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A CULTURA COMO SISTEMA SIMBÓLICO: UMA CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA PSICANÁLISE1 Osmyr Faria GABBI JÚNIOR2 ■ RESUMO: Parte-se da análise da concepção de Lorenzer sobre os procedimentos da psicanálise, o que requer o exame do conceito de símbolo, assim como dos argumentos fornecidos pelo investigador alemão para sustentar a sua crença de que a psicanálise não pode ser entendida como ciência natural. Como se está diante da alternativa ciência natural/ciência da história, a hipótese de que a teoria psicanalítica possa ser apreendida como ciência hermenêutica fornecerá o fio condutor que levará à tese de que a cultura pode ser pensada como um sistema simbólico, ou como o símbolo é construído como objetivação da práxis humana. ■ UNITERMOS: Psicanálise; marxismo; linguagem. Lorenzer apresenta uma breve história da noção de símbolo que se inicia na aurora da teoria freudiana (Freud, 1942, p. 75-251). Aí se encontram dois sentidos diferentes de símbolo: um, onde o símbolo apresenta uma função indicativa, apon- tando para o momento da cena traumática, denominado símbolo mnêmico ou, mais apropriadamente, símbolo mnêmico através de conversão por simultaneidade; outro, onde há uma relação conceitual entre signo e designado, chamado de conversão por simbolização. No primeiro sentido, a relação entre o signo e o designado é uma relação arbitrária, contingente, determinada pela contemporaneidade das associações. Por exemplo, no caso de Lucy R., o cheiro de pudim queimado ocorre ao mesmo tempo que a descoberta de que o seu patrão não tinha intenções de desposá-la. Aqui, exatamente porque se deram ao mesmo tempo, o cheiro de pudim queimado passa a ser um símbolo mnêmico do conflito psíquico. Em contraposição, alguns dos sintomas de Cecília nos fornecem casos de simbolização. Quando, por exemplo, ela desenvolve uma dor entre as sobrancelhas porque recebeu um olhar perfurante da avó. Evidentemente, não é mais relevante a relação de contemporaneidade, mas a compreensão do sentido da expressão "dor perfurante". 1. Texto apresentado no Ciclo de Conferências sobre a Escola de Frankfurt, realizado na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Câmpus de Araraquara, 1990. 2. Universidade Estadual de Campinas - 13081-970 - Campinas, SP. Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 89 Ora, Lorenzer utiliza esses dois sentidos da noção de símbolo para expressar uma tensão no interior da psicanálise, existente entre um Freud teórico, marcado pelas influências do positivismo (Ernst Mach, Escola de Helmholtz), e um Freud clínico (não esqueçamos que o objetivo inicial de Lorenzer é analisar os procedimentos da psicanálise), que seria hermeneuta. Em outras palavras, as oposições compreen- são/explicação, ciência do espírito/ciência natural já estariam presentes desde os primórdios da teoria freudiana (Lorenzer, 1976, p. 13-39; Gabbi Júnior, 1988, p. 1164-7). O terceiro sentido da noção de símbolo aparece na Interpretação dos sonhos; trata-se do "símbolo verdadeiro". Um exemplo trivial dele é ver escadas como figuras do ato sexual. Aqui também se revela uma tensão conceitual. Freud havia inovado a idéia de interpretação onírica quando colocara o papel de decifrador do sonho nas mãos do próprio sonhador, aliado à atenção flutuante do analista, procedimento que se funda necessariamente na crença de que o sonhador possui a chave para decifrar o seu sonho. Entretanto, a noção de símbolo verdadeiro supõe que exista um significado constante e independente de condições individuais. Portanto, a base subjetiva era reposta por uma crença na objetividade dos símbolos oníricos. Outro problema, intimamente ligado ao primeiro, era o de ver, nos símbolos oníricos, possíveis elementos para uma linguagem do inconsciente, o que criava as condições para transformar a metapsicologia em metafísica. Em Jung, por exemplo, os arquétipos são transformados em elementos invariantes e constitutivos do inconsciente. Nele, a interpretação sempre avança para um ponto terminal, enquanto em Freud, apesar de uma convergência necessária, ela é indefinidamente aberta, não havendo como desfazer, de forma completa, o trabalho de condensação. De qualquer maneira, Lorenzer vê no terceiro sentido da noção de símbolo uma etapa problemática, porém indispensável, na constituição da teoria psicanalítica. Para fugir a tais armadilhas, seria preciso: • conceber o conceito de inconsciente de forma funcional; • estabelecer diferenças entre processo primário e processo secundário. As exigências são satisfeitas quando se considera o símbolo como produto do processo primário. Em outras palavras, algo como escadas só pode funcionar como símbolo sexual a partir do momento em que a censura suprime o significado original, o ato sexual, recalcando-o para o inconsciente. A escada pode ser um símbolo do ato sexual, mas, por outro lado, o ato sexual não pode ser um símbolo da escada (Lorenzer, 1976, p. 29 e 35). Para que uma semelhança dê origem a um símbolo, é preciso que haja um momento onde a igualdade estabelecida: ato sexual = escada tenha sido recalcada e se tornado inconsciente. O analista deve interrogar-se sobre o momento em que isso ocorreu na história de desejo do sujeito - o que significa que não se abandonam as associações que ele produz em nome de uma suposta constante transindividual. Certamente são reconhecidos os fatores supra-individuais, as relações lingüísticas, os paralelismos filogenéticos etc. Mas a mesma coisa ocorria na simbo- lização. Cecília não inventou a expressão "olhar perfurante", ela apenas a usou. Sempre esteve presente a crença freudiana de que, se o desejo é particular, a forma 90 Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 de expressá-lo é universal: o sujeito sempre trabalha com material fornecido pelo seu grupo social. Ernst Jones teria dado, em 1916-1918, a exposição mais sistemática do símbolo verdadeiro. Segundo Lorenzer, estava fixado o entendimento de símbolo pelos próximos quarenta ou cinqüenta anos (Jones, 1925, p. 240-1). O problema nascia do afastamento da concepção psicanalítica de símbolo dos desenvolvimentos da mesma noção fora da psicanálise. Resumindo, a lógica matemática, a psicologia evolutiva de Piaget, a psicologia da linguagem, a etologia, a filosofia (Cassirer) apresentavam uma concepção de símbolo que terminava por colocá-lo, em termos psicanalíticos, como um produto desvinculado do processo primário. Se reconheciam em alguns casos uma gênese que poderia aproximá-lo desse processo, acabavam por considerá-lo como uma atividade do pensamento; portanto, do processo secundário. A estratégia de Lorenzer consiste, inicialmente, em afirmar que o texto de Jones localiza-se no momento em que a psicanálise parte de uma teoria da pulsão para uma teoria do ego. Uma nova concepção de símbolo vai aparecer com os partidários da doutrina psicanalítica do ego. O símbolo é formado pelo ego (entendido como um centro de organização), embora alguns dos estímulos para sua elaboração possam originar-se do id (visto como um pólo energético) (Lorenzer, 1977, p. 96). Notem que qualquer semelhança com a idéia piagetiana de que o pensamento é como uma máquina (uma estrutura) e a emoção como um combustível não é, no caso, mera coincidência. Lorenzer precisa de um conceito de símbolo que não o deixe apenas nas mãos do processo primário. Certamente, tal concepção parece minar as diferenças entre processo primário e processo secundário ao supor que não existem repre- sentantes inconscientes (denominados por Lorenzer de clichês, noção à qual retorna- remos). A saída para tal dilema consiste em entender o processo simbólico como um produto do processo secundário, mas que pode ser utilizado pelo recalque (Lorenzer, 1976, p. 63). O que coloca três questões: a) qual a relação entre símbolo e regressão? b) qual a relação entre símbolo e processos inconscientes? c) qual a relação entre símbolo e recalque? Para respondê-las, Lorenzer sustenta a tese de quea formação de símbolos é sempre o produto de uma função unitária do ego - ou seja, mesmo no caso dos símbolos oníricos, o ego estaria presente, embora no seu nível mais baixo de atuação (Lorenzer, 1976, p. 68). Alguém poderia perguntar: isto não equivale a restaurar a idéia de unidade psíquica que foi rechaçada por Freud? Não teríamos aqui a seguinte aporia: ou aceitamos a idéia de que o ego é responsável pela formação de símbolos e, portanto, os símbolos não se originam no inconsciente, ou achamos que eles possuem essa origem e, portanto, o ego não se constitui mais como uma unidade do psíquico, como um centro organizador, em relação ao símbolo? Lorenzer pretende dissolver a aporia afirmando que no fundo estamos diante de um dilema falso. Quem formulasse a questão nos termos propostos estaria confundin- Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 91 do dois sentidos do conceito de processo primário: processo primário enquanto processo de pensamento, ou seja, enquanto nível de organização do pensamento, e processo primário enquanto processo energético, isto é, "energia não ligada" em oposição à "energia ligada", característica do processo secundário. Em outras pala- vras, o símbolo não é produto do processo primário se este é entendido enquanto processo de pensamento, mas se relaciona com ele se o considerarmos enquanto processo energético (Lorenzer, 1976, p. 69-72). Por conseguinte, o ego é compreendido como instância formadora e criadora de símbolos e o inconsciente como reservatório de estimulações que não podem alcançar a consciência. A tese é exemplificada por meio dos sonhos de descoberta, onde se pode mostrar que o sonho é uma formação de compromisso (até aí nada de novo) que deve resolver simultaneamente exigências do id e do ego. Quando Kekulé sonha com uma serpente (símbolo sexual/forma circular) e descobre a fórmula do benzeno (símbolo químico/forma circular), a chave está em compreender que foi por intermédio da regressão (o símbolo lingüístico, característico do processo secundário, para a imagem, característica do processo primário, ou seja, para o clichê) que se conseguiu harmonizar as duas exigências (Lorenzer, 1976, p. 83-4). Em resumo, os sonhos de descoberta revelam que: a) há uma regressão no desenvolvimento conceitual; b) a ruptura dos símbolos dá-se no plano da organização primária; c) o ato criador se serve da regressão funcional. Podemos responder agora às questões colocadas anteriormente. A relação entre símbolo e regressão reside no fato de que na regressão os símbolos se transformam em clichês. A relação entre símbolo e processos inconscientes revela-se na participa- ção de processos inconscientes na formação dos símbolos. Finalmente, a relação entre símbolo e recalque se traduz na crença de que o símbolo deva satisfazer às condições do recalque; ou seja, por meio do recalque o símbolo se transforma em clichê. A vinculação da psicanálise às contribuições externas a ela em torno da noção de símbolo pode ser feita agora mediante a crença, já exposta, de que há uma ligação genética entre clichê e símbolo. Se atentarmos para o fato de que os clichês se constituem com base em cenas de interação com a mãe (os clichês originam-se dos símbolos introduzidos pela mãe) e de que servem como indicadores dessas cenas, podemos ver o desenvolvimento psíquico como uma passagem, sempre incompleta, de clichês a símbolos. O sistema simbólico supõe uma linguagem, portanto o desenvolvimento psíquico dá-se pela transformação da imagem em palavra. A neurose é, então, entendida como um processo inverso, onde o símbolo regride a clichê, ou seja, como exclusão do processo de comunicação. Daí o título de um dos livros de Lorenzer Destruição da linguagem (a neurose, ao transformar parte dos símbolos do sujeito em clichês, rompe a possibilidade do sujeito de comunicar-se) e reconstrução3 (a tarefa do analista é auxiliar o analisando no processo de transformação dos clichês 3. No original, Sprachierstorung und Rekonstruktion. 92 Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97,1993 em símbolos e assim realizar uma reconstrução de sua fala). Se a análise pode ser entendida dessa forma, ela é um procedimento necessariamente hermenêutico, ou seja, ela visa a compreender aquilo que é comunicado. O problema reside em saber como esses procedimentos se articulam com o corpo teórico da psicanálise, ou, em outros termos, para retornar à questão já posta, como se deve pensar a psicanálise dentro da oposição epistemológica entre ciências naturais e ciências do espírito? Nos clichês não há distinção entre objeto e símbolo, não há independência cênica, eles são desencadeados por uma disposição, a compulsão para agir se expressa neles como compulsão para repetir, são irreversíveis, não perdem sua força primitiva, apontam para um evento originário, acarretam, por conseguinte, perda de adaptação e flexibilidade do sujeito em relação às situações de interação (Lorenzer, 1976, p. 94-6 e 1977, p. 102-4). O jogo entre clichê e símbolo pode ser compreendido com a introdução da linguagem na situação de interação entre mãe/criança. A mãe, ou o seu equivalente, fornece à criança um complexo verbal, motor/perceptivo. Uma vez que a palavra vem calcada em uma situação de interação, ela própria é parte da situação. Daí a possibilidade da palavra identificar-se com uma interação determinada pela díada mãe/criança. A palavra é usada na comunidade lingüística da mãe, mas vai designar inicialmente, para a criança, a própria situação de interação. Suponha- mos, por exemplo, que a mãe pronuncie "mamãe" ao alimentar a criança. Ao fazê-lo, acrescentou "mamãe" à situação de interação. A criança ouve e toma o complexo fônico como marca distintiva daquela forma particular de interação. Portanto, a situação pré-lingüística da criança não é uma situação extralingüística. Nela, a palavra é uma ação (Lorenzer, 1976a, p. 74-5). A existência da linguagem permite a progressiva passagem da palavra enquanto sinal de uma certa disposição cênica para a palavra enquanto símbolo; ou seja, o complexo representativo fônico tem a capacidade no ser humano, devido às caracte- rísticas específicas da linguagem humana, de chegar a constituir uma rede de relações articuladas entre si. Assim, na própria linguagem reside a possibilidade de ultrapassar a etapa do sinal no animal (Lorenzer, 1976a, p. 120); também não é menos verdadeiro, e Lorenzer enfatiza repetidas vezes, que a linguagem é aprendida numa situação de intervenção, determinada em última análise pelas relações de produção; ou seja, a linguagem depende de uma estrutura no mundo, ela não determina a estrutura do mundo. Resumindo: o clichê forma-se a partir da situação de interação com a mãe e trans- forma-se, mediante a estruturação e formação de identidades, em símbolo. No recalque, temos a exclusão da comunicação lingüística, isto é, a transformação do símbolo em clichê. Entretanto, isso não significa que a conduta neurótica seja a-lingüística. Aqui Lorenzer recorre à elaboração secundária para afirmar que a conduta determinada por clichê é sempre mediada por símbolos produzidos pela elaboração secundária. Ele exemplifica essa mistura símbolo/clichê mediante um exemplo: uma pessoa briga com o seu chefe porque está brigando com o próprio pai. Na cena com o chefe (Lorenzer, 1977, p. 111-2): Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 93 • trata inconscientemente o chefe como se ele fosse o "pai"; • na situação, percebe conscientemente o outro como "chefe"; • sente-se inconscientemente como filho; • percebe-se conscientemente como empregado. Essa dupla compreensão, uma verdadeira, outra falsa, uma inconsciente, outra consciente, resulta do fato da palavra "chefe" ser igual a "chefe-(+pai)", onde o primeiro conteúdo, chefe, domina a consciência e o segundo, pai, determina a dinâmica. Em outros termos, a linguagem do paciente tornou-se "pseudocomunica- tiva", uma vez que a palavra "chefe" adquiriu umsignificado "privado". O trabalho de Lorenzer resulta de uma reflexão sistemática sobre os fundamentos da teoria psicanalítica e de seu método. O que nos leva a perguntar de imediato sobre a forma como ele entende a relação entre método e teoria, entre teoria e prática. Para ele, não se trata de fazer um estudo minucioso no interior dos textos freudianos, ou seja, ele não acredita que pequenos trabalhos sobre questões isoladas possam elucidar o estatuto epistemológico da psicanálise (Lorenzer, 1977, p. 11, 43 e 1976b, p. 74-5). Seria necessária uma investigação metodológica sobre o seu próprio conceito, feita de fora da psicanálise. Em "Para o fundamento de uma teoria materialista da socialização", ele explicita que o seu objetivo é "realizar a mediação entre psicanálise e materialismo histórico através da clarificação das categorias conceituais", e mais adiante, que não pretende "propor uma interpretação metateórica pura e simples da psicanálise" (Lorenzer, 1976a, p. 2,10). Ou seja, a leitura de Lorenzer investiga os conceitos psicanalíticos valendo-se do materialismo histórico, com o duplo objetivo de exibir que o objeto da psicanálise é o sistema das formas de interação e que o seu método é um procedimento crítico-hermenêutico. Mas como Lorenzer concebe a relação teoria-prática? Se por um lado afirma que os psicanalistas são aqueles que têm melhores condições de conhecer a psicanálise - não cairiam no erro de apreciá-la parcialmente -, também reconhece que foram dois filósofos, Habermas e Ricoeur, que souberam mostrar a inadequação da leitura "naturalista" da psicanálise (Lorenzer, 1977, p. 43). Como conciliar as duas afirmações? Entendendo que se trata de manter a idéia de uma aparição global da psicanálise mais do que a sua própria teoria, além da suposição que entre as duas, teoria e prática, existe uma relativa independência. Certamente vocês já adivinharam que foi o "antinaturalismo" que se salvou na prática psicanalítica. Por conseguinte, a estratégia escolhida será a de combinar uma consideração do todo com uma investigação daquilo que os psicanalistas fazem. Por outro lado, Bento Prado, em um sugestivo texto: "Auto-reflexão ou interpre- tação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud", desconfia exatamente desse antinaturalismo (Prado Jr., 1983, p. 49-65). Ele vê aí, sub-repticiamente, a afirmação por parte desses autores, entre os quais inclui Lacan, de que só faltou a Freud uma boa teoria da linguagem. Pode-se sustentar o mesmo em relação a Lorenzer: faltou a Freud uma teoria da linguagem que concebesse a mesma como dependente das relações sociais. De modo que também em Freud se pudesse afirmar a sexta tese de 94 Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97,1993 Marx e Feuerbach: "a essência humana... é, em sua realidade, o conjunto das relações sociais" (Marx, s.d., p. 209). Assim, Lorenzer pretende fundamentar a psicanálise numa ciência da história, que não seria idealista, mas sim o próprio materialismo histórico. Vamos tornar tais considerações mais concretas por meio do exame de um caso bastante conhecido da literatura freudiana, o caso do pequeno Hans. Segundo Lorenzer, as etapas do procedimento psicanalítico, no caso em questão, podem ser descritas da seguinte maneira (Lorenzer, 1977, p. 113-22): a) O analista dá-se conta de que o significado do termo "cavalo" não é justo. Para que tal ocorra, duas coisas são necessárias. Primeiro, que o analista compreenda o conteúdo proposicional do proferimento do analisando. A seguir, que, enquanto membro da mesma comunidade lingüística, julgue se o uso do termo foi inadequado no contexto de fala em que surgiu. É essa dupla compreensão que lhe permite entender que o termo "cavalo" está mencionado em sentido metafórico; contudo, trata-se de uma metáfora privada. b) O analista descobre, devido à compulsão para repetir, presente no pequeno Hans, que ele estabeleceu uma identidade entre o cavalo e o analista. c) A seguir, o analista constata que o analisando criou uma nova identificação em relação à sua pessoa: ele agora está também identificado ao pai. A dupla iden- tificação permite ao analista compreender que o cavalo tomou o lugar do pai. d) Trata-se agora de descobrir como a cena com o cavalo passou a encobrir e a se referir à cena com o pai, isto é, como ela passou a atuar como cena encobridora. e) A análise é considerada terminada quando os termos "cavalo", "analista" e "pai" voltam ao seu sentido usual. O que permite a passagem pelas etapas citadas é a compreensão de que a situação infantil, a situação atual e a situação de transferência referem-se a uma mesma cena; as três situações são a repetição de uma mesma cena. No pequeno Hans, a palavra "cavalo" deixou de ser um símbolo para se tornar um clichê. Ao contrário do símbolo, que sempre supõe uma diferenciação entre o próprio símbolo e o objeto simbolizado, o clichê necessita sempre de uma certa disposição cênica para o seu desencadeamento, que se dá de forma automática e inconsciente. A repressão acarretou uma perda de função simbólica, uma regressão formal, que resultou na formação de um clichê. A ação do sujeito, mediada por símbolos, ou seja, pela linguagem, ao sofrer recalque, passou a ser determinada pelo clichê. O que nos permite, por conseguinte, qualificar o procedimento analítico como uma correção na linguagem, ou melhor, como um procedimento que permite reintroduzir o sujeito na comunidade lingüística mediante a dissolução de suas metáforas privadas. Em resumo, quando o pequeno Hans mencionava a palavra "cavalo", ele também, sem o saber, denotava o seu pai. Entretanto, o procedimento interpretativo parte da crença de que, para se compreender uma cena, é preciso compreender as cenas de interação, isto é, cenas historicamente localizáveis, que devem ser reconstruídas durante o trabalho de Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 95 análise. Em outras palavras, deve-se encontrar na biografia do analisando o momento em que se deu a ruptura com a linguagem comum. O recalque resultou na exclusão do sujeito da comunicação lingüística, mas não das regras que a associam à ação. Por conseguinte, a leitura de Lorenzer rompe com as leituras do tipo biológico ou psicológico, quando vê a psicanálise não como uma simples psicologia da linguagem, mas como uma teoria sobre a linguagem que ao mesmo tempo constitui uma teoria da ação (Lorenzer, 1976b, p. 94). Ora, alguém poderia recordar que conseqüências semelhantes são obtidas pelas leituras de Lacan e de Habermas. A fim de ressaltar a especificidade do projeto de Lorenzer, vamos apontar algumas das críticas que ele dirige a esse dois autores (Lorenzer, 1976b, p. 94-123). Lacan afirma que o objeto da psicanálise é o inconsciente, estruturado como uma linguagem. Lorenzer considera esse mesmo objeto como sendo as formas de interação efetivamente produzidas. A diferença entre eles não é de nenhuma forma terminológica: reside no fato de Lacan acreditar que as estruturas do inconsciente têm a sua raiz em um para além da história. Lorenzer, ao contrário, pensa que as formas de interação são produzidas dentro e através da história. Entende a psicanálise como um procedimento crítico-biográfico que avança, por intermédio da hermenêu- tica, até as formas de interação produzidas no concreto. Em Lacan, a história é abandonada em nome da estrutura, e a interação é totalmente dissolvida na lingua- gem, isto é, Lacan não concebe a linguagem como fundada na práxis social, como dependente de relações históricas objetivas. Segundo Lorenzer, Habermas teria o mérito de compreender a psicanálise como uma teoria da subjetividade, mas incorreria, por outros caminhos, nos mesmos erros de Lacan. Também aqui as relações de interação são dissolvidas em proveito das formas de comunicação. O mecanismo de transformação da psicanálise não seria a auto-reflexão, como deseja Habermas, mas uma experiência que se completa dentro de uma interação real, na qual sesupera, passo a passo, a mutilação interativa. Não se trata de nenhuma maneira de antecipar uma comunicação livre de coação social, mas de reintroduzir as formas de interação que tinham sido excomungadas dentro do consenso lingüístico. Portanto, a capacidade de refletir não é uma premissa, é uma conclusão, fruto de um longo trabalho. O marco interpretativo não se dá de uma vez por todas, ele é recriado em cada caso de acordo com a organização, determinada socialmente, do grupo do analista e da disposição atual de pressupostos compartilhada por esse grupo. No fundo, tanto em Habermas como em Lacan haveria uma problemática burguesa que impediria que se dessem conta de que confundem a prática psicanalítica existente com proposições antropológicas. Lacan, quando confere um papel central ao Édipo. Habermas, quando atribui um papel igualmente central à reflexão. Portanto, para Lorenzer, o objeto da psicanálise são as relações de interação. Entretanto, a teoria das formas de interação não resulta de uma leitura que a encontraria pronta, porém encoberta por véus ideológicos, dentro da psicanálise. Também não se trata de mais um projeto de recuperação da psicanálise. Tampouco procura-se acrescentar concei- 96 Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 tos marxistas a conceitos psicanalíticos e vice-versa. O uso de um referencial marxista permitiu entender que a psicanálise é uma teoria da subjetividade, mas da subjetivi- dade burguesa. A tarefa a ser realizada é a de construir uma teoria da subjetividade que responda à pergunta: como o desenvolvimento da criança pode ser considerado, ao mesmo tempo, como um processo da natureza e como uma história de formação construída pela ação da sociedade (Lorenzer, 1976a, p. 1)? Uma teoria que pretenda respondê-la deve necessariamente ser uma teoria materialista da socialização. Por- tanto, o trabalho de Lorenzer visa a defender a possibilidade de se construir uma teoria materialista da subjetividade e, dessa forma, abrir o caminho para que se possa pensar a psicanálise enquanto uma teoria materialista da cultura. GABBI JÚNIOR, O. F. Culture as a symbolic system: a materialistic conception of psychoana- lysis. Perspectivas, São Paulo, v. 16, p. 89-97, 1993. ■ ABSTRACT: First of all, Lorenzer's conception of psychoanalitical's procedures is studied. This requires the examination of the concept of symbol as well the argument given by Lorenzer to support his thesis that psychoanalysis is an historical science and not a natural science. His hypothesis that psycho- analysis is a hermeneutic science suggests the idea that culture can be understood as a symbolic or that symbols are built as an objectivation of human praxis. ■ KEYWORDS: Psychoanalysis; marxism; language. Referências bibliográficas FREUD, S. Studien über Hysterie. In: . Gesammelte Werke. Frankfurt: S. Fischer, 1942. v. 1, p. 75-251, GABBI JÚNIOR, O. F. Notas sobre o conceito freudiano de símbolo. Ciência e Cultura, v. 40, n. 2, p. 1164-7, 1988. JONES, E. La theórie du symbolisme. In: . Psychanalyse. Paris: Payot, 1925. p. 240-1. LORENZER, A. Crítica del concepto psicanalítico de símbolo. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. . Nascita della psyche e materialismo. Roma: Laterza, 1976a. . Sobre el objeto del psicoanálisis: lenguaje y interacción. Buenos Aires: Amorrortu, 1976b. . El lenguaje destruido y la reconstrucción psicanalítica. Buenos Aires: Amorrortu, 1977. MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K., ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s.d., v. 3. PRADO JÚNIOR, B. Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud. Discurso, v. 14,1983. Perspectivas, São Paulo, 16: 89-97, 1993 97
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