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Entrevista da Arte-Educadora ANA MAE BARBOSA a Flávio Amaral para a Agência Repórter Social, publicada na edição de maio da Revista Educação Fonte: http://apeduufrgs2007.pbworks.com/w/file/11164536/ANA%20MAE%20BARBOSA.doc Professora aposentada da USP e um das pioneiras da arte-educação no Brasil defende o papel da arte nas escolas como forma de resgatar a qualidade do ensino - e da aprendizagem Ana Mae Barbosa não tem dúvidas sobre a importância do ensino de arte nas escolas. Além de incentivar a criatividade, a professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) acredita que a arte facilita o processo de aprendizagem e prepara melhor os alunos para enfrentar o mundo. Nascida no Rio de Janeiro, Ana mudou-se aos 3 anos para Pernambuco. Filha de uma família tradicional, queria estudar Direito, um absurdo para a mentalidade da época: mulher tinha de ser professora. Odiava a educação, que considerava ser um instrumento de repressão. Em um cursinho para um concurso de professora primária conheceu Paulo Freire, que destruiu todos os seus preconceitos em uma conversa de apenas quatro horas. Mesmo formada em Direito, Ana Mae foi dar aulas e transferiu as idéias libertadoras do mestre para o ensino da arte. Forçada pela ditadura militar, mudou-se para São Paulo, antes de ir fazer mestrado nos Estados Unidos. Voltou como a primeira doutora brasileira em arte-educação e comandou as pesquisas da Escola de Comunicações e Artes da USP sobre o tema. Criadora da teoria da “abordagem triangular”, ela defende a idéia de que o “ver” e o “fazer” são tão importantes quanto a contextualização da leitura e da prática. Nessa entrevista para a Agência Repórter Social, publicada na edição de maio da Revista Educação, Ana Mae Barbosa fala sobre essas questões e analisa o papel de governos, ONGs e empresas na arte-educação: Por FLÁVIO AMARAL Educação – O ensino de arte na escola tem sido mais valorizado nos últimos anos. Qual é a verdadeira importância da arte-educação? Ana Mae Barbosa - Há uma onda sentimentalóide em torno da arte-educação. Diz-se que a arte torna os alunos mais sensíveis, mas pouco se define o que é esse “sensível”. Mas não é isso que importa. A arte desenvolve a cognição, a capacidade de aprender. Isso já foi demonstrado em uma pesquisa feita nos Estados Unidos em 1977, quando foram estudados os dez melhores alunos em um período de dez anos. Os melhores tinham apenas uma característica em comum: todos tinham feito ao menos dois cursos de arte em suas trajetórias pelas escolas. Educação – Sabe-se exatamente como a arte influi na capacidade de aprendizagem? Ana Mae Barbosa - Ainda é preciso mais pesquisas, mas podemos dizer que a arte leva os indivíduos a estabelecer um comportamento mental que os levam a comparar coisas, a passar do estado das idéias para o estado da comunicação, a formular conceitos e a descobrir como se comunicam esses conceitos. Todo esse processo faz com que o aluno seja capaz de ler e analisar o mundo em que vive, e dar respostas mais inventivas. O artista faz isso o tempo todo, seja para melhor se adequar ao mundo, para apontar problemas, propor soluções ou simplesmente para encantar, que é uma das formas de tirar você das mazelas do dia-a-dia. A arte não tem certo ou errado, o que é muito importante para as crianças que são rejeitadas na escola por terem dificuldade de aprender, ou problemas de comportamento. Na arte, eles podem ousar sem medo, explorar, experimentar e revelar novas capacidades. Educação – A arte-educação traz esses benefícios em qualquer situação, independente da forma que se ensina? Ana Mae Barbosa - Não, depende de como é ensinada. Tem sido comum se ensinar arte apenas dando datas e apresentando “ismos”, o que é pouco importante. O bom ensino de arte precisa associar o “ver” com o “fazer”, além de contextualizar tanto a leitura quanto a prática. Essa teoria ficou conhecida como “abordagem triangular”. Para se aprender, é preciso ver a imagem e atribuir significados a ela. Contextualizá-la não só do ponto de vista artístico, como também socialmente. Eu tenho testemunhado alguns projetos em escolas que priorizam a análise da obra de arte e deixam de lado o trabalho de organizar suas idéias de maneira a comunicá-las através da imagem, o que é um trabalho poderosíssimo de organização dos processos mentais. Tem que haver um equilíbrio entre os três processos. Outro grande problema atual é que contexto às vezes vira estudo de vida de artistas, o que nem sempre interessa para entender a obra. Educação – Como a senhora avalia os atuais parâmetros curriculares no que se refere à arte? Ana Mae Barbosa - Primeiro, eu sou contra um currículo nacional. O melhor ensino que temos no mundo ocidental é o Canadá, que sempre se recusou a ter um currículo nacional. Na Inglaterra, a educação piorou depois da adoção. Não deu certo na Espanha. Os atuais parâmetros foram feitos por gente muito boa, mas foram elaborados por universidades hegemônicas. Não se determina todo o conteúdo, apenas linhas estruturais. Se isso fosse debatido em cada Estado, em cada município e depois em cada escola, seria uma coisa interessante. Mas não foi assim. O governo anterior achou que os professores não tinham entendido direito e resolveu fazer uma cartilha dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Criaram os Parâmetros em Ação. O primeiro de arte tinha coisas como escolher a imagem e mostrar um relógio determinando quanto tempo tem que se ficar olhando para ela. A primeira imagem é a Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, com uma carga religiosa imensa. Numa escola pública, em que todas as religiões devem ser aceitas, como fica isso? Educação – Os professores hoje estão preparados para ensinar arte equilibrando a leitura, a prática e a contextualização? Ana Mae Barbosa - Varia muito. Tem professor que faz prova sobre arte, com perguntas até sobre data de nascimento. Mas, ao mesmo tempo, a capacidade que o professor tem para potencializar as chances que lhe são dadas é extraordinária. Falta atualização permanente e os programas de formação, de uma maneira geral, não são adequados. Algumas universidades estão se mexendo com tentativas de se estudar estética, que antes não se estudava, filosofia da arte e as novas tecnologias. Educação – A senhora é contra a utilização do termo educação artística. Por quê? Ana Mae Barbosa - É uma designação que tem um conceito já acoplado a ele, que é o de professor polivalente, aquele que era formado em dois anos para ensinar música, teatro, artes plásticas, dança e desenho geométrico, da quinta à oitava série. Isso é um absurdo epistemológico que ainda é exigido nos concursos públicos para professor. Não existem mais cursos de licenciatura em educação artística que formam o professor para tudo. As universidades reagiram contra isso. Hoje se estuda quatro anos música, artes plásticas ou artes cênicas e, na hora do concurso, o candidato tem que responder perguntas em todas as áreas. Ele não está preparado. Educação – O ministro Tarso Genro recentemente afirmou que o grande desafio para a Educação no Brasil nos próximos anos é a falta de professores no ensino médio. Há previsão de déficit no ensino de arte. Como fica a arte-educação essa situação? Ana Mae Barbosa - Fica a perigo. Não é um problema generalizado no país. Nos grandes centros, há professores suficientes. O problema é no interior. O grande desafio do MEC é a formação de professores. Na arte-educação, também é preciso investir em cursos de pós-graduação. Há seis anos, eram cerca de 130 licenciaturas em arte no Brasil e apenas seis linhas de pesquisa em arte- educação. Aqui na USP, são só três professoras orientando, em média, sete alunos cada. A cada quatro anos, saem só 21 novos pesquisadores. Educação – Ainda é comum que escolas improvisem professores de arte sem formaçãoadequada? Por que isso ocorre? Falta de professores? Ana Mae Barbosa - O grande problema é que o arte-educador tem poucas horas de aula. Resultado: para ter 40 horas de trabalho, o professor vai ter que correr de escola em escola. Acontece o mesmo com o professor de inglês. Muitas escolas, especialmente as privadas, estão juntando inglês e artes ao mesmo tempo. Já nas escolas públicas, é comum o professor de história ensinar arte. E ainda tem aquela idéia de que se está faltando umas horinhas para completar o horário, o professor ensina arte. Educação – A senhora aponta alguns problemas que ainda ocorrem com a arte-educação. Mas pensando historicamente o ensino de arte passou a ser mais valorizado nas escolas? Ana Mae Barbosa - No ano que vem, faço 50 anos de arte-educação. O progresso é imenso. Antes havia uma rejeição. Hoje, a arte já está presente nas faculdades de Pedagogia. Um diretor já traz da universidade a idéia da importância da arte para as crianças e os adolescentes. A pesquisa universitária também passou a ser respeitada. Em 1972, quando decidi fazer o mestrado, não achei ninguém no Brasil que quisesse me orientar. Fui para os Estados Unidos e pedi bolsa. A Capes respondeu com uma carta em que dizia que arte-educação não era uma área de pesquisa. Hoje, você tem centros muito bons. Em pouco mais de 30 anos, a área está reconhecida a ponto de eu receber, no ano passado, a Ordem Nacional do Mérito Científico. Educação – Essa evolução pôde ser percebida nas escolas, mas e os governos, passaram a valorizar a arte-educação? Ana Mae Barbosa - Ainda está faltando reconhecimento. Mas tem mudanças interessantes. A iniciativa do governo de São Paulo de permitir que o professor faça mestrado ou doutorado sem prejuízo dos vencimentos é uma grande abertura. Outra experiência interessante é colocar o especialista em arte-educação para dar aula no primeiro ciclo do ensino fundamental. Mas ainda há alguns escorregões, até mesmo do governo paulista, como os concursos exigindo polivalência. Outra coisa muito boa foram os CEUs. Foi uma invenção maravilhosa ligar educação e cultura, levar espetáculos para a escola. Foi a melhor iniciativa em arte-educação do Brasil. Educação – Qual a importância das ONGs para a arte-educação? Ana Mae Barbosa - As ONGs que nascem de projetos comunitários fazem trabalhos extraordinários. Há muitos projetos interessantes em desenvolvimento no Nordeste, por exemplo. Mas há quem pense apenas em formar orquestras para algumas empresas mostrarem que têm responsabilidade social. Tenho visto barbaridades, projetos equivocados, pensados para projetar o presidente da empresa ou o nome da mulher dele na revista Caras. Há projetos que instalam ateliês temporários em favelas, em que a comunidade ajuda um artista famoso a pintar o que ele determina. Há outro, apresentado como grande projeto social, que leva artistas para decorarem a casa de favelados. Isso é oportunismo das pessoas explorando a ingenuidade dos pobres. Ou no mínimo uma brutal falta de consciência política. Eu não gosto que as empresas façam projetos, prefiro que elas apóiem projetos nascidos na comunidade. Educação – A arte-educação é importante para a educação para a cidadania? Ana Mae Barbosa - Ando meio encrencada com a palavra cidadania. A direita tomou conta dessa palavra. Eu prefiro usar o termo do mestre Paulo Freire, prefiro falar em conscientização. A arte abre caminhos para a conscientização social, para a descoberta dos seus direitos, das suas obrigações. Tem um monte de gente com discursos vazios que abusa do termo cidadania. Eu tenho arrepios quando ouço falar em educação para a cidadania. Dependendo de quem fala pode ser uma picaretagem. Educação – Paulo Freire teve uma importância muito grande em sua vida? Como foi o primeiro contato com ele? Como ele influenciou sua carreira? Ana Mae Barbosa - Paulo Freire me pegou em um momento em que eu reagia à educação e me convenceu que educação não é repressão, pode ser um processo de libertação. Minha família só me deixava trabalhar como professora e eu fui fazer um cursinho para um concurso. Ele era o professor de português. Na primeira aula, ele pediu às alunas que escrevessem por que queriam ser professoras. Eu, odiando aquilo tudo, escrevi por que não queria ser: que estava sendo obrigada pela família, que preferia trabalhar em escritório, que educação não levava a nada e coisas do tipo. No dia seguinte, ele entregou as redações de todo mundo menos a minha. Disse que queria conversar. No dia seguinte, após umas quatro horas de conversa eu saí completamente convencida de que a educação é algo reestruturador do indivíduo. Passei no concurso e ele me convidou para trabalhar com ele. Ficamos muito ligados e mantivemos o contato mesmo durante o exílio no exterior dele e o meu exílio em São Paulo. Filosoficamente, ele é um dos quatro pensadores da educação que norteiam todo o meu trabalho.
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