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Daniele Borges Bezerra; Juliane Conceição Primon Serres | 21 
 
como as memórias a ele relacionadas. Isso porque o lugar de 
sofrimento é também a zona de uma experiência partilhada, de 
longa duração, que deu origem a uma comunidade afetiva, que teve 
início com a experiência comum da doença e do isolamento. É a 
partir da crença nessa comunidade afetiva que surgem resistências 
e narrativas, pautadas numa “memória coletiva” (HALBWACHS, 
1990), negociadas nos distintos presentes, narradas com base em 
pontos comuns de ancoragem das experiências, os chamados 
“marcos da memória”, como proposto por Maurice Halbwachs 
(2004). 
Depoimentos orais de antigos moradores e funcionários falam 
da experiência de internação como uma sentença de clausura a 
perder de vista. Como afirma Arnaldo Rubio, um dos narradores 
cujo livro nos serve como substrato: “A política adotada pela 
Inspetoria de Profilaxia da Lepra deixou a impressão nítida que o 
objetivo era isolá-los para que morressem nesses ‘guetos’ 
quebrando a cadeia de contaminação” (RUBIO, 2007, p.33). Apesar 
disso, era possível reinventar-se nesses lugares, como o mesmo 
autor acrescenta em páginas seguintes: 
 
Não era tão somente de sofrimento e dor que viviam os doentes 
que foram isolados compulsoriamente. Pensar dessa forma é 
imaginar que cerca de 15.000 seres humanos eram um bando de 
imbecis, lamentando sua sorte todo o tempo e esquecendo-se de 
viver. A natureza humana, felizmente tem um poder de adaptação 
extraordinário e as vicissitudes da vida, interferem, mas não 
interrompem seu ciclo, fazendo com o que o ser humano se amolde 
a um novo modo ou sistema, e até transformando o meio em que 
vive (idem, p.42). 
 
O autor ainda traz ao longo do texto, elementos que 
corroboram com a ideia de uma comunidade afetiva, tais como: “a 
doença os unira” (idem, p.97) e “[...] reconstruíra sua vida dentro 
dos muros do sanatório, com novos amigos [...]” (ibidem, p.31). 
Para além da ambiguidade do lugar, e do modo como cada 
pessoa vivenciou o isolamento compulsório, a ausência de cura 
22 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
naquele período e o preconceito vinculado ao imaginário degradante 
da doença, fizeram com que, a então temida lepra, tenha se tornado 
uma metáfora negativa associada a problemas de ordem moral, mal 
vista pela parcela saudável da sociedade, e uma verdadeira “bruxa 
malvada” – como a intitulou o narrador Nelson Flores, no livro “O 
menino e o rio” (2012). Assim, o estigma social e a ruptura com a 
vida familiar e social, gerada pelo isolamento compulsório em 
hospitais-colônia fez com que muitas pessoas permanecessem 
nessas instituições, mesmo com o fim da internação compulsória na 
década de 1960. 
Susan Sontag (1984) propõe que a origem obscura e o 
tratamento ineficaz (até a descoberta das sulfonas em meados da 
década de 1940), tendem a ser carregados de significados negativos: 
 
Primeiro os objetos do medo mais profundo (corrupção, 
decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a 
doença. A própria doença torna-se uma metáfora. Então, em nome 
da doença (isto é, usando-a como metáfora), aquele horror é 
imposto a outras coisas. A doença passa a adjetivar. (SONTAG, 
1984, p. 76) 
 
A difícil desconstrução do preconceito associado às origens da 
doença parece estar vinculada à “sobrevivência” de um passado 
doloroso, por vezes obscuro, que circunda a história da doença. Ao 
tratar do paradoxo do anacronismo das imagens, logo dos 
imaginários, o historiador da arte Georges Didi- Huberman (2017, 
p.117), retoma a ideia de sobrevivência desenvolvida por Warburg, 
outro historiador da arte. São esses imaginários sobreviventes e 
consolidados ao longo do tempo que se sobrepõem como referência 
histórica às imagens do tempo presente e dificultam a ruptura do 
preconceito iniciado no tempo da “lepra”. 
Augusto Vieira Nunes, conhecido como Bacurau, outro de 
nossos interlocutores literários, contraiu a doença no Acre com a 
idade de cinco anos e alguns anos mais tarde, com o agravamento 
da sua situação de saúde viajou para o Hospital Lauro de Souza Lima

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