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Semiótica e ideologia

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Semiótica e ideologia: algumas reflexões sobre o papel das estratégias sensíveis 
 
 
Nilton Hernandes1 
Doutorando FFLCH-USP 
Sergio Souza 
Doutor em História Social FFLCH-USP 
 
 
A Semiótica se desenvolveu estabelecendo o plano de conteúdo como o lugar privilegiado 
de estudos. Nos primeiros anos de pesquisas, a expressão foi literalmente deixada em segundo 
plano. Não houve, contudo, um descaso, mas uma opção no sentido de construir a semiótica em 
bases sólidas, passo a passo, de resolver determinados problemas antes de incorporar outros, 
como a questão da emoção, do sensível. 
E qual a razão de a Semiótica colocar de lado, nos primeiros anos, o plano de expressão? 
Um conto de fadas, por exemplo, pode ser contado oralmente, estar na forma de livro infantil, 
ter sido filmado, fazer parte de uma peça de teatro, ser representado na forma de quadrinhos. 
Em todas essas opções, se pode utilizar a teoria Semiótica, e aplicar o percurso gerativo de 
sentido no plano de conteúdo com excelentes resultados. Diana Luz Pessoa de Barros lembra 
que “o percurso gerativo do conteúdo é independente da manifestação, por uma expressão 
particular (verbal ou não verbal)”.2 É fundamental insistir: a teoria, em relação ao plano de 
conteúdo, dá conta de enormes e importantes questões de produção de sentido de um texto, não 
importa se verbal, visual, oral ou sincrético. 
No caso de semióticas sincréticas, por exemplo, basta fazer a abstração do uso de 
linguagens específicas para analisar o conteúdo. A razão é simples: ninguém vê um telejornal, 
por exemplo, entendendo separadamente os sentidos das tomadas de câmera, os sons, a 
narração. Recebemos essas unidades de informação praticamente de uma vez, juntas, 
relacionando-se. Essa massa de estímulos constrói na nossa cabeça um único “todo de sentido”. 
A mesma coisa ocorre no cinema, nos anúncios, nos jornais impressos: todas as linguagens 
utilizadas remetem para um mesmo e único conteúdo. 
Podemos observar que, se o conto de fadas tivesse sido contado por diferentes meios de 
comunicação, nos quadrinhos ou em um programa infantil da TV, ele continuaria a ter um 
determinado núcleo. E é por causa dessa “essência comum” que a teoria do plano de conteúdo é 
tão eficaz e poderosa. Entretanto, contar a mesma história no rádio, na TV, em uma revista 
também vai mexer com diferentes ordens sensoriais, vai acrescentar “alguma coisa”, tirar 
outras. Um pesquisador que não levar essas questões em consideração ao analisar um objeto, 
pode deixar algo de lado, de fora. Surgem questões para refletir (ou antigas questões ganham 
nova complexidade): a estesia e o estético (o impacto do belo, ou do feio, do estranho), a 
emoção, o reforço de certas paixões, o ritmo. Estudar a complexidade da grande maioria dos 
objetos de nosso cotidiano é, de um lado, buscar saber o que é esse “algo a mais” de sentido. Ao 
mesmo tempo, o estudo não pode prescindir da análise do plano do conteúdo e de tudo o que já 
 
1 Bolsista FAPESP. 
2 BARROS, Diana Luz Pessoa de. “Texto e imagem”. In Linguagens - Revista brasileira da Região Sul - 
Associação Brasileira de Semiótica - número 1, outubro de 1986, p. 32. 
foi conquistado pela semiótica. Há dois problemas (armadilhas?) que se colocam diante de 
quem quer fazer um estudo menos fragmentário de textos publicitários, jornalísticos, do cinema, 
artísticos, só para citar alguns: de um lado, é achar que somente uma análise do conteúdo dá 
conta da sua produção de sentido. De outro, é valorizar demais questões estéticas, sinestésicas, 
sensíveis e esquecer que se relacionam a um conteúdo, a uma visão de mundo, junto aos quais 
constituem uma estratégia de persuasão . 
É nesse ponto que entra a questão da ideologia e de algumas reflexões possíveis sobre o 
assunto. Todos os textos materializam uma ideologia, e é preciso, antes de seguir em frente, 
definir o conceito utilizado neste trabalho. Aceita-se aqui ideologia como “visão de mundo” de 
cada classe social, nascida, alicerçada e continuamente renovada nos conflitos de poder entre 
esses segmentos sociais - motivados principalmente por fatores econômicos. 
Barros afirma que “(...) a ideologia como visão de mundo permite relativizar a ‘verdade’, 
ao mostrar que há vários saberes ligados às diferentes classes, e reconhecer contradições em 
cada forma de ver o mundo, especialmente na visão dominante, criticando-a e a ela resistindo”.3 
Fiorin4 completa que a ideologia, entendida como visão de mundo, é “o ponto de vista de uma 
classe social a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena, justifica e explica a 
ordem social”. 
Tarasti lembra que, do ponto de vista semiótico, a diferença entre ideologia e axiologia é 
clara. Quando um indivíduo ou grupo adota certos valores como seus, esses valores se 
transformam em axiologias, que podem ser consideradas como uma coleção de valores. Quando 
depois um grupo ou indivíduo tenta legitimar sua axiologia para outros sujeitos, essas axiologias 
se transformam em ideologias.5 
Sabemos que a ideologia se refere ao plano de conteúdo. Mas uma questão que se coloca 
é justamente como as estratégias “sensíveis” determinam o que poderíamos chamar de 
“modulações” dos conteúdos, na afirmação de um sistema de valores. Expliquemos melhor a 
questão. 
 
Estratégias sensíveis e modulações do conteúdo 
 
Pensar o plano da expressão e as relações com o plano de conteúdo na construção de um 
sistema de valores é uma questão desafiante em textos não verbais. Isso porque, em textos 
midiáticos ou artísticos, só para citar alguns exemplos, a fronteira entre plano de expressão e 
plano de conteúdo não é rígida, porque depende de como a percepção a ordena. Fontanille 
chama tudo o que é da ordem da expressão de “mundo exterior”, e o que é da ordem do 
conteúdo de “mundo interior”.6 Graças ao nosso corpo, e à nossa percepção, é que reunimos 
esses dois planos na nossa consciência. O autor dá um exemplo bastante interessante da 
variação possível das fronteiras entre plano de expressão e plano de conteúdo. “Se, por 
exemplo, eu observo que a mudança de cores de uma fruta pode ser relacionada com os graus de 
maturação dela, os primeiros pertencerão ao plano de expressão, e os segundos ao plano de 
conteúdo. Porém, eu posso muito bem colocar em relação os mesmos graus de maturidade com 
uma das dimensões do tempo, a duração; e, dessa vez, os graus de maturidade aparecem como 
 
3 D. L. P. de Barros, Teoria do Discurso - fundamentos semióticos. São Paulo, Atual, 1988, p. 150. 
4 J. L. Fiorin, Linguagem e Ideologia. 5ª edição. São Paulo, Ática, 1997, p. 20. 
5 E. Tarasti. “Ideologies manifesting axiologies”, in Semiótica – Ideology, logic, and dialogue in 
semiothis perspective – volume 148, 2004, Susan Petrilli editora, Berlin/New York, Mouton de Gruyter, 
pág. 25. Fragmento original: “From an existential semiotic point of view, the difference between 
ideologies and axiologies is clear. (…) When an individual or group adopts certain values as its own, 
those values transform into axiologies, which constitute more or less compatible colletions of values. 
When ultimately an individual or a group tries to legitimize its axiologies to other subjects of its Dasein, 
those axiologies transform into ideologies.” 
6 J. Fontanille, Sémiotique du Discours. 2ª ed., Pulim – Collection: Nouveaux Actes Semiotiques, 2003, p. 
20. 
plano de expressão, e o tempo, como plano de conteúdo”.7 Lembra então Fontanille que, no 
lugar de fixar a existência presumida dos dois planos de linguagem, o interesse deve se 
concentrar sobre a maneira pela qual essa fronteira é instituída (idem). 
O autor faz uma diferenciação bastante interessante entre “sentido” e “significação”. Diz 
ele que “o sentido designa então um efeito de direção e de tensão, mais ou menos conhecível, 
produzido por um objeto, uma prática ou situação quaisquer”.8 “Em oposição ao sentido, asignificação é sempre articulada”.9 Há duas questões que interessam bastante aos propósitos 
deste trabalho. Observemos: 
- Uma relação entre percepção e significação.10 A partir de nossa percepção emergem 
as significações. Nossa percepção do mundo “exterior”, ou seja, o que se apresenta para a nossa 
consciência a partir dos sentidos de nosso corpo, nos impõe uma organização inicial, um recorte 
dessas experiências – o significante (ou plano de expressão) – e a busca por correspondência no 
nosso “mundo interior” na forma de conceitos, afetos, sensações, impressões – o significado (ou 
plano de conteúdo). 
- A formação de um sistema de valores – categorizar uma experiência é colocá-la numa 
rede de relações que corresponde a um sistema de valores construído socialmente e do qual 
participamos. E, nos ensina Saussure, essa relações nascem a partir da percepção de diferenças. 
O sistema de valores, por sua vez, determina como o sujeito se relaciona com diferentes objetos. 
Notadamente em objetos não verbais, podemos observar que eles manipulam a nossa 
atenção, ou seja, o próprio relacionamento que temos com eles. Pensamos, por exemplo, em 
programas jornalísticos da televisão. Há um trabalho não só de planos e focalização como 
também de montagem ou edição. É a edição que controla o contato público/tomadas e, portanto, 
vai também gerenciar as relações entre planos que acabamos de citar. Quando um programa 
cede mais tempo para uma tomada ou cena11, maneja uma relação cessão de tempo – valor – 
atenção. E, novamente, encontramos aí relações entre plano de expressão e conteúdo. 
Os recursos de câmera e de edição têm a missão última de administrar como o público 
deve se sentir e reagir, evidenciando ou desvalorizando certos aspectos narrativos ou 
discursivos. Definem assim as relações entre unidades, as formas de percepção de valores, 
momentos de tensão e de euforia/disforia. É importante ressaltar que as relações entre plano de 
conteúdo e plano de expressão se apóiam numa série de efeitos de sentido cristalizados, ou seja, 
manipulados pelo enunciador e decodificados facilmente pelos enunciatários. É o caso do close-
up, por exemplo. Qualquer objeto que for focado pela câmera em detalhes imediatamente será 
entendido como “importante” para a trama pelo público. Em textos que trabalham com o sentido 
 
7 Idem, p 34. No original: “Si, par exemple, j´observe que les changements de couleur d’um fruit peuvent 
être mis em relation avec sés degrés de maturité, les premiers appartiendront au plan de l’expression, et 
les seconds, au plan du contenu. Mais je peux tout aussi bien mettre em relation les mêmes degrés de 
maturité avec une des dimensions du temps, la durée; et, cette fois, les degrés de maturité appartiennent 
au plan de l’expression, et le temps, au plan du contenu. 
8 Idem, p. 21. No original: “Le sens designe donc un effet de direction et de tension, plus ou moins 
connaissable, produit par um objet, une pratique ou une situation quelconques.” 
9 Ibidem, p. 25. 
10 As idéias que se seguem, com modificações, são de Fontanille, op. cit., p.29. Há uma gíria brasileira 
que ilustra essa diferença entre o sentido na formulação de Fontanille - como o primeiro impacto ou 
experiência que temos com alguma coisa - e o posterior entendimento ou categorização do que se passa, a 
significação. Trata-se da expressão “cair a ficha”. Geralmente essa gíria, na forma de uma brincadeira, é 
utilizada quando duas pessoas - ou mais - estão conversando. A primeira compreende os argumentos ou 
alguma situação após um tempo que a segunda considera excessivo. Essa última diz então, para brincar, 
“finalmente ‘caiu a ficha’”. Ou seja, o sentido virou significado. Ou dito de outra maneira, o sentir virou 
uma forma de conhecimento, um saber. 
11 Tomada é um trecho de filme rodado ininterruptamente. A câmera, numa mesma tomada, pode começar 
a filmar em plano geral e ir “fechando” até um close-up. Já cena é uma parte de um filme que abrange 
diversos planos de câmera, focalizando uma certa situação em que aparecem as mesmas personagens, no 
mesmo ambiente. 
na forma de fluxo, como a TV, rádio, o cinema, por exemplo, a edição pode imprimir um ritmo 
que administre sua própria inteligibilidade. Um ritmo de cortes intenso, por exemplo, impõe 
uma dimensão emotiva, sensível. Sem tempo para pensar, o enunciatário pode ter seu senso 
crítico manipulado para ser impedido de “axiologizar” o que sente, ou seja, remeter as 
experiências sensíveis a seu código de valores. Por outro lado, a seqüência longa, sem cortes, 
tende a levar o efeito de realidade ao limite, criando o simulacro de uma relação direta entre 
enunciatário e conteúdo, e explorando as relações sensíveis entre ambos, caso da exibição 
televisiva de perseguições policiais ou de grandes tragédias. 
Nos programas jornalísticos de rádio, para citar outro exemplo, não é só o controle do 
fluxo de notícias via manipulação aspectual do tempo que tem um papel importante. Podemos 
perceber ainda, uma série de outras estratégias, notadamente a da entoação utilizada pelos 
jornalistas para determinar valores da notícia. Acreditamos que o rádio tem sido um objeto 
pouco estudado justamente porque é difícil mostrar como seu conteúdo não é apenas o que 
poderíamos identificar como o “roteiro” que organiza o trabalho dos âncoras, repórteres, 
apresentadores, técnicos, mas principalmente o modo pelo qual o conteúdo desse mesmo roteiro 
– um texto escrito – se torna texto oral e depois sincrético, ou seja, é reformulado, enriquecido e 
ganha enorme complexidade persuasiva. 
Estratégias expressivas da fala dos jornalistas, por exemplo, podem até subverter os 
conteúdos do “roteiro”. O modo de dizer pode alterar o sentido do que está sendo dito. 
Exemplifiquemos. Todo candidato a ator faz exercícios nos quais aprende dizer “algo a mais”, 
com significados distintos, a partir de uma mesmíssima frase. O modo de os clientes pedirem 
café em uma padaria lotada, onde o serviço se mostra lento, também ilustra a questão. A mesma 
frase: “Por favor, um café” pode ser dita por alguém que queria sobrepor ao seu pedido o 
seguinte significado: “Eu não agüento mais esperar”. Ou ainda por outro cliente que, ao utilizar 
a mesma frase, capricha no sentido de súplica, como se o modo humilde do pedido fosse uma 
maneira de ele comunicar que compreende que o atendente está com serviço demais. Percebe-
se, nesses dois casos, diferentes “subtextos” para uma única frase que redundam em diferentes 
estratégias de manipulação (um investe em intimidação do balconista, o outro em sedução). O 
sentido primeiro, no entanto, não foi prejudicado. Nos dois casos, o que se quer é beber uma 
xícara de café. 
A observação do trabalho de locução, no entanto, mostra que a questão é mais complexa. 
Podemos notar dois casos de “acréscimos” de sentido via entoação. O primeiro é justamente o 
de criação de um “algo mais”, o tal do subtexto. No entanto, o caso mais comum é que o tom de 
voz euforiza ou desforiza o conteúdo das notícias em alguns momentos, como resultado, por 
exemplo, de um tom alegre ou solene na maneira de apresentá-las. A idéia de foria significa 
submeter a notícia a um universo axiológico, ou seja, mostrá-la como possuindo valores que 
trafegam entre a repulsa e a atração da visão de mundo do enunciador, valores que se dão na 
forma de uma sensibilização do discurso. 
 
 
Considerações finais 
 
Acreditamos que se um analista quiser ter um entendimento menos fragmentário de 
objetos semióticos que têm uma articulação complexa entre conteúdo e expressão, como os 
artísticos, cinematográficos, publicitários, jornalísticos, deverá não só ter uma reflexão profunda 
sobre as estratégias sensíveis, mas também verificar a importância delas no manejo ou 
sobredeterminação dos conteúdos dos textos. Pode se ter assim melhor compreensão dos 
interesses, valores e objetivos do enunciador e suas estratégias de persuasão e manipulaçãodo 
enunciatário.

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