Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Artur Cesar Isaia | 87 se moderniza e imita Paris, mostram a aproximação com a realidade estudada por Moloy. Neste particular, abundam as referências a Huysmans (1988) e a seus personagens de Là Bas, como Gilles de Rais, o “Barba Azul” medieval, estudado pelo narrador, Durtal, como estratégia do autor para fugir do reducionismo naturalista. Apesar da grande importância de Huysmans para a geração intelectual brasileira do final do XIX e começos do XX (LINS, 2005), não podemos esperar que João do Rio trilhasse coerente e plenamente o projeto de Huysmans, até mesmo por tratar-se de um livro de crônicas e não de um romance. João do Rio parece estar muito longe de levar adiante o projeto antinaturalista de Huysmans proposto em Au Rebours, ou explicitamente de um “naturalismo espiritualista” ensaiado nas dúvidas do narrador de Lá-bas. Se por um lado há a fixação nos temas subterrâneos, tão inseridos no gosto decadentista, principalmente de Huysmans, João do Rio não deixa de referenciar- se (de modo naturalista) na literatura médica da época, como estratégia discursiva capaz de embasar sua condenação às práticas mediúnicas entre os pobres e às religiões afro-brasileiras. Práticas mediúnicas essas, às quais João do Rio justamente aproxima das duas “fixações”, que segundo Huysmans embruteciam a estética naturalista: a libido e a loucura4, em uma clara relação interdiscursiva com o discurso médico-psiquiátrico da época. Portanto, retratando a multiplicidade de práticas mediúnicas existentes na capital federal, João do Rio não embarca totalmente no antinaturalismo de Huysmans. As relações entre literatura e ciência médica, à Zola estão extremamente presentes em “As religiões do Rio”. Assim, temática decadentista e uma clara aproximação com o método experimental proposto por Zola (1982), via um esforço etnográfico (O’DONNELL, 2008), aparecem simultaneamente em João do Rio. Aliás a recepção de suas reportangens-crônicas, com o reconhecimento do seu valor “científico” e de suas interfaces com o 4 Escrevendo sobre as “fixações naturalistas”, Huysmans referia-se: “Rut et coup de folie, ce sont là ses seules diathèses.” (HUYSMANS, 1988, p. 16) 88 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura método experimental de Zola aparecem explicitamente nas palavras de um médico, Afrânio Peixoto, com felicitações à Gazeta de Notícias, onde originalmente foram publicadas. Afrânio Peixoto, médico legista e então diretor do Hospital dos Alienados, louvava o esforço do autor em trazer à superfície “o processo psicológico de vesânias aqui tratadas. Eis, pois, como seu inquérito de vida carioca tem uma aplicação científica: talvez nem de todos suspeitada. ” (APUD FARIAS, 2010, p. 259, sem grifos no original). João do Rio deixa rastros extremamente importantes para compreendermos o seu olhar sobre o universo mítico dos negros: eles aparecem como alucinados, degenerados, ignorantes, bêbados, imorais. Convive dialogicamente com discursos pessimistas quanto à realidade dos pobres e dos negros. Neste sentido, além do discurso médico, João do Rio está muito próximo de outros discursos, capazes de enxergar uma norma que se desvia naqueles parcialmente inseridos no contrato social. Esquadrinhando o espaço urbano, comparando de maneira prosopográfica seus habitantes, tanto o discurso médico quanto o jurídico habilitavam-se como capazes de intervir socialmente. Estudando a criminologia brasileira no contexto de formação do estado republicano, Rauter (2003) refere- se a uma aliança jurídico-psiquiátrica, na qual o Judiciário, informado pela literatura médica, pode cumprir o papel delegado pelo Estado de “defender” a sociedade de maneira “apolítica” e “técnico-científica”. Rauter fala em uma “vigilância psiquiátrica”, capaz de medicalizar a ação do Judiciário (p.56). Em trabalhos anteriores já visualizei a importância do discurso católico da primeira metade do século XX e sua proximidade com juristas e médicos no sentido de impor padrões normativos (ISAIA, 2003, 2013, 2016). Em João do Rio, o Catolicismo não deixa de aparecer como padrão religioso, totalmente articulado ao esforço jurídico e médico em normatizar e classificar a sociedade. Neste sentido, João do Rio registra uma cidade reveladora de tipos urbanos, que ratificavam comportamentos em choque com a norma jurídica, médica e religiosa. Em relação à norma religiosa, João do Rio não vai
Compartilhar