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Gramatica_da_Gravura

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Gramática da Gravura 
Rozélia Medeiros – rozelia@uol.com.br 
 
Resumo: pequeno ensaio sobre relações entre os conceitos de especular, signo, hábito, 
imagem, gravura, rizoma, platôs, na visão de Perniola, Deleuze e Peirce, inspirados na leitura 
de dois contos, um de Guimarães Rosa e outro de Machado de Assis, que tem no Espelho o 
tema em comum. 
 
Palavras-chave: Gravura, imagem, signo, espelho, Perniola, Deleuze e Peirce. 
 
 
Da leitura cruzada, mas também em paralelo dos dois contos – Espelhos, de Guimarães 
Rosa e de Machado de Assis, e rebatida no pensamento ritual, da forma de Mamúrio em 
Perniola e clivada nos conceitos - sistemas semióticos de Peirce, além de que tudo isto à 
luz fantasmagórica da virtualidade especular e rebatida no real da invenção de Morel de 
Bioy Casares nasce - como não poderia deixar de ser, uma pequena „batata‟, tubérculo 
rizomatoso deleuziano. Estas linhas de pensamento em aparente paradoxo parecem 
propiciar o surgimento de pequenas „plataformas‟ de relações flutuantes, como num filme 
antigo do super-herói intergaláctico Buck Rogers, micro efeito-platô ao modo da escritura 
de Deleuze. 
 
Parece que este jogo conceitual de espelhos, onde cada conceito, que se pode extrair da 
visão de cada autor mencionado, reflete um ao outro, em continuidade multifacetada, 
desvelando o fundo infinito para onde, em conjunto, apontam. Desde o mito de Narciso, a 
idéia é de que, quando se olha para o espelhado olha-se para o infinito de si mesmo, e o 
que se enxerga é o anteparo da aparência. Nela e dela se pode morrer ou nela está o 
início. A aparência é o primeiro modo semiótico do fenômeno. Aparência é Imagem. 
 
Como anteparo, uma imagem – aparência carreia a ideia de algo que se interrompe, pára 
e rompe um fluxo contínuo, e isto não parece instintivamente correto para descrever um 
espelho. Na imagem especular o espaço-tempo se propaga, engolindo tudo o que, 
impotente, se põe diante dele. Imagem é Gravura. 
 
Quando de alguma maneira se captura um momento desse fluxo, faz-se um registro, uma 
gravação, se foto grava, um novo fenômeno se manifesta, com novas características, e a 
partir dele novas relações podem ser estabelecidas. Novos conceitos concorrem para 
novos entendimentos. Por exemplo, uma fotografia, uma gravura, um desenho possui 
mailto:rozelia@uol.com.br
algumas características da imagem especular e outras bem diferentes, até mesmo, 
opostas, e ainda outras recuperadas em novo patamar. 
 
Segundo a tipologia de Mitchell citado por Santaella e Nöeth (2005:36) estaríamos 
transitando das imagens óticas, espelhos, projeções, sombras, para o universo das 
imagens gráficas, pinturas, desenhos, esculturas, e acrescentamos gravuras, nas quais a 
repetição e a reprodutibilidade, a atualização de uma lei, surgem como um elemento a 
mais de aproximação com o conceito de espelho, matriz e cópia, portanto protótipo e não 
apenas tipo. 
 
Pode-se, a partir dessa percepção, pensar a hipótese de uma gramática própria da 
gravura. Gramática no sentido lógico-semiótico, onde se especula sobre um modo 
„correto‟ de pensar uma imagem gravada, produzir, analisar, contextualizar em termos, 
artísticos, filosóficos, etc. Será possível produzir textos puramente imagéticos? De isso 
depreender uma gramática? Daí surgirem linguagem e metalinguagem? 
 
O espelho do banheiro. Uma gravura é diferente de uma fotografia, que por outro lado 
não deixa de ser uma forma de gravar, e é diferente de um espelho, no entanto existem 
propriedades em comum. Dessas triangulações talvez se possa chegar num modus 
operandis de análise para extrair valores gerais que viriam a constituir algum tipo de 
gramática. 
 
 
 
Logo no início de Arte e Ilusão de Gombrich, a propósito de tratar de um caso simples de 
ilusão, que são algumas ilusões de ótica corriqueiras, e logo depois de ilustrar com seu já 
patocoelho, que por sinal é um „espelhamento‟, propõe a experiência de logo após sair 
do banho, postemo-nos diante do espelho embaçado e a seguir desenhemos com o dedo 
o contorno da cabeça. 
 
Nisso se verifica facilmente que a imagem „gravada‟ na superfície embaçada é cerca de 
metade do tamanho da cabeça real. Função espelho  função fotográfica + função 
gráfica. A distância focal, ou a profundidade de campo do espelho atua da mesma forma 
da fotográfica, e, portanto a imagem não se forma na superfície; já o registro gráfico 
produzido pelo dedo na película de vapor, segue o princípio da gravação e rebate a 
profundidade no plano, reduzindo a dimensão real da figura. Arte e Ilusão? Não, 
Realidade. 
 
Qual é a importância, tanto para produtores, disseminadores, quanto para todos nós os 
mortais receptores, engolidores de imagens, cogitar sobre estas questões? Ao menos em 
dois sentidos: como coautores da contemporaneidade temos a necessidade de estar 
capacitados para lidar com este momento histórico do trânsito da prevalência do verbal, 
do logocentrismo ocidental para os processos de interação imagética, propiciados e 
proeminentes, na massificação da informação verbi-voco-visual da nossa experiência 
diária. Por outro lado, como artistas e todos os demais responsáveis proativos de 
imagens tem-se a necessidade e dever de buscar linhas de força evolutivas nessas 
realizações, contribuir para a evolução, mesmo que de forma assintótica, para a melhoria 
da vida de nossa espécie, em todas as suas dimensões. Entender a importância da 
Imagem – de sua gramática interna e externa - na constituição do pensamento, dos 
processos cognitivos e, portanto interpretativos, está dentro deste escopo. 
 
Aqui ainda é importante anotar que uma gramática da Imagem é também uma gramática 
da Gravura, mas uma não se reduz à outra. Mesmo que se venha a encontrar limitações 
conceituais a aplicação do termo gramática para operações ou semioses dos signos -
imagem, em termos epistemológicos, ainda assim, dentro dessas possíveis limitações, 
mesmo que se constitua apenas uma espécie de proto - gramática, o cotejo entre 
Imagem e Gravura pode render importantes descobertas, para a compreensão de ambas. 
 
 
Plataforma 1 – Signo reflexo 
Mimeses, . 
 
O reflexo num espelho é uma imagem peculiar. Mas a sua natureza geral como imagem 
permite tratá-la sob o estatuto semiótico de signo. A principal característica semiótica da 
imagem especular que parece saltar a frente é a de um processo dinâmico de reflexão, 
um fluxo permanente de instantâneos de imagens. 
 
Reflexos são imagens no tempo. Signo cuja natureza primordial é ser in ação, semiose. 
Semiose ou ação do signo é, em termos da semiótica peirceana, uma relação triádica e 
tem a forma ordenada de um processo gerativo. Ser uma relação triádica, quer dizer ser 
uma ação que possui a forma lógica onde três termos – o signo, seu objeto e seu signo 
interpretante (gerado pelo primeiro por determinação colateral do objeto) agem em 
cooperação diferencial. Ou seja, um signo representa um objeto diferente dele mesmo 
para a interpretação na qual um significado é gerado. Este significado é outro signo, 
diferente do primeiro porque significa apenas alguns dos aspectos possíveis do objeto 
que os determinou. 
 
Plataforma 2 - O estranhamento na Réplica da Lei. 
Images each others. Ars como trânsito do mesmo para o mesmo. Para Deleuze, segundo 
Perniola, o simulacro é o contrário do “fictício”. O que não é fictício é real, possui 
realidade, capacidade própria de existir, de forma positiva, como alteridade. 
 
A ARTE ALTER A 
 
Do ponto de vista deste trabalho é mais interessante escarafunchar a implicações que 
decorrem da dissociação do conceito de simulacro do de ficção, mas num espelhamento 
refrativo das ideias de real, ficcional e virtual. O ficcional não pretende existir na 
alteridade, apenas ser realmente virtual, uma condição de plausibilidade no máximo. O 
simulacro é virtualmente real. Uma possibilidade de existência. 
Uma gramáticadas Imagens, como linguagem parece ser pensável a partir da ideia de 
que as Imagens são todas „positivas‟ como em Ops, imagens não são contraditórias entre 
si, são icônicas, não cópias, mas sim, atualizações de protótipos. 
Ops segundo Perniola é uma deusa grega tribal ligada à agricultura e que se refere “à 
dimensão abstrata correspondente, que abrange as noções de abundância, de 
prosperidade, de ajuda, de completude,...” Mas o mais significativo sobre essa relação 
„alegórica‟ está na relação que o autor estabelece entre Ops e opus, obra. “Ops é afim 
com opus: designa a atividade produtora, a abundância considerada enquanto força ativa 
que cria a prosperidade através de uma repetição. As colheitas, as frutas, os produtos 
naturais já seriam simulacros, repetições perfeitas, cópias produzidas por uma força que 
nunca cria nada de absolutamente novo ou original. A obra da natureza se revelaria 
assim semelhante à obra de arte humana” (2000:235). É uma contradição, pois ao 
mesmo tempo em que o que se reproduz é a força prototípica, a singularidade do gosto 
do fruto tanto é melhor quanto mais for livre e perfeito na reprodução daquela qualidade 
da semente. Semente não é origem é mídia. 
 
O positivo exige o negativo, e não de modo diádico. A ideia do negativo fundo é 
fundamental para a produção de um discurso, e só um discurso é passível de exprimir 
uma gramática. Como pode se produzir um discurso sem a disposição linear sucessiva no 
tempo de qualidades - ideias? Não se pode. Como uma imagem „isolada‟ em si mesma, 
ensimesmada, uma figura pode „dizer‟ alguma coisa? E diz. Todo mundo sabe. Um 
negativo-fundo é um positivo, uma figura. 
 
Quando olhamos uma imagem visual qualquer e, supostamente conseguimos recorta-la 
dos perceptos visuais adjacentes, ou isolar a figura do fundo, ela se propaga na 
continuidade das imagens mentais que incontrolavelmente são produzidas pela ação do 
signo gerando interpretantes. 
 
Cada imagem mental produzida é outro signo, criatura da imagem para qual olhamos, 
entidade positiva, que têm como de fundo o discurso polifônico e polissêmico de todas as 
possibilidades, de todo o devir - potência daquelas imagens – ideias que não nos 
ocorrem, mas poderiam vir a ocorrer. 
 
Hábito – pode ser definido como a repetição regular ou frequente de uma ação, é também 
um modo de agir, de uma perspectiva psicológica ou subjetiva, ou um modo de ação-
manifestação de um ponto de vista lógico-objetivo. 
 
No espelho – a imagem refletida obedeça menos ao objeto que reflete do que a 
possibilidade do próprio espelho. Quem dita o resultado – imagem final produzida é a 
regra-natureza do espelho. Um espelho convexo não produz uma imagem plana qualquer 
que seja o objeto. É a lei – hábito do espelho. 
 
A gravura é sempre mais a reprodução de si mesma – que são as propriedades de sua 
matriz, suas regularidades – do que qualquer objeto referente possível. Esta é a lei que 
rege suas réplicas. 
 
Mas assim como cada reflexo é vicariamente ligado ao espelho e ao objeto no tempo-
espaço, a cada instante ele se atualiza e neste fato qualquer alteração de luz ou de ponto 
de vista é a quebra dessa regularidade, também cada cópia ou impressão está submetida 
à ação do acaso, à quebra da regularidade automática, inerente até aos processos mais 
precisos de reprodução. Para a gravura artística isto pode ser um fator desejável. 
 
Hábito e mudança de hábito é o contínuo fluir do processo semiótico, da atualização de 
signo em signo, de imagem em imagem. O Hábito de gerar hábitos é a lei da mente. E a 
crença é o hábito inteligente, não o mero repetir automático do gesto aprendido, proposto, 
mas para que assim seja a noção de hábito exige a noção de mudança de hábito. A 
quebra da regularidade pela espontaneidade do novo ou do novamente, que assim 
confirma a própria semiose ou a ação preponderante do signo. Que não é igual sendo o 
mesmo, um modo de pensar implícito. Um signo só é signo na medida em que gera um 
Interpretante, signo mais desenvolvido, representamen, que é o signo com um 
interpretante mental. 
 
Uma sucessão de reflexos, de „cópias‟ que são qua cópia. Devir nunca é Imitar, in 
Deleuze. 
 
Setembro de 2009 – Poética da Imagem 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS: 
 
ASSIS, Machado de. "O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana". In: Obras 
Completas de Machado de Assis: Papéis avulsos (Vol. XII), Rio de Janeiro, São 
Paulo, Porto Alegre: W.M. Jackson, 1952. 
 
PEIRCE, Charles S. 1995. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. CD-ROM DATABASE. 
Chalettesville, VA: INTERLEX CORPORATIONS. 
 
PERNIOLA, Mário. "A arte de Mamúrio". In: Pensando o ritual: sexualidade, morte,mundo. São 
Paulo: Studio Nobel, 2000. 
 
ROSA, Guimarães. "O espelho". In: Primeiras estórias. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 
2008. 
 
SANTAELLA, Lucia; NOETH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: 
Iluminuras, 1997. 
 
SANTAELA, Lúcia. 1995. A Teoria Geral dos Signos: Semiose e Autogestão. São Paulo: ÁTICA.

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