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Diário de um Médico em 1929

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Francisca Gabriela Bandeira Pinheiro; Zilda Maria Menezes Lima | 73 
 
 Em julho de 1928, houve mutação no S.S.R [Serviço de 
Saneamento Rural]. Sahiu o Amaral, sendo substituido pelo 
Demosthenes. Amaral encarregou-me o Censo de Lepra e 
Demosthenes manteve-me no cargo. Na interimidade do S.S.R, 
comprometi-me a acompanhar as primeiras levas de lázaros a 
Canafistula e a vizital-os. Assim o estou fazendo, indo 
semanalmente a Canafistula em [trecho ilegível]-motor (DIÁRIO... 
1929, p.92-93). 
 
A partir desse momento, o tema da lepra passa a ser 
recorrente tanto nos escritos públicos, como no escrito privado. Em 
seu Diário, o que chama mais atenção é o relato que o médico faz 
sobre um possível doente de lepra, Antônio Dizencourt, quem já 
havia sido citado no Diário, na ocasião em que relata a familiares e 
pessoas presentes em uma festa de ano novo. 
Sobre Antonio Dizencourt, é possível inferir que era uma 
pessoa próxima a Justa e que o médico possuía relações íntimas com 
a sua família, sobretudo com a sua filha Maroca. Vejamos: 
 
Hontem (11) a Maroca, cerca das 13 horas, disse que: << - Dr, é 
bom olhar o Papai que esta com uns panos brancos na barriga >> 
Imediatamente fui ao Sr. Antônio Dizencourt e fil-o despir-se. 
Apresentava no tronco, nos braços e nas coxas diversas placas 
numulares, esbranquiçadas, mas fulidas no centro do que na 
periferia. Varias certas lezões são termo-anastezicas e tambem 
insensíveis ao contacto. Os pés são cianóticos e insensíveis para a 
borda externa principalmente e também o terço inferior nas 
pernas e borda cubital das mãos. [...]. No ano passado teve uma 
ulceração no caleque a qual demorou muito a cicatrizar. Mais 
recentemente pizou em um recaldo superaquecido e só sentiu 
quando já se tinha processado extensa queimadura (DIÁRIO... 
1929, p.95-96). 
 
Justa relata os sintomas que o paciente vinha apresentando de 
forma detalhada, sintomas esses que eram característicos de pessoas 
acometidas pela lepra no período, porém, em momento algum o 
médico cita o nome da doença, talvez devido ao peso que essa 
terminologia trazia para a pessoa que por ela fosse atingida no 
74 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
período em questão e, por ser uma pessoa próxima, Justa podia não 
querer registrar a enfermidade do amigo em seu Diário. Ao 
encontrar o possível doente nessas condições, Justa afirma: 
 
Izolei-o, tarde, muito tarde certamente! A Iracema é muito 
agarrada com o Velho e ele ainda mais com ela! A Lourdes 
costumava deitar-se na cama do sr. Antônio! [...] O filtro era 
manipulado por Sr. Antônio! As [trecho ilegível] ele as enchia, o 
pão era ele quem recebia, não há um movel em caza onde não 
tivesse ele posto a mão, sendo como era, ativo, portanto, hábil e 
trabalhador! As minhas armas, os meus instrumentos cirurjicos, 
as minhas agulhas, tudo ele manuzeava, limpava, concertava! 
(DIÁRIO... 1929, p.95-96). 
 
Na leitura do trecho acima, Justa demonstra o medo do 
contágio ao afirmar que o possível doente manuseava objetos de uso 
comum da casa, inclusive objetos de trabalho de Justa. O médico 
também destaca que o isolamento seria a solução para o possível 
doente, porém afirma que a medida era tardia, já que Sr. Antônio 
tinha relações próximas com todos da casa. Dessa forma, o médico 
deixa explícita a sua crença no contágio da doença, teoria aceita pela 
maioria dos leprólogos nesse período. 
Além disso, outro ponto que chama atenção é Justa relatar 
com preocupação o fato de Lourdes “deitar-se na cama do sr. 
Antônio”. Não sabemos se ao usar a expressão “deitar-se” o médico 
falava de um possível contágio pelo contato sexual ou apenas 
referia-se à proximidade física não somente entre as pessoas que 
conviviam com Sr. Antônio e\ou também pelo fato dessas pessoas 
manipularem os objetos pessoais do leproso, o que poderia fazer 
com que a doença fosse transmitida com mais facilidade. 
Justa encaminha o possível doente ao exame para detectar a 
presença do bacilo, porém afirma que “a pesquiza microscópica foi 
negativa em 13 de Maio, o mesmo sucedendo em 17 em duas novas 
lâminas de muco, mas o exame clinico repetido no 16 de Maio, nada 
mais fez do que confirmar o anterior” (Ibidem, p.97-98). Mesmo 
com os resultados negativos, isso não tranquilizou o médico, que

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