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119 OS IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO PARA O SUS

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OS IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO PARA O SUS 
 
Como um sistema de saúde público universal pode garantir os seus princípios 
equitativos em uma sociedade cada vez mais globalizada e mercantilizada? Esta é a 
reflexão trazida pela sanitarista Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora da 
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e colaboradora do 
projeto Brasil Saúde Amanhã. Em coautoria com Isabela Soares Santos e Danielle da 
Costa Leite Borges, Maria Angélica assina o capítulo “Mix Público-Privado no Sistema 
de Saúde Brasileiro: Realidade e Futuro do SUS”, que integra o livro “A Saúde no 
Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde 
Brasileiro”. Nesta entrevista, a pesquisadora – que desde 2001 se dedica ao estudo 
da dinâmica econômica do sistema de saúde brasileiro – comenta as perspectivas 
futuras para a Saúde Pública no Brasil, considerando os cenários de retração 
econômica, manutenção das desigualdades sociais e abertura do setor ao capital 
estrangeiro. 
 
 
Como a globalização e consequente mercantilização da sociedade 
impactam o sistema de saúde brasileiro? 
A globalização é, antes de tudo, um princípio econômico que visa franquear a 
livre circulação do capital entre os países. Mas qual deve ser o limite para isso quando 
se trata da Saúde? Esta é uma questão delicada – e ética – pois a Saúde 
 
 
inevitavelmente cria situações-limite e as decisões são tomadas, em última instância, 
a partir do ponto de vista de um determinado grupo social. E essa dinâmica se 
intensifica quando, em vez de pensar em um sistema nacional de saúde, precisamos 
considerar um sistema global, que integra diferentes países, Estados e nações. 
Almejar um sistema de saúde global solidário, justo e equitativo é um paradoxo em 
um mundo cada vez mais mercantilizado, em que cada país ou grupo social tem como 
prioridade proteger e garantir os seus direitos, o seu acesso, em detrimento do bem-
estar coletivo. Então precisamos estar atentos para, em um contexto como este, 
pensar, sob uma perspectiva ética, quais são os limites para a mercantilização e para 
a própria possibilidade de globalização da Saúde. 
Essa é uma situação especialmente complexa para os países em 
desenvolvimento, uma vez que os chamados países desenvolvidos têm mais 
garantias e subsídios para manter o equilíbrio de seus mercados e as prerrogativas 
de seus cidadãos. Já os países em desenvolvimento, como o Brasil, não têm essas 
blindagens. Então, injetar capital estrangeiro nestes países significa intensificar a 
dinâmica de exploração mantida desde as relações entre metrópoles e colônias, uma 
vez que “capital estrangeiro sem fins de lucro” é um paradoxo conceitual. Há diversas 
incongruências na recente abertura geral para a entrada de capital estrangeiro para a 
Saúde no Brasil – essa da permissão da entrada de investimento estrangeiro em 
serviços sem fins de lucro é apenas uma delas. 
Por outro lado, a globalização da saúde parece ser uma situação inevitável. O 
capital tem essa tendência internacionalizante e fatalmente a globalização nos leva a 
uma remodelação geral dos sistemas de saúde, em todo o mundo. No caso do Brasil, 
que tem uma infraestrutura básica de Saúde bem organizada, inclusive com 
excelência tecnológica em várias áreas da prestação de serviços, a 
internacionalização do setor não trará, necessariamente, novas tecnologias, 
bioprodutos de ponta ou profissionais altamente qualificados, mas, sim, novas 
oportunidades de negócios para o capital estrangeiro. O que precisamos nos 
perguntar, agora, é se essas novas oportunidades de negócios que surgirão serão 
realmente boas para nós, brasileiros. 
Em síntese, o que o capital estrangeiro busca ao entrar em mercados nacionais 
de Saúde é o que o capital estrangeiro busca ao entrar em qualquer mercado nacional: 
 
 
lucro fácil, rápido e seguro. E a Saúde é um prato cheio para isso, uma vez que suas 
demandas apenas aumentam e, sobretudo nos países em desenvolvimento, os 
investimentos nacionais não são suficientes. São grupos internacionais voltados para 
o investimento em tudo o que possa dar lucro: e hoje essas oportunidades de novos 
negócios estão concentradas nas áreas de entretenimento, educação e agora, 
também, a Saúde. Ainda há muito a aprender e investigar sobre isso, mas ignorar esta 
realidade certamente não é o caminho mais apropriado. 
Por que é importante estudar o mix público-privado na Saúde e como é 
possível prospectar o futuro da dinâmica econômica do setor? 
 
Podemos abordar o mix público-privado na Saúde a partir de pontos de vista 
diferentes e complementares. Podemos focar, como ponto de partida, nas questões 
envolvendo as fortes desigualdades sociais que persistem no Brasil e comprometem 
a equidade do sistema de saúde, buscando entender o impacto desse mix de 
prestadores de serviços e de modelos de financiamento nas condições de acesso ao 
sistema de saúde e na equidade. Mas também podemos partir da observação da 
dinâmica econômica da Saúde – e esta é a minha área de concentração – para 
desembocar na discussão sobre do direito e acesso à saúde. 
Compreender a inserção da Saúde na Economia é fundamental para a 
regulação do setor, que acaba sendo a estratégia possível para tentar tamponar os 
efeitos deletérios das forças de mercado sobre o acesso à saúde. Também é um 
exercício permanente e essencial para entendermos quais são as tendências para o 
futuro, para sabermos para aonde estamos nos encaminhando e para desembocar 
em outras discussões, como o debate sobre o impacto desta dinâmica sobre os 
princípios do SUS, como a equidade. E para isso precisarmos fazer as contas do que 
se gasta, saber quem gasta, de que forma gasta e qual o retorno do investimento. É 
importante saber também como estão se configurando e conformando os mercados, 
se há concorrência, as tendências à formação de monopólios e das margens de 
lucros…. Este trabalho é feito pelo grupo multidisciplinar Contas de Saúde, que integra 
pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de 
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Agência Nacional de Saúde Suplementar 
(ANS) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). 
 
 
 
Neste grupo, a partir do arcabouço conceitual do Produto Interno Bruto (PIB), 
inferimos a participação da Saúde na economia brasileira e buscamos dinamizar 
discussões sobre o financiamento da Saúde, a infraestrutura de prestação de serviços 
e produção de insumos e a relação do Estado com os prestadores de serviços 
(públicos e privados; em âmbito municipal, estadual ou federal; com ou sem fins 
lucrativos). Ao fazer uma conta como esta, percebemos claramente o mix público-
privado na Saúde e a urgência de um sistema regulatório mais eficaz 
E, agora, teremos que considerar também esta nova dimensão trazida pela 
abertura do setor Saúde ao capital estrangeiro: os prestadores de serviços 
internacionais. Trata-se de uma realidade que não estava prevista no ideário do SUS 
e que, no entanto, se apresenta a nós. A mercantilização crescente da prestação de 
serviços de saúde é uma tendência mundial desde a década de 1950. No Brasil, essa 
tendência torna-se clara em finais da década de 1970, quando o governo fez uma 
aposta de financiamento da capacidade instalada de hospitais privados, configurando 
a primeira onda a de privatização dos serviços de saúde no país. Essa aposta deu 
margem para o crescimento dos planos de saúde e agora cria as oportunidades para 
a penetração do capital estrangeiro na prestação de serviços de saúde o Brasil. O que 
estamos tentando estudar são os padrões e implicações da maior circulação de capital 
privado na Saúde, seja por meio do financiamento ou da prestação de serviços. 
O que podemos esperar para o futuro do sistema de saúde brasileiro a 
partir da abertura do setor ao capital estrangeiro? 
 
Para perceber o que estáacontecendo – e o que ainda vai acontecer – com o 
sistema de saúde brasileiro basta ler os sinais. E os sinais estão nos jornais de grande 
circulação, nos debates e prioridades dos setores mais abonados da sociedade. 
Investigar esta dinâmica é fundamental para entender o que estas pessoas e grupos 
que comandam o Brasil pensam e planejam ou , talvez melhor dizer, almejam. Assim 
poderemos nos preparar melhor para o futuro. 
 
 
 
Hoje precisamos estar atentos também à globalização, à interação econômica 
com os outros países e as situações que surgirão a partir disso. No contexto global, o 
que os sinais nos mostram é que, acoplada a essa expansão sem precedentes do 
capital na saúde, há um movimento dos organismos internacionais pela garantia da 
cobertura universal em saúde. A lógica por trás disso é a consciência da capacidade 
imensa de criação de desigualdade da livre circulação de capitais. Se não for garantida 
uma cobertura universal dos serviços básicos de Saúde nos países, corremos o risco 
de ter um problema de saúde pública global incontrolável – um problema não apenas 
humanitário ou sociológico, mas epidemiológico e sanitário. É por isso que muitos 
entendem que a perspectiva da cobertura universal que vem sendo defendida é uma 
perspectiva filosófica bem diferente de entender a saúde como Direito. Seria uma 
tentativa de prover uma espécie “garantia sanitária” para o sucesso dos princípios da 
globalização. 
Aqui no Brasil, desde a década de 1980 alguns sanitaristas já reconheciam que 
é preciso observar o sistema de saúde em sua interação com a dinâmica econômica 
do país e com o capitalismo. Mas quando fundamos o SUS, muitos de nós 
acreditávamos que o nosso sistema universal de saúde era uma realidade à parte, 
que ele não participava da lógica mercantil que rege a nossa sociedade. Nós 
gostaríamos que fosse assim. No entanto, hoje sabemos que o ideal não é o real. E 
não podemos fingir que isso não existe. 
No ano 2000, começamos a perceber que a abertura da Saúde ao capital 
estrangeiro acabaria acontecendo também no Brasil, pois já havia uma pressão 
internacional de mercantilização da saúde, na forma de um clamor de organismos 
internacionais para a maior participação do setor e da lógicas privados. Países que 
eram os esteios do WellfareSate estavam abrindo espaço para uma dinâmica mais 
mercantil da Saúde – ainda que no campo ideológico, a partir de conceitos da iniciativa 
privada, como o de competição. Esse viés foi tomando conta de sistemas de saúde 
pública que eram modelo para nós, como o da Inglaterra, e agora chegou ao Brasil. 
A impressão é que estamos navegando em um barco sem vela, pois ainda não 
temos ainda evidências para avaliar as dimensões dos efeitos disso. É preciso realizar 
estudos comparativos para conhecer sistemas de saúde de outros países e analisar 
as suas experiências. A partir disso, precisamos investigar quais são os mecanismos 
 
 
legais, as políticas públicas e as ações efetivas para que possamos preservar o ideário 
do SUS neste cenário. 
Quais as perspectivas para o futuro, em um país com um sistema de 
saúde público e universal que se abre cada vez mais ao capital privado? 
A entrada de capital estrangeiro pode ser considerada uma terceira onda da 
expansão do setor privado de serviços de saúde no Brasil que, por fim, endossa a 
Saúde como uma atividade mercantil que visa ao lucro – e não como um direito. 
As OSS, que seriam a segunda onda de adesão no Brasil a essa lógica mais 
empresarial na saúde, constituem uma forma de prestação de serviço para a Saúde 
muito diferente do que existia quando fundamos o SUS. Naquela época, este espaço 
era ocupado sobretudo por casas de saúde, santas casas e outras fundações sem 
fins lucrativos. Os contratos eram regidos por tabelas fixas, sem reajustes e tudo era 
orquestrado numa lógica predominantemente sem fins de lucro em parcerias onde o 
polo dominante era o setor público. As OSS também são, em tese, sem fins de lucro, 
mas tem uma característica muito forte de empreendedorismo social, segundo o 
modelo norte-americano, com um perfil corporativo jamais visto nas santas casas. A 
dominância dos interesses do setor público nas parcerias com esse modelo já começa 
a ficar colocada em xeque, mais ainda quanto mais abrimos mão de ter serviços 
públicos próprios e o “mercado” de OSS se oligopoliza . 
Hoje, temos cinco grandes OSS no Brasil, dentre elas uma que está entre as 
150 maiores empresas do país, com um faturamento de R$ 3 bilhões. Esta é uma 
tendência oligopolista que está crescendo e tende a crescer ainda mais com a entrada 
de capital estrangeiro na Saúde. A perspectiva é que, nos próximos anos, o SUS passe 
a ser cada vez mais pilotado por prestadores privados e capital estrangeiro com um 
poder de negociação que ainda nem imaginamos – e por suas lógicas, princípios e 
prioridades. E, neste cenário, se tornarão ainda mais complicadas as negociações 
para garantir o acesso da população a serviços de saúde. Diante deste quadro, é 
fundamental estudarmos os novos modelos de negócio que surgem para o setor 
Saúde e para o SUS.

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