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Inserir Título Aqui Inserir Título Aqui Desenvolvimento e Aprendizagem na Infância Vygostky: A Formação da Mente Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Reni Rutkowski Silva Revisão Textual: Prof.ª Me. Fátima Furlan Nesta unidade, trabalharemos os seguintes tópicos: • Introdução; • Uma Psicologia Pós-Revolução Russa; • Instrumentos, Signos e Mediação; • O Sistema Funcional e as Fases do Desenvolvimento; • Implicações Práticas dos Conceitos Vygotskianoso. Fonte: Thinkstock / Getty Im ages Objetivos • Tratar das teorias sobre desenvolvimento e aprendizagem de Lev Vygotsky, apresentan- do alguns de seus conceitos-chave e refletindo sobre a aplicabilidade deles em nossa realidade; • Assim como Piaget, Vygotsky está na base das principais teorias que fundamentam o modo de pensar o desenvolvimento e aprendizagem no Brasil, conhecê-lo e compreen- dê-lo é imprescindível para a sua formação. Normalmente, com a correria do dia a dia, não nos organizamos e deixamos para o úl- timo momento o acesso ao estudo, o que implicará o não aprofundamento no material trabalhado ou, ainda, a perda dos prazos para o lançamento das atividades solicitadas. Assim, organize seus estudos de maneira que entrem na sua rotina. Por exemplo, você poderá escolher um dia ao longo da semana ou um determinado horário todos ou alguns dias e determinar como o seu “momento do estudo”. No material de cada Unidade, há videoaulas e leituras indicadas, assim como sugestões de materiais complementares, elementos didáticos que ampliarão sua interpretação e auxiliarão o pleno entendimento dos temas abordados. Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão, pois estes ajudarão a verificar o quanto você absorveu do conteúdo, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem. Bons Estudos! Vygostky: A Formação da Mente UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente Contextualização Para que você se familiarize com o tema que será tratado nesta unidade, indicamos um texto e um vídeo bem curtos que ajudarão nesse intento. De início, uma biografia resumida de Vygotsky organizada pelo site InfoEscola. Vygotsky https://bit.ly/2LPMq2x O vídeo indicado foi produzido pela Univesp TV. O programa conta quem foi Lev Vygotsky e quais são suas ideias que influenciaram o pensamento sobre educação que temos hoje, principalmente sobre o desenvolvimento da linguagem. D-04 - Lev Vigotski - Desenvolvimento da linguagem https://youtu.be/_BZtQf5NcvE 6 7 Introdução Trataremos aqui das teorias sobre desenvolvimento e aprendizagem de Lev Vygotsky, apresentando alguns de seus conceitos-chave e refletindo sobre a aplicabilidade deles na nossa realidade. Assim como Piaget – apresentado nas duas unidades anteriores –, Vygotsky está na base das principais teorias que fundamentam o modo de pensar o desenvolvimento e aprendizagem no Brasil. Conhecê-lo e compreendê-lo é imprescindí- vel para a sua formação. Trinta e oito anos. Foi esse o tempo de vida do psicólogo bielorrusso Lev Semenovich Vygotsky, morto por conta da tuberculose. Trinta e oito anos com pesquisas que abarcaram estética, neurolo- gia, sociologia, filosofia e psicologia. Pouca coisa foi publicada durante sua vida e grande parte des- se material só ficou conhecido no Ocidente depois de sua morte. Apenas trinta e oito anos de vida e setenta anos depois, suas teorias, como dito, são a base para várias pressuposições sobre desenvolvimen- to e aprendizagem que regem o nosso modo de ver esses conceitos. Setenta anos e temos a im- pressão, ao ler A formação social da mente, por exemplo, de que esse material foi desenvolvido ontem, tamanho sua novidade, sua atualidade. No caso da novidade, embora hoje muitas pesquisas se voltem para o autor, suas obras começaram a ser publicadas aqui há menos de 30 anos. E mesmo depois disso, acabou, como aponta Marta Kohl Oliveira (1992), sofrendo com equívocos de interpre- tação de seu pensamento, sendo que, alguns desses erros foram os que se propagaram em pesquisas posteriores. Uma Psicologia Pós-Revolução Russa Vygotsky nasceu em 17 de novembro de 1896, em Orsha na Bielorrússia. Fez seus estudos universitários em Direito, Filosofia e História. Como nos aponta Ivic (2010), ele tinha excelente formação e dominava vasto conteúdo das ciências humanas: língua e linguística, estética e literatura, filosofia e história. Logo cedo, aos 20 anos, escreveu um volumoso estudo sobre Hamlet. Antes de se envolver em pesquisas sobre psicologia, teve toda a sua atenção voltada para arte – estudos esses apresentados em sua obra Psicologia da Arte. Ele não teve uma formação voltada para as ciências biológicas, já muito tarde estudaria medicina, por conta disso, como ressalta Ivic (2010), ele tomaria um caminho diferente de Piaget, que evidenciou questões biológicas, atentando-se às questões culturais e sociais do desenvolvimento. Figura 1 – Retrato de Vygotsky Fonte: Wikimedia Commons 7 UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente Em 1924, Vygotsky foi morar em Moscou, trabalhando no famoso Instituto de Psico- logia da cidade e, depois, fundando e administrando o Instituto de Estudos da Deficiên- cia, local onde daria início às suas principais observações teórico sobre a formação da mente. Nesse período, como nos traz Cole e Scribner (2007), a Rússia pós-Revolução valorizava extremamente a ciência, pois via nela o caminho para solucionar os proble- mas sóciais e econômicos da sociedade soviética. Por conta disso, o autor buscaria ela- borar uma teoria que desse conta das necessidades práticas, que tivesse relevância social e, assim, trazer respostas e contribuições para a educação e medicina. Dentro dessa perspectiva, o autor, mesmo antes de iniciar suas pesquisas sobre psico- logia, já abordaria a educação em seus estudos sobre literatura. Depois de sua mudança para Moscou, voltaria seu olhar para as deficiências e, a partir daí, buscaria a elaboração de uma psicologia que fosse além do que era realizado naquele período tanto na Rússia quanto em outros países. Uma Psicologia que buscasse a aplicação do materialismo his- tórico e dialético desenvolvido por Marx e Engels no entendimento das funções psicoló- gicas superiores (pensamento, linguagem e comportamento volitivo) e da complexidade de seu desenvolvimento. Entenda o que é o materialismo dialético neste link da Infopedia: https://bit.ly/2Yx10BY Sobre o cenário da Psicologia, havia a divisão – que de certa forma se mantém até hoje – entre um ramo que se orientava por características de ciência natural e outro de ciência mental. Vygotsky deixou “[...] absolutamente claro que, do seu ponto de vista, nenhuma das escolas de psicologia existentes fornecia as bases firmes necessárias para o estabelecimento de uma teoria unificada dos processos psicológicos humanos” (COLE; SCRIBNER, 2007, p. 13). A partir daí, ele e seus colaboradores, incursionaram pelo de- senvolvimento de noções e compreensões unificadas sobre o desenvolvimento humano que fossem além do que ele chamava de “paradigmas botânicos” (VYGOTSKY, 2007, p. 8) – veja que o termo Jardim de Infância ainda é corrente em nossa sociedade, assim como a ideia de que a criança é uma “sementinha” de adulto – e do uso de modelos da Zoologia, que focavam no conceito de que as funções superiores partiam da multiplica- ção e derivação de princípios da psicologia animal – referindo-se, em grande parte, aos estudos do Behaviorismo da época. Além de se posicionar contra essa visão que se contentava em realizar comparações, desviando da complexidade das funções superiores, Vygotsky também criticou de forma devastadora, como nos aponta Cole e Scribner (2007), as teorias que afirmavam que as propriedades psicológicas de um humano adulto são derivadas da maturação unica- mente, ou seja, estão pré-formadas no ser biológico, na criança, à espera da oportunida- de para se manifestarem. Emborareconheça como veremos, a importância da estrutura biológica, para o autor essa estrutura se adaptará, transformará a partir da cultura, da interação social, das quais será também transformadora. Para Vygotsky a formação psicológica é social, o desenvolvimento ocorre na interação, no dinamismo das relações. Vygotsky viu nos princípios e métodos do materialismo dialético, como nos traz Cole e Scribner (2007, p. 13), a solução para alguns paradoxos científicos com os quais seus contemporâneos se deparavam. 8 9 Um ponto central desse método é que todos os fenômenos sejam estu- dados como processos em movimento e em mudança. Em termos do objeto da psicologia, a tarefa do cientista seria a de reconstruir a origem e o curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência. Não só todo fenômeno tem sua história, como essa história é caracteri- zada por mudanças qualitativas (mudança na forma, estrutura e caracte- rísticas básicas) e quantitativas. Vygotsky aplicou essa linha de raciocínio para explicar a transformação dos processos psicológicos elementares em processos complexos (COLE; SCRIBNER, 2007, p. 25). Sendo assim, como nos traz Ivic (2010), algumas palavras e fórmulas chave que defi- nem a obra de Vygotsky são: sociabilidade do homem, interação social, signo e instrumen- to, cultura, história e funções mentais superiores. E se fosse necessário organizar esses termos em uma única expressão, poderíamos afirmar que “a teoria de Vygotsky é uma te- oria sócio-históricocultural do desenvolvimento das funções mentais superiores, ainda que ela seja chamada mais frequentemente de ‘teoria histórico-cultural’” (IVIC, 2010, p. 15). Instrumentos, Signos e Mediação Como apontamos acima, é no materialismo dialético que Vygotsky irá buscar mé- todos e princípios para suas próprias investigações. Como nos aponta Cole e Scribner (2007, p. 26), Marx nos traz o conceito de que as mudanças históricas na sociedade e na vida material promovem mudanças na natureza humana e Engels concebe que o trabalho humano e o uso de instrumentos são as formas de o homem mudar a natureza e, ao fazê-lo, muda a si mesmo. Você pode ver isso, por exemplo, na nossa relação com os aparelhos telefônicos: o que no passado tinha uma funcionalidade, hoje tem várias, por conta disso, as pessoas andam altamente conectadas de diversas formas, o que faz com que elas não pensem, por exemplo, em ligar no telefone fixo de alguém e deixar um recado, como era feito no passado, aguardando depois pacientemente o retorno da ligação; não que isso não ocorra, mas tal recurso é usado como última alternativa, pois podemos “acessar” nossos amigos de forma pontual e direta. Os instrumentos que o homem cria para mudar o mundo mudam a relação desse homem com o mundo e mudam o próprio homem. A partir das observações desses dois autores, Vygotsky passa a observar como se dá a relação com os instrumentos e como esses moldam os processos psicológicos humanos. Como essa relação é histórica e cultural, Vygotsky reforçará que psicologia individual é essencialmente construída sob patamares sociais e culturais. A interação homem-ambiente, então, é mediada por es- ses instrumentos. Como aponta Oliveira (1997, p. 29): O instrumento é um elemento interposto entre o trabalhador e o ob- jeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação da natureza. O machado, por exemplo, corta mais e melhor que a mão humana; a vasilha permite armazenamento de água. O instrumento é feito ou buscado especialmente para u certo objetivo. Ele carrega consigo, portanto, a função para a qual foi criado e o modo de uti- lização desenvolvido durante a história do trabalho coletivo. É, pois, um objeto social e mediador da relação entre o indivíduo e o mundo. 9 UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente Contudo, não são apenas os materiais que Vygotsky vê como mediadores dessa rela- ção do homem com o mundo há outros instrumentos de extremo valor, que influenciam demais o desenvolvimento psicológico humano: os signos. Para Vygotsky, os conceitos são também mediadores da relação do homem com o mundo, o que faz o autor de- senvolver vasta teoria da relação entre pensamento, desenvolvimento, aprendizagem e linguagem. Como nos traz Cole e Scribner: De maneira brilhante, Vygotsky estendeu esse conceito de mediação na interação homem-ambiente pelo uso de instrumentos ao uso de signos. Os sistemas de signos (a linguagem, a escrita, o sistema de número), assim como o sistema de instrumentos, são criados pelas sociedades ao longo do curso da história humana e mudam a formação social e o nível de seu desenvolvimento cultural. Vygotsky acreditava que a internalização dos sistemas de signos produzidos culturalmente provoca transformações comportamentais e estabelece um elo entre as formas iniciais e tardias do desenvolvimento individual (2007, p. 26). Ou seja, para o autor, assim como para os autores que o influenciaram, “o mecanis- mo de mudança individual ao longo do desenvolvimento tem sua raiz na sociedade e na cultura” (idem). Como você deve ter percebido, a ideia de mediação é fundamental para o entendi- mento do desenvolvimento na perspectiva de Vygotsky, ou seja, dentro de um viés socio- histórico. Como dito anteriormente, o homem, como sujeito do conhecimento, não tem acesso direto aos objetos e o faz por meio de símbolos, que organizam e dão significado à sua relação com o mundo. Esses símbolos são culturalmente determinados, mas tam- bém são ressignificados conforme o homem vai se relacionando com eles. Um exemplo clássico do conceito de mediação é o contato com o fogo, por exemplo, a chama de uma vela: ao tocarmos a chama logo tiramos a mão por conta da dor, essa é uma relação direta com o objeto; contudo, quando evitamos o fogo em outra situação ao lembrarmo- -nos do que ocorreu na primeira, a relação está mediada pela lembrança do que ocorreu na outra experiência. Pode acontecer ainda, como nos traz Oliveira (1997), ao tratar desse exemplo da chama da vela, que mesmo sem nunca ter experimentado essa experi- ência, podemos ser advertidos por outra pessoa do perigo de nos queimarmos, ou seja, a relação com a vela será mediada por essa intervenção do outro. “A mediação é um processo essencial para tornar possível atividades psicológicas voluntárias, intencionais, controladas pelo próprio indivíduo” (OLIVEIRA, 1997, p. 33). Oliveira (1992) apresenta ainda que o conceito de mediação coloca dois aspectos complementares. Por um lado, como tratado, refere-se ao processo de representação mental – que permite que o homem se relacione com os objetos mesmo na ausência desses, ou que crie outros que não existem. Por outro lado, refere-se ao fato de que os sistemas simbólicos têm origem social que são internalizados pelo indivíduo. A lingua- gem humana, assim, torna-se fundamental na mediação entre sujeito e objeto de conhe- cimento e tem para Vygotsky duas funções: a de intercâmbio cultural e a de pensamento generalizante. Nas palavras da autora: [...] além de servir ao propósito de comunicação entre indivíduos, a lin- guagem simplifica e generaliza a experiência, ordenando as instâncias 10 11 do mundo real em categorias conceituais cujo significado é comparti- lhado pelos usuários dessa linguagem. [...] A utilização da linguagem favorece, assim, processos de abstração e generalização (OLIVEIRA, 1992, p. 27). A partir dessa abstração surgem os conceitos, que são agrupamentos de signos his- toricamente determinados. São construções culturais obtidas ao longo da formação cul- tural do sujeito e internalizadas por ele. Temos então o surgimento do pensamento generalizante. Por exemplo, a palavra cachorro, depois de aprendida, agrupará mais do que a presença real do animal, mas um conceito culturalmente compartilhado: animal de quatro patas que late, melhor amigo do homem. A importância do sistema simbólico foi fundamental para a construção do pensa- mento vygotskiano. O autor começou a considerar a integraçãoentre fala e raciocínio prático – até então estudados/considerados de forma separada – ao longo do processo de desenvolvimento, nas palavras do próprio autor: Embora a Inteligência prática e o uso de signos possam operar inde- pendentemente em crianças pequenas, a unidade dialética desses sis- temas no adulto humano constitui a verdadeira essência no comporta- mento humano complexo. Nossa análise atribui à atividade simbólica uma função organizadora específica que invade o processo do uso de instrumento e produz formas fundamentalmente novas de comporta- mento (VYGOTSKY, 2007, p. 11). Para o autor, segundo suas observações, o momento da convergência entre o uso dos sistemas simbólicos – em seu texto ele usa o termo fala, mas podemos estender sua teoria a outras formas de expressão, como a linguagem de sinais – com as atividades práticas é o mais significativo no curso do desenvolvimento intelectual humano. Mesmo antes de controlar o próprio comportamento, como nos aponta Vygotsky (2007, p. 12), a criança começa a se expressar e a influenciar no ambiente, o que acaba criando novas relações com esse ambiente e influenciando na reorganização do próprio com- portamento. A partir desses comportamentos essencialmente humanos começarem a se desenvolver, o intelecto se desenvolverá e se constituirá a base do processo produtivo, “a forma especificamente humana do uso de instrumentos”. Vygotsky coloca, assim, a linguagem no centro do desenvolvimento humano. A linguagem, por sua vez, é algo essencialmente histórico e cultural, o que já deixa claro que a formação do intelecto se pauta no “modo de ser” da sociedade onde o indivíduo está inserido. A relação da fala com a atividade prática começa na chamada fala egocêntrica, estudada por Piaget, que a criança faz uso nos primeiros anos. O psicólogo bielorrusso aponta: No nosso laboratório, observamos que a fala não só acompanha a atividade prática como também tem um papel específico na sua reali- zação. Nossos experimentos demonstraram dois fatores importantes: (1) A fala da criança é tão importante quanto a ação para atingir um objetivo. As crianças não ficam simplesmente falando o que elas estão fazendo; sua fala e ação fazem parte de uma mesma função psicológi- ca complexa, dirigida para a solução do problema em questão. 11 UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente (2) Quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior a importância que a fala adquire na operação como um todo. Às vezes a fala adquire uma importância tão vital que, se não for permitido seu uso, as crianças pequenas não são capazes de resolver a situação (VYGOTSKY, 2007, p. 13). Para o autor, o uso da linguagem pelas crianças está no mesmo nível de importância da resolução das tarefas práticas do uso dos olhos e das mãos – e do corpo e dos sentidos. Com ela, a criança elabora suas ações antes de executá-las, planeja seu futuro. A manipu- lação direta dos instrumentos é substituída por um processo psicológico complexo, a par- tir do qual as motivações e intenções interiores estimulam seu próprio comportamento e realização, resultando, a partir daí, em interferência direta no ambiente. A fala egocên- trica, então, é base para a fala interior do pensamento e para a expressão comunicativa. Veja aqui que o processo de internalização é fundamental para o indivíduo, pois, como aponta Oliveira (1997, p. 35), ao longo do processo de desenvolvimento, para- mos de necessitar da fala egocêntrica, de marcas externas e passamos a utilizar signos internos, “isto é, representações mentais que substituem os objetos do mundo real. Os signos internalizados são, como as marcas exteriores, elementos que representam obje- tos, eventos situações”. Até aqui, esperamos que tenha ficado claro que temos dois tipos de mediadores da relação do homem com o ambiente – e consigo mesmo – considerados por Vygotsky: os instrumentos e os signos. Sendo que os símbolos mediam a relação com os objetos, estando sempre entre os sujeitos e esses. Esses dois mediadores se influenciam constan- temente e, de certa forma, o sistema simbólico refaz e organiza a relação com os instru- mentos materiais, pois a relação entre linguagem e ação é dinâmica e inseparável e esse amálgama tem uma função muito particular no curso do desenvolvimento da criança, pois evidencia também a lógica da sua própria gênese. O Sistema Funcional e as Fases do Desenvolvimento Como nos aponta Oliveira (1997, p. 45), existe uma trajetória desvinculada entre pensamento e linguagem, como dito anteriormente, a ação prática irá se conectar com o sistema simbólico; embora haja uma realidade pré-verbal, em algum momento do desenvolvimento filogenético, a trajetória do pensamento e da linguagem se conectará e o pensamento se tonará verbal e a linguagem racional. Para a espécie humana, o surgimento desse tipo de pensamento e da linguagem como sistema de comunicação e expressão foi o momento que o biológico se transformou no sociohistórico. Vygotsky estudou o cérebro, mas, ao contrário dos teóricos da época, ele não via esse órgão como um campo em que cada espaço teria sua função fixa e imutável, ao contrário, ele foi um dos primeiros a teorizar sobre a plasticidade desse órgão. Para ele, como as habilidades superiores vão se transformando, tornando-se mais complexas, o cérebro precisaria ter uma estrutura que acompanhasse essas mudanças. 12 13 Ele não quer dizer com isso, como nos aponta Oliveira (1992, p. 26), que há um caos inicial, ao contrário, há a presença de uma estrutura inicial básica, estabelecida ao longo da história da espécie, que trazemos conosco ao nascer. Nesse início, estamos nos apoiando em funções mais elementares, contudo, com o tempo, funções superiores vão se tornando importantes. Ou seja, as funções cerebrais, como nos traz Luria (1981 apud Oliveira 1992), não podem ser localizadas em pontos específicos do cérebro ou em grupos isolados de células, e sim há um sistema funcional. Esse sistema é um funciona- mento que articula diversos elementos, cada um desempenhando seu papel. Conforme o desempenho vai ser tornando mais complexo, algumas áreas deixam de atuar e são substituídas por outras. Esse sistema tem uma determinação filo e ontogenética. Essas observações de Vygotsky, validadas depois pelas pesquisas de Luria, são defendidas por um grupo grande de neurocientistas da atualidade. Nesse desenvolvimento em que linguagem e pensamento irão se amalgamar, Vygotsky nos aponta, segundo Oliveira (1997, p. 46), algumas fases que refletem também o pró- prio desenvolvimento de nossa espécie. Fase pré-linguística do pensamento • Utilização de instrumentos • Inteligência prática Pensamento verbal e linguagem racional • Utilização de instrumentos • Inteligência prática Fase pré-intelectual da linguagem • Alívio emocional • Função social Figura 2 – Organização das fases Na fase pré-linguística, ou pré-verbal, a criança demonstra a competência para re- solver problemas práticos, utiliza instrumentos e meios indiretos para se relacionar com determinados objetos. Há ação do ambiente sem a mediação da linguagem. Essa fase ocorre concomitante com a pré-intelectual, pois ela usa manifestações verbais, embora não domine o sistema simbólico, como instrumento para estabelecer um contato social – já que tem o que Ivic (2010) chama de sociabilidade primária – e, como aponta Oliveira (1997), o choro, o riso, balbucios etc., além dessa função de estabelecer essa comunica- ção difusa, servem como forma de alívio emocional. Contudo, assim como aconteceu com a humanidade, em algum momento a ação prática e o sistema simbólico se encontram e, como dito anteriormente, o pensamento se torna verbal – há o domínio do sistema simbólico – e a linguagem se torna racional, o que faz como que o ser humano possa ter a possibilidade de um funcionamento psi- cológico mais elaborado. Quando tratamos das fases de Piaget naunidade 2, ficou claro que há certo processo mais ou menos fixo de desenvolvimento intelectual para esse autor. Essa questão nos influencia de tal forma que, como aponta Oliveira (1997, p. 58), quando pensamos em desenvolvimento infantil pensamos em “até onde a criança já chegou”, ou seja, supomos 13 UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente um percurso a ser percorrido. Reconhecemos que esse percurso pede certo auxílio, mas só reconhecemos que uma criança se apropriou de uma habilidade – amarrar o sapato, comer, andar – quando consegue fazer isso sozinha. Para Vygotsky, contudo, embora exista um nível de desenvolvimento real, que só pode ser analisado de forma retrospectiva, pois quando a criança está nele já está com processos psicológicos consolidados, devemos nos ater também, principalmente quando tratamos de ensinar, do nível de desenvolvimento potencial. Esse nível estabelece sua “capacidade de desempenhar tarefas com a ajuda de adultos ou de companheiros mais qualificados” (OLIVEIRA, 1997, p. 59). Lembra quando falamos da chama da vela? Podemos aprender que ela queima na prática, colocando a mão nela, mas podemos também nos orientar pela experiência do outro, quando somos advertidos do que o fogo pode causar. A possibilidade de mudança no desempenho de alguém pela intervenção de outro é capital na teoria do autor. O nível de desenvolvimento real reflete de certa forma o que é aprendido, enquanto o nível de desenvolvimento potencial reflete o que está em processo de desenvolvimento e aprendizagem. Desenvolvimento e aprendizagem, assim, ocorrem em certa assintonia (VYGOTSKY 1978 apud FINO, 2001). Esse espaço entre esses dois níveis é chamado pelo autor bielorrusso de Zona de Desenvolvimento proximal, nas palavras de Oliveira (1997, p. 60): A zona de desenvolvimento proximal refere-se, assim, ao caminho que o indivíduo vai percorrer para desenvolver funções que estão em processo de amadurecimento e que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas no seu nível de desenvolvimento real. A zona de desenvolvimento proximal é, pois, um domínio psicológico em cons- tante transformação. Essa transformação se dá porque a criança hoje precisa de ajuda para andar, mas amanhã já não precisará, contudo, terá que ter auxílio para subir uma escada e, quando conseguir fazer isso, precisará de alguém que saiba lhe ensinar a andar de bicicleta, por exemplo. Ou seja, não basta o auxílio de alguém que saiba, é preciso que haja certo de- senvolvimento potencial para que se consiga chegar ao próximo objetivo desejado – eu preciso saber andar para poder dar conta de subir uma escada ou andar de bicicleta, por exemplo; ou preciso entender matemática básica para conseguir dar conta de cálculos complexos. Nas palavras do autor: A zona de desenvolvimento próximal define aquelas funções que ain- da não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentes em estado em- brionário (VYGOTSKY, 2007, p. 98). E continua, abordando a importância desse conceito para psicólogos e educadores: A zona de desenvolvimento proximal provê psicólogos e educadores de um instrumento através do qual se pode entender o curso interno do desenvolvimento. Usando esse método podemos dar conta não so- mente dos ciclos e processos de maturação que já foram completados, como também daqueles processos que estão em estado de formação, ou seja, que estão apenas começando a amadurecer e a se desenvol- ver (VYGOTSKY, 2007, p. 98). 14 15 Implicações Práticas dos Conceitos Vygotskianoso Na prática, o pensamento de Vygotsky vem trazer para aqueles que pensam no ensi- no, a importância da sociabilização e do acesso à cultura para a formação do indivíduo. Por conta de seu cunho marxista, a visão desse autor é crítica, pensa-se um ensino que vai além da pura imitação, além de processos puramente mecânicos. Não basta a reprodução mecânica se o indivíduo não estabelecer real relação com o meio e com os mediadores de seu aprendizado. O suporte tem que ser real e transformador. Deve-se ir além do que é “esperado” para idade, o aprendizado deve ter sentido e se fazer valer dos níveis reais e potenciais de desenvolvimento. Para autor, como nos apresentar Oliveira (1997, p. 62), o único bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento, provo- cando avanços que não ocorreriam espontaneamente. Uma visão errada, contudo, como nos traz também Oliveira (1997, p. 63), poderia in- terpretar a teoria do autor como algo que estabelece um ensino diretivo e autoritário. Mas é o contrário que ele tenta estabelecer, pois ele põe em questão que, para que o aprendi- zado ocorra realmente, o sujeito precisa reelaborar e rever constantemente os conteúdos da cultura. Ou seja, o aluno deve assumir uma postura crítica, e essa postura precisa ser incentivada pelo professor mediador do conhecimento. Há assim, por parte do aluno, a recriação constante da cultura, o que incentiva sua criatividade de desenvolvimento. Para que isso ocorra, é necessário que o próprio professor tenha essa formação e postura crítica, que ele também reveja o estabelecido e esteja pronto para ressignificar seu modo de ver a cultura – o conhecimento que tenta transmitir etc. Ele deve abrir mão da imitação, estar preparado para crítica de sua prática. Vygotsky estabelece, ba- sicamente, que o ensino e aprendizagem são, em suma, a relação entre indivíduos da mesma espécie, que se desenvolvem mutuamente. Concluindo Como nos traz Ivici (2010), o ser humano se caracteriza por uma sociabilidade primá- ria para Vygotsky, essa ideia também foi expressa por Henri Wallon – do qual falaremos na próxima unidade – de um modo mais categórico, quanto este afirma que “o indivíduo é geneticamente social” (WALLON, 1959 apud IVIC, 2010). Ainda fazendo uso das reflexões de Ivic, apresentaremos um esquema desenvolvido pelo autor dos pontos es- senciais da teoria vygotskiana: 1. Nenhuma teoria psicológica do desenvolvimento confere tanta importância à educação quanto a de Vygotsky. Para ele, a educação não tem nada de externo ao desenvolvimento: “A escola é o lugar mesmo da psicologia, porque é o lugar das aprendizagens e da gênese das funções psíquicas”, escreveu acertadamente J.-P. Bronckart (ver Schneuwly; Bronckart, 1985). 15 UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente 2. Graças à teoria de Vygotsky, direta ou indiretamente, todo um conjunto de pro- blemas novos relativos à pesquisa empírica e de importância capital para a edu- cação foi introduzido na psicologia contemporânea. 3. A teoria de Vygotsky é, histórica e cientificamente, a única fonte significativa de pesquisa sobre os processos metacognitivos na psicologia contemporânea. O papel desses processos na educação e no desenvolvimento é de uma impor- tância que não se pode subestimar. A ausência de pesquisas teóricas e empíricas, que poderiam, não obstante, ser concebidas no quadro dessa teoria de forma muito produtiva, é a única razão que explica que ainda não se tenha levado em conta esses processos na educação. Entretanto, é certo que eles estão na ordem do dia tanto na psicologia, quanto na pedagogia. 4. Uma matriz de análise e uma gama de instrumentos de pesquisa e de diagnós- tico podem ser facilmente desenvolvidas a partir das teses de Vygotsky sobre o “desenvolvimento artificial”, isto é, sobre o desenvolvimento sociocultural das funções cognitivas. É suficiente, para começar, inventariar os auxiliares exter- nos, os instrumentos e as “técnicas interiores” de que dispõem os indivíduos e os grupos sociais e culturais, para elaborar os parâmetros pelos quais os indiví- duos e os grupos podem ser comparados entre si. É claro que tais instrumentos, desenvolvidos em um quadro teórico dessa natureza, eliminarão os perigos das interpretações racistas e chauvinistas. 5. A partir dos dois modelos já mencionados neste artigo, toda uma gama de for- mas de aprendizagem foram conceitualizadas a partir das ideias de Vygotsky ou deideias próximas às dele. Essas formas compreendem, entre outras, a aprendi- zagem cooperativa, a aprendizagem guiada, a aprendizagem fundada no conflito sociocognitivo, a construção de conhecimentos em comum etc. (Doise e Mugny, 1981; Perret-Clermont, 1979; Stambak et al., 1983; Cresas, 1987; Brown e Palincsar, 1986; etc.). 6. O surgimento recente das mídias audiovisuais modernas e das tecnologias de informação, suas aplicações no ensino, seu papel, em curto e longo prazos na vida das crianças levantam problemas novos e sérios. Que instrumento será mais pertinente e mais útil para as pesquisas sobre o impacto desses novos instru- mentos culturais para o ser humano do que uma teoria como a de Vygotsky, que coloca, precisamente, no centro de suas preocupações, o papel dos instrumen- tos da cultura no desenvolvimento psicológico, histórico e ontogenético? Esta teoria oferece um quadro conceitual ideal para essas pesquisas, mas falta ainda um trabalho árduo para ser completado para torná-la operacional na condução de pesquisas empíricas. Como nos traz Cole e Scribener (2007), diante da eminência da morte por tubercu- lose, Vygotsky se colocou a abrir uma gama de linhas de pesquisa e estudos que levan- taram questões fundamentais de implicações variadas para educação, psicologia etc. Ele não perseguiu nenhuma linha até que a esgotasse, isso coube a seus colaboradores, mas sua importância é inegável e suas contribuições fundamentais para que possamos pensar educação como um processo social, histórico e cultural primordial. 16 17 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Leitura Em busca das bases ontológicas da psicologia de Vygotsky Artigo, intitulado Em busca das bases ontológicas da psicologia de Vygotsky, de Carmos e Jimenez. O texto apresenta como se dá a influência do pensamento marxista na for- mação das teorias vygotskianas. https://bit.ly/2MrEWCr Vygotsky: aprendizado e Desenvolvimento – um processo sociohistórico A segunda é o link para o livro do qual o vídeo acima é o substrato. Vygotsky: aprendi- zado e Desenvolvimento – um processo sociohistórico, da professora Marta Kohl. http://cruzeirodosul.bv3.digitalpages.com.br/users/publications/9788526219366/pages/_1 A Escola de Vigotski e a Educação Escolar: Algumas Hipóteses para uma Leitura Pedagógica da Psicologia Histórico-Cultural Texto do professor Newton Duarte, que apresenta uma visão crítica em relação a como os conceitos vygotskianos são pensados no Brasil. https://bit.ly/2yAuKzz 17 UNIDADE Vygostky: A Formação da Mente Referências IVIC, Ivan. Lev Semionovich Vygotsky. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 140 p. (Coleção Educadores) LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 25.ed. São Paulo: Summus, 1992. LURIA, A R. A construção da mente. São Paulo: Icone, 1992. LURIA, Alexander Romanovich. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos cultu- rais e sociais. 2.ed. São Paulo: Ícone, 1994. 223 p. OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sociohistórico. 4. ed. São Paulo: Scipione, 1993. 1999. 2001. 2003. 2004. 111 p. VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 111 p. (Psicologia e Pedagogia) COLE, M.; SCRIBNER, S. Introdução. VYGOTSKY, Lev Semenovitch; LURIA, Alexander Romanovich. Linguagem, desen- volvimento e aprendizagem. 9. ed. São Paulo: Icone, Universidade de São Paulo, 2001. 228 p. 18
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