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ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 417 POR QUE NOS PREOCUPARMOS NOVAMENTE COM UMA MUSICOLOGIA HISTÓRICA BRASILEIRA? Edilson Rocha210 Talvez esse assunto não esteja mais tão emocionante, mas permaneça ainda muito atual. O que da Musicologia “Universal” nos tem servido ao longo dos anos? Essa preocupação me vem surgindo à mente a partir de publicações e palestras do eminente professor Paulo Castagna. Uma delas durante o congresso da ANPPOM de 2016 em Belo Horizonte, com a descrição daquilo que poderia ser chamada de “arquivologia de resistência”, “de sobrevivência”, ou mesmo “de guerra”, dentre outros epítetos heroicos. E heroico não é exagero, pois tratava da conservação de documentação musical de interesse histórico, ou musical, ou musicológico, ou os três, se preferirem, tendo como pano de fundo a mais absoluta escassez. Absoluta e esperada, não pela mera aceitação de uma condição de falta de fundos para o trabalho arquivológico, mas pela constatação óbvia da falta geral de apoio e de incentivos para o trabalho de conservação. Com o uso de materiais baratos e à mão, estas estratégias acabam sendo as possíveis para se evitar um ou mais males maiores, e um convite para a assunção das despesas pelos próprios estudiosos. Ou é isso ou é o fim. Sem exagero. Pelo menos por ora. Pensando nessa saudável subversão que é o pensar (sim, pensar é cada vez mais perigoso e me perdoem o trocadilho) me remeto ao texto de Edite Rocha, A Musicologia e Seus Afetos: carta introdutória, e me assombro com aquela mesma pergunta: “por que então pensar a Musicologia”? E acrescento: a Musicologia brasileira? Pergunta perigosa, já que nem sempre é tão simples responder o que é “musicologia” e o que é “brasileira”. Socorro-me nas palavras da própria pesquisadora que responde em cinco pontos que traduzo aqui segundo meu próprio entendimento: porque a música precisa, porque seu entendimento não pode ser superficial, porque as pessoas precisam, porque é necessário pensar, porque é imperioso agir. De minha lavra acrescento: porque esse lugar que nos acolhe, a Universidade, precisa agora mais do que nunca. Pensar numa Musicologia Brasileira é pensar na própria conexão que o brasileiro em geral tem com a Cultura em seu sentido restrito. É conexão pouca, pelo menos é o que nos indica o senso comum, e as razões são várias e históricas. Digo isso evitando qualquer juízo 210 Doutor, Universidade Federal de São João del-Rei, ediassuncao@hotmail.com ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 418 valorativo, apenas uma constatação genérica, mas de grande efeito. As famílias ficam mais felizes com o filho que quer ser médico ou com o que quer ser músico? Só para ficar numa pergunta banal... A percepção e recepção das artes pela maioria de nosso povo tem a ver, grosso modo, com o tratamento dado ao assunto por uma elite que já dizia Darcy Ribeiro, inculta, escravagista, enferma de desigualdade. Isso se consubstancia em uma frase famosa: “A crise da Educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Esses dados, a manutenção de uma massa empobrecida que pouco valora a Cultura, e processos políticos que minam a formação curricular/educacional de uma nação explicam por si sós as bases para a questão do atraso do estudo musicológico brasileiro, ainda que muitas outras causas possam ser elencadas e seja impossível que as tratemos todas aqui. E não é só a música que padece disso, mas vamos ficar somente nela para não ficarmos pessimistas demais. Tendo isso em vista, pensar e praticar a musicologia se torna de fato um ato subversivo e de resistência. Nada mais atual, se continuarmos pensando. Ainda que muitos estudiosos não tenham atentado para o caso, trazer o conhecimento histórico, artístico e cultural é um ato político, pois à custa de sacrifícios diversos, rema-se contra a maré, contra os desígnios quase divinos da falta de interesse, de oportunidade e de verba. Musicologia é cultura, educação, construção das pontes das quais também dizia Darcy Ribeiro: “o que está vivo vai adiante”. Esse projeto político que historicamente vem prevalecendo ao longo da república, com hiatos algo arejados e muito breves, vem gerando a desconstrução das iniciativas da ciência e a manutenção de uma sociedade escravocrata pela desigualdade de renda e diferença de classes. Essa é uma fala do professor Jessé Souza, contra a qual não discuto: ainda somos uma colônia em busca de sua libertação. Podemos fazer um paralelo desse estado de coisas com a ideia de uma Musicologia Brasileira, tanto mais libertadora quanto mais brasileira. Talvez essa constatação não seja tão casuística nem meramente um exercício poético como se poderia supor. A música do passado, em suporte escrito, histórica se preferirem, era majoritariamente feita por negros e pardos, trabalho indigno de uma elite portuguesa que considerava a música um trabalho meramente braçal, necessário, mas de muito menor importância. Quem pode dizer que essa percepção esteja fora de moda nos dias atuais? Assim como os meios de comunicação podem nos conduzir à uma percepção pouco clara de nosso local de fala, uma série de outros fatores podem nos levar a crer que a imitação de uma musicologia “de fora” possa ser o mais adequado para nossas necessidades. Fatores ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 419 locais “deles” puderam ao longo dos séculos gerar um manancial de documentação musical, e dessa documentação surgiram inúmeras e infindas pesquisas. Nossa realidade é bem diversa, por isso a imitação desses moldes pode ser mais ou menos inadequada. As perguntas a serem feitas nesse momento são: a quantas anda nossa arquivologia musical? Como estamos lidando com nossos acervos? Sabemos mesmo onde eles estão? A título de comparação, a construção do catálogo de Mozart, o índice KV, foi publicado 69 anos após sua morte. O índice do insigne Padre José Maurício Nunes Garcia, feito pela lendária Cleofe Person de Matos levou 140 após a morte do compositor para ser elaborado. Se estiver correta a ideia de que as ferramentas para a realização deste trabalho no século XX estariam mais afiadas do que no século XIX, pode-se aferir ainda maior atraso no desenvolvimento de nossas próprias pesquisas. O fato é que desconhecemos nossa música, nossos compositores, nossos músicos, nossos copistas e ponto. E desconhecemos nosso local de fala. Transcrevo parecer recebido quando da submissão de trabalho para um Congresso, a título de ilustração do que quero dizer nesta feita: O trabalho traz muito da pesquisa empírica e pouca reflexão teórica o que distância do formato proposto para pesquisas já concluídas de iniciação científica. Não se identifica o corpus examinado; não há critérios paleográficos, documentográficos ou, eventualmente, grafológicos para basear o estudo, muito menos resultados preliminares que justifiquem apenas apresentar a biografia do elenco. Certamente, um texto recuperando a biografia de copistas de um determinado acervo musical é relevante. Entretanto, os autores teriam que percorrer um caminho investigativo mais preciso e determinado para trazer informações consistentes sobre o tema. Como todo e qualquer parecer, este merece e não merece ser levado a sério, mas o que se deseja aqui não é a discussão sobre sua qualidade, qualidade do artigo, seu mérito etc, mas o sintoma que ele revela para nossa digressão em torno de uma Musicologia Brasileira. O trabalho analisado se chama Copistas de manuscritos musicais, constantes no Arquivo de Música Sacra da Lira Imaculada Conceição, de São Tiago, MG. São Tiago é uma pequena cidade com cerca de onze mil habitantes,que dista 40 km de São João del-Rei, MG, e possui uma interessante história de bandas de música ainda por ser melhor estudada. Quando se diz melhor estudada, vale a pena trazer as estatísticas das pesquisas que se tem conhecimento de terem sido feitas na cidade e também no acervo da Banda Lira Imaculada até hoje: Total de pesquisas: 1 (uma). Exatamente essa. ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 420 Também é digno de nota o trabalho em andamento do professor Modesto Flávio junto ao arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense, seguramente um dos maiores acervos em instituição privada no Brasil, e que possui uma história interessante: foi administrado por cerca de sessenta anos por Aluízio Viegas, um luminar da musicologia mineira. Aluízio, para evitar novas perdas e roubos ao acervo, além de estabelecer um rigoroso impedimento a visitantes indesejáveis, aproveitou sua memória prodigiosa e criou um sistema a prova de falhas: distribuía aleatoriamente as partes separadas de uma mesma obra em posições pouco óbvias no espaço físico do acervo, de maneira que fosse impossível a qualquer pessoa além dele encontra-las todas. Um dia, entretanto, nos dizeres de Ariano Suassuna em O auto da compadecida: “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”. Com seu passamento, e com os levantamentos iniciados, já se tem uma ideia da tarefa hercúlea que será juntar os dados deste acervo, e que precisará ser feita pelos estudiosos de hoje seus pósteros. A questão a ser levantado aqui é: essa tarefa é ou não é pesquisa científica? Dá para constar no Lattes? Para alimentar nosso questionamento, o trabalho realizado pelo Prof. Marcos Filho é digno de nota. Trata-se da edição da obra completa do compositor Lorenzo Fernândez e a disponibilização para o público desse material. Sob a direção da filha e neta do compositor, respectivamente Dona Marina e Dona Antonieta, estão sendo editadas cerca de cento e sessenta obras, em uma pesquisa que inclui consulta a fontes de dados como a Biblioteca Nacional, Conservatório Brasileiro de Música, outros catálogos antigos de obras, a Academia Brasileira de Música, Biblioteca da UFRJ, além dos arquivos da família. Passados sete anos de grandes esforços, mapeamentos, inventários, classificação, catalogação, de revisões editoriais e musicológicas, e levantamentos de toda ordem, foram editadas “apenas” 84 obras. Será que todo esse esforço não merece status melhor do que o de um “mero trabalho técnico”211? Está se falando aqui do total desapreço pela pesquisa sobre fontes primárias, o que equivale dizer que a própria comunidade científica estimula essa ignorância a respeito de nossa própria música. Incrível, mas é verdade. Em relação ao primeiro exemplo, os 211 Também em andamento e sob a batuta deste mesmo pesquisador, está o trabalho acerca do acervo da Fundação Koellreutter, que também passa por edição e tratamento profissional, com financiamento externo da Fundação Itaú Cultural, via edital, que talvez devesse receber maior respaldo da Universidade. ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 421 manuscritos de música em São Tiago, cabe ressaltar o quase total desconhecimento da comunidade científica e musical a seu respeito. Brinca-se localmente que não se sabe da existência da cidade de São Tiago: o que se dizer da Lira Imaculada Conceição, e mais miudamente, de seu acervo. O fato notável que se depreende dos pareceres é que essa prospecção não vale como pesquisa nem para Congresso: é necessária uma problematização de caráter “científico”, enquanto o problema maior ainda persiste: não conhecemos nossas fontes. Sem conhecer, como problematizar? Aparentemente, o que isso denuncia é a cópia de uma musicologia europeia do século XX, que de certa forma teve o século XIX para levantar as fontes primárias. Domesticamente, não tivemos este estágio de maneira plena, sendo a maioria das iniciativas nesse sentido muitíssimo bem intencionadas, algo heroicas, mas infelizmente erráticas, individuais em um certo sentido e passageiras a despeito da vontade de seus idealizadores. Não conhecemos devidamente nossos compositores históricos, menos ainda sua obra, menos ainda seus copistas, mas precisamos problematizar acima de tudo. Também a pesquisa do professor Modesto no arquivo da Lira Sanjoanense, um volume absurdo de documentos, cujo levantamento não pontua como produção científica em várias instituições. Simples assim. Surge um paradigma cruel e curioso: um grande manancial de informações que não é incentivado pelo “sistema” a ser descoberto, ainda que este mesmo sistema diga ao professor pesquisador que esse é o seu dever. E ainda nem falamos de verba. E haja trabalho a ser feito. Condição análoga é a do outro trabalho citado, que curiosamente não agrega prestígio oficial ao professor Marcos Filho, seu coordenador. Ou seja, após levantamento tão extenso, um mero artigo feito por terceiros sobre uma edição de qualquer uma destas obras tem mais valor oficial para o “sistema” do que o exaustivo levantamento que lhe deu origem. Há que se falar então do trabalho de edição, que até muito recentemente era considerado de somenos importância e ainda hoje é visto com desconfiança por muitos musicólogos. Apesar dos esforços de pesquisadores muito gabaritados, como o Prof. Carlos Alberto Figueiredo, que lançou um livro fundamental para este ofício de editar partituras históricas, o Música sacra e religiosa brasileira dos séculos XVIII e XIX: teoria e práticas editoriais, que se revela como ferramenta e também como inspiração. Afinal, a pergunta precisa ser feita: para que editar música histórica brasileira? O próprio Joseph Kermann oferece uma justificativa desde aquelas lonjuras: “Alguma edição é melhor que nenhuma”. Ainda assim, podemos encontrar nossas justificativas localmente, e não estranhe caso sejam ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 422 excessivamente singelas. Uma delas é a necessidade de dar a conhecer a música de nossos compositores. Necessidade sim, pois o momento é de uma certa temeridade em torno de um forte movimento de desnacionalização, que vai da atividade industrial até às artes, passando pela negação de nossa história. Lembro-me de quando foi gravado em LP na Escola de Música da UFMG o agora conhecidíssimo Salve Regina, de José Emerico Lobo de Mesquita. Cantei no coro. Na ocasião o clima entre os músicos era de desânimo, não somente pelo aspecto do equipamento levado para a gravação. Era tida como uma música ingênua, pouco inventiva, e as comparações com o repertório canônico europeu alimentavam fartamente esta impressão. Foi essa mesma a opinião sobre esse repertório que guardei durante muitos anos, opinião essa alimentada pela desinformação, e que somente foi alterada ao conhecer de fato essa música tão pouco tocada. É possível que boa parte dos músicos daqueles idos, início dos anos 90, ainda sustentem esse ponto de vista, uma vez que são poucos os que conseguem uma experiência mais próxima e intensa com a música histórica brasileira. Apesar de bons músicos, é possível que continuem desinformados. A afirmação de uma cultura musical histórica brasileira seria uma outra justificativa para pesquisa de fontes primárias e edições. Este o ponto de partida para o surgimento de uma economia criativa e subsídio para o desenvolvimento regional. O caso particular de São João del-Rei é emblemático. Uma cidade detentora de importante acervo,de uma cultura musical rica e viva, cercada de música por todos os lados, mas que tem grande dificuldade na retenção de seus maiores talentos. Trocando em miúdos: o músico sanjoanense fica bom e vai embora. Não há na economia da cidade grande oferta de oportunidades para a fixação do músico profissional gestado pelas instituições musicais bicentenárias e outras tantas. Nacionalmente, o potencial para o surgimento de iniciativas de caráter cultural para a realização, divulgação e difusão que sejam sustentáveis a longo prazo é enorme. As grandes orquestras, teatros, gravações, festivais e tantas outras iniciativas no hemisfério norte somente foram possíveis a partir da geração de conteúdo, descobertas e pesquisas de musicólogos que conscientemente ou não, foram o primeiro passo para um segmento importante de geração de riqueza baseado na história, educação e no entretenimento. Naturalmente, os tempos modernos vêm trazendo novos desafios para a criação, por exemplo, de um festival Lorenzo Fernandes de grande porte, e não podemos ignorar isso ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 423 quando defendemos a implementação de uma economia baseada nas descobertas musicológicas e que hão de ser realizadas e nas subsequentes edições que hão de ser feitas. A era da informação traz grandes desafios. As grandes orquestras europeias vêm assistindo o interesse pela música de concerto minguar em face de tantas facilidades e novos interesses a competir com as formas antigas de lidar, mas ainda resistem. Sempre haverá interesse pela música de Bach e Mozart. Parte de nosso desafio é construir esse interesse pela nossa história musical e nos apropriarmos das ferramentas modernas para contar essa história. Estes desafios vêm surgindo na própria São João del-Rei, onde estas novas dinâmicas sociais de internet, exigências de formação, apelos da sociedade de consumo, dentre tantas outras coisas, vem interferindo de uma forma ou de outra na manutenção das corporações. Não há uma resposta única e fácil para a sobrevivência das tradições centenárias, mas há que se convir que sua sobrevivência até hoje é um dado notável, o que indica uma força inerente e uma base sólida que pode alimentar iniciativas neste pequeno, mas rico universo. Nossas políticas oficiais de incentivo cultural sempre foram colocadas em cheque, e nestes tempos mais que em outros, a situação é especialmente complicada. Já não bastassem suas deformações, como aquelas que permitem que os detentores do capital definam o que vai ser apoiado financeiramente, ao invés disso ser feito pelos próprios artistas, o que se vive é a construção de uma suspeita coletiva em torno das leis de incentivo e dos próprios artistas. O que fazer quando uma sociedade desconfia do conhecimento e da arte? A tarefa é árdua e vai precisar de nossa ação. Se está nas mãos da musicologia histórica a prospecção de novos “tesouros musicais”, verdadeiro garimpo de ouro em forma de partituras, é hora de colocar mãos a obra e arrumar a própria casa, para em seguida, cuidar do mundo. Daqui não partimos de uma perspectiva exclusivista e limitadora, mas sim de uma busca por conexão com outras áreas, principalmente com nossas áreas afins e outros saberes. Paulo Castagna em seu artigo Desenvolver a Arquivologia Musical para aumentar a eficiência da Musicologia elenca os dez problemas mais significativos percebidos ao longo de sua profícua carreira e que devem ser atacados neste processo, pois estão na raiz daquilo que se poderia chamar de encruzilhada da pesquisa musicológica. Poucos destes problemas poderão ser resolvidos em curto prazo, mas dão boas dicas sobre o caminho que deve ser percorrido. A maioria pode ser atacada por nós mesmos, na medida em que fazem parte de ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 424 nosso dever de casa. Algumas das proposições seguintes podem auxiliar na resolução desse diagnóstico oferecido pelo professor Paulo. Uma das questões que precisam ser atacadas antes de se focar nas amarras de nossa musicologia até o momento é a do interesse tardio pela musicologia nas universidades. Musicologia histórica, bem como as outras seja lá quais forem, precisam estar mais próximas do estudante de graduação. É necessário que sejam oferecidas unidades curriculares, estágios, que se crie um clima de valorização da pesquisa. É importante que vocações para a área sejam reconhecidas e valorizadas. Nem todo estudante de graduação tem talento para a pesquisa, destes, alguns poucos tem potencial para o trabalho musicológico. Estes não podem ser desperdiçados. Não seria o caso de se falar numa “Educação para a Musicologia”? Existe um senso comum de que a disciplina História da Música é coisa de musicólogo. Se assim for, é necessário que a hierarquia de valores dentro da matéria seja revertida por estes. Estuda-se demais a música de fora e quase nada, ou nada, a música “de dentro”. Em muitos currículos dos cursos de música há até quatro semestres de “música ocidental” e apenas um de música brasileira, quando há. O resultado é desconhecimento, desconfiança e preconceito para com essa música. Foi essa a minha própria experiência na graduação, conforme relatado aqui mesmo, e certamente foi a de várias gerações de graduandos. Os resultados de nossas pesquisas precisam chegar a esses alunos, e eles precisam ser estimulados a opinar, a conhecer tais assuntos, a discuti-los. Não podem ficar circunscritos aos grupos de pesquisa, congressos e encontros temáticos. Se este encontro não gerar assunto para nossas aulas em nossas universidades e escolas, estamos fazendo alguma coisa errado. É necessário mobilizar a Extensão, como estratégia para aproximar as IFES das comunidades, e a partir destas para as instituições detentoras de acervos, ou vice-versa. Ações diretas, para diminuir inclusive a desconfiança que é comum entre os lideres das corporações em relação aos pesquisadores. Sabemos que nas instituições mais tradicionais essas suspeitas tem razão de ser, por isso é dever nosso refazer essas pontes, e as atividades de extensão ainda cumprem um papel importante que é o retorno em proveito à essas instituições. Não está mais na moda coletar papeis de música e sair pelo mundo sem nem olhar para trás. A pesquisa em fontes primárias precisa ser reconhecida como pesquisa. Elaboração de inventários, catálogos, construção e aprimoramento de normas para a arquivologia musical precisam ser reconhecidos pelos pares e pelas instituições como elemento fundamental do ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 425 desenvolvimento da música no Brasil. Mais do que isso, precisam ser estimuladas. Precisam ser assunto de grupos de trabalho, congressos, seminários, é necessário que sejam trocadas experiências, vivências e testadas hipóteses. É necessário o estímulo e a sistematização das edições de música histórica brasileira. A edição prática precisa deixar de ser uma “coisa feia”, as IFES precisam criar grupos para edição e discussão do tema. É necessária a criação de bases de dados e divulgação destas edições, estímulo à pesquisa tendo esse material como base, bem como desenvolvimento de expertise para sua realização. Seria interessante a ampliação das bases de dados, como a promovida pelo professor Carlos Alberto, obtendo a adesão de mais e mais interessados. Como passo subsequente ou mesmo concomitante às edições, é importante que grupos sejam criados e mantidos para a realização deste repertório. Que exista intenso intercâmbio de partituras e de experiências, e que possam surgir discussões que ampliem as questões ora postas, por exemplo, a construção de uma performance da música histórica brasileira, assuntoque me interessa imensamente. Fazer essa música ressurgir não somente nos textos dos musicólogos, mas também nos corações e ouvidos das pessoas. O brasileiro precisa se reconhecer nesse repertório. É necessário estimular e requalificar as discussões entre os musicólogos, e as suas áreas afins. Nas palavras de Maria Alice Volpe: “o projeto de nossa geração é ainda mais ambicioso do que se imaginava antes, e que trazer a Musicologia efetivamente para as Ciências Humanas e Sociais implicará o enfrentamento de impasses e desafios que cabe apenas à nossa área resolver”. Para fora do quintal, é necessário que as Universidades e seus agentes empenhem sua energia na discussão dos mecanismos de fomento à cultura. Leis de incentivo precisam ser recalibradas, de maneira que grupos instrumentais e vocais especializados na música histórica em suporte escrito tenham suas possibilidades de financiamento ampliadas. Somente com alterações de rotas será possível alimentar a esperança de que as ações de conservação e pesquisa a partir de acervos sejam estimuladas. Que mais ações em arquivos recebam verba, e menos aos grandes nomes, que afinal nem precisam efetivamente de incentivos oficiais para movimentar suas carreiras. Estamos em um momento histórico em que considero que as críticas paralisantes, como aquelas a respeito de uma musicologia “positivista” de Kermann não poderiam estar ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018 426 mais fora de propósito em face do volume de trabalho que nos espera. Quase a saga de David contra Golias. Imaginemos como seria a história se o futuro rei não tivesse matado o gigante por ouvir dizer que a funda não era a ferramenta ideal, ou que deveria ter escolhido uma pedra mais “de acordo”... É necessário sempre seguir em frente evitando as já conhecidas “vaidades” que assolam nosso meio, sempre com juízo e cautela. Talvez não esteja exatamente claro qual o caminho a ser trilhado, mas a reprodução de modelos sem uma consideração crítica e profunda de nossas próprias e prementes necessidades pode nos impedir de seguir em frente e de fazer o que de fato precisa ser feito. Ainda há muito a ser feito e muitos erros serão cometidos, mas precisamos sair daquela musicologia de estante para uma musicologia viva, politicamente ativa, conectada com as pessoas e seu patrimônio cultural no sentido amplo e restrito, cuidadosa, mas destemida. Em frente e sem temor, como nos aconselha o poeta e músico Paulinho da Viola: “Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Por isso musicólogos, AVANTE! REFERÊNCIAS CASTAGNA, Paulo. Desenvolver a Arquivologia Musical para aumentar a eficiência da Musicologia. In: ROCHA, Edite; ZILLE, José Baêta (Orgs.). Musicologias. Série Diálogos com o Som, v. 3. Barbacena: EDUEMG, 2016. KERMAN, Joseph. Musicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1987. LORENZO FERNANDES DIGITAL. Projeto Lorenzo Fernandes Digital. Disponível em <https://lorenzofernandez.org>, acessado em 09/08/2018. ROCHA, Edite. A Musicologia e seus Afetos. In: ROCHA, Edite; ZILLE, José Baêta (Orgs.). Musicologias. Série Diálogos com o Som, v. 3. Barbacena: EDUEMG, 2016.
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