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A importância do ensino das Ciências Humanas: S o c i o l o g i a , F i l o s o f i a , H i s t ó r i a e G e o g r a f i a #DitaduraNuncaMais C R I S T I A N O D A S N E V E S B O D A R T R A D A M É S D E M E S Q U I T A R O G É R I O Organizadores A importância do ensino das Ciências Humanas: S o c i o l o g i a , F i l o s o f i a , H i s t ó r i a e G e o g r a f i a 1º edição Maceió/AL Editora Café com Sociologia 2020 Copyright © Editora Café com Sociologia LTDA, 2020. 1ª edição – 2020 Normatização e edição: Cristiano das Neves Bodart Diagramação: Cristiano das Neves Bodart Capa: Cristiano das Neves Bodart Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo-SP) B666i Bodart, Cristiano das Neves (org.); Rogério, Radamés de Mesquita (org.). A importância do ensino das Ciências Humanas: Sociologia, Filosofia, História e Geografia / Organizadores: Cristiano das Neves e Radamés de Mesquita Rogério. - 1. ed. – Maceió, AL: Editora Café com Sociologia. Brasil, 2020. 202 p.; quadros. ISBN 978-65-87600-04-8 1. Ciências Sociais. 2. Ciências Humanas. 3. Filosofia. 4. Geografia. 5. História. 6. Prática Docente. 7. Sociologia. I. Título. II. Assunto. III. Bodart, Cristiano das Neves IV. Rogério, Radamés de Mesquita. CDD 371.3:300.7 CDU 37.013:168.522 ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia; Ciências Sociais – Estudo e ensino. 2. Pedagogia prática; Ciências Humanas. Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846 Referência Bibliográfica BODART, Cristiano das Neves; ROGÉRIO, Radamés de Mesquita (org.). A importância do ensino das Ciências Humanas: Sociologia, Filosofia, História e Geografia. 1. ed. Maceió, AL: Editora Café com Sociologia, 2020. Editora Café com Sociologia CNPJ: 32.792.172/0001-31 Rua Manoel Fernandes da Silva, n. 23, Quadra E, Tabuleiro dos Martins Maceió-Alagoas CEP. 57081011 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro para fins comerciais sem prévia autorização da Editora. CONSELHO EDITORIAL Presidente Cristiano das Neves Bodart Vice-presidente Roniel Sampaio-Silva Chefe Téc. Editorial Cassiane da C. Ramos Marchiori César Alessandro Sagrillo Figueiredo Fernanda Feijó Thiago de Jesus Esteves Thiago Ingrassia Pereira CONSELHO CIENTÍFICO Antonio Alberto Brunetta, doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Cleberson Vieira de Araújo, doutor em Educação pela Universidad Tecnológica Intercontinental (UTIC). Professor da Secretaria de Estado da Educação da Paraíba e da Secretaria Municipal de Educação da Nazarezinho/PB. Cristiano das Neves Bodart, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL); Elicardo Heber de Almeida Batista, doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Fábio Peixoto, doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF SUDESTE MG), Campus Muriae. Francisco de Assis Silva de Carvalho, doutor em Educação, Filosofia e Formação Humana na UNINOVE/SP. Professor do Instituto Federal do Piauí (IFPI). Radamés Rogério, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI); Tatiana Polliana Pinto de Lima, doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) OUTRAS OBRAS DA EDITORA CAFÉ COM SOCIOLOGIA Diálogos sobre o ensino de Sociologia, v. 1, Cristiano das Neves Bodart, 2019. O ensino de Humanidades nas escolas: Sociologia, Filosofia, História e Geografia, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2019. O Ensino de Sociologia no Brasil, v. 1, Cristiano das Neves Bodart e Wenderson Luan dos Santos Lima (Orgs.), 2019. O Ensino de Sociologia no Brasil, v. 2, Cristiano das Neves Bodart e Roniel Sampaio- Silva (Orgs.), 2019. Sociologia e Educação: debates necessários, v.1, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2019. O ensino de Sociologia e os dez anos dos institutos federais (2008-2018), Roberta dos Reis Neuhold e Márcio R. O. Pozzer (Orgs.), 2019. O ensino de Arte e os dez anos dos institutos federais (2008-2018), Estevão da Fontoura Haeser e Márcio R. O. Pozzer (Orgs.), 2019. O ensino de Filosofia e os dez anos dos institutos federais (2008-2018), Sérgio G. S. Portella e Márcio R. O. Pozzer (Orgs.), 2019. O contexto da educação profissional técnica na América Latina e os 10 anos dos institutos federais (2008-2018), Márcio R. O. Pozzer e Roberta dos Reis Neuhold (Orgs.), 2019. O ensino de História nos anos iniciais do ensino fundamental, Andréa Giordanna Araujo da Silva (Org.), 2020. Sociologia e Educação: debates necessários, v.2, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2020. O ensino de Sociologia e de Filosofia escolar, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2020. Dicionário do ensino de Sociologia, Antonio Alberto Brunetta, Cristiano das Neves Bodart e Marcelo Pinheiro Cigales (Orgs.), 2020. John Locke e a formação moral da criança, Christian Lindberg Lopes do Nascimento, 2020. Filosofia e Educação no tempo/espaço que chamamos hoje, Junot Cornélio Matos e José Aparecido de Oliveira Lima (Orgs.), 2020. S U M Á R I O 11 Apresentação Cristiano das Neves Bodart e Radamés de Mesquita Rogério PARTE 1 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE SOCIOLOGIA 19 CAPÍTULO 1 A importância da Sociologia escolar: esclarecimentos necessários em tempo de obscurantismo Cristiano das Neves Bodart e Fernanda Feijó 49 CAPÍTULO 2 A Sociologia no ensino superior: uma análise sobre seu olhar, “utilidade” e importância Radamés de Mesquita Rogério PARTE 2 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE FILOSOFIA 73 CAPÍTULO 3 A importância do ensino de Filosofia e o novo ensino médio Christian Lindberg L. do Nascimento Danilo Rodrigues Pimenta 91 CAPÍTULO 4 A importância da Filosofia e seu ensino na educação superior Junot Cornélio Matos PARTE 3 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA 115 CAPÍTULO 5 A importância da disciplina de História no ensino médio: a formação do indivíduo no tempo histórico da vida contemporânea Paulo Eduardo Dias de Mello 139 CAPÍTULO 6 A importância da História no ensino superior Andréa Giordanna Araujo da Silva PARTE 4 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE GEOGRAFIA 161 CAPÍTULO 7 A importância da Geografia na educação básica Mariana Guedes Raggi Maria Francineila Pinheiro dos Santos 177 CAPÍTULO 8 Aprender Geografia: uma discussão sobre o papel do ensino de Geografia na perspectiva da educação superior Vinício Luís Pierozan Vanessa Manfio 199 Sobre os autores 201 Índice remissivo A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 49 C A P Í T U L O 2 A SOCIOLOGIA NO ENSINO SUPERIOR: uma análise sobre seu olhar, “utilidade” e importância Radamés de Mesquita Rogério Introdução Não há garantia de que, tendo adquirido entendimento so- ciológico, alguém possa dissolver e destituir o poder das ‘árduas realidades’ da vida. O poderda compreensão não é páreo para as pressões da coerção, aliadas ao senso comum resignado e submisso sob condições econômicas e políticas dominantes (BAUMAN; MAY, 2010, p. 27-28). Há sistemas coerentes de hipóteses, conceitos, métodos de verificação, tudo o que comumente se associa à ideia de ci- ência. Por conseguinte, por que não dizermos que ela é uma ciência se é de fato uma? Tanto mais que a parada em jogo é muito importante: uma das maneiras de pôr de lado ver- dades incômodas é dizer que não são científicas, o que equi- vale a dizer que são ‘políticas’, quer dizer suscitadas pelo interesse, pela ‘paixão’, portanto relativas e relativizáveis (BOURDIEU, 2003, p. 25). urgida da audaciosa proposta de decodificar aquilo que foi identificado como um caos nos alicerces que compunham a sociedade nascente das revoluções do século XVIII na Europa, a Sociologia foi ainda incumbida de, no passo seguinte a tal “diagnós- tico”, propor soluções dentro de uma lógica que relacionava o co- nhecimento das “leis sociais” com a capacidade de prever os fenô- menos, antevendo “o mal” e agindo para debelá-lo (COMTE, 1983). De forma resumida, a Sociologia se deparou, à época, com questões como: S A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 50 [...] sociedade civil e estado nacional, multidão, massa e povo, classe social e revolução, ordem e progresso, normal e patoló- gico, racional e irracional, anomia e alienação, sagrado e pro- fano, ideologia e utopia, comunidade e sociedade, passado e presente, tradição e modernidade (IANNI, 1989, p. 3). Mas por que o panteão das ciências haveria de carecer de um membro surgido tão tardiamente para explicar tais transformações? O que essa ciência tinha a oferecer de diferente para justificar sua pertença ao rol dos saberes necessários? Essa pergunta foi obvia- mente feita à época de seu nascimento, mas conforme a segunda citação da epígrafe o demonstra, ela ainda se faz presente. Ali, em entrevista concedida no ano de 1980, o sociólogo francês, Pierre Bourdieu, respondia a um questionamento sobre o porquê de a So- ciologia precisar se afirmar como ciência. Hoje, em 2020, esse debate ainda não cessou e está vívido tam- bém no tocante às suas derivações que se estendem a partir desse aspecto da legitimidade da ciência Sociologia, a saber: por que é im- portante e útil a disciplina Sociologia no ensino básico e no ensino superior? O que justifica sua permanência no currículo? Por que deve haver a oferta do curso de Ciências Sociais no ensino superior? Com o objetivo de contribuir com o aprofundamento e a res- sonância das teses que defendem a permanência e a própria extensão do ensino de Sociologia, iremos aqui analisar o olhar, a “utilidade” e a legitimidade da Sociologia, os três aspectos, em diálogo com a realidade do ensino superior. O sistema de ensino, de forma geral (acentuadamente o superior), ocupa um lugar central e estratégico nas sociedades hodiernas porque possui uma complexa relação com as distintas esferas do fenômeno social (econômica, política e cultu- ral) nas mais diversas formações societárias (MARTINS, 2012). Nossa argumentação dar-se-á em torno da defesa da legitimi- dade da Sociologia enquanto ciência e como parte importante do A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 51 processo formativo da diversidade de profissionais realizado nas Instituições de Ensino Superior (IES). Para tanto, partirá de uma reflexão sobre o olhar sociológico, passando a uma análise sobre sua “utilidade”. “Utilidade” sempre estará entre aspas porque conside- ramos tratar-se de um conceito eivado de contradições e por demais problemático, mas o utilizaremos por se tratar de um elemento ex- tremamente presente no imaginário social. Conforme apontam Bauman e May na epígrafe, apropriar-se do que eles chamam de “entendimento sociológico” não garante nada em termos de transformação do sujeito ou da sociedade. Du- bet (2015, p. 20) também ressalva que “[...] não está confirmado que a sociologia melhore as sociedades”5. Rememorando seus tempos de estudante, Adorno (2008, p. 63) diz que percebeu, com “grande surpresa”, que “[...] se ocupar das questões sociais não implica auto- maticamente as questões relativas a uma sociedade melhor ou mais adequada [...]”. Se não garante transformação nem dos indivíduos nem da so- ciedade, se não há confirmação, portanto, de que melhore as socie- dades e, se ao estudar as questões sociais, isso não quer dizer que se estude necessariamente aquilo que diz respeito a uma sociedade me- lhor, reforçamos as indagações que já foram apresentadas: para que serve essa ciência que se ocupa “do social”? Qual o seu papel? Ressaltemos que toda a argumentação em torno da importância da Sociologia enquanto disciplina ou enquanto ciência passa, neces- sariamente, pela existência do curso de bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais/Sociologia, pois é no espaço do curso que serão adequadamente formados os pesquisadores e docentes, sem os quais o conhecimento sociológico não seria possível de existir. Assim como em nenhuma outra ciência, o conhecimento e a qualificação 5 No original: “no está confirmado que la sociología mejore las sociedades”. A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 52 docente em Sociologia não podem ser gerados espontaneamente, prescindindo de uma formação específica, o que por si só já justifi- caria a existência do curso. Há, entretanto, outras razões a reforçar nosso argumento e isso será desenvolvido ao longo do texto. Na primeira parte do artigo, iremos explorar a questão do olhar que a Sociologia lança sobre o fenômeno social, buscando demons- trar como ele se dá, quais são suas características e por que esse olhar é necessário. No momento posterior, passaremos a uma análise crí- tica do aspecto da “utilidade” da Sociologia. Na culminância do texto, em sua conclusão, iremos refletir sobre como a Sociologia se legitima como ciência, curso e disciplina no ensino superior, tendo apontado como seu olhar é relevante e como suas formulações são “úteis”. 1 O olhar: a imaginação e a perspectiva sociológicas repetido (por que não desgastado e pouco produtivo) o argumento de que a Sociologia é importante porque cum- pre o papel de “desnaturalizar” as relações e estruturas sociais. O argumento é válido, mas tem pouco a contribuir na construção de uma “defesa” do conhecimento sociológico (curso de Ciências So- ciais e disciplina do ensino básico e superior), isso porque outros saberes também possuem essa característica e são também exitosos nessa tarefa, como a História, a Filosofia, a Geografia e os Estudos Literários. Para Bauman e May (2010), o que diferencia a Sociologia dos conhecimentos citados é que ao estudar o mundo produzido pelo ser humano, as ações humanas, a sociedade e seus membros, ela o faz concebendo-os como elementos de figurações mais amplas, de uma “[...] montagem não aleatória de atores reunidos em rede de dependência mútua” (BAUMAN; MAY, 2010, p. 16). É A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 53 Parte importante da Sociologia tem por pressuposto que a lei- tura sobre o processo social deve considerar o quanto os indivíduos influenciam e sofrem influência uns dos outros, bem como o quanto a sociedade resulta da ação dos indivíduos em conjunto e como suas ações sofrem a determinação desta. Desde seu nascimento no século XIX, passando pelos meados do século XX, chegando aos tempos hodiernos, temos um diagnóstico comum, embora com diferentes matizes: os sentidos e as forças que movem o mundo social não se apresentam diretamente aos indivíduos. Marx (1998), juntamente com Engels, teorizou sobre a relação entre essência e aparência, demonstrando como a classedominante se apropriava do poder de comando sobre o mundo das ideias para impor sua visão de mundo, objetivando a manutenção da relação de domínio. Berger (1972) afirmou que, embora a evidência sociológica básica de que a realidade não é o que parece ser seja aparentemente simples, o atributo de simplicidade se dissolve quando constatamos que a realidade social é possuidora de muitos níveis de significado e a descoberta de cada nova camada modifica a percepção do todo. Mills (1975), já nos anos de 1950, quando ainda não tínhamos o fenômeno da internet, diagnosticava que o homem moderno, bom- bardeado por uma avalanche de informações que lhe domina a aten- ção, esmagando sua capacidade de assimilá-la, adquiria frequente- mente uma “[...] consciência falsa de suas posições sociais” (MILLS, 1975, p. 11). Assim, por não disporem da “[...] qualidade intelectual básica para sentir o jogo que se processa entre os homens e a socie- dade, a biografia e a história, o eu e o mundo” (MILLS, 1975, p. 11), os homens “[...] raramente têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial” (MILLS, 1975, p. 10). Bau- man e May (2010) complementam a formulação de Mills quanto a essa questão, na medida em que afirmam que, para a maioria de nós, o alcance de nosso campo de análise da realidade social está restrito A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 54 aos “[...] nossos próprios mundos da vida” (BAUMAN; MAY, 2010, p. 22) (o que fazemos, as pessoas com quem convivemos, nossos pro- pósitos, empreendimentos e valores), de forma que “[...] poucas vezes consideramos ser necessário ultrapassar o campo de nossas preocu- pações cotidianas para ampliar os horizontes de nossas experiências” (BAUMAN; MAY, 2010, p. 22). Concordando com Mills, Bauman e May, Lahire (2014) reforça que os atores das sociedades diferenciadas possuem apenas uma “vi- são extremamente limitada” de um mundo social que é complexo, apontando que a divisão social do trabalho é um fator determinante para tal limitação na medida em que obriga os indivíduos a um in- vestimento de tempo e energia em atividades que são circunscritas e localizadas. Ao apresentar as bases da sociologia de Theodor Adorno, Cohn (2008) destaca que é fundamental em seu pensamento a noção de que a natureza do social não está dada, na medida que esta é ocultada por diversas razões como, por exemplo, interesses de classe, de forma que ela nunca é evidente. Assim, é preciso ficar atento ao “miúdo”, o aparentemente secundário, no processo de conformação da sociedade, pois “[...] é em suas pequenas formas de manifestação, nos fenômenos que habitualmente escapam à atenção que, de certo modo, a sociedade trai a sua índole mais íntima” (ADORNO; COHN, 2008, p. 25-26). Perceber, avaliar e compreender o “não visto”, os elementos que engendram um sistema complexo, prescinde, por vezes, não só de “treinamento” para o alcance desse olhar mais aprofundado, mas também da racionalidade científica, assim: O que faz com que o conhecimento sociológico não seja um conhecimento do mundo social ‘como outros’ (religioso, polí- tico, ideológico, etc.) e que ele possa pretender certa robustez A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 55 diante dos fatos sociais observáveis, é que ele é uma constru- ção racional apoiada nos dados produzidos segundo métodos (explícitos) específicos (LAHIRE, 2014, p. 51). Ao problematizar o fenômeno social através de dados, racional e metodologicamente trabalhados, o olhar sociológico torna-se ca- paz de romper com a contumaz dificuldade de ir das mais remotas e impessoais transformações para as características mais íntimas do ser humano e ver as relações entre as duas. Mills (1975) chamou esse movimento de “imaginação sociológica”. Vejamos um exercício proposto por Giddens (2005) em um diálogo direto com Mills: o que está por trás do fato de que, ao abrir a torneira de nossas casas, a água sai, bem como o que está por trás do simples fato de tomar uma xícara de café? O simples e tão co- mum (não nas muitas “periferias” do mundo) jorrar de água instan- tâneo em cada torneira traz por trás de si um complexo sistema ope- racional constituído por “organizações modernas” que se caracteri- zam por serem formadas por um grande agrupamento de pessoas, estruturado em linhas impessoais, estabelecido a fim de atingir ob- jetivos específicos. Sobre o corriqueiro ato de tomar café, podemos analisar e avaliar seu “valor simbólico”, pois para muitos ocidentais trata-se de um ritual que está para além do simples consumo da be- bida, ocupando o centro de uma rotina pessoal e/ou social de inici- ação do dia. O autor destaca também que quando duas pessoas com- binam de “tomar um café”, elas estão provavelmente menos preo- cupadas com o consumo da bebida em si e mais interessadas na companhia do outro. Berger (1972) dirá que muitas vezes o sociólogo terá de despre- zar as respostas que os próprios atores sociais dariam às suas per- guntas pela necessidade de procurar as explicações de que “[...] eles próprios não se dão conta” (BERGER, 1972, p. 50). Outro aspecto fundamental do pensamento sociológico, segundo o autor, que nos ajuda a compreender o alcance deste, é que o sociólogo se ocupará A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 56 de assuntos que outras pessoas podem considerar “demasiado sa- grados ou demasiado repulsivos” para uma “investigação desapai- xonada”. Assim, não importará ao sociólogo se estará na companhia de “sacerdotes ou de prostitutas”, pois a “satisfação” será dada pelas perguntas que estiver fazendo no momento. Não lidará somente com as “grandes questões”, pesquisando sobre aquilo que também pode parecer “demasiado enfadonho”. Mas qual o legado da Sociologia? Até que ponto esse olhar so- ciológico é “útil”? Concordamos com Martins (2019, n.p.) quando este afirma que “O legado da sociologia, em todas as partes, aqui também, é muito mais o das perguntas ainda não respondidas, as indagações teoricamente reveladoras, as dúvidas pendentes cujas respostas carecem de teoria e de inovação teórica”. Posto isso, en- tramos no campo da utilidade, campo minado e que prescinde de esclarecimento. É disso que passaremos a tratar agora. 2 A Sociologia e a utilidade do “inútil” empre que tratamos da importância de algo, via de regra, trazemos ao campo das ponderações a medida da utilidade daquilo que tem sua importância questionada. Esse procedimento se configura como um desafio, em especial, à Sociologia. Seria por que ela produz ou se configura como algo pouco “útil”? Sim e não. Antes de debater essa ambígua resposta sobre a utilidade de qual- quer coisa, é preciso questionar primeiramente sobre o que estamos falando quando tratamos de utilidade. Em A utilidade do inútil: um manifesto (2016), o filósofo italiano Nuccio Ordine nos oferece uma reflexão e crítica sobre o que esta- mos pondo em questão: o autor afirma que a lógica do lucro esta- belece que o conhecimento e os saberes considerados úteis nas so- ciedades contemporâneas são aqueles capazes de produzir benefí- cios comerciais e ganhos financeiros imediatos. A lógica financeira S A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 57 ligada à produção de mercadorias e produtos capazes de serem con- vertidos em dinheiro faz com que a quantitas se sobreponha à quali- tas, estabelecendo o domínio do homo aeconomicus. Digamos que a Sociologia não seja capaz de participar de al- guma forma desse circuito financeiro da produção de mercadorias. Ela seria, portanto, uma ciência, disciplina, saber “inútil”. Concor- dando com o autor, consideramos útil, entretanto, “[...] tudo o que nos ajuda a nos tornarmos melhores” (ORDINE, 2016, n.p.). Para Ordine (n.p.), vivemos um “contexto brutal” no qual [...] a utilidadedos saberes inúteis contrapõe-se radical- mente à utilidade dominante que, em nome de um interesse exclusivamente econômico, está progressivamente ma- tando a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a educação, a livre pesquisa, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda atividade humana. Vejamos o quanto a análise do autor possui reverberação no Brasil em um momento bastante recente. Em abril de 2019, o pre- sidente Jair Bolsonaro fez a seguinte declaração em seu perfil oficial na rede social Twitter: O Ministro da Educação @abrahamWeinT estuda descen- tralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina (2019). Em uma segunda publicação, ele disse que a ideia por trás do estudo é respeitar o dinheiro do contribuinte: “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta” (Idem). A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 58 Vemos, claramente, o quanto o discurso governamental baseia- se numa leitura que atribui importância ao conhecimento quando esse é capaz de “gerar retorno imediato”, “gerar renda” para o indi- víduo e sua família, assim “melhorando a sociedade em sua volta”. Uma lógica utilitarista, logo que deve ser questionada, nos termos estabelecidos por Ordine. O presidente e o autor parecem concordar, entretanto, num ponto: o conhecimento útil é aquele que “melhora a sociedade”. Mas aqui temos palavras que se tornam vazias se não analisarmos e estabelecermos o conceito e o contexto. O presidente atrela melhora da sociedade a aumento de renda; nosso autor, por sua vez, pensa na ampliação de nossa capacidade de experienciar o mundo, de nos aprofundarmos numa “vida orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas” (ORDINE, 2016, n. p.). Antes de demonstrarmos como posicionamos a Sociologia aqui, temos que perscrutar como a universidade se encaixa nesse debate sobre o útil, não só porque o objeto primordial de nossa aná- lise é a importância da Sociologia no ensino superior, mas também porque o contraponto que trouxemos (o discurso do presidente e do ministro da Educação) diz respeito a esse nível de ensino. Citando Henkel e Little, Durham (2019) afirma que a educação superior implica a utilização da lógica, o uso da evidência, normas de rigor intelectual e criatividade, e a procura desinteressada pela verdade. Assim: Embora o ‘desinteresse’ seja sempre relativo, este tipo de co- nhecimento envolve a constante auto crítica [sic] das pressupo- sições, preconceitos e dogmas, quando a investigação e a refle- xão os contradizem. Disto resulta a função crítica das univer- sidades. É para isto que é necessária a liberdade acadêmica, um espaço razoavelmente livre de censura religiosa, política e de interesses econômicos. E digo ‘razoável’ porque esta liberdade nunca é total, embora seja indispensável que exista em alguma medida (DURHAM, 2019, p. 13). A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 59 Defendemos que a universidade não é um ente isolado com total autonomia para realizar somente aquilo que lhe condiz. Não concordamos com essa ideia porque, primeiro, ela não se sustentaria na medida em que desconsidera o quanto o meio acadêmico sofre forte pressão social, econômica, política e cultural6. Segundo, por- que ela daria à universidade uma condição privilegiada que poucas ou praticamente nenhuma instituição social possui, a saber, a de existir somente para si mesma. Feitas tais ressalvas, corroboramos, entretanto, com a ideia de que o estudo “desinteressado” é tão importante quanto aqueles que visam ao desenvolvimento econômico, ao aumento da renda, ao re- sultado imediato convertido em produção lucrativa, conforme colo- cado pelo presidente. Sem liberdade acadêmica, ou seja, a autonomia mínima sobre a escolha de seus interesses de pesquisa, a universi- dade não será capaz de cumprir uma de suas principais razões de existência: alargar os saberes sobre o mundo, construir a crítica do estabelecido, propiciar a condição de se pensar aquilo que ainda não temos ou alcançamos. O ensino superior deve contribuir tanto com o alargamento do saber existente, ampliando a compreensão sobre o mundo, quanto com a formação de profissionais cujo exercício profissional passa 6 Carlos B. Martins (2012, p. 108) afirma que “[...] a universidade ocupou uma centrali- dade no contexto das instituições culturais da modernidade. Em função de suas ativida- des de ensino, de seus produtos culturais e científicos, a universidade, nos períodos ini- ciais da modernidade, estruturou-se como uma instituição sui generis, mantendo uma po- sição relativamente isolada diante da vida econômica e política, voltada fundamental- mente para seus afazeres específicos, buscando assumir uma posição de independência institucional diante das demandas externas”. A partir da década de 1960, entretanto, “[...] o relativo isolamento da universidade diante das demandas da vida econômica, social e política começou a ser abalado, uma vez que passou a confrontar-se com uma variada gama de pressões sociais, econômicas e políticas, advindas de distintos atores sociais [...]” (MARTINS, 2012, p. 116). A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 60 pela obrigatoriedade de saberes científicos e técnicos que encontram abrigo essencial na universidade (DURHAM, 2019). Voltando à Sociologia, a questão é que ela pode ser considerada útil na perspectiva tanto de nosso presidente, quanto de nosso filó- sofo. Sob o ponto de vista de Ordine, nossa exposição já deixou claro o porquê e o como, pois a Sociologia faz parte do conjunto evocado pelo autor de conhecimentos, saberes e expressões do humano que cumprem, desinteressadamente, o papel de elevar o espírito, de aper- feiçoar a condição humana, reforçar e defender nossa dignidade, ou ainda, como assinalou Dubet (2015, p. 10, tradução nossa): “[...] cum- pre um papel, serve para algo, incluso se critica o utilitarismo”7. Mas ela também tem grande contribuição a dar não só ao sistema produ- tivo, mas à sociedade como um todo nas diversas esferas que a com- põem, como a política, a econômica e a cultural. Um exemplo dessa inserção no sistema produtivo bastante concernente aos anos 2000 é a demanda por sociólogos e filósofos por parte da empresa Facebook. “O que é que as ciências sociais e a filosofia têm que ver com a era digital e, em particular, o Facebook?”. Essa pergunta abre a reportagem publicada em outubro de 2019 no site “dn_insider”, de Portugal, revelando que diretores do Facebook e a divisão de Inteligência Artificial (IA) estão buscando a contratação de profissionais dessas duas áreas “[...] para ajudar a fazer uma ino- vação responsável para dar perspetiva e responsabilidade à inteligên- cia artificial” (2019, n.p.)8. Apontada como “preocupação séria da divisão de investigação da empresa”, as questões ligadas à responsabilidade e aos valores éti- cos das máquinas, da IA e dos algoritmos demandam um trabalho e conhecimentos que “não serão resolvidos somente por engenheiros”: 7 No original: “cumple un papel, sirve para algo, incluso si critica el utilitarismo”. 8 Facebook contrata filósofos para ajudar a inteligência artificial (e não só). O que é que isso significa? (2019, n. p.). A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 61 ‘Esta era digital não vai ser sóresolvida com tecnologia, precisamos de ver o problema de forma mais ampla e com pessoas que percebam de lei, mas também de filósofos para darem uma perspetiva mais global aos novos caminhos que estamos a trilhar’. Dessa forma, é com ‘entusiasmo’ mas também com preocupação que o francês aborda os valores que as máquinas e os algoritmos devem ter em redor da ética e da justiça (2019, n.p.). É por sua amplitude de questões e pelo longo alcance de suas teorias, conceitos e pesquisas que a Sociologia é demandada num setor do mundo produtivo, que tem como uma de suas principais características a complexidade, a dinamicidade da mudança, o desa- fio proposto por problemáticas que ainda não foram decodificadas, dentre outros. Numa pesquisa antropológica que tinha como objetivo revelar a apreciação do paciente-cidadão sobre a conduta profissional médica, realizada no Hospital Geral de Fortaleza, Nations e Gomes (2007, p. 2103) constataram que “[...] a mudança na conduta profissional está pautada na inclusão da subjetividade e das raízes socioculturais do pa- ciente”, contrariando essa lógica da necessidade de se focar na capa- citação mais técnica de diversos profissionais. Ao tratar do atendi- mento na área de Saúde, as autoras asseveram que a formação acadê- mica, todavia, “[...] não prepara o profissional para escutar os signifi- cados e sentidos do paciente, comprometendo a qualidade do cui- dado” (NATIONS; GOMES, 2007, p. 2103), posto isso, [...] é preciso uma ‘tecnologia da interação humana’ que per- mita a visão política da cidadania, o pensamento problema- tizador e a ética do cuidado. Maior equidade de poder na relação clínica exige integrar diferentes conhecimentos, res- peitar a singularidade do paciente e promover o protago- nismo, tornando o trabalho vivo e criativo (NATIONS; GOMES, 2007, p. 2103). Não teremos nenhuma dificuldade de perceber a relação entre o olhar da Sociologia, já apresentado, e as demandas apontadas pelas A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 62 pesquisadoras como essenciais para a qualificação do atendimento médico, ou seja, contribuições que a Sociologia tem a dar a um dos serviços públicos e política pública mais centrais em qualquer meio social. Como dizem as autoras, há a exigência de integração de dife- rentes conhecimentos e viemos demonstrando por que a Sociologia deve estar presente nessa integração. A Sociologia também está presente nos itinerários formativos de diversos profissionais no ensino superior, mesmo que nem sempre conste como disciplina ofertada na grade desses cursos. As primícias de uma pesquisa que viemos realizando na análise da presença da So- ciologia em Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) dos cursos oferta- dos no campus de Parnaíba da Universidade Estadual do Piauí (UE- SPI), tem apontando que mesmo em áreas técnicas, consideradas mais distantes das Ciências Sociais, há uma forte demanda pelos sa- beres e olhares sociológicos, particularmente no tocante à constitui- ção do perfil do egresso que o curso objetiva formar. Um exemplo é o curso de Ciências da Computação da UESPI. Seu PPC aponta que se busca uma formação que “[...] abrange também o estudo dos as- pectos profissionais, éticos, culturais e sociais da computação e de outras áreas do conhecimento” (UESPI, 2019, p. 30). O documento ressalta ainda a importância da formação de um profissional capaz de atuar num cenário competitivo, compromissado com “princípios po- líticos, filosóficos, científicos e éticos” (UESPI, 2019, p. 40), sendo, para tanto, capaz de estabelecer relações entre “[...] ciência, tecnologia e sociedade” (UESPI, 2019, p. 40). Mais uma vez é preciso advertir que a Sociologia não é o único campo do saber capaz de potencializar significativamente o alcance desse perfil, mas pelas razões já elencadas, vemos o quanto ela é importante nesse cenário. Entretanto, a grade curricular do curso analisado não traz a oferta da disciplina ou de uma similar. Diante desse caso, que não é incomum, é preciso se perguntar por que a A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 63 Sociologia não se faz presente nas grades curriculares de cursos que visam formar profissionais e indivíduos com competência não só técnica e científica, mas também humana? Ou, conforme o PPC do curso que analisamos, “[...] preparados para atuar na sociedade con- temporânea, comprometidos com princípios éticos e de respeito à diversidade, capazes de buscar soluções para os problemas da reali- dade em que vivem” (UESPI, 2019, p. 41). A literatura sociológica e os movimentos pela obrigatoriedade da disciplina já apontaram alguns argumentos. O mais comum, se- gundo Moraes (2011), é aquele que busca explicar a ausência da So- ciologia como uma reação à sua capacidade “perigosamente crítica” para os grupos dominantes e/ou com projetos autoritaristas. Acreditamos que é preciso esmerar nossos argumentos, pois se não compreendermos a complexidade do problema não poderemos agir em conformidade para, assim, obtermos o desejado contexto em que a Sociologia seja valorizada e esteja presente nas grades cur- riculares no ensino básico e superior, bem como os cursos de ba- charelado e licenciatura em Ciências Sociais não precisem constan- temente “provar a razão de sua existência”. Assim, a problematização realizada por Moraes (2003; 2011) sobre esse argumento da reação autoritária a um “pensamento peri- gosamente crítico”, que pode ser apontado como “dominante”, é importante porque aponta que há não só uma série de fragilidades neste, mas também que ele acaba por contribuir para um resultado contrário daquele que se busca obter ao acioná-lo, ou seja, fortalecer a Sociologia. Considerando esse argumento, uma “explicação de duvidoso poder heurístico, se bem que com efeitos políticos indiscutíveis” (MORAES, 2011, P.371), o autor irá demonstrar que as rela- ções/implicações entre governos autoritários e a exclusão da disci- plina do ensino básico e o seu contrário (governo democrático e A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 64 inclusão da disciplina) não se sustentam ao escrutínio do estudo das reformas educacionais, posto que ela foi mantida em períodos con- siderados de ausência do pleno estado democrático e esquecida em momentos democráticos. [...] não se levou nunca em consideração o contexto da Re- forma Benjamim Constant (1890), nem da Reforma Rocha Vaz (1925), nem das Reformas Francisco Campos (1931 e 1932), nem a permanência da Sociologia entre 1937 e 1942, período francamente ditatorial, com tendências fascistas. [...] Não se leva em consideração também por que não ocorre o retorno da disciplina no período de 1946 a 1964 (para ficar nos limites da República Nova), embora definido como Re- pública Populista, mas reconhecido como democrático, com Constituição vigendo e funcionamento irrestrito dos poderes Legislativo e Judiciário (MORAES, 2011, p. 366-367). Mais do que frágil, esse argumento tem um potencial prejudi- cial, pois segundo o autor: Uma concepção menos engajada e mais formativa [...] é posta de lado a partir de uma pseudocrítica a certa perspectiva de neutralidade e objetividade que essa concepção encerraria. Re- forçam-se assim elementos que dão azo à crítica conservadora ao dizer que o ensino de Sociologia visa, antes de tudo, a ma- nipulação dos alunos, na verdade não existindo propriamente ensino, senão doutrinação (MORAES, 2011, p. 366-367). Posto isso, sugerimos a problematização da questão para além daquilo que Moraes chama de “ideologização da disciplina”, sem, entretanto, descartar esse aspecto que deve ser considerado, mas deixando de ser monopolizador do debate. É preciso se considerar aspectos outros como: a) o restrito alcance das pesquisas em Soci- ologia “dentro de um circuito fechado” (MARTINS, 2019, n.p.); b) a ausência de uma articulaçãoeficaz em torno da inclusão da disciplina (MORAES, 2003; 2011); c) a predominância de um prag- matismo econômico e o sentido do útil dentre os estudantes (AN- DRADE, 2018; ORDINE, 2016); d) a desvalorização dos diplo- mas universitários e a perda da capacidade de proporcionar aos A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 65 seus portadores ascensão social (BOURDIEU, 1998); e) a visão de que o saber sociológico é fruto de um discurso utópico de intelec- tuais, discurso erudito, um privilégio de classe, portanto, comple- tamente distante da realidade social (THOMÉ, 2018); f) a crescente onda de anticientificismo (TASCHNER, 2018). A presença ou ausência da Sociologia no ensino superior não corresponde, portanto, a um simples confronto entre o “perigo da revelação da verdade” que a disciplina apresenta e a ações autoritá- rias que visam calar tais vozes ameaçadoras. Conclusão, provocação e convocação o campo do conhecimento da Sociologia e da Educação, é bastante comum o debate sobre quais saberes e disci- plinas são importantes e devem ter, portanto, presença garantida no currículo. Comum, também, é o pressuposto de que o cabedal de disciplinas de um currículo pertence ao campo do “útil”, ou seja, a presença destas em detrimento de outras está baseada no fato de que gerarão o impacto necessário para a formação do indivíduo que a sociedade demanda; assim, o currículo carrega o que é “social- mente relevante” (DURKHEIM, 1975). A ideia de que existe uma espécie de “seleção natural” dos sa- beres na composição do curricular escolar, das matrizes curriculares dos cursos do ensino superior e do leque de oferta desses cursos nas IES públicas e privadas não se sustenta. Bourdieu (1996)9 aponta que a composição do currículo se dá a partir de um minucioso pro- cesso de seleção e hierarquização dos conhecimentos. Não há coin- cidência, acaso ou “seleção natural”; há um direcionamento que busca ratificar o domínio do grupo hegemônico ao favorecer a si 9 Ver também Bourdieu e Passeron (2012). N A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 66 mesmo com a seleção de disciplinas e saberes que ratificam as prá- ticas, valores e sentidos societários desse grupo. Logo, o currículo é um campo de conflitos ininterruptos. O que buscamos demonstrar no capítulo deste livro foi que a Sociologia é um modo de pensar relacional que atende a demandas importantes postas pelas mais diversas questões sociais, mesmo aquelas que até então possuíam ocupação exclusiva (como no exem- plo dos engenheiros ou cientistas da computação). A presença ou ausência da Sociologia no currículo do ensino básico, nas matrizes de cursos do ensino superior e a permanência do curso de Ciências Sociais dá-se num campo de conflitos ideoló- gicos, mas não só, visto que há razões intrínsecas e extrínsecas. Há muitos argumentos que podemos acrescer àqueles aqui ex- postos para demonstrar a importância da Sociologia no ensino su- perior, tanto no processo formativo de um sem número de profis- sionais como na oferta do curso de Ciências Sociais. Os saberes so- ciológicos não podem estar disseminados em meio a outros, pois a interdisciplinaridade deve incentivar o diálogo entre os saberes e não a dissolução destes. As diferentes áreas do conhecimento carregam especificidades que precisam ser respeitadas para que não se perca a riqueza e o alcance de cada uma delas, sob pena do empobrecimento formativo e perda da capacidade de análise e aprofundamento da reflexão e olhar sobre os fenômenos sociais e humanos, demandada à Sociologia. Convocamos e desafiamos os demais pesquisadores da área a promover esse debate através, por exemplo, de mais pesquisas que tragam à tona as “verdades incômodas”. A miríade de problemáticas cada vez mais frequente, volumosa e intensa que se apresenta aos indivíduos, os inúmeros e pululantes desafios impostos às socieda- des e aos governos não vão se problematizar sozinhos. Dubet (2015, A I M P O R T Â N C I A D O E N S I N O D A S C I Ê N C I A S H U M A N A S 67 p. 20, tradução nossa) sintetiza bem o argumento que expomos até agora ao afirmar: Me parece, pois, que na atualidade a sociologia é útil, e o é de múltiplas maneiras. É útil quando é crítica, quando mos- tra que a sociedade não é o que crer ser. É útil quando acon- selha. É útil quando cria conhecimentos ‘puros’ e perícia prática. Em especial, é útil quando toda esta atividade par- ticipa em um debate mais ou menos aberto e público. Como modo de pensamento relacional, a Sociologia tem uma contribuição que precisamos fazer saber. Trata-se de um trabalho que prescinde de uma leitura profunda e crítica dos fundamentos da disciplina em consonância com um trabalho coletivo de proposição desse debate. Referências ADORNO, Theodor. Introdução à Sociologia. São Paulo: Editora UNESP, 2008. ANDRADE, Rafael A. O. de. Apresentando Sociologia para não sociólogos. Perspectivas de ensino da disciplina em graduações no ensino superior. Cadernos da Associação Brasi- leira de Ensino de Ciências Sociais. v. 2, n. 1, p. 115-123, 2018. BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a Sociologia. Rio de Ja- neiro: Jorge Zahar, 2010. 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