, foi abordado por um funcionário da Loja A. O jovem afirmou que não tinha nada com ele e, por causa da insistência do vigia, justamente aquele que fica na entrada com uniforme imitando um policial, começou a falar em voz alta que não tinha “roubado” nada. O vigia então começou a agarrar o rapaz, na tentativa de revistá- -lo sem autorização. Com a resistência do jovem, outros funcionários, todos vestidos de preto, chegaram para aju- dar o vigia. Esses funcionários não estavam no interior da loja no espaço de clientes, não os havia identificado pelas vestimentas em nenhum setor que observei. O episódio chamou a atenção dos clientes, logo, então, chegou uma viatura da Polícia Militar. Um dos “homens de preto” falava pelo rádio portátil, e provavelmente foi ele que chamou a polícia. A chegada desta foi estranhamente rápida, uma questão de menos de dez minutos, talvez pela proximidade da loja da Avenida Paulista, local pelo qual passam muitas viaturas. Ao entrarem no estacionamento e observarem o 51NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS rapaz já rendido pelos funcionários, os policiais tocaram a sirene da viatura por duas vezes, algo desnecessário, uma vez que não havia tráfego no estacionamento. Desceram e pegaram algemas, mostrando ao rapaz e dizendo algo que eu não pude escutar, mas pude ver que ele reagiu de forma negativa com a cabeça. Revistaram o rapaz no pró- prio estacionamento, não encontrando nenhum produto com ele. Ao terminarem, fizeram um aceno de desculpas ao jovem, liberando-o. Os funcionários do hipermercado, visivelmente contrariados, evitaram sua volta à loja, indi- cando com as mãos a saída para rua. O rapaz caminhou reclamando em voz alta, afirmando que aquilo tudo é racismo, dizia: “só porque sou pobre e negão, né? Sei onde ‘ceis moram, sei onde ‘ceis vivem”. Nesse momento, a viatura que ainda estava saindo do estacionamento voltou a tocar a sirene. O jovem se dirigiu ao ponto de ônibus na calçada da frente da loja. Era nítida a revolta em seu semblante, foi vítima de uma revista ilegal e havia sido exposto a uma humilhação pública. Segundo estudo realizado no Walmart americano (TCMJ, 2013), as abordagens contra furtos são, em sua maioria, direcionadas a jovens negros do sexo masculino, em geral vestidos com roupas que indicam procedência de bairros de baixa renda: blusas de moletom com capuz e bonés. O mesmo estereótipo padrão de suspeitos que possui a polícia estadunidense se repete na segurança das lojas tanto nesse país, quanto no Brasil. Dessa manei- ra, as lentes das câmeras não são neutras, toda tecnologia de videovigilância tem por trás um olho humano portador de preconceitos e estereótipos. Tal fato problematiza a 52 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF afirmação de que todos são suspeitos, pois uns são mais suspeitos do que outros. Segundo a funcionária F: “Eu senti por ser mulher, por ser negra, uma suspeita maior”. Ao entrar na loja novamente, procurei o vigia para conversar sobre o episódio. Ele me disse que o sensor havia tocado quando o rapaz passou e que dificilmente existe um erro quando isso acontece, que não sabia como, mas que o rapaz deu um jeito de se desfazer do produto que pegou. Perguntei quem eram os rapazes de preto, ao que ele me respondeu energicamente: “são os prevenção”. Insisti indagando: o que eles faziam? Então ele respondeu: “ficam no CFTV15, veem tudo que acontece pelas câmeras, não tem como ter erro nisso. Se alguém furta um produto, por menor que seja, eles sabem pelo olho da câmera”. Foi meu primeiro contato com o objeto da minha investigação. As câmeras que, na condição de cliente, apenas apareciam distantes de mim e que eram máquinas ao longe, começavam a ganhar um corpo, agen- tes por trás da lente começavama ser revelados. Porém, a condição de cliente não me permitia ir além do que estava dentro do espaço restringido, não sendo possível chegar aonde estavam estes funcionários que observa- vam as câmeras. Notei que já havia visto em algum lugar o termo “prevenção” relacionado aos assuntos referentes aos supermercados. Ao chegar em casa, abri o e-mail que recebi negando minha entrada como pesquisador na Loja A. Para minha surpresa, a assinatura do e-mail era do di- retor de prevenção de perdas. Mas o que seria esse setor? 15 Circuito Fechado de TV. 53NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS Eles controlavam as câmeras e o CFTV? Como funcionava o trabalho desses “homens de preto”? Novas questões surgiam na minha pesquisa. 2.2 Um deslocamento na pesquisa Para entender a videovigilância, era necessário compreender como o CFTV funcionava, mas, para atingir esse objetivo da pesquisa, precisava ter acesso às infor- mações dos trabalhadores responsáveis por ele. Diferente da pesquisa do Carrefour em 2004, a condição de cliente não era suficiente para responder minha questão de investigação agora. Era preciso recorrer às entrevistas com trabalhadores e, com elas, conseguir montar esse quebra-cabeça da videovigilância. Para tanto, recorri ao Dieese, que me colocou em contato com o Sindicato dos Comerciários de São Paulo, pertencente à UGT16, cujo presidente é uma figura bastan- te conhecida do meio sindical e que possui muita legiti- midade com a categoria, Ricardo Pattah. Essa instituição deslocou seu diretor de mobilização para me auxiliar com a pesquisa, o que foi de muita utilidade. Com ele, percorri algumas lojas das três bandeiras, observando sempre a questão da tecnologia e, sobretudo, da videovigilância. Consegui entrevistar funcionários de diferentes setores, inclusive operadores do CFTV. Apesar disso tudo, algumas respostas ainda eram insatisfatórias. 16 União Geral dos Trabalhadores. 54 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF Recorri também à CUT17, que também havia par- ticipado da pesquisa Carrefour no Dieese. Marquei uma conversa com a ex-presidente da Contracs18, Lucilene Binsfeld, conhecida como Tudi. Ela me colocou em con- tato com um diretor dessa confederação que, segundo ela, poderia me ajudar bastante, uma vez que acabara de voltar dos Estados Unidos de discussões com a direção do Walmart. Para minha sorte, o sindicalista estaria na se- mana seguinte em São Paulo, para reuniões sindicais. Ele me contou um pouco da sua trajetória de trabalho no setor de varejo. Começou a trabalhar como empacotador em um supermercado de João Pessoa aos 14 anos de idade, o que contava com um sorriso orgulhoso no rosto. Acabou por ser trabalhador da empresa C, quando essa empresa chegou ao Brasil, o que lhe fez conhecer bem o funciona- mento dessa empresa e do setor de varejo. Reconstituiu a história dos sistemas de segurança nos hipermercados no Brasil, como teria sido a passagem de uma segurança patrimonial caracterizado por vigias uniformizados, para um novo sistema que ele destacou como fundamental para a questão de investigação: loss prevention, ou em português, prevenção de perdas. Contou também que teve a oportunidade de conhecer o presidente americano do Walmart, ir até uma de suas casas, o que lhe facilitou o acesso aos planos da empresa para o futuro. Uma das coisas que destacou é a preocupação com segurança, o que faria investir em tecnologias nessa área. 17 Central Única dos Trabalhadores. 18 Confederação Nacional dos Trabalhadores de Comércio e Serviços. 55NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS É importante dizer que o trabalho de campo revelou um objeto que não era conhecido no projeto, justamente porque não se sabia de sua existência. O objetivo era analisar a videovigilância no interior das lojas dos supermercados, principalmente o CFTV (Circuito Fechado de TV), porém, este é apenas parte de um sistema de logística chamado loss prevention, que visa diminuir ao máximo o risco de perdas financeiras para as empresas. Tal descoberta teve como consequência um deslocamento na pesquisa para além do espaço das lojas, expandindo o olhar do pesquisa- dor para toda cadeia de distribuição dos supermercados. No projeto, a vigilância e punição no trabalho eram um foco importante e, com essa descoberta no campo, a ideia de prevenção ganhou força. Um intenso esforço de descrição do loss prevention foi realizado por meio da observação direta, o que teve por consequências mudan- ças teóricas que serão discutidas ao longo deste livro. No início da investigação, a análise não se restrin- gia às maneiras de aumentar a produtividade, mas dizia respeito a como o controle é exercido no espaço da loja sobre as pessoas em todas as suas expressões. Trata- va-se de investigar os sistemas de videovigilância, o que inclui também os clientes, os vigias e todos aqueles que estão no espaço das lojas. A conversa com o sindicalista foi um divisor de águas na pesquisa, pois ficou perceptível que a questão não dizia respeito somente ao universo interno das lojas, mas que se referia ao processo logístico como um todo. Era preciso transcender as fronteiras das unidades e investigar a cadeia das empresas de forma 56 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF geral. Assim, a proposta inicial teve um desdobramento diferente do esperado. O objeto, no início, era a videovigilância nos hi- permercados. Descobri que esta é parte de um sistema chamado CFTV, o qual mostra que as empresas real- mente mudaram sua concepção de segurança de um padrão presencial/físico de vigias para o circuito interno de câmeras, em que a prevenção é o objetivo e não a ação ostensiva. Esse sistema é, por sua vez, parte do loss prevention. Importava entender o funcionamento deste, como a prevenção é realizada de fato era o meu objeto de pesquisa que a observação de campo revelara. Para compreendê-lo, era o momento de fazer as entrevistas previstas no projeto, que seriam fundamentais para descrever como se desenvolve esse sistema e todas as questões envolvidas em seu entorno. A Contracs então auxiliou acionando o Secretário Geral do Sindicato dos Comerciários de Osasco e Região, que se colocou à disposição para ajudar nesta pesquisa. A surpresa foi ainda maior quando descobri que um antigo entrevistado meu na pesquisa Carrefour, agora, era asses- sor da presidência no sindicato. Na época, era um dos che- fes de logística do Carrefour, sendo responsável por instalar uma nova cultura na empresa, a entrevista dele foi chave daquela pesquisa de comparação internacional. Por essa experiência, ele conservou uma rede de relações muito forte no setor de varejo, além de seu vasto conhecimento sobre as operações do setor, inclusive sobre videovigilância e o CFTV, o que seria de grande ajuda para minha pesquisa. Em resumo, era necessário analisar dois pontos: 57NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS 1. O processo de prevenção de perdas ou loss prevention. 2. As mudanças em torno do conceito de segu- rança. No projeto, afirmava que, por meio da observação dos sistemas de vigilância, seria possível também inves- tigar os sistemas de punição criados no interior das lojas. Nesse caso, o foco se daria sobre os trabalhadores, pois estes passam mais tempo nas lojas. Para o controle do trabalho nos bancos, o desemprego é a maior ameaça de punição. É nele que toda pressão sobre o trabalhador está baseada, na utilização do medo de ficar em situação de desemprego. As exclusões e desmoralizações são as formas de assédio e as cobranças se dão em cima do sistema de metas de produtividade, com reuniões em que os resultados de cada trabalhador são expostos e eles são humilhados nesses espaços, sendo vítimas de assédio moral (OSTRONOFF, 2015). Importaria, então, verificar como se desenvolve- riam os sistemas de punição extraoficiais sobre os traba- lhadores no interior dos supermercados. Contudo, com a discussão que fizemos anteriormente sobre o sistema de prevenção de perdas, o olhar se expandiu para além do interiorda loja. A punição apresentada aos funcionários é parte do sistema de produção, ou melhor, no caso do setor supermercadista, faz parte do sistema de logística des- sas empresas. Esse fator também acontece nos bancos, como verificado na minha pesquisa de doutorado com a 58 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF questão do assédio moral. Tanto as formas de punição do trabalho nos bancos quanto as punições existentes nos supermercados são consequências do processo de organização do trabalho. Como a investigação também se deslocou do interior das lojas para a cadeia produtiva como um todo, prosseguir na investigação dos sistemas de punição no interior das lojas não era mais a única pre- ocupação dessa pesquisa. Todavia, a esfera do trabalho foi fundamental na in- vestigação. Partir desse conceito permitiu compreender a questão dessa pesquisa e somente foi possível na relação com a discussão sobre o controle dos corpos no trabalho. O próximo item deste capítulo versa sobre esse assunto. 2.3 Vigilância do ramo supermercadista fora dos supermercados: os Centros de Distribuição Neste capítulo, apresento resultados do primeiro ano de pesquisa de campo, principalmente das entrevis- tas realizadas com trabalhadores de três grandes redes supermercadistas de São Paulo e região. A utilização de tecnologias para controle do tra- balho não é algo novo no modo de produção capitalista. Thompson (1998), analisando historicamente o início da indústria na Inglaterra, mostra como o controle do tem- po era parte integrante da organização do trabalho na produção fabril. O autor traz as palavras do “velho oleiro”, um pregador metodista, quando afirma que as máquinas significam disciplina nas operações industriais. O autor 59NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS segue afirmando que, “sem a ajuda das máquinas para regular o ritmo de trabalho nas olarias, esse disciplinador supostamente formidável [...] ficava reduzido a tentar impor a disciplina aos oleiros em termos surpreendente- mente ineficientes” (THOMPSON, 1998, p. 291). Dessa maneira, as máquinas eram fundamentais para consolidar o regime de trabalho de produção in- dustrial, eram parte integrante do dispositivo de controle. Outro exemplo de inovação tecnológica do começo da era industrial: o relógio de pulso era proibido durante o ofício, somente os supervisores eram autorizados a utilizá-los. Aos operários de “chão de fábrica”, não era permitido seu uso. Em um espaço onde a racionalização do tempo era fundamental no controle dos trabalhadores, o acesso ao relógio de pulso era uma forma de poder. Certamente, fora da fábrica, essa relação não tinha mes- ma intensidade, mas naquele espaço onde o objetivo dos meios de produção era retirar a máxima produtividade dos operários, portar o relógio de pulso dava poder aos operários nas relações de produção. O controle do tempo não era mais exclusividade dos superiores, mas se tornava acessível para todos. Tal fato não podia ser tolerado, pois desconstruía um eixo do dispositivo de controle sobre os trabalhadores. De acordo com Thompson (1998, p. 290): “O diretor da fábrica tinha ordens para manter o relógio de pulso trancado a sete chaves a fim de impedir que outra pessoa o alterasse”. A discussão nos remete ao registro do que Mi- chel Foucault chamou de Sociedade Disciplinar, na qual cada espaço rege uma norma para doutrinar os 60 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF corpos circunscritos a um mesmo espaço. Essa técnica verifica-se além das prisões, também em hospitais, nas forças armadas, nas escolas e nas fábricas. Segundo Foucault (1998), esse poder disciplinar se constitui em um mecanismo fundamental para o desenvolvimento do capitalismo industrial e uma das grandes invenções da sociedade burguesa. O poder disciplinar tinha como objetivo “adestrar os corpos”, utilizando alguns mecanis- mos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame. Fato é que as instituições disciplinares pro- duziram um maquinário de controle que funciona com um microscópio dos comportamentos, um dispositivo que caracterizava as fábricas e o trabalho industrial: Por meio de tudo isso — pela divisão de trabalho, supervisão do trabalho, multas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, pregações e ensino, supressão das feiras e dos esportes — formaram-se novos hábitos de trabalho e impôs-se uma nova disciplina de tempo (FOUCAULT, 1998, p. 297). Ocorre que, com o avanço do capitalismo, surgiram outras formas de controle para além do registro da socie- dade disciplinar. Uma afirmação importante que trouxe no projeto de pesquisa e que precisa ser discutida neste capítulo é que, segundo Deleuze (1992), não estaríamos mais no regime dessa sociedade, em que o paradigma que imperava era o do confinamento na fábrica. Com a passagem para a sociedade de controle, surgem formas de controlar diferenciadas, baseadas em um discurso 61NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS de maior participação e criatividade. Estas, por sua vez, faziam dos indivíduos um só corpo, havendo uma solida- riedade entre eles gerada pela situação do trabalho. No projeto, assumi como hipótese a sociedade de controle de Deleuze, porém, tendo em mente que essa discussão no campo das Ciências Sociais é ampla e envolve diversas tradições sociológicas e diferentes autores. Com a pesquisa realizada, a existência de um só corpo parece distante. De acordo com o trabalho de cam- po, não há uma mesma situação de trabalho para todos os trabalhadores, cada setor da loja tem sua mecânica dife- renciada, havendo pouco contato entre os trabalhadores dos diferentes setores dentro das unidades. O próprio conversar é inibido pela videovigilância, pois pode ser in- terpretado como um tempo perdido. Os funcionários, ao chegarem, procuram fazer seu trabalho, falando o mínimo possível de questões pessoais e mais dos afazeres em si. A existência de diferentes turnos, ou seja, um fluxo grande de funcionários propicia essa condição mais individual dos trabalhadores no interior das lojas observadas. Outra questão relacionada à hipótese da sociedade de controle é a ideia de que, nesse período, todos se tornaram sus- peitos (DELEUZE, 1992). Contudo, por meio da observação de campo que realizei nesta pesquisa, é possível perceber que existem alguns mais suspeitos do que outros. Dife- renças como classe, renda, gênero e raça permanecem. Segundo Cardoso (2013), os circuitos internos de TV (CFTV) teriam a capacidade de prevenção, ou seja, impedir que delitos fossem cometidos no interior dos ambientes observados. Realizando a observação nos 62 LEONARDO JOSÉ OSTRONOFF supermercados, essa afirmação se confirma. No início da pesquisa, o objeto eram as câmeras de vídeo instaladas nas unidades, o que mostrou apenas a ponta do iceberg. O trabalho de campo permitiu verificar que as câmeras são parte de um sistema planejado por um setor das empresas chamado de “prevenção de perdas”. Os CFTVs não estão isolados, são parte da estratégia para prevenir furtos nas lojas. Era preciso então, entender o que é e como funciona esse sistema. O loss prevention ou prevenção de perdas é uma operação de logística que consiste no monitoramento constante das mercadorias tanto físico — conferência de etiquetas e inventários — quanto eletrônico (CFTV). Segundo o entrevistado A: “... o principal foco é evitar per- das... qualquer prejuízo que possa vir causar à empresa e ao bolso do proprietário”. Por meio dos depoimentos, foi possível reconstituir um breve histórico da segurança nos supermercados e do surgimento do loss prevention. Esse sistema surgiu nos Estados Unidos da América, em uma das maiores empresas supermercadistas do mundo. Ainda no ano de 1984, era possível ver seguranças armados que ficavam na frente das lojas. Internamente, havia fiscais de loja, que tinham por função evitar furtos. Suspeitando de alguém, seguiam o indivíduo pela loja, o abordavam na saída da loja e levavam para revista. Segundo os depoimentos, nessa época
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