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85 RECEPÇÃO E LEITURA NO HORIZONTE DA LITERATURA Regina Zilberman A recepção, de Aristóteles aos modernos Matéria que foi objeto de consideração da Teoria da Literatura nas últimas décadas do século XX, a recepção pode reivindicar pro- cedência ilustre e milenar, já que, observada sob o enfoque da longue durée, como a concebe Fernand Braudel,* remonta a Aristóteles e à Poética. Nessa obra, em que defi ne a poesia enquanto mímesis, Aris- tóteles reconhece que a representação de ações humanas provoca um efeito sobre o público. Esse efeito, a catarse, tem características pró- prias, facultando ao ser humano experimentar emoções intensas, ao mesmo tempo expurgando-as e purifi cando-se. A catarse é introdu- zida por Aristóteles no contexto de sua defi nição de tragédia: É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pe- na e temor, opera a catarse própria dessas emoções.* Na tragédia, a mímesis é direta, porque as personagens apa- recem por meio das ações – práxis – dos atores; e essas ações inspi- ram “pena e temor” ou, segundo outra tradução, piedade e terror.* Esses sentimentos não são sofridos pelas fi guras que se encontram no palco, mas pelos espectadores que ocupam o anfi teatro. Catarse signifi ca, pois, a reação de cada indivíduo que participa da audiên- cia da tragédia, sendo que, para Aristóteles, apenas aquele gênero produz, de modo cabal, tal resultado em seus destinatários. Aristóteles expõe sua tese em um tempo em que a transmissão da poesia fazia-se por meio da voz, e não da escrita, sendo vivencia- da de modo direto. A tragédia duplica esse processo, já que pertence à sua natureza delegar à fala a construção da fábula, sem mediações, como é a do narrador, no caso da epopéia. Por essa razão, a catarse se apresenta de modo pleno, enquanto que nos outros gêneros pratica- dos pelos gregos, a poesia épica, no âmbito da narrativa, ou a comé- dia, no âmbito do drama, o processo dá-se de modo parcial. De uma maneira ou de outra, Aristóteles ratifi ca a importân- cia da recepção para a atribuição do valor de uma obra, já que a * (BRAUDEL, Fernand. Civi- lização material, economia e capitalismo. Trad. de Tel- ma Costa. São Paulo: Mar- tins Fontes, 1995. 3v.) * (ARISTÓTELES. Poética. Em: ARISTÓTELES, HORÁ- CIO, LONGINO. A poéti- ca clássica. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix; EDUSP, 1981: 24.) * (ARISTÓTELES, Poética. Trad. de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966: 74.) ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 p. 85-97 86 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 quantidade (maior na tragédia, menor na comédia e na epopéia) e a qualidade (maior em tragédias bem conduzidas, como Édipo rei, de Sófocles, menor em dramas de fi nal arranjado, como a Medéia, de Eurípedes) de catarse é critério para avaliação dos produtos ex- postos ao público. Conceito formulado no século IV a.C., a catar- se, por sua vez, corresponde também a uma mudança no modo de conceber o trânsito da poesia na sociedade. Com efeito, entendendo a catarse enquanto a reação de um sujeito quando da assistência a um drama, Aristóteles desvincula a tragédia do universo religioso em que esse gênero foi gestado. As- sim, o fi lósofo compreende a poesia em geral, e a tragédia em par- ticular, dentro de uma perspectiva profana, o que repercute sobre sua circulação, não mais dependente dos aparatos de culto, de uma parte, e das iniciativas políticas, de outro, a que aquelas formas ar- tísticas estiveram subordinadas durante o século V a.C. Ainda que de modo indireto, Aristóteles registra a secularização da poesia, fun- damental para sua expansão e fortalecimento de modo autônomo já na Antigüidade, secularização que, frise-se, deriva do reconhe- cimento da ação da platéia, traduzida pela forma de reação indivi- dual à apresentação pública e material de obras poéticas. O legado de Aristóteles às teorias da recepção transcende, assim, a aceitação de que decorre da resposta do auditório – resposta defi nida de modo coletivo, mas experimentada de maneira pessoal – a conso- lidação da poesia enquanto sistema dotado de características pró- prias, aptas a serem descritas por meio de instrumentos específi cos, como a Poética e a Retórica à época daquele fi lósofo, ou, desde o século XIX, a Teoria da Literatura e a História da Literatura. Ele inclui ainda a admissão de que a recepção supõe fatores materiais, de ordem sensorial, de um lado, já que incide em reação emocio- nal, e de ordem tecnológica, de outro, já que se relaciona aos su- portes – a voz ou a escrita – que acompanham os processos de in- tercâmbio da obra com o público. As teorias da recepção, que, após as manifestações da linguagem verbal terem adotado a escrita en- quanto seu principal veículo de transmissão, mesclam-se a teorias da leitura, alternam-se entre essas posições, privilegiando, de uma parte, o exame das relações entre a obra e seu destinatário, encara- do individual ou coletivamente, e, de outra, o estudo dos objetos impressos, que circulam ou não como literatura e que passam com transformações históricas, ideológicas e comportamentais, desde a invenção dos meios mecânicos de reprodução tipográfi ca. 87REGINA ZILBERMAN | Recepção e leitura no horizonte da literatura Leitura e modernidade As teorias da recepção fundamentam-se em um pressuposto quase tautológico – o de que as obras são objeto de algum tipo de acolhimento. O mais usual deles é a leitura, mas essa dependeu, primeiramente, de a escrita transformar-se no veículo preferencial de comunicação de textos poéticos ou não. Medidas coletivas deter- minaram essa eleição, sendo a primeira delas a difusão do alfabeto, o que ocorre, no Oriente, entre sumérios, babilônios, egípcios, he- breus e fenícios, e, no Ocidente, entre os gregos. A segunda dessas medidas foi a eleição de uma instituição para a difusão da escrita – a escola. Itamar Even-Zohar identifi ca, já entre os sumérios, a pre- sença de escolas – ê-dubba – destinadas à aprendizagem de textos considerados canônicos.* Aquelas, porém, tinham vínculos com a religião e eram dominadas por sacerdotes, ao contrário do que ocor- reu entre os gregos, que, a partir do século V a.C., estimularam o conhecimento da língua e da poesia para que os cidadãos dispu- sessem de melhores recursos retóricos para defender seus direitos, inclusive o de propriedade, como lembra Roland Barthes.* A secularização do ensino precede a da poesia, detectada na Poética, de Aristóteles, e constitui condição básica para a expansão da leitura, ainda que, no mundo antigo, fi casse restrita às classes ele- vadas. Seu exercício não impediu a circulação oral da poesia, de que dão testemunhos a popularidade do teatro e a prática de declamações públicas, reproduzidas em cenas dos diálogos de Platão. Porém, a lei- tura individual era igualmente usual, como sugerem as Heróidas, de Ovídio, ainda que provavelmente em voz alta, já que a leitura silen- ciosa parece ter-se difundido somente a partir do século III d.C.* A expansão da leitura suscitou, assim, representações que re- produzem sua prática, que se integra às diferentes atividades de seus usuários: Fedro lê para Sócrates o discurso de Lísias que o empol- gou, sinalizando sua participação na vida política de Atenas;* Teseu lê a carta em que Fedra, antes de se suicidar, acusa seu enteado, Hi- pólito, de assédio sexual;* a mesma Fedra, na carta que lhe atribui Ovídio, confessa a Hipólito o amor proibido que nutre pelo rapaz.* Em nenhum desses casos, a leitura é objeto de julgamento, seja o encomiástico, seja o condenatório. Obras bem posteriores, como Tirant lo Blanc, do catalão Joanot Martorell, publicada no fi nal do século XV, quando a imprensa já se difundia na Península Ibéri- ca, mantêm esse comportamento: tanto o protagonista, quanto o* (EVEN-ZOHAR, Itamar. “La literatura como bienes y como herramientas”. Em: VILLANUEVA, Dario; MO- NEGAL, Antonio; BOU, En- ric (org.). Sin fronteras: en- sayos de literatura compa- rada em homenaje a Clau- dio Guillen. Madri: Castalia, 1999: 29.) * (BARTHES, Roland. Inves- tigaciones retóricas I. La an- tigua retórica. Ayadamemo- ria. Buenos Ayres: Tiempo Contemporaneo, 1974.) * (BLANCK, Horst. Das Bu- ch in der Antike. München: Beck, 1992.) (FISCHER, Ste- ven Roger. História da leitu- ra. Trad. de Cláudia Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2006.) * (PLATÃO. Fedro. Trad. de Jorge Paleikat. Rio de Janei- ro: Tecnoprint, 1966.) * (EURÍPEDES. Hipólito. Trad. de Bernardina de Sou- sa Oliveira. Coimbra: Ins- tituto Nacional de Investi- gação Científi ca; Centro de Estudos Clássicos e Huma- nísticos da Universidade de Coimbra, 1979.) * (OVIDE. Les Héroïdes. Trad. de Émile Ripert. Paris: Gar- nier, 1930.) 88 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 Sr. de Varoic, personagem da parte inicial do romance, mostram-se leitores assíduos, que discutem as matérias literárias apreciadas por eles;* contudo, não se observam na obra juízos, éticos ou políticos, diante dessa atitude incorporada à rotina das fi guras fi ccionais. Esse posicionamento mudou a partir do século XVI, após a invenção e expansão da tipografi a. A utilização da prensa mecânica propiciou a produção de livros em nível empresarial, que requeriam consumo em grande escala. Os primeiros best-sellers apareceram nas décadas iniciais do século XVI, que contavam com um público ins- talado nas cidades que cresciam em população e riqueza. Esse pri- meiro surto industrial garantiu o aparecimento de novos gêneros, como o romance e a narrativa de viagens, e o encorpamento de gê- neros já existentes, como o romance de cavalaria, que tem no men- cionado Tirant lo Blanc uma de suas manifestações. A partir de então, a relação com os livros e, em especial, com a leitura deixou de ser neutra, como se mostrava até então, tornan- do-se motivo de julgamento severo e discriminação. Uma das mais antigas reações à expansão da imprensa foi a publicação, em 1564, pelo papa Pio IV, do Index Librorum Prohibitorum; antes dele, em 1547, em Portugal, o cardeal D. Henrique, Inquisidor Geral do Reino, já tinha proibido um rol de livros, que incluía mesmo as Sagradas Escrituras, se publicadas em língua vulgar.* Essas ações tinham endereço certo: o crescente público leitor, consumidor de obras indesejadas, como o Elogio da loucura, do pensador indepen- dente Erasmo de Rotterdam, cujas sucessivas edições incomoda- vam os padres conservadores da Igreja. Boas e más leituras são matéria da celebrada discussão entre o cura e o barbeiro, no capítulo VI da primeira parte de Don Qui- xote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, obra em que aparece outro efeito colateral do fenômeno industrial derivado da inven- ção da tipografi a: as mudanças interiores pelas quais pode passar um indivíduo que se devota em excesso e indiscriminadamente ao consumo de obras literárias. O protagonista do romance é o “fi dal- go, [que] nos intervalos em que estava ocioso – que eram os mais do ano – se dava a ler livros de cavalaria, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase completamente do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitas courelas de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler; com o que juntou em ca- sa quantos pôde apanhar daquele gênero.”* Tais leituras levam “o * (MARTORELL, Joanot. Ti- rant lo Blanc. Trad. de Cláu- dio Giordano. São Paulo: Atelier, 2004.) * (DIAS, J. S. da Silva. “O pri- meiro rol de livros proibi- dos”. Biblos. Revista da Fa- culdade de Letras. Universi- dade de Coimbra. V. XXXIX, 1963: 232.) (SÁ, Artur Mo- reira de. Índice dos livros proibidos em Portugal no século XVI. Lisboa: Institu- to Nacional de Investigação Científi ca, 1983.) * (CERVANTES, Miguel de. Don Quixote de la Mancha. Edição de Florencio Sevilla Arroyo e Antonio Rey Ha- zas. Madrid: Alianza, 1996. v. 1: 38.) 89REGINA ZILBERMAN | Recepção e leitura no horizonte da literatura pobre cavaleiro” a perder o “juízo”, efeito indesejado e razão sufi - ciente para condenar a literatura ao fogo, como faz a família de D. Quixote, com a cumplicidade dos mencionados cura e barbeiro. A leitura, doravante, é matéria freqüente de representação por parte da literatura, que assume posição freqüentemente ambígua em relação aos efeitos que pode provocar, poucos deles entendidos de modo favorável, como fez Aristóteles a propósito da catarse. Co- mo sabem os leitores de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, de O primo Basílio, de Eça de Queirós, ou de A normalista, de Adol- fo Caminha, os livros podem desencaminhar ingênuas donzelas, subverter a ordem e ameaçar os valores patriarcais. Essa temática atravessa a história da literatura, mas não se limita à representação que os livros fazem de si mesmos. A atitude censora migra da fi c- ção para a ciência, quando a expansão da indústria do livro gera, a partir do século XIX, a literatura de massa. Livros do bem, livros do mal Se uma revolução tecnológica – a utilização dos tipos móveis, atribuída a Gutenberg – facultou a expansão da indústria tipográ- fi ca e a consolidação do livro como suporte preferencial da escrita, outras mudanças de similar teor permitiram a expansão dos meios de comunicação: a invenção da rotativa, que acelerou a impressão das folhas, propiciando a produção diária de periódicos; o aper- feiçoamento da qualidade do papel e seu barateamento; o apareci- mento da máquina de escrever. Os novos mecanismos ajudavam a diminuir a distância temporal entre a escrita de um texto e sua im- pressão, incrementando o aparecimento de novos títulos. Por sua vez, o público leitor aumentou quantitativamente, em decorrência da migração do campo para os grandes centros industriais, do forta- lecimento da burguesia urbana e da difusão da escolarização. A equa- ção estabeleceu-se de imediato: maior audiência igual a maior oferta; o crescimento dessa oferta possibilitou, de uma parte, a profi ssiona- lização dos escritores; de outra, porém, esses precisaram se adaptar às exigências tanto dos empresários do livro, interessados na lucrati- vidade de suas fábricas, quanto dos consumidores, carentes de uma literatura que se adequasse a seu gosto e à sua formação. Assim como a revolução tecnológica do século XV suscitou o aparecimento de novos gêneros e a reciclagem dos antigos modos de expressão, as modifi cações do século XIX ocasionaram o surgimen- 90 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 to de formas específi cas de comunicação. A imprensa, agora diária, introduziu o folhetim, que migrou das folhas dos jornais para as pá- ginas dos livros, processo praticado dos dois lados do oceano Atlân- tico, como testemunham as criações literárias do francês Alexandre Dumas e dos brasileiros José de Alencar e Machado de Assis. O folhetim gerou vários subgêneros do romance e contou com a adesão do público leitor, especialmente o das cidades, já que os leitores do campo tinham suas próprias preferências, conforme in- dicam pesquisas sobre a literatura de cordel e a Bibliothèque Bleue, de larga circulação na Europa do século XVIII.* Contudo, não al- cançou as boas graças da elite intelectual, constituída, de uma parte, por artistas descontentes com o sucesso de seus confrades, de ou- tra, pelos pesquisadores encastelados na universidade. Os primeiros procuraram renovar a arte da narrativa, investindo em formas inusi- tadas de expressão, para desenhar seu espaço exclusivo de criação e garantir a identidade e a particularidade de sua obra. Os segundos instituíram a sociologia da leitura, cujas primeiras manifestações aparecem nas primeiras décadas do século XX. Um dos primeiros estudiosos dos fenômenos coletivos vincu- lados à leituraé o alemão L. L. Schücking, cuja obra, A sociologia do gosto literário, de 1923, visa interpretar as preferências do público, entendido esse como um elemento ativo que interfere não apenas do prestígio de um texto, mas também em sua criação.* Schücking adota um olhar desarmado perante as obras que fazem sucesso jun- to aos consumidores de leitura, defi nidos a partir de seu gosto; mas, na década de 30, quando seu livro foi traduzido na Inglaterra, sua perspectiva foi substituída por uma visão preconceituosa diante dos objetos que as massas trabalhadoras elegem como leitura. Verifi ca-se tal posicionamento em A fi cção e o público leitor, de 1931, obra de Q. D. Leavis, que reconhece a existência dos novos grupos sociais, ao mesmo tempo em que rebaixa suas escolhas.* Richard Hoggart, em Os usos da alfabetização, de 1957, não diverge muito de Leavis ao verifi car a notável expansão do processo de letramento entre os segmentos mais pobres da população inglesa, fato, contudo, que não o gratifi ca, já que os benefi ciados desse fenômeno se dirigem ao consumo da literatura de massa, de fácil absorção, mas de pou- ca durabilidade e pequena importância cultural.* A segunda metade do século XX posicionou-se de modo di- ferente diante dessas questões. Diante do esgotamento do que An- dreas Huyssen chamou o “great divide”,* que acentua a separação * (CHARTIER, Roger. Lectu- res et lecteurs dans la Fran- ce d’Ancien Régime. Paris: Seuil, 1987.) (SCHENDA, Rudolf. Die Lesestoffe der kleinen Leute. Studien zur populären Literatur im 19. und 20. Jahrhundert. Mün- chen: Beck, 1976.) (SCHEN- DA, Rudolf. Volk ohne Buch. Studien zur Sozialgeschichte der populären Lesestoffe. München: DTV, 1977.) * (SCHÜCKING, L. L. The So- ciology of Literary Taste. Chi- cago: The University of Chi- cago Press, 1966.) * (LEAVIS, Q. D. The Fiction and the Reading Public. Lon- don: Pelican, 1979.) * (HOGGART, Richard. The Uses of Literacy. London: Pe- lican, 1977.) * (HUYSSEN, Andreas. After the great divide. Modernism, Mass Culture, Postmoder- nism. Bloomington and In- dianapolis: Indiana Univer- sity Press, 1986.) 91REGINA ZILBERMAN | Recepção e leitura no horizonte da literatura entre a alta cultura, elitizada e difícil, e a cultura popular, massifi - cada e alienante, denúncia de que são porta-vozes pensadores co- mo Theodor W. Adorno,* foi preciso rever os pressupostos adota- dos e buscar novas vias de investigação. A Sociologia da Leitura não desaparece, mas passa a incluir a História da Leitura, para a qual é importante localizar as obras efetivamente publicadas, lidas e con- sumidas nos diferentes períodos da História. O novo viés é decisivo para quem se posiciona nesse campo intelectual, pois o great divide colocava, de um lado, obras canôni- cas do passado e, de outro, a literatura de massa da atualidade, sem evidenciar que aquelas correspondiam a um pequeno percentual do que efetivamente circulou em tempos idos. Autores como Ro- bert Escarpit,* entre os anos 50 e 70, e Robert Darnton* ou Roger Chartier,* a partir dos anos 80, embora assumam perspectivas dis- tintas do ponto de vista teórico, evidenciam que o sistema literá- rio incluiu muito mais títulos que a história da literatura registra. Em um intenso trabalho de recuperação de fontes, esses pesquisa- dores complementam o universo de leitura de diferentes camadas sociais, zonas geográfi cas e gêneros, para esclarecer em que medi- da a literatura apresenta horizontes plurais de recepção e consumo, diante dos quais todo julgamento pode ser precipitado, se calcado unicamente em critérios contemporâneos. A Sociologia da Leitura, quando associada à perspectiva his- tórica, dimensiona o campo literário em termos que extravasam o foco adotado pela Teoria da Literatura, fecundando o diálogo com a pesquisa com fontes primárias, que alarga as fronteiras das duas áreas de conhecimento. A Teoria da Literatura reage Nas oportunidades em que historiou a trajetória da Estéti- ca da Recepção, Hans Robert Jauss atribui à conferência com que abriu o semestre de verão na Universidade de Constança a condi- ção de episódio fundador da vertente de investigação de que é tam- bém o principal representante. Em 13 de abril de 1967, ele expôs suas idéias em resposta à pergunta colocada no título da conferên- cia, “O que é e com que fi m se estuda História da Literatura?”, pa- ra estabelecer as bases de uma teoria em que procura colocar o lei- tor na posição de fi gura central da pesquisa literária. Jauss, naquele que veio a constituir o texto seminal da Estética da Recepção, publicado com o título de “A História da Literatura * (ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialéti- ca do esclarecimento. Trad. de Guido Antônio de Almei- da. São Paulo: Jorge Zahar, 1985.) * (ESCARPIT, Robert. Le lit- téraire et le social. Elements pour une sociologie de la littérature. Paris: Flamma- rion, 1970.) * (DARNTON, Robert. The Literary Underground of the Old Régime. Cambridge and London: Harvard University Press, 1982.) (DARNTON, Robert. The Great Cat Mas- sacre and Other Episodes in French Cultural History. New York: Vintage Books, 1985.) (DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.) * (CHARTIER, Roger. A or- dem dos livros: leitores, au- tores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. de Mary del Priori. Bra- sília, Universidade de Brasí- lia, 1994.) 92 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 como provocação”, ataca várias frentes, para delimitar as fronteiras de seu pensamento: polemiza concepções vigentes de História da Literatura; questiona a Sociologia da Literatura, de orientação mar- xista e praticada sobretudo por Georg Lukács; rejeita o Estrutura- lismo em voga nos anos 60 do século XX, embora absorva alguns dos conceitos propostos por lingüistas como Ferdinand de Saussure e fi lósofos como Jan Mukarovski. Seu objetivo principal é recupe- rar a historicidade da literatura, descartada por essas vertentes, me- ta possibilitada pela valorização da ação do leitor, responsável pela permanente atualização das obras literárias do passado. A Estética da Recepção assume a perspectiva do leitor, por- tanto, conforme sua denominação sugere, ao considerar que é ele quem garante a historicidade das obras literárias. Em decorrência do fato de o leitor não deixar de consumir criações artísticas de outros períodos, essas se atualizam permanentemente. Conforme Jauss anota, uma obra “só se converte em acontecimento literário para seu leitor”;* portanto, é esse sujeito que afi ança a vitalidade e continuidade do processo literário. Jauss considera que, entre a obra e o leitor, estabelece-se uma relação dialógica. Essa relação, por sua vez, não é fi xa, já que, de um lado, as leituras diferem a cada época, de outro, o leitor inte- rage com a obra a partir de suas experiências anteriores, isto é, ele carrega consigo uma bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na recepção de uma criação literária particular. As- sim, quando se depara com um romance como Dom Casmurro, de Machado de Assis, ele sabe de antemão que esse romance é um clássico da literatura brasileira, que foi escrito após Memórias pós- tumas de Brás Cubas e antes de Esaú e Jacó, que infl uenciou auto- res como Graciliano Ramos, Fernando Sabino e Ana Maria Ma- chado, por exemplo; o romance, portanto, vem carregado de uma história de leituras que se agregam a ele. Da sua parte, esse leitor, independentemente de sua formação ou profi ssão, carrega também sua história de leituras, construída a partir de sua relação com a li- teratura e com outras formas de textos transmitidos pela escrita. Assim, o diálogo entre a obra e o leitor coloca frente a frente duas histórias, a partir da qual se estabelece uma troca: o leitor incor- pora a leitura de Dom Casmurro, com todos os elementos que o romance traz consigo, à sua própria história;Dom Casmurro, por sua vez, agrega à sua identidade de obra literária a leitura desse lei- tor, que fará uma decodifi cação específi ca do texto a partir de sua matriz pessoal e cultural. * (JAUSS, Hans-Robert. La literatura como provoca- ción. Trad. de Juan Godo Costa. Barcelona: Penínsu- la, 1976: 168.) 93REGINA ZILBERMAN | Recepção e leitura no horizonte da literatura Nenhum leitor fi ca imune às obras que consome; essas, da sua parte, não são indiferentes às leituras que desencadeiam. Portanto, para Jauss, o leitor constitui um fator ativo que interfere no proces- so como a literatura circula na sociedade. Só que a ação do leitor não é individualista; nem cada leitor age de modo absolutamente singular. Segundo Jauss, as épocas ou as sociedades constituem ho- rizontes de expectativa dentro dos quais as obras se situam. Essas expectativas advêm da “compreensão prévia do gênero, da forma e da temática das obras anteriormente conhecidas e da oposição en- tre linguagem poética e linguagem prática.”* Assim, as obras, quando aparecem, não caem em um vazio: ao serem publicadas, deparam-se com códigos vigentes, normas esté- ticas e sociais, formas de comunicação consideradas cultas ou po- pulares, preconceitos e ideologias dominantes. Esses dados deter- minam o “saber prévio” dos leitores, que condiciona a recepção do texto em certa época ou dentro de um grupo social. O “saber pré- vio” é coletivo e incide sobre as possibilidades de decifração de uma obra, sugerindo que os leitores atuam de modo coeso. Na concep- ção de Jauss, o leitor é um fator preponderante do sistema literá- rio, determinando os modos de acolhimento, valorização e circu- lação das obras; sua ação não é, porém, idiossincrática ou singular, pelo contrário, corresponde aos efeitos de um comportamento co- mum às pessoas de um dado agrupamento social. Por essa razão, esses efeitos podem ser defi nidos e estudados, equivalendo à histó- ria da recepção de uma certa obra. O leitor, portanto, coincide com o horizonte de recepção ou acolhimento de uma obra. Essa, por sua vez, destaca-se quando não se equipara a esse horizonte, pois, se o fi zesse, nem seria notada. Com efeito, cada obra procura se particularizar diante do universo para o qual se apresenta, particularização que se evidencia quando ela rompe com os códigos e as normas predominantes. Assim, ela estabelece um intervalo entre o que se espera e o que se realiza, a que Jauss denomina “distância estética”. Pode-se perceber que Hans Robert Jauss endossa a tese das várias vertentes modernistas que encontraram sua confi guração teórica no pensamento dos formalistas russos e dos estruturalistas tchecos, bem como na Sociologia da Literatura, quando expressa por fi lósofos como Georg Lukács, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. Também para o pesquisador da Estética da Recepção, a identidade e a qualidade de uma obra dependem de sua propensão à ruptura, à inovação, ao desafi o às normas vigentes. * (Jauss, Hans-Robert. Idem: 169.) 94 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 Esse posicionamento, por sua vez, requer um esclarecimen- to relativamente às suas teses sobre a relação dialógica entre a obra e o leitor. Se a obra não aceita o horizonte dentro do qual emerge, como interage com o leitor? Pode-se concluir que a relação é tensa e pouco amistosa, já que a obra de arte desafi a não apenas precon- ceitos e a ideologia dominante, mas o código de conduta, as nor- mas lingüísticas, as formas de expressão que o leitor emprega. Uma obra que se deseje marcante precisa suplantar limites, incluindo-se aí os parâmetros por meio dos quais o leitor rege sua vida. Veja-se o caso do romance Dom Casmurro, de Machado de As- sis. Por meio da narrativa em primeira pessoa, Bento Santiago re- memora sua adolescência, quando era apaixonado pela moça da ca- sa ao lado, Capitu, e estava impedido de namorá-la, mais ainda de desposá-la, porque sua mãe tinha prometido torná-lo padre. O ga- roto não se sente vocacionado para a carreira eclesiástica, mas não se considera capaz de desafi ar a ordem materna. Acaba por pedir a ajuda a José Dias, um agregado que residia em sua casa, mas é Es- cobar, jovem que conhecera no seminário enquanto fazia sua for- mação religiosa, quem encontra a solução para o impasse. Após o matrimônio, nasce Ezequiel, mas Bento desconfi a que a mulher o traiu e que o menino não é seu fi lho, mas fruto do affaire entre sua esposa e Escobar. Convicto do adultério, ele afasta-se de Capitu, levando-a para a Europa, onde ela permanece até morrer. A narrativa de Machado de Assis pode ser examinada des- de várias perspectivas, que apontam para um elemento comum: a profunda decepção de Bento Santiago, que investiu sua existência em uma relação amorosa e viu o projeto fracassar. Sua trajetória contradiz o padrão épico: ele não é a pessoa talhada para resolver os próprios problemas, dependendo invariavelmente de um adju- vante: sua mãe, José Dias, Capitu, por último, Escobar. Além dis- so, suas ações estão fadadas ao insucesso, haja vista a traição de que é alvo, levada a cabo por duas pessoas que lhe eram caras, a esposa e o melhor amigo. Ciente de sua incompetência nata, Bento San- tiago refugia-se em sua memória, narrando o que lhe aconteceu e justifi cando a melancolia com que encerra o relato. Dom Casmurro não é o primeiro romance a tratar do adulté- rio, tema que foi matéria de dois importantes romances da segun- da metade do século XIX conhecidos pelo público brasileiro à épo- ca em que o livro de Machado de Assis é publicado: Madame Bo- vary, de Gustave Flaubert, e O primo Basílio, de Eça de Queirós. 95REGINA ZILBERMAN | Recepção e leitura no horizonte da literatura Nos dois casos, trata-se de histórias de esposas que traem os mari- dos, em parte, porque sonham com amantes heróicos como os das novelas que leram, em parte, porque seus próprios matrimônios as decepcionam. Na literatura brasileira, o tema tinha sido matéria de romances folhetinescos, como O marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, de 1882, ou naturalistas, como O hóspede, de Par- dal Mallet, de 1887. Também essas obras privilegiam o ângulo da esposa insatisfeita com o casamento, que busca na aventura extra- conjugal uma compensação para o tédio doméstico. Pode-se verifi car em que medida Machado inova o tema: em primeiro lugar, ele abandona o clichê da mulher simultaneamente romântica e entediada, mesmo porque o leitor, por acompanhar a narrativa desde o foco de Bento Santiago, não tem acesso à interio- ridade de Capitu. Esse é, pois, o segundo elemento inovador pro- posto por Machado: a perspectiva é dada pelo marido traído, que, porém, nunca domina inteiramente a situação. Assim como não consegue conduzir sua vida de modo independente, permitindo que outros resolvam seus problemas, ele não tem sucesso ao ten- tar controlar a narração, razão porque o leitor não fi ca plenamente convencido do adultério de Capitu. O narrador não é, pois, intei- ramente confi ável, já que Machado semeia ao longo do texto uma série de dúvidas e incertezas, que minam a convicção que Bento Santiago procura transmitir. O romance acaba por abalar as certezas que se poderia ter em relação a seu assunto, já que o juízo relativamente à infi delidade con- jugal de Capitu fi ca em suspenso. Por essa atitude, pode-se medir a coragem de Machado de Assis ao tratar a questão; afi nal, seus precur- sores, entre os quais os renomados Gustave Flaubert e Eça de Quei- rós, não titubearam ao condenar as esposas pérfi das, pois essas preva- ricam aos olhos do leitor. Além disso, a sociedade brasileira da época de Machado era fortemente machista, e a mera suspeita de adultério era motivo sufi ciente para um marido condenar a esposa. Evidencia-se o modo como o escritor brasileiro aceita com- por um romance na contracorrente das ideologias vigentes e das tendências literárias dominantes. Ao romper com os paradigmas literários e sociais relativosao adultério e à condição da mulher na sociedade brasileira, ele produz uma obra revolucionária que aca- bou por se converter em um clássico respeitado pela história da li- teratura brasileira. É sob esse aspecto que o romance testemunha a operação que Jauss designa como “distância estética”, já que se assume conside- 96 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 rável intervalo entre o que os escritores faziam e seus conterrâneos pensavam, de um lado, e sua própria obra, de outro. Por causa des- sa qualidade, esta se mostra emancipatória, já que expõe uma reali- dade tal como a conhecemos, com seus valores e preconceitos, para que possamos pensar que ela não deve ser assim. Explica Jauss: A experiência da leitura pode liberá-lo [o leitor] de adaptações, pre- juízos e constrangimentos de sua vida prática, obrigando-o a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativas da literatu- ra distingue-se do horizonte de expectativas da vida prática históri- ca, porque não só conserva experiências passadas, mas também an- tecipa a possibilidade irrealizada, alarga o campo limitado do com- portamento social a novos desejos, aspirações e objetivos e com is- so abre caminho à experiência futura.* Por ser emancipatória, a literatura pode colaborar para que lei- tor se libere de seus prejuízos e limitações. Portanto, a criação ino- vadora pode efetivamente contrariar expectativas do leitor, quan- do essas estão vinculadas a preconceitos e valores a serem ultrapas- sados. Porém, o envolvimento por meio da leitura – envolvimento que, segundo Jauss, contém um componente catártico* – leva o lei- tor a participar do projeto liberador da obra. Assim, o leitor con- fi gura-se como parceiro do texto, concretizando o processo dialó- gico que fundamenta a leitura. A Estética da Recepção aposta na ação do leitor, pois dele de- pende a concretização do projeto de emancipação que justifi ca a existência das criações literárias. E, ao registrar seu débito para com Aristóteles, completa o circuito histórico dentro do qual se locali- zam as pesquisas que privilegiam a recepção e a leitura no âmbito da Ciência da Literatura. * (Idem: 204-205.) * (JAUSS, Hans Robert. “Pe- tite apologie de l’expérience esthétique”. Em: Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978.) 97REGINA ZILBERMAN | Recepção e leitura no horizonte da literatura Abstract Since Aristotle’s Poetics, the re- ception of literary works has been matter of theoretical, socio- logical and historical researches. Their more signifi cant tenden- cies are examined in this article. Palavras-chave: recepção; leitura; leitor. Key words: reception; rea- ding; reader. Mots-clés: réception; lectu- re; lecteur. Résumé Depuis la Poétique, d’Aristote, la réception des œuvres littérai- res constitue le sujet d’une in- vestigation théorique, sociolo- gique et historique dont nous examinons ici les aspects les plus importants. Recebido em 16/03/2008 Aprovado em 15/04/2008 Regina Zilberman Doutora em Romanística pela Universidade de Heidelberg, Ale- manha; professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Letras, da UFRGS; professora das Faculdades Porto-Alegrenses; pesquisadora 1A, CNPq. Autora de Estética da recepção e História da literatura e Fim do livro, fi m dos leitores?, entre outros. Resumo Desde a Poética, de Aristóteles, a recepção das obras literárias cons- titui matéria de investigação teórica, sociológica e histórica, cujas vertentes mais signifi cativas são examinadas neste estudo.
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