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Aula 5 Justiça de transição e o direito à justificativa

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Justiça de transição e o direito à justificativa
Objetivo da exposição: mostrar a utilização do direito à justificativa na justiça de transição
Justiça de transição: justiça política feita na transição de uma ditadura para uma democracia ou de uma situação de guerra para uma situação de paz
Conteúdo da justiça de transição
Medidas judiciais e extrajudiciais relativas 
aos direitos do acusado
aos interesses da vítima
bem-estar da sociedade no longo prazo
Objetivos da justiça de transição: paz e justiça
Paz com os responsáveis pelo regime anterior (ou com o inimigo anterior)
Justiça
direito à verdade (à justificação)
direito à reparação 
punição e/ou anistia
Direito à verdade
Fundamento do direito à verdade: a existência de uma comunidade ética, em cuja visão de mundo: 
elege-se a verdade como valor essencial 
existe um dever de se dizer a verdade, e um direito de que ela seja dita
não se admite uma cláusula que autorize a mentira: nenhum dos contratantes está autorizado a mentir. Ao contrário, espera-se que todos digam a verdade
o conhecimento da verdade pode trazer tranquilidade para as famílias das vítimas 
a verdade permite identificar violadores e responsabilizá-los moral, política e criminalmente
a verdade desempenha uma função política, ao revelar para a opinião pública os custos do passado 
Apuração da verdade: 
o que aconteceu? Descrição
como aconteceu? Explicação
por que aconteceu? Justificação
Tipos de verdade
Esfera política: busca-se a verdade nos centros de tortura, nos prédios públicos, no funcionalismo, nos depoimentos de vítimas e testemunhas e nas confissões das autoridades responsáveis. 
Esfera econômica: busca-se a verdade no financiamento do aparelho repressivo, corrupção. Num regime autoritário, a ausência de empresas de comunicação independentes para fazer o controle público e os limites impostos aos órgãos estatais de fiscalização estimulam o desenvolvimento de uma cultura de corrupção, que se estende de doleiros que operam impunemente no câmbio paralelo aos grandes fraudadores de licitação, lavadores de dinheiro e sonegadores de impostos. 
Esfera social: grupo que se alia ao poder autoritário. O apoio de setores da sociedade não significa apenas o fortalecimento político do regime, mas também a revitalização dos valores daqueles grupos. No Brasil, por exemplo, os setores que, evocando a família, Deus e a liberdade, apoiaram o movimento militar de 1964, fortaleceram os valores tradicionais de uma sociedade que até hoje se mostra cristã em sua fé religiosa e violenta nas agressões contra mulheres e homossexuais. Em outras palavras, a subida dos militares ao poder reforçou a repressão numa sociedade onde já não era muito fácil ser mulher, negro, homossexual, desquitada ou simplesmente diferente. 
Em geral, as verdades existentes no plano econômico e no social são tratadas marginalmente, quando não são sumariamente ignoradas pela justiça de transição 
O Brasil, a lei de anistia e a CtIDH
Significado da anistia: esquecimento (do grego amnestia ou amnesis)
Dois tipos de anistia:
1. anistia absoluta (enfoque restrito): proibida pelo direito internacional (p.ex.: decreto chileno 2191, de abril de 1978, que dava anistia para todos os crimes cometidos entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1978). 
2.2. anistia condicionada (enfoque flexível): o benefício é condicionado à realização de determinadas condições
deposição de armas
satisfazer os reclamos das vítimas, com a revelação completa dos fatos, o reconhecimento da responsabilidade etc.
legitimidade do processo de criação da anistia: quanto maior a participação cidadã, quanto mais transparente o processo, maior será a legitimidade da anistia. 
legitimidade do procedimento para selecionar os beneficiários da anistia
África do Sul. Uma anistia individual pôde ser concedida, a pedido, por um comitê de anistia, desde que realizado um processo que exponha o solicitante a um escrutínio público. O solicitante deveria revelar todos os fatos cometidos e que esses feitos poderiam ser considerados delitos políticos
Problema: se tudo puder ser anistiado, teremos impunidade; se nada puder ser anistiado, não teremos a paz social. Será preciso encontrar um núcleo duro de delitos que não podem ser suscetíveis de anistia: 
Se um Estado tem o dever de perseguir certos crimes, não se pode admitir que seus perpetradores se eximam de castigo. 
Crimes que o Estado deve reprimir: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra
Origem da anistia: em geral, um ato do legislativo (o perdão, destinado a crimes comuns, é um ato do executivo)
anistia pode ser concedida antes de uma condenação
perdão somente pode ser concedido depois da condenação
Finalidade da anistia: fazer tábula rasa das violações cometidas no passado contra o Estado 
Tipos de violação objeto de anistia
violações de natureza militar: deserção, motim etc.
b) violações de natureza política: crime político 
Crime político
Motivos para definir o crime político
crime político pode ser anistiado (o crime comum é perdoado)
crime político pode impedir a extradição (no crime comum, a extradição é possível)
Definição de crime político: infrações contra a organização e funcionamento do Estado 
Excluídos dessa definição: infrações contra grupos sociais (p.ex.: ataque a minorias étnicas promovido por membros de outros grupos sociais, ou a maioria ou outra minoria étnica)
Crime político: uma questão de perspectiva
sob a perspectiva de um Estado democrático: 
crime político puro: ato regulamentado numa democracia, porém reprimido num regime autoritário (greve, manifestação do pensamento). Esse é o tipo de criminoso político que se procura beneficiar com a exceção da extradição: o jornalista, o escritor, o artista etc. 
crime político misto: crime comum praticado com motivação política contra regime autoritário
Sob a perspectiva de um Estado autoritário: crime político é cometido contra Estados inimigos
Desqualificação do crime político
terrorismo
crime comum com agravantes
Anistia no Brasil
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares 
        § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
        § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
terá ela incluído APENAS as violações cometidas CONTRA o Estado?
terá ela incluído TAMBÉM as violações cometidas PELO Estado?
Crime conexo com crime político: crime comum com finalidade política
apenas o cometido contra o Estado (p.ex.: roubo a banco para angariar fundos para financiar movimento subversivo)?
também o cometido por agente do Estado (p.ex.: tortura contra militante político)?
Punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares: o ordenamento jurídico do regime militar
ordem jurídica híbrida: Constituição de 1946 e, depois, de 1967 e Atos Institucionais
Ato Institucional: norma fundacional do ordenamento jurídico ao lado da Constituição
Constituição: origem na Assembleia Constituinte
Atos Institucionais: 
AI-1, de 9 de abril de 1964: origem no Comando Supremo da Revolução
AI-2 a AI-11, editado pelo Presidente da República
AI-12 a AI-17, editados pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica
Poderes conferidos pelos atos institucionais
suspender as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade, 
aposentar ou demitir, por decreto presidencial, servidoresfederais, 
excluir da apreciação judicial os atos que suspendessem direitos políticos, bem como as cassações de mandatos legislativos;
Intervenção direta na estrutura do judiciário
suspensão das garantias dos juízes de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade; 
aumentou-se o número de ministros do STF de 11 para 16; 
iii. ampliou-se a competência da Justiça Militar sobre os civis, antes prevista “para a repressão de crimes contra a segurança externa do País ou as instituições militares”, aos “crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares”; 
iv. estabeleceu-se que a competência da justiça militar nesses crimes deveria prevalecer sobre qualquer outra estabelecida em leis ordinárias; 
v. impôs-se o prévio julgamento pelo Superior Tribunal Militar (STM) dos HCs impetrados pelos acusados desses crimes;
estabeleceu eleição indireta para governadores
promulgação da constituição de 1967
poder do PR de decretar recesso do Congresso 
poder do PR de decretar intervenção nos Estados e Municípios
poder de suspender direitos políticos de qualquer cidadão
Por que a lei de anistia não abarca os agentes do Estado?
eles não foram punidos com base em atos institucionais
eles não foram sequer objeto de investigação policial, menos ainda de inquérito, denúncia ou julgamento
Corte Interamericana de Direitos Humanos: precedente estabelecido
A Corte [...] considera que são inadmissíveis as disposições sobre anistia, as disposições sobre prescrição e sobre o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e a sanção dos responsáveis pelas violações graves dos direitos humanos, tais como a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados, todos proibidos por violarem direitos inderrogáveis, reconhecidos pelo direito internacional dos direitos humanos.
Argumentos utilizados para fundamentar o precedente: 
Lei de anistia incompatível com a convenção:
lei de anistia impede a investigação, julgamento e punição daqueles responsáveis por violações de direitos fundamentais
convenção americana de direitos humanos que impõe a obrigação de investigar, processar e punir esses violadores
Dispositivos violados
artigo 4 (direito à vida), 
artigo 5 (direito à integridade pessoal)
artigo 8 (direito a garantias judiciais)
artigo 25 (direito à proteção judicial)
Em resumo: a lei de anistia viola
direito à verdade, que não poderá ser conhecida, se as investigações forem proibidas,
direito à justiça, que não poderá ser feita, se a persecução penal for igualmente proibida,
dever consagrado no artigo 2, no sentido de adequar o direito interno aos dispositivos da Convenção
Fundamentos para revogar a lei de anistia
por impedir a identificação dos indivíduos responsáveis pelas violações de direitos humanos, 
por obstaculizar a investigação e o acesso à justiça e 
por impedir que vítimas e seus familiares conheçam a verdade e recebam a devida reparação, 
por permitir que pessoas fiquem privadas da proteção judicial e do direito a um recurso eficaz, as leis de anistia violam a Convenção, e devem portanto ser revogadas.
Consolidação jurisprudencial da CtIDH
o dever de investigar, processar e punir faz parte das reparações a que têm direito a vítima ou seus familiares; 
não bastam apenas comissões da verdade e indenizações para as vítimas ou suas famílias, pois o padrão consolidado exige também o devido processo legal e o cumprimento das penas condenatórias. 
A lei de anistia e o STF
Perante a CtIDH, o Brasil assumiu a responsabilidade pelas ações de seus agentes, mas afirmou ao mesmo tempo que a investigação e punição dos responsáveis pelo desaparecimento forçado das vítimas era impossível devido à lei de anistia. Para defender a validade dessa lei, o Brasil, seguindo um padrão ascendente de justificativa, fez uma argumentação pragmática, afirmando que o Tribunal deveria considerar a sensibilidade da transição política, o momento em que a lei foi promulgada e seu significado no processo de conciliação nacional então em curso. Este argumento político não levou em consideração quaisquer problemas potenciais relacionados com a compatibilidade desta lei e da Convenção. 
Além de legislativo e executivo brasileiros não poderem, por motivos políticos, revogar a lei de anistia, ainda em vigor, o Supremo Tribunal Federal, em ação na qual foi solicitada a interpretação daquele diploma, considerou apenas sua conformidade com a constituição nacional e a situação política, declarando que “'a Lei de Anistia representou, na época, um passo necessário no processo de reconciliação e redemocratização do país' e que 'não foi uma auto-anistia’”. Ignorou a incompatibilidade da lei com a Convenção.

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