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Simone Santos A. Silva; Sebastião Pimentel Franco | 57 Da mesma maneira, sua escrita permitiu também que ele alterasse ou suprimisse elementos pouco agradáveis das experiências vividas como doente de lepra. Segundo Paul Thompson a fidedignidade a determinado tema “depende, em parte, do interesse que o assunto tem para o informante”. O historiador nos fala da nossa disposição para lembrar e afirma que a lembrança pode ser inibida pela relutância, uma fuga consciente a fatos desagradáveis, como “uma repressão inconsciente” (THOMPSON, Paul. 2002, p.153-54). Para explorar a questão da escrita de si, apoiamos nas abordagens de Michel Foucault, que considera a escrita de si “uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo, [...] a narrativa de si é a narrativa da relação consigo mesmo” (FOUCAULT, 2004, p.156). Ao longo do texto “Do outro lado da fronteira” não percebemos da parte do autor uma atitude de alguém que escreve buscando despertar o sentimento de piedade do leitor, limitando-se ao lugar de alguém vitimado pela lepra. O relato de sua trajetória é composto por elementos que configuram uma vida de amor, prazeres, erros e acertos. Antônio M. Martins nos expõe seus caminhos, dentro e fora dos muros da instituição de isolamento destacando suas escolhas, mostrando-se aos leitores e principalmente à sua filha, suas conquistas, mas também suas fragilidades. Consideramos Antônio de Magalhães Martins um doente excepcional, pois ele não era apenas um doente de lepra, como boa parte dos internos, vindo do interior, ligado as atividades agrícolas, e sem contato com as letras. Antônio era uma pessoa culta, nascida numa pequena cidade do interior do Ceará, era um menino que pensava grande, desejoso de crescer, de “alcançar um destaque na vida” conforme suas palavras (MARTINS, 1984, p.23). Talvez por conta desse desejo, tenha capitalizado diferentes leituras e textos, pois como é possível verificar, o autor tinha uma formação intelectual sólida, valorizava a cultura letrada e destacava sua 58 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura dedicação aos estudos. No seu texto há mostras de que, nos anos em que viveu com a família, tinha acesso a livros e afirma que muitas das chances de trabalho surgiram por sua “redação aceitável”. Em várias partes da obra, Antônio cita nomes de escritores e poetas como Dante Alighieri, Menotti Del Picchia, Humberto de Campos, Olavo Bilac e outros. Esse perfil mais intelectualizado de Antônio de Magalhães Martins, com forte ligação com a literatura, é que lhe permitiu esse caráter de excepcionalidade. A intenção do autor de se mostrar capaz, a exposição ao leitor, dos desejos e da busca pela satisfação das suas necessidades, e impulsos é que torna agradável a leitura do texto “Do outro lado da fronteira”. Antônio nos apresenta a ambivalência de um homem comum e de um doente excepcional, através de uma escrita sensível, e com estilo de descritivo espaço- temporal envolvente. Portador de uma enfermidade que inspirava sentimentos de piedade e horror, ele desenvolveu a história de uma doença, a história da sua doença. Nosso narrador, através da escrita de si, utiliza o texto para mostrar-se ao outro, conforme destaca Foucault, “escrever é, portanto, se mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (FOUCAULT, 2004, p.157). Antônio Magalhães Martins buscava revelar-se a filha, e também aos seus leitores. O autor buscava através da escrita mostrar-se a si mesmo, e talvez tentasse dizer a si e a filha, o que estava sendo elaborado durante o processo de produção do texto, numa espécie de bricolagem reunindo diferentes materiais, até então estava fragmentados, ou perdidos nas amarras do seu inconsciente. Talvez a escrita da Antônio fosse uma tentativa de reescrever seu texto aos diversos leitores, que cruzaram com a vida do autor, talvez, entre esses leitores, pudessem estar os amores perdidos na juventude, os amigos das cidades onde trabalhou, os amigos conquistados nos espaços asilares. Enfim, escrever era uma oportunidade para Antônio de se revelar, de se deixar ler e se justificar. A escrita era uma chance de se redimir afetivamente diante de si e diante da filha,
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