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João do Rio: 
transe e patologia 
na capital federal da Belle Époque 
 
Artur Cesar Isaia 
 
 
Considerações iniciais 
 
O Rio de Janeiro do final do século XIX e inícios do XX assistiu 
a transformações na memória afrodescendente, servindo de cenário 
às ressignificações das práticas religiosas ancestrais no contexto de 
pós-abolição. Para alguns autores clássicos como Bastide (1971) e 
Ortiz (1991), a proletarização dos ex-escravos era o ponto de partida 
estrutural para a desagregação da memória ancestral, capaz de 
explicar a passagem das antigas práticas religiosas de invocação aos 
Orixás para parcerias com o Espiritismo importado da Europa, com 
o Catolicismo e com a herança indígena. As antigas Macumbas e a 
estruturação da Umbanda na primeira metade do século XX vão 
ligar-se às ressignificações mnemônicas de práticas ancestrais 
africanas, compondo-se com novos parceiros culturais, entre os 
quais em breve apareceriam os imigrantes europeus e orientais. 
Na literatura brasileira, a percepção das ressignificações das 
práticas peculiares ao passado afro-ameríndio não passou em 
branco. De José de Alencar a Machado de Assis, a convivência com o 
considerado fantástico e sobrenatural entre a base da pirâmide 
social aparece, atestando a abertura da literatura brasileira a valores 
84 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
e crenças extremamente sedimentados na memória e na 
sensibilidade do povo. José de Alencar (1978), no século XIX, já inicia 
o seu O Tronco do Ipê com o registro de um negro “feiticeiro”, Pai 
Benedito, cuja lembrança da sua cabana já não mais existente 
assombrava, junto com histórias de almas de outro mundo, os 
frequentadores da antiga Fazenda do Boqueirão. O “feiticeiro” Pai 
Benedito de Alencar remete ao reconhecimento dos poderes 
sobrenaturais dos negros, os quais Maggie (1992) defende, como 
valor circulante em nossa sociedade ainda no século passado. Já no 
começo do século XX, em Esaú e Jacó, Machado de Assis apresenta-
se também como um exemplo desta sensibilidade em captar a 
familiaridade com o mundo dos espíritos, das comunicações 
mediúnicas de vários matizes, com os ecos do sobrenatural e do 
mágico, não restritos ao universo cultural dos desqualificados, mas 
capaz de habitar longitudinalmente a sociedade. Anteriormente, 
Machado de Assis, já havia deixado muitos registros sobre as 
práticas mediúnicas no Rio de Janeiro. Em Esaú e Jacó, Machado 
constrói uma personagem, a “Cabocla do Castelo”, emblemática das 
futuras reelaborações identitárias pelas quais os índios brasileiros 
passariam na futura Umbanda. O olhar de Machado de Assis é 
extremamente importante, não apenas por mostrar as mesmas 
circularidades entre desclassificados e “bem postos” socialmente, já 
abordadas por Alencar na valorização difusa do universo mágico-
mítico, mas também por registrar a presença desta personagem 
peculiar, a “Cabocla”. De fato, a “Cabocla do Castelo”, remete 
justamente para a existência de práticas mágicas e mediúnicas, nas 
quais se faz alusão ao passado indígena brasileiro. Essas práticas 
teriam papel fundamental na estruturação e desenvolvimento da 
Umbanda no Brasil, a qual, juntamente com o Espiritismo dividiria 
a preponderância do campo (Bourdieu,2001) mediúnico. O

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