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© 2021 por N1 Tecnologia Comportamental Capa: Andre Luiz TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem o prévio consentimento, por escrito, da N1 Tecnologia Comportamental. A violação dos direitos de autor (Lei no9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. N1 Tecnologia Comportamental Curitiba – PR www.n1tc.com.br Instagram.com/n1_tecnologia_comportamental/ 41 991 331 216 contato@n1tc.com.br http://www.n1tc.com.br/ https://www.instagram.com/n1_tecnologia_comportamental/ mailto:contato@n1tc.com.br 5 A COISA MAIS PRECIOSA Apesar de sua preciosidade, o conhecimento científico não chega a todos, sendo muitas vezes restrito a cientistas e acadêmicos. Um conhecimento acumulado, cheio de soluções para os problemas do mundo, mas preso em bibliotecas físicas e virtuais, inacessíveis a grande parcela da população devido a seus custos de acesso e/ou linguagem hermética. Esta obra tem o objetivo de enfrentar este problema e ser amplamente acessível. Os autores, revisores e organizadores renunciaram a um potencial retorno financeiro em troca de tornar a obra gratuita e acessível. A versão digital desta obra é totalmente grátis e a versão impressa terá o custo apenas de impressão e logística, nada mais. Você pode contribuir fazendo uma doação de qualquer valor a partir do QRcode ou ChavePix a seguir. Chavepix: editora@n1tc.com.br Todo o valor será utilizado para a elaboração de novas obras de divulgação científica, para que o máximo de pessoas se beneficiem do conhecimento científico e seus benefícios. Sem a ciência, a tomada de decisão é como um tiro enviesado no escuro. Scott Geller mailto:editora@n1tc.com.br 6 7 PREFÁCIO Após ouvir a palavra “crítica”, muitas pessoas já começam a mudar o humor e encaram qualquer coisa que vier a partir dali como uma briga, uma discussão ou até mesmo como falta de educação. E há quem diga que ao verbalizar sua crítica sobre determinado assunto você não está desrespeitando a opinião dos demais. Entretanto, a crítica é apenas a nossa capacidade de examinar e avaliar minuciosamente alguma coisa, seja ela uma produção artística, literária ou científica. Por exemplo, ao examinarmos informações científicas (ou ditas científicas), precisamos utilizar o nosso pensamento crítico para verbalizar argumentos críticos. Uma discussão científica não pode ser baseada em opiniões pessoais, crenças, espiritualidade, achismos ou falácias. Infelizmente, não é o que acontece, pois facilmente encontramos diversos “enunciados picaretas” abundantes em falácias que possuem o objetivo de enganar pessoas com total ausência de pensamento crítico. Será que este é o momento que seu hipocampo e seu córtex cerebral começam a se movimentar para tentar lembrar algum “enunciado picareta” que você viu por aí? Não se preocupe! Eu vou te ajudar a lembrar de um: “A prática que estudo é milenar (falácia ad antiquitatem), já foi utilizada por milhões de pessoas (falácia ad populum) ao longo do mundo e funciona a partir de ingredientes naturais (falácia ad naturam). Tenho certeza que as pessoas que criticam não a estudaram o suficiente (falácia 8 ad hominem) ou não estudaram com os verdadeiros mestres (falácia do escocês de verdade).” É incrível que em poucas linhas conseguimos identificar cinco falácias, porém o mais triste é saber que a maioria da população conseguiria identificar um total de zero falácias. Por que isso acontece? Porque as falácias são construídas a partir de narrativas inconscientes, com o objetivo de confundir e enganar o receptor da informação. As informações falaciosas parecem verdadeiras, parecem corretas, mas na verdade possuem falhas, tornando-as falsas. A origem do termo falácia, vem do latim “fallacia” que significa aquilo que engana ou ilude. Devemos adicionar ao problema, o fato de que grande parte da população brasileira (e mundial, ouso dizer) não é ensinada a pensar de forma crítica e não aprende metodologia científica na educação básica. Aqui, vamos ativar mais uma vez nossa memória: lembra quando você estava na escola e sua professora propunha debates? Que tipo de debates eram esses? Eram debates com argumentações baseadas em evidências científicas e fatos ou debates onde a turma era dividida em dois grupos (contra e a favor) e cada um deveria expor suas opiniões? A professora geralmente lançava perguntas simples, que de fato são baseadas em opiniões, como por exemplo: “O que você acha do uso de uniforme nas escolas?”, “O que você acha sobre comer sorvete no inverno?” até perguntas que não são opinativas como: “O que você pensa sobre vacinas?”, “Você acha que a Terra é plana?”, etc. O ponto é que a maioria de nós aprendeu a debater um tópico baseado nas nossas próprias 9 opiniões, crenças e no nosso próprio viés. Esse comportamento de debate não é exclusivo das escolas, a grande mídia repete esse comportamento diariamente. Acredito que você já deve ter encontrado em jornais a famosa “coluna de opiniões”, onde pessoas leigas respondem perguntas científicas sem nenhum tipo de conhecimento técnico-científico. Também encontramos esse falso debate em documentários e reportagens sobre diversos assuntos, onde um tópico polêmico é escolhido e a mídia apresenta os dois lados da moeda. Por exemplo, existe um documentário famoso em uma grande plataforma de streaming que critica diversas terapias alternativas e mostra que a indústria do bem-estar é bilionária e pode causar diversos danos. Entretanto, a cada episódio eles apresentam o lado bom e o lado ruim do tema, ou seja, o espectador ao final do programa fica com aquela pulguinha atrás da orelha: “Talvez seja bom, pois várias pessoas estão dizendo que foram curadas. Se bem não faz, mal também não faz.”. E aqui é onde mora o perigo, pois o programa não deixa claro que o “lado bom” é baseado em evidências (ou experiências) anedóticas e não em evidências científicas ou fatos concretos. As evidências anedóticas são um recurso narrativo utilizado nos “enunciados picaretas”, onde alguém diz o quão maravilhosa uma prática alternativa é e que ela se curou ou alguém que ela conhece se curou, mas não apresenta nenhum tipo de evidência de que aquilo é de fato algo legítimo. Nosso cotidiano está cercado de afirmações falaciosas, evidências anedóticas e falta de pensamento crítico. Esse é o cenário perfeito para que diversos picaretas se aproveitem de pessoas em estado de 10 vulnerabilidade e desespero, prometendo uma solução milagrosa para diversos problemas. Acrescentamos a catástrofe, órgãos públicos e conselhos de classe que recebem centenas ou milhares de denúncias por ano, mas não possuem uma estrutura para avaliá-las e tomar as devidas medidas. É importante frisar que esses locais também não estão livres de pessoas que acreditam nos discursos falaciosos e anti-científicos. Nosso papel como cientistas, divulgadores científicos e/ou defensores das práticas baseadas em evidências científicas é o de promover iniciativas com o objetivo de educar o público leigo. Nosso papel não é “converter” ninguém e sim informar o público leigo que está em busca de informações científicas e confiáveis. Precisamos também lutar por uma melhor educação básica, por uma educação científica em todos os estágios de nossa formação acadêmica e por investimos no campo científico. A mudança é morosa, mas ela vai acontecer se todos nós estivermos juntos em busca de um único objetivo: práticas baseadas em evidências científicas que possam ajudar o ser humano de forma eficiente e segura. Gabriela Bailas, PhD em Física Teórica de Partículas Pesquisadora na Universidade de Tsukuba no Japão Criadora e divulgadora científica no canal Física e Afins (YouTube) e no Instagram @bibibailas11 SUMÁRIO Ciência, o melhor remédio contra a picaretagem..............................11 As ilusões dos tratamentos pseudocientíficos....................................29 As escolhas que você acredita ter feito foram escolhas do seu cérebro?...................................................................................................61 O aluno tem que focar? A escola, o aluno e a desigualdade em tempos de pandemia.............................................................................93 A falsa dicotomia entre os seres humanos e os outros animais: qual o nosso papel na grande História da Vida?.......................................113 Salve o mundo com Ciência do Comportamento.............................139 12 13 Capítulo 1 14 Ciência, o melhor remédio contra a picaretagem. Paulo Guerra Soares1; Carlos Eduardo Costa2; Alexandre Dittrich3 1Núcleo Evoluir 2Universidade Estadual de Londrina 3Universidade Federal do Paraná Você já deve ter, em algum momento da sua vida, procurado a ajuda de um médico. Isso pode ter acontecido quando você estava se sentindo enjoado, febril ou mesmo quando sofreu aquela contusão muscular durante uma partida de futebol com os amigos. O médico, após examiná-lo, pediu exames, receitou algum remédio ou aconselhou que você ficasse de repouso. Ao seguir as orientações do médico, provavelmente houve uma melhora no seu quadro de mal estar. Por que as pessoas doentes não procuram com maior frequência um xamã, um pajé, uma benzedeira? Afinal de contas, existem os mais diversos tipos de “curandeiros” por aí, que prometem resoluções rápidas e eficientes contra as maiores adversidades. No entanto, as pessoas, de maneira geral, costumam procurar a ajuda dos médicos quando sua saúde não vai bem1. Por que elas fazem isso? Seriam os médicos milagreiros? Qual o “poder” especial que essas pessoas possuem? A resposta não está em milagres ou qualquer poder sobrenatural. As pessoas procuram médicos porque a medicina funciona! Pelo menos, funciona mais que suas alternativas. Vacinas, antibióticos, antialérgicos, exames de imagem e procedimentos cirúrgicos cada vez mais minuciosos têm permitido que as pessoas que procuram os médicos possam continuar vivendo as suas vidas com qualidade. Funcionar, nesse caso, independe da opinião das pessoas. Alguém pode achar que dipirona não é eficiente para diminuir a temperatura corporal, mas um simples teste desmentiria 1 Algumas pessoas podem até recorrer a estes “curandeiros” com alguma frequência. Entretanto, acreditamos que mesmo essas pessoas não deixam de consultar um médico paralelamente, especialmente se o quadro clínico for grave. Se não o fazem, bem... Elas podem ficar em maus lençóis! 15 esta pessoa no ato! A medicina funciona porque, diferente de muita picaretagem por aí, utiliza os preceitos da ciência para lidar com seu objeto de estudo. As pessoas confiam na ciência. A pesquisa Wellcome Global Monitor (2019) entrevistou milhares de pessoas em diversos países do mundo e descobriu que 72% delas confiam, em algum grau, na ciência e nos cientistas. As pessoas não apenas procuram médicos, psicólogos, dentistas ou fisioterapeutas. Elas utilizam, diariamente, muitos dos produtos da ciência. Telefones celulares, Internet, viagens de avião, previsão do tempo, sistemas de segurança - tudo produto da ciência2! Sabemos muito sobre o universo por causa do conhecimento produzido pela ciência, mas sabemos muito mesmo. Ela tem sido muito útil para lidarmos com os nossos problemas, desde os mais simples até os mais complexos. Mas será que a ciência é a única forma de conhecer o mundo? Só a ciência funciona? A resposta para ambas as perguntas é não. Existem, sim, outros tipos de conhecimento. Vamos analisar alguns deles a seguir. O senso comum É provável que um trabalhador rural saiba exatamente a melhor época do ano para se plantar milho. Ele nunca realizou nenhum experimento para saber isso. Talvez tenha aprendido com o pai dele, que teria lhe dito (ensinado) como fazer; talvez tenha aprendido fazendo e lidando com as consequências daquilo que fazia – ou ambos. O mais importante é que ele sabe, e isso basta. Alguns ditados populares também podem ser bastante úteis. Quando as pessoas dizem que “a pressa é inimiga da perfeição”, querem ensinar que é importante, em determinadas tarefas, termos paciência e perseverança. Se tentarmos apressar o processo, os resultados podem não ser tão efetivos. 2 Estes produtos práticos da ciência são conhecidos como tecnologia. 16 Os exemplos do trabalhador rural e dos ditados populares são amostras de um segundo tipo de conhecimento: o senso comum, o conhecimento popular. Podemos dizer que o senso comum consiste em um conjunto de crenças e opiniões, essencialmente de caráter prático (uma vez que procura resolver problemas cotidianos), geralmente aceitas e compartilhadas por muitas pessoas. Ele é diferente do conhecimento científico, mas, em muitos casos, pode ser útil e ajudar as pessoas a lidarem com problemas do dia a dia – pode funcionar! As pessoas fazem café e atravessam uma rua sem recorrer à química e a cálculos complexos da física e movimento dos corpos. Assim, podemos definir o conhecimento do senso comum como assistemático, superficial, sensitivo e subjetivo (Lakatos & Marconi, 2006; Marconi & Lakatos, 2004). Muito do que conhecemos sobre as coisas a partir do senso comum tem a ver com as nossas próprias experiências, impressões, valores e julgamentos sobre o mundo. A ciência, por outro lado, é um empreendimento diferente. Ela se preocupa com a acumulação sistemática de evidências sobre um determinado objeto para que possamos formular afirmativas gerais – teorias – que possam ser verificadas. O conhecimento científico deve ser obtido por meio de procedimentos que possam eliminar fontes de erro conhecidas. O que o diferencia o senso comum da ciência é o modo de formular e responder perguntas. Em outras palavras, o método. Os ditados populares, embora sejam derivados da experiência cotidiana das pessoas, não são resultado da acumulação sistemática e metódica de evidências. Portanto, não existe uma teoria científica que os sustente. Sim, nós podemos querer que os ditados sejam verdade. Podemos acreditar neles. No entanto, estas crenças estão baseadas nas nossas experiências pessoais e precisamos tomar cuidado porque elas não funcionam em todos os contextos. Vejamos alguns ditados populares que, na verdade, são contraditórios: Seguro morreu de velho/Quem não arrisca não petisca; É de pequenino que se torce o pepino/Pau que nasce torto, 17 morre torto; Não deixe para amanhã, o que você pode fazer hoje/Não ponha a carroça na frente dos bois; Cavalo dado não se olha os dentes/Quando a esmola é grande, o santo desconfia. Podemos viver situações em que ora um provérbio se encaixa, ora outro. O mais interessante é que, geralmente, os provérbios são usados depois que as coisas acontecem. As descobertas da ciência muitas vezes produzem conclusões muito diferentes daquilo que conhecemos no senso comum. Como diria o psicólogo estadunidense B. F. Skinner em seu livro Ciência e Comportamento Humano, “os experimentos [científicos] nem sempre dão o resultado que se espera, mas devem permanecer os fatos e perecer as expectativas. Os dados, não os cientistas, falam mais alto” (2003, p. 13). A religião Outro tipo de conhecimento – bem arraigado em nossa cultura – é o conhecimento religioso. As religiões possuem teorias elaboradas que explicam desde a criação do universo até o que acontece após a morte. Já ouviu falar em criacionismo? O criacionismo é um exemplo de conhecimento baseado na crença religiosa, aceito e difundido atualmente por muitas pessoas. De acordo com a Stanford Encyclopediaof Philosophy (Ruse, 2021), os criacionistas judaico-cristãos acreditam que o nosso universo foi criado em seis dias (no sétimo dia, o suposto Criador teria descansado). Deus, o Criador, teria moldado – do nada – a terra, os céus, o dia e a noite, os seres humanos, os animais e as plantas. Alguns criacionistas afirmam que a Terra tem pouco mais de seis mil anos de idade, baseados em um livro publicado em 1658 pelo Arcebispo James Ussher chamado The Annals of the World. Muitas pessoas acreditam que este Deus seria capaz de influenciar, de alguma forma, as coisas que acontecem na Terra. Você já deve ter escutado a expressão “graças a Deus” alguma vez na sua vida. 18 O conhecimento religioso, nesse sentido, possui um caráter sagrado, valorativo e infalível. O conhecimento religioso é baseado na crença, na fé. Não existem evidências científicas que sustentem que o universo tenha sido criado em seis dias ou que possua aproximadamente seis mil anos. Os cristãos acreditam nisso, muito provavelmente baseados em alguma passagem da Bíblia, um livro de verdades inquestionáveis. Não existe, para as religiões, a necessidade de explicação científica dos fenômenos. A maioria de suas afirmações é produto da fé. Provas de que Deus existe? Não são necessárias – é uma questão de crença. Não há necessidade de acumulação de evidências empíricas para sustentar qualquer conhecimento. Na verdade, a fé é mais exaltada nas religiões do que o ceticismo3. Jesus teria dito a Tomé “Porque me viste, creste? Bem- aventurados os que não viram e creram” (João 20:29). Na ciência, o ceticismo é uma virtude maior. Na maioria das vezes, o conhecimento religioso não provoca nenhum tipo de consequência mais severa. No entanto, algumas “verdades” do conhecimento religioso – lembre-se, produto de crenças – podem ser perigosas. Por exemplo, a Bíblia afirma que Deus transmitiu a seguinte lei a Moisés: “Qualquer homem da casa de Israel ou dos estrangeiros que peregrinam entre vós, que comer algum sangue, contra ele me voltarei e o eliminarei do seu povo” (Levítico 17:10). Alguns religiosos, como as Testemunhas de Jeová, costumam levar esse tipo de afirmação ao pé da letra, recusando-se, por exemplo, a realizar e receber transfusões de sangue – um ato que poderia até salvar a vida de alguém! O objetivo desta discussão não é causar um conflito entre ciência e religião. Estamos apenas contrapondo a origem das afirmações religiosas 3 Ceticismo será tomado aqui como a prática de questionar se uma afirmação está sustentada em pesquisa empírica e se é reproduzível. Usaremos o termo “cético” para designar aquelas pessoas que duvidam de tudo que não está provado de maneira evidente. 19 (crença, fé) e as origens do conhecimento científico (evidências empíricas e sistemáticas). O que são essas evidências empíricas e sistemáticas e por que elas são tão importantes? Vamos tomar como exemplo a origem do da vida na Terra. Por que a ciência não sustenta a visão religiosa, de que Deus foi o responsável pela origem da vida? Porque que as evidências apontam para outra direção! Evidências empíricas são fatos que podem ser confirmados pela observação. Vamos examinar, então, alguns desses fatos. A teoria mais aceita hoje sobre a origem da vida na Terra é a teoria da evolução por seleção natural, proposta por Charles Darwin em seu livro A Origem das Espécies, de 1859. Entre 1831 e 1836, Darwin viajou por diversos países a bordo do navio Beagle e, durante esta expedição, observou algumas características interessantes em alguns animais, especialmente aqueles que viviam em diferentes ilhas do arquipélago de Galápagos, no Equador. Darwin observou que existia pequenos pássaros chamados tentilhões, no arquipélago todo e no continente próximo. Todavia, eles se diferenciavam por uma característica: o bico. Havia tentilhões com bicos mais curtos e duros, e outros mais compridos e finos, por exemplo4. Darwin começou a se questionar: por que tantas espécies de pássaros em um ambiente tão próximo? Ao retornar para a Inglaterra, ele começou a elaborar as bases da teoria da evolução: aquelas características que permitiram maior probabilidade de sobrevivência são selecionadas, pois aumentam a chance de conservação e de reprodução destes indivíduos; aqueles indivíduos que possuem menor probabilidade de sobreviver possuem menor possibilidade de deixar descendentes e, por conseguinte, transmitir estas características. Os bicos dos tentilhões são essenciais para que eles se alimentem. As variações observadas por Darwin nos bicos dos 4 Existem 13 espécies de tentilhões em Galápagos (França, 2017). 20 tentilhões estavam relacionadas com as melhores formas de obter alimento em cada uma das ilhas do arquipélago. Desde então, já foram coletadas muitas evidências que permitem sustentar as afirmações de Darwin. Vamos analisar algumas delas. A Paleontologia, ciência que estuda as formas de vida em eras geológicas anteriores por meio da observação de fósseis, permitiu identificar que existiram outras formas de vida no planeta. Algumas dessas espécies encontram-se extintas, mas, quando comparadas com as espécies atuais, podemos notar muitas semelhanças. A estrutura óssea de alguns dinossauros bípedes, por exemplo, se assemelha muito à estrutura óssea das aves atuais, o que permite que os pesquisadores tracem uma linha evolutiva entre um tiranossauro e uma galinha (Versignassi & Sanches, 2017)! Mas podemos ir além: em 1988, um grupo de cientistas liderados pelo biólogo Richard Lenski, da Michigan State University, iniciou um grande empreendimento experimental utilizando uma bactéria chamada Escherichia coli5. Os pesquisadores começaram o projeto com 12 populações desta bactéria e disponibilizavam uma quantidade de alimento limitada diariamente, para “forçar” uma competição entre os indivíduos. Para ter uma ideia do ritmo de propagação desta bactéria, a cada 75 dias são registradas 500 gerações! Em 2020, já haviam sido registradas mais de 70 mil gerações de bactérias, e as mutações que foram ocorrendo ao longo de sucessivas gerações transformaram a estrutura genética da E. coli, permitindo que as populações mais recentes se tornassem mais eficientes em processar alimento, alterassem o tamanho de suas células e até mesmo seu padrão reprodutivo. O experimento de Lenski e colaboradores, com aproximadamente 70 mil gerações de 5 Os detalhes sobre o experimento pode ser consultados em http://myxo.css.msu.edu/ecoli/overview.html http://myxo.css.msu.edu/ecoli/overview.html 21 bactérias, equivale a mais ou menos um milhão de anos de evolução do ser humano! Pois é, a teoria da evolução por seleção natural parece complicada e pode até parecer meio sem graça. Mas, na verdade, é o oposto disso! Compreender como as características das diversas espécies (animais e vegetais) foram mudando com o passar das gerações a partir da interação com o ambiente é um empreendimento fascinante. Nas palavras de Richard Dawkins, um importante biólogo evolucionista: “Estamos cercados por infindáveis formas belíssimas e fascinantes, e não é por acidente, e sim uma consequência direta da evolução pela seleção natural não aleatória6 única na vida, o maior espetáculo da Terra” (2009, p. 426). A Filosofia E quanto à Filosofia? Essa palavra é de origem grega, e significa “amor pelo saber”. Mas a essa altura já deve estar claro que a ciência também tem muito “amor pelo saber”. De fato, a palavra “ciência”, de origem latina, igualmente significa “saber” ou “conhecimento”. Nada disso é coincidência: filosofia e ciência estão historicamente ligadas pela busca do saber. A ciência, conforme a conhecemos hoje, com seus métodos e suas divisões de acordo com os processos que estuda, é uma criação bastante recente. Até o século XVII, todas as tentativas sistemáticas deconhecer o mundo eram chamadas de “filosofia”. Por exemplo, a obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, publicada em 1687 por Isaac Newton, é considerada uma das mais influentes da história da ciência. Hoje ela é considerada uma obra de Física, mas note a expressão “Filosofia Natural” no título. Filosofia Natural era como se denominava uma certa forma de conhecimento que, depois, veio a se chamar Ciência. De certo modo, a Filosofia é a “mãe” de todas as ciências, que, aos poucos, foram se dividindo em campos específicos de 6 “Não aleatório” no sentido de que as características que são selecionadas são aquelas que aumentam a chance de sobrevivência dos indivíduos desta espécie. 22 estudo e desenvolvendo métodos próprios de investigação, em especial nos últimos quatro séculos. A Filosofia, porém, continua existindo como método de investigação e crítica, e desempenha um papel muito importante, frequentemente atuando em conjunto com as ciências. Dada a amplitude dos métodos e interesses dos filósofos, há uma grande variedade de propostas para definir o que ela é. Assim, qualquer proposta de defini-la tem seus limites, e pode ser criticada. Mesmo assim, vamos arriscar uma definição: a Filosofia é uma exploração sistemática das possibilidades que a linguagem e o pensamento oferecem para que possamos conhecer e transformar o mundo. Essas possibilidades são frequentemente chamadas de lógicas ou racionais. A linguagem, que evoluiu conjuntamente com o que chamamos de pensamento, é uma característica muito especial do comportamento humano. Outros animais também apresentam formas rudimentares de linguagem, mas os avanços impressionantes que alcançamos com a ciência e a tecnologia só foram possíveis em função do alto grau de desenvolvimento das línguas humanas, que nos permite coordenar o nosso comportamento das mais variadas formas ao lidar com o mundo. A linguagem nos permite dar nomes para os fenômenos, agrupá-los em categorias e estabelecer relações entre eles, além de conversar sobre tudo isso e transmitir o que sabemos para outras pessoas. Sem tais capacidades a ciência certamente não teria chegado tão longe. Uma teoria científica é um produto linguístico, que só existe porque podemos falar e escrever. O caminho que leva da observação dos processos do mundo até a formalização de uma teoria científica é bastante complexo. A Filosofia, com seu olhar crítico sobre a linguagem, nos ajuda a construir teorias científicas e a testar continuamente sua solidez, sua coesão e seus limites. Ao explorar as múltiplas possibilidades da linguagem, a Filosofia amplia nossa capacidade de pensar, e esta é essencial para a ciência. 23 É comum que a Filosofia seja definida pela sua insistência em questionar, duvidar, criticar – e nisso ela é semelhante à ciência. O filósofo, assim como o cientista, é um cético. O saber avança, e esse avanço depende de nossa capacidade de continuamente fazer novas perguntas e buscar novas respostas. O diálogo entre a Filosofia e a ciência tem se mostrado muito produtivo: cada uma delas aprende e muda com os métodos e descobertas da outra. Parece cada vez mais claro que a união entre a investigação empírica e a análise racional é o melhor caminho para que nossa curiosidade em relação ao mundo produza bons frutos, que nos permitam satisfazer nossa vontade de saber e, a partir disso, melhorar a vida das pessoas.7 A Ciência Mas o que é a ciência afinal? Não é algo tão simples de se responder, pois muitos estudiosos buscam discutir isso e possuem respostas diferentes. Neste capítulo nós faremos uma apresentação mais geral do que é a ciência, para que você perceba como difere de outros tipos de conhecimento e porque ela é um modo de pensar que nos protege contra a “picaretagem” que anda por aí. Carl Sagan escreveu um livro brilhante – como quase tudo que ele fazia – intitulado O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro (1996). Neste livro, ele apresenta algumas características do pensamento científico que abordaremos aqui. Em primeiro lugar, a ciência deve trabalhar com hipóteses que possam ser refutadas. Por exemplo, a afirmação “o mundo foi criado há 12 horas junto com toda memória que você tem” é uma afirmação que não podemos refutar. Se eu disser, “mas eu me lembro da minha festa de aniversário de 10 anos”, alguém poderia responder “Esta é uma memória 7 Assim como a ciência, a Filosofia tem suas próprias “ferramentas”, ou métodos. O livro de Baggini e Fosl (2008) oferece uma forma acessível e muito informativa de se familiarizar com essas ferramentas. 24 que foi criada junto com você há 12 horas atrás”. Se não houver meios de alguém conduzir uma investigação para se chegar a alguma conclusão sobre a validade de uma afirmação, esta afirmação deve ser refeita ou abandonada. Isaac Newton dizia que se uma questão não pudesse ser respondida por um experimento, então aquela questão não era digna de debate. Em segundo lugar, sempre deve haver o incentivo ao exame cético na ciência. Como já expusemos anteriormente, em um pensamento científico a dúvida deve ser exaltada e a crença cega em algo deve ser combatida. Se alguém faz uma afirmação extraordinária como, por exemplo, “eu vi discos voadores”; “seres extraterrestres existem e visitam a terra com frequência”; “alguém com fé e treinamento pode atravessar paredes”; “fulano pode curar qualquer tipo de doença conhecida pela força do pensamento”, esse alguém precisa apresentar evidências de cada afirmação. Quem faz a alegação deve provar o que diz. Quanto mais incomum e fantástica for a alegação, quanto mais ela não condiz com o que já sabemos sobre o funcionamento do mundo, mais contundente e impressionante deve ser a prova ou a evidência apresentada. Hoje em dia, fotos e vídeos podem ser facilmente manipulados. Documentos são facilmente forjados. Portanto, após a apresentação das “provas”, elas deverão ser avaliadas de maneira cética, exames periciais deverão ser conduzidos para a verificação da autenticidade de tais provas e experimentos ou observações diretas – se possíveis – podem ser requeridos para sustentar as afirmações. Podemos e devemos ser céticos em relação a tudo. Não há nada “sagrado” em ciência, isto é, algo que não possa ser questionado. Os cientistas são sempre céticos em relação às descobertas de outros cientistas! Ninguém está isento de uma análise cética de suas afirmações. Não há, em ciência, uma figura com autoridade para dizer algo e ser aplaudido, sem que suas ideias sejam verificadas à exaustão. Demorou muitos anos até que as ideias de Albert Einstein fossem aceitas e, até hoje, há experimentos que indicam que há “pontos 25 frágeis” em suas teorias que precisam ser revistos. A seleção natural de Charles Darwin demorou para ser aceita nos meios científicos e sua teoria original sofreu mudanças ao longo do tempo, a partir de novas descobertas. Se falamos em exames céticos das observações ou afirmações, estamos falando em pesquisa. Há diversas maneiras de se fazer pesquisa, mas uma coisa há de comum em qualquer pesquisa: método! É preciso que o investigador descreva todos os passos dados para responder a alguma questão, para se chegar a alguma conclusão. Darwin coletou materiais e os foi descrevendo, classificando-os e fez muitas observações em sua viagem a bordo do Beagle, para assim estruturar sua teoria. Einstein fez experimentos mentais, isto é, partiu de alguns pressupostos da Física e imaginou o que ocorreria sob certas circunstâncias. Claro, muitos anos depois vieram pesquisas experimentais controladas que indicaram que Darwin e Einstein estavam na direção correta! Portanto, uma outra característica da ciência é a experimentação controlada, sempre que possível8. Na experimentação, o cientista está interessado em verificarse existem relações de causalidade entre variáveis, por meio da observação e análise. O que isso significa? Significa que o cientista manipula as variáveis para tentar estabelecer relações entre elas. Por exemplo, o cientista poderia se perguntar: a substância X elimina o patógeno Y? Como responder a esta pergunta? Em um experimento, o cientista aplica a substância X no patógeno Y e observa os resultados. Se a concentração do patógeno diminuir, então 8 Mas lembre-se: nem sempre é possível! Podemos produzir conhecimento científico de outras formas, para além da experimentação. Os paleontólogos, como citado anteriormente, fazem inferências a partir da observação sistemática de fósseis em comparação a espécies atuais. Quando um cientista não pode manipular as variáveis diretamente, ele pode recorrer a uma estratégia correlacional, por exemplo. Em uma correlação, observam-se variáveis que têm alta probabilidade de ocorrer em conjunto e infere-se uma relação entre elas. Esta é uma estratégia bastante utilizada por estatísticos. 26 podemos suspeitar que estas variáveis (substância e patógeno) se relacionam de alguma forma. A substância pode ser considerada a causa da eliminação do patógeno. Esse tipo de evidência experimental é muito importante para o conhecimento científico. Por que, após o experimento, dissemos que podemos “suspeitar” e não “ter a certeza” de algo? Porque muitas pesquisas ainda precisam ser feitas para que aquela relação seja comprovada. Podem ter ocorrido erros (não identificados) no primeiro experimento. Lembre-se: cientistas são céticos! Por falar em erros, outro ponto importante em ciência é exatamente a necessidade de verificação dos erros de forma independente. Isto nada mais é do que permitir que o conhecimento gerado seja minuciosamente investigado por outras pessoas. Elas examinarão todos os possíveis erros que você possa ter cometido. Procurarão por algo errado em sua investigação usando todas as habilidades e instrumentos que possuem. Avaliarão se as conclusões a que você chegou realmente estão assentadas nos dados que você apresentou. Se tudo parecer correto, ainda repetirão sua investigação ou observação, seguindo o mesmo método que você seguiu, para verificarem se chegarão aos mesmos resultados e conclusões – dá-se a isso o nome de replicação. Qualquer pessoa tem o direito de fazer esta investigação na busca por erros. Conhecimento científico é conhecimento público! Não pode haver mistérios, nem forças ocultas, nem habilidades especiais, nem procedimentos ou resultados secretos. Em ciência nenhuma afirmação deve ser aceita apenas porque parece intuitivamente evidente. Há diversos exemplos de como nos enganamos com facilidade. Veja a figura abaixo. Qual das duas retas é maior? 27 Na verdade, elas possuem o mesmo tamanho. Não acredita? Ótimo! Continue sempre sendo cético. Pegue uma régua e meça as duas retas. Essa é uma ilusão bastante conhecida em Psicologia (por exemplo, Myers, 1998). Há muitas outras evidências de como nossa percepção pode estar enviesada. Leia um capítulo sobre “percepção” em algum bom livro de Psicologia Geral ou Introdução à Psicologia (por exemplo, Nolen-Hoeksema, Fredrickson, Loftus, & Lutz, 2018) e você descobrirá o quanto os humanos são propensos a erros de observação. Cientistas são humanos! Embora alguns não pareçam, todos são. Erram como qualquer pessoa. A diferença é que sabem disso e, por isso, aceitam que outros possam buscar falhas em seu trabalho. É verdade que alguns cientistas não gostam quando alguém diz que eles estão errados. Como dissemos, são humanos. Todavia, os sentimentos dos cientistas não devem ser levados em conta quando se trata de aceitar ou não alguma afirmação. Gostemos ou não, esta é a regra do jogo. Outra característica importante do pensamento científico é o chamado Princípio da Parcimônia ou A Navalha de Ockham (em alguns lugares você vai encontrar o nome grafado como Occam). Ockham formulou o princípio no século XIV e, mais tarde, ele foi assim expresso: “As coisas não devem ser multiplicadas além do necessário” (Abbagnano, 2007, p. 298). De modo mais coloquial, podemos dizer que o Princípio da Parcimônia nos diz que “menos é melhor”, ou seja, se eu tenho várias explicações adequadas e plausíveis para o mesmo conjunto de fatos, devo optar pela explicação mais simples. Entretanto, é importante saber que “mais simples” não quer dizer “mais simplória”. Podemos supor que extraterrestes vieram com tecnologia avançada e 28 construíram as pirâmides do Egito – isso parece bem simples. Também podemos supor que, com uso de tecnologias rudimentares, mas muito bem pensadas e com ajuda de muita mão de obra e bastante tempo, pessoas comuns poderiam tê-las construído – isso parece mais complicado. Entretanto, a primeira suposição não é a mais simples (ela é simplória), pois exigiria evidências que ainda não temos (a existência de vida inteligente extraterrestre com tecnologias avançadas de deslocamento no espaço, que tenham visitado nosso planeta, entre outras coisas). Sobre a segunda hipótese, ela é mais simples, pois não há nada nela que não tenha sido verificado de alguma forma: havia muita mão de obra e “dinheiro” disponível naquela época e região; pedras enormes poderiam ser transportadas pelo Nilo e, depois, em trenós de madeira sobre a areia molhada etc.9 A teoria da terra plana parece mais simples do que a teoria da terra esférica. Todavia, ela é apenas mais simplória, uma vez que há muitas evidências a favor da segunda hipótese e nenhuma (que não tenha sido refutada) a favor da primeira. O Princípio da Parcimônia não pode ser usado sem o auxílio de todas as outras características do pensamento científico que apresentamos antes. Ou seja, use-o com parcimônia! A Navalha de Ockham, como qualquer navalha, pode ser perigosa se mal utilizada. Por fim, mas não menos importante, o pensamento científico rejeita um conhecimento por falta de evidência. Não é proibido não ter uma resposta! Na verdade, o que não podemos fazer é inventar uma resposta. Veja que isso é diferente de dizer que algo “não existe”. O que um cientista sério diz é: “não há evidências suficientes que confirmem esta afirmação”, seja ela qual for (até mesmo sobre a existência de vida 9 Veja os vídeos dos canais de YouTube Nerdologia (2014) e Você Sabia? (2018) sobre a construção das pirâmides para aprender um pouco mais sobre o tema. 29 [inteligente] em algum lugar do universo). Se no futuro houver evidências, a ciência reverá suas posições10. Considerações finais Neste capítulo, buscamos apresentar as diferenças entre o conhecimento científico e outros tipos de conhecimento em linhas gerais. Esperamos que o leitor possa ter compreendido a importância do pensamento científico e as vantagens que ele proporciona. O nosso mundo vive rodeado de muita picaretagem: astrologia, búzios, cristais energéticos, curas milagrosas, teoria da Terra Plana, e por aí vai. Algumas dessas atividades se apresentam como tendo embasamento científico (às vezes até utilizam alguns jargões da ciência), mas na verdade não passam de charlatanismo – a famosa pseudociência11. Não pretendemos, neste curto espaço, exaurir todos os aspectos da discussão. Ciência é um empreendimento fascinante, que nos permite conhecer cada vez mais e melhor o mundo em que vivemos e cujos produtos melhoram nossa qualidade de vida. Por isso, é importante que tenhamos em mãos materiais como este livro. Proporcionar uma educação científica para a população, traduzindo conceitos difíceis da 10 Se você quer se aprofundar um pouco mais no assunto sobre o que é a ciência, recomendamos a leitura do livro de Alan F. Chalmers, que foi publicado em português em 1993, chamado O que é a ciência afinal?. 11Pseudociência, ou a “falsa ciência”, diz respeitoa afirmações sobre o mundo que parecem utilizar o método científico, mas, na verdade, partem de premissas que não podem ser falseadas e, nesse sentido, se afastam das características mais importantes da ciência. Nas palavras de Sagan (1996), “A pseudociência difere da ciência errônea. A ciência prospera com seus erros, eliminando-os um a um. Conclusões falsas são tiradas todo o tempo, mas elas constituem tentativas. As hipóteses são formuladas de modo a poderem ser refutadas (…) A pseudociência é exatamente o oposto. As hipóteses são formuladas de modo a se tornar invulneráveis a qualquer experimento que ofereça uma perspectiva de refutação, para que em princípio não possam ser invalidadas. Os profissionais são defensivos e cautelosos. Faz-se oposição ao escrutínio cético. Quando a hipótese pseudocientífica não consegue entusiasmar os cientistas, deduz-se que há conspirações para eliminá-la" (p. 28). 30 ciência para o público leigo é essencial para que possamos nos livrar dos danos causados por estas atividades picaretas. Para terminar, ficamos com uma reflexão de Carl Sagan (1994), um dos mais importantes divulgadores da ciência de todos os tempos: “Não divulgar a ciência parece perverso para mim. Quando você está apaixonado, você quer contar para todo mundo”. Referências Abbagnano, N. (2007). Verbete: Economia. In Dicionário de Filosofia (5ª ed, pp. 298-299). São Paulo:Mestre Jou. Baggini, J., & Fosl, P. S. (2008). As ferramentas dos filósofos: Um compêndio sobre conceitos e métodos filosóficos. São Paulo: Loyola. Chalmers, A. F. (1993). O que é ciência, afinal?. São Paulo: Brasiliense. Dawkins, R. (2009). O maior espetáculo da Terra: As evidências da evolução. São Paulo: Companhia das Letras. França, D. P. F. (2017). Os tentilhões-das-Galápagos. Projeto Filos. http://projetofilos.com.br/2017/10/os-tentilhoes-das- galapagos/ João. In Bíblia Sagrada (2009, 2ª ed.), Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil. Lakatos, E. M., & Marconi, M. A. (2006). Técnicas de pesquisa (6a ed). São Paulo: Atlas. Levítico. In Bíblia Sagrada (2009, 2ª ed.). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil. Marconi, M. A., & Lakatos, E. M. (2004). Metodologia científica (4a ed). São Paulo: Atlas. Myers, D. G. (1998). Introdução à psicologia geral (5ª ed.). Rio de Janeiro: LTC. Nerdologia (2014). Como construíram as pirâmides? [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=q7zyyX7PK9E http://projetofilos.com.br/2017/10/os-tentilhoes-das-galapagos/ http://projetofilos.com.br/2017/10/os-tentilhoes-das-galapagos/ https://www.youtube.com/watch?v=q7zyyX7PK9E 31 Nolen-Hoeksema, S., Fredrickson, B. L., Loftus, G. R., & Lutz, C. (2018). Introdução à Psicologia: Atkinson & Hilgard (16a ed.). São Paulo: Cengage. Ruse, M. (2021) Creationism. In E. N. 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How does the world feel about science and health? https://wellcome.ac.uk/what-we-do/our-work/wellcome- global-monitor https://plato.stanford.edu/archives/spr2021/entries/creationism/ https://www.washingtonpost.com/archive/entertainment/books/1994/01/09/with-science-on-our-side/9e5d2141-9d53-4b4b-aa0f-7a6a0faff845/ https://www.washingtonpost.com/archive/entertainment/books/1994/01/09/with-science-on-our-side/9e5d2141-9d53-4b4b-aa0f-7a6a0faff845/ https://www.washingtonpost.com/archive/entertainment/books/1994/01/09/with-science-on-our-side/9e5d2141-9d53-4b4b-aa0f-7a6a0faff845/ https://super.abril.com.br/ciencia/dinos-entre-nos/ https://www.youtube.com/watch?v=4oDAc0nubAQ https://wellcome.ac.uk/what-we-do/our-work/wellcome-global-monitor https://wellcome.ac.uk/what-we-do/our-work/wellcome-global-monitor 32 33 Capítulo 2 34 As ilusões dos tratamentos pseudocientíficos André Demambre Bacchi1 1Universidade Federal de Rondonópolis É certo que a indústria farmacêutica fez por merecer seu status e alguma desconfiança. Ela acompanha relatórios de enfermidades mais diagnosticadas, medicamentos mais prescritos e características sociodemográficas dos pacientes. Sabemos também que patrocina palestras e congressos médicos, encomenda estudos e investe agressivamente em marketing. É indiscutível o seu nível de influência, articulação e capacidade em fazer lobby. Por esses e outros motivos, não podemos ser ingênuos a ponto de confiar cegamente em seus estudos, tratamentos e afirmações (Kedouk, 2016). Por outro lado, praticamente todo tratamento, desde um simples alívio de dor e febre, até uma complexa eliminação de uma infecção bacteriana resistente, depende de uma das tecnologias em saúde mais importantes desenvolvidas pelo ser humano: o medicamento. E o processo pelo qual os medicamentos são descobertos, desenvolvidos e testados estão em consonância com o método científico. Isso não faz com que possamos confiar de “olhos fechados” nesses tratamentos, mas nos permite analisá-los, questioná-los e aplicá-los da maneira mais racional possível. Tão importante quanto isso: o fato de haver necessidade em ser crítico com as tecnologias oriundas da indústria farmacêutica não nos isenta da necessidade em sermos igualmente críticos com uma outra indústria: a dos tratamentos ditos integrativos e complementares (antes chamados de alternativos). Disfarçados de técnicas inócuas, humanizadas, holísticas e herdeiras de “conhecimentos milenares”, as terapias integrativas ganharam facilmente a simpatia das pessoas, em especial quando comparadas lado a lado ao tratamento convencional (que 35 tem a fama de agressivo, lucrativo e exploratório, pelos motivos elencados no início deste capítulo). O que deixamos de perceber nesse processo é que as terapias integrativas também constituem uma indústria que movimenta bilhões, na forma de seus produtos, cursos de formação/capacitação e atendimentos profissionais (Fox, 2016). As vendas anuais de produtos homeopáticos nos EUA, por exemplo, aumentaram cinco vezes no período de 1987 a 2000. Um salto de 300 milhões de dólares para 1,5 bilhão (Singh & Ernst, 2013). E esse marketing “holístico” e “natural”, em harmonia com a busca da sociedade contemporânea por um estilo de vida mais saudável e good vibes, faz parte do seu lobby. Nesse sentido, parece incoerente sermos tão críticos a respeito da indústria farmacêutica e ao mesmo tempo permissivos em excesso com as terapias integrativas. O ceticismo científico deve se fazer presente ao avaliar qualquer intervenção terapêutica, e este capítulo tem como objetivo demonstrar algumas das vezes em que nos afastamos disso e compramos discursos como “Esse tratamento é milagroso, mas a indústria farmacêutica não quer que você saiba disso”. Geralmente incorporamos esse tipo de pensamento ao ignorarmos a ciência. Mesmo com toda a nossa obsessão por assuntos relacionados à saúde, somos tão bombardeados com notícias, mensagens e áudios de WhatsApp contendo afirmações e histórias que soam de alguma forma científicas, que temos dificuldade em separar “ojoio do trigo”. Por esse motivo, o capítulo que segue será discutido à luz da Medicina Baseada em Evidências (MBE), que consiste em aliar a prática clínica profissional e as evidências científicas externas de qualidade, valorizando as escolhas e preferências do paciente sempre que possível (Sackett, Rosenberg, Gray, Haynes, & Richardson, 1996). Ainda que você não seja tão familiar com essa denominação, a MBE tem sido um dos mais bem-sucedidos modelos de ciência aplicada ao longo das últimas décadas, responsável 36 por ideias brilhantes que já salvaram (e salvarão) milhares de vidas (Goldacre, 2013). Eu usei e me “curou”, então esse tratamento funciona. Ninguém duvida de que a percepção subjetiva do paciente seja algo importante. Afinal, o objetivo final de qualquer terapia é melhorar a nossa qualidade de vida quando estamos enfrentando algum transtorno ou doença. Porém, algo importante de se entender é que um determinado tratamento ou intervenção pode “provocar” melhora nos sintomas, independentemente de possuir uma eficácia intrínseca. Ou seja, estamos sujeitos a diversos fatores que podem confundir a avaliação de um tratamento, que dificultam uma análise crítica. Enviesados por tanta subjetividade, não somos a melhor ferramenta para mensurar esse efeito terapêutico com acurácia em nós mesmos ou em um amigo, familiar ou paciente. Então como sabemos se um medicamento funciona? Existem diversas formas de tentar observar se um medicamento faz efeito ou não, mas nem todas elas são formas confiáveis. Podemos, por exemplo, usar o medicamento quando estamos doentes e observar se melhoramos. Ou ver um paciente utilizando e depois relatar o seu caso. Esse tipo de evidência é chamado de “evidência anedótica”. Evidências anedóticas não nos dizem muita coisa e, certamente, não servem como ferramenta para tomada de decisão clínica. Da mesma forma, efeitos observados em células de laboratório (in vitro) ou em (outros) animais, também não podem gerar condutas clínicas ou garantir eficácia. Há ainda o caso do profissional ou especialista da área que, por conhecer como o organismo, as doenças e determinados medicamentos funcionam, começa a fazer um raciocínio teórico (e, muitas vezes, plausível) sobre a eficácia de um fármaco em um contexto específico. Contudo, plausibilidade é apenas uma suposição teórica que pode ser útil 37 para gerar hipóteses e experimentos, mas não é adequada para gerar uma prescrição médica. Na maioria dos casos, podemos cometer o erro de achar que um medicamento funciona, mas na verdade ele não ter efeito algum. Isso pode trazer prejuízo financeiro e também de saúde, ao deixar de usar ou investir em algo que realmente tenha efeito. Mas, em alguns casos, o resultado desse tipo de pensamento, que ignora os experimentos adequados, pode ser catastrófico. Por exemplo, após sofrer um ataque cardíaco, alguns indivíduos desenvolvem arritmias, um tipo de anomalia no ritmo do coração. Por esse motivo, ficam sujeitos a um risco maior de morte do que aqueles que tiveram infarto, mas não desenvolveram arritmia posterior. De maneira teórica, sabemos que existem medicamentos que suprimem essas arritmias e, por isso, parecia plausível supor que esses medicamentos seriam capazes de reduzir o risco de morte após infarto. Infelizmente, ao fazer uso desses medicamentos sem os estudos adequados para essa condição, ocorreu o contrário e estima-se que dezenas de milhares de mortes tenham acontecido por esse uso baseado em plausibilidade, antes dos estudos adequados serem conduzidos e mostrarem a ausência de benefício e aumento de mortalidade nesses pacientes (Evans, Thornton, Chalmers, & Glasziou, 2016). Portanto, quando queremos de fato observar cientificamente a eficácia de um tratamento, precisamos fazer um Estudo Controlado Randomizado (ECR). Para isso, é fundamental compararmos o efeito que estamos observando no “grupo teste” (aquele que recebe o medicamento) ao “grupo controle” (que recebe um placebo ou um medicamento mais antigo). Imagine que queremos lançar no mercado um novo medicamento, para o tratamento de dor de cabeça. Testamos o efeito desse medicamento em apenas um grupo de pacientes sentindo dor de cabeça e 70% desses pacientes relatam melhora. Será que podemos afirmar, com esse 38 resultado, que esse medicamento novo é eficaz? Que, por si só, possui um efeito terapêutico? Muitas pessoas (e, assustadoramente, muitos profissionais de saúde também) diriam que sim. Mas, por maior que seja nosso desejo em afirmar que estamos diante de um medicamento eficaz, ainda não podemos fazer essa alegação. E o motivo é que pessoas podem melhorar com uma intervenção, mesmo sem a presença de um princípio ativo. Isso mesmo que você leu: até mesmo um tratamento que não possui eficácia intrínseca pode provocar a sensação de melhora na dor do paciente e alguns fenômenos nos ajudam a entender o porquê disso. Vamos chamá-los aqui de “Variáveis de Confundimento” ou vieses (Fuchs & Wannmacher, 2017): 1) História natural da doença: São raras as doenças de curso clínico inexoravelmente negativo (que evoluem mal, sem possibilidade de reação). Ou seja, na prática, nosso corpo tem capacidade de se defender e se adaptar às adversidades e, muitas vezes, melhoramos sozinhos, como no caso da evolução natural de um resfriado. Ou períodos e dias em que há naturalmente alívio de dor, de febre ou ansiedade. Até mesmo algumas situações mais críticas, como alguns tipos de hepatite, casos de gastrite/úlcera ou quadros de asma, podem evoluir de forma benigna para cura espontânea ou remissão prolongada, independentemente do uso de medicamentos. Vale ressaltar que temos maior probabilidade de buscar medicamentos e tratamentos durante a intensidade máxima dos sintomas. Ou seja, a partir desse pico máximo de dor, por exemplo, é difícil ficar pior. Desse ponto, continuará igual ou, em muitos casos, haverá redução. Essa coincidência entre a melhora espontânea da dor após um período mais intenso com o momento em que inserimos uma determinada terapia, pode levar à falsa interpretação que a melhora do quadro se deu pela intervenção e não porque esta é a história natural daquela doença. 39 2) A figura de autoridade do terapeuta: A própria presença de um profissional de saúde ou de alguém que é visto como um terapeuta (mesmo sem ter a formação adequada para isso), já pode gerar alívio de sofrimento por si só. A satisfação do paciente em uma consulta ou sessão na qual se sentiu acolhido, ouvido e cuidado pode ser suficiente para gerar bem-estar, independentemente de o medicamento prescrito ter eficácia ou não. 3) Efeito Hawthorne: pessoas mudam comportamento quando sabem que estão sendo observadas. Isso quer dizer que só de participar de um estudo ou de saber que está sendo acompanhado de perto por um profissional de saúde, pacientes podem melhorar hábitos de vida, ainda que temporariamente, gerando alívio de sintomas. E isso não estará ligado à eficácia intrínseca de um medicamento ou intervenção. Por exemplo, um paciente que sabe que está tendo a sua glicemia monitorada para o teste de um medicamento hipoglicêmico, pode reduzir o consumo de carboidratos e adotar uma alimentação mais saudável, melhorando seu desempenho nos testes de glicemia, independentemente do efeito do medicamento. Além disso, o paciente pode dizer ao médico que se sente um pouco melhor (mesmo não tendo melhorado efetivamente) para tentar valorizar seu trabalho, em oposição ao constrangimento no caso de ser sincero. 4) Efeito do Acaso e Regressão à Média: parâmetros biológicos costumam se distribuir em ampla margem de valores. De modo geral, estes valores se agrupam ao redor da média e tendem a reduzir sua frequência conforme se afastam dela. Na aferição repetida de parâmetros biológicos,pode ocorrer o fenômeno de regressão à média. Na prática, isso significa que as pessoas que foram selecionadas por apresentarem valores de parâmetros mais extremos (muita dor, glicemia muito alta, pressão muito alta), possuem maior probabilidade de terem seus valores 40 sendo aproximados da média em medidas subsequentes. Se houver qualquer intervenção entre essas aferições, podemos associar, de maneira incorreta, que a mudança de valores observada foi devido à intervenção, ainda que sem eficácia intrínseca. 5) Viés de memória: Temos maior facilidade em nos lembrarmos de eventos marcantes, como aquele paciente que se curou graças ao tratamento que indicamos ou aquele caso que demorou para ser resolvido e, somente após usar um determinado medicamento, pareceu ser solucionado. Dessa forma, temos grande propensão em arquivar grandes vitórias, enquanto as situações do dia a dia, nas quais tratamentos foram inúteis ou tiveram efeitos abaixo do esperado, acabam sendo esquecidos. 6) Efeito Placebo: O efeito placebo se refere ao efeito terapêutico do fármaco ou intervenção, independentemente de atividade intrínseca. Parte dos pacientes pode, portanto, referir melhora da dor pelo simples fato de acreditar na intervenção e esperar melhorar com ela. Frequentemente, quando afirmamos “Efeito placebo”, estamos de modo impreciso nos referindo aos demais itens citados anteriormente, somados com a expectativa do paciente em melhorar com aquele tratamento. O fato é que todos os vieses elencados contribuem para a melhora ou diferença de efeito de um determinado grupo que receba o nosso novo medicamento e independem do efeito terapêutico intrínseco do princípio ativo. Por isso, para dizer que um medicamento funciona, não basta observarmos se uma pessoa que usou, melhorou. Precisamos de um grupo controle: um grupo que faz uso de um medicamento “de farinha” (sem princípio ativo), pra compararmos com o grupo que está recebendo o medicamento “de verdade”. Além disso, precisamos tomar cuidados para evitar problemas na separação entre o “grupo tratado” e o “grupo controle”. Por exemplo, se no grupo que recebe o tratamento só tivermos doentes terminais, enquanto no grupo controle forem agrupadas apenas pessoas com quadros 41 leves, é provável que o grupo que receber o tratamento vá expressar, ao final do experimento, maior mortalidade. Mas isso não significa que a causa desse desfecho ruim foi o uso do medicamento, mas sim a forma com que separamos os grupos. É daí que vem o termo “Randomizado” do ECR. Randomizar (ou aleatorizar) a amostra significa sortear as pessoas que vão para cada grupo, de modo a evitar uma seleção desigual de participantes. Por fim, é necessário frisar que os profissionais de saúde também podem ser influenciados em sua observação se souberem qual grupo está usando o tratamento e qual grupo está usando o placebo. Haverá diferença na forma de registrar, avaliar e interpretar os dados por uma tendência natural em considerar o tratamento superior ao placebo. Sendo assim, para reduzir ainda mais os fatores de confusão do estudo, o ideal é que o mesmo seja “duplo cego”, ou seja, que nem os pacientes saibam em qual grupo estão inseridos, e nem os pesquisadores que trabalham diretamente com eles. Assim, nesse tipo de ensaio clínico, conseguimos "limpar" esses interferentes e deixar em evidência apenas o potencial terapêutico intrínseco da substância. Essa é a maneira mais justa e imparcial de se conduzir um estudo para demonstrar eficácia de tratamentos. Em resumo: não basta afirmar "usei e melhorei" ou "meu paciente usou e melhorou". Apenas se o grupo tratado com o medicamento tiver melhora significativa em relação ao grupo controle (chamado também de grupo placebo), teremos uma evidência mais robusta de eficácia (Fuchs, Klag, & Whelton, 2000; Redberg, 2014). Efeito placebo, vieses e a “magia da realidade”. “Existe poesia de verdade no mundo real: a Ciência é a poesia da Realidade”. Essa frase do biólogo Richard Dawkins representa o lado poético (mas não místico ou pseudocientífico) da palavra magia. “Magia real” é no sentido de que uma música pode ser capaz de nos comover, observar estrelas pode nos fazer refletir sobre a vida e um arco-íris pode 42 enfeitar uma paisagem. Nesse sentido, ser capaz de compreender o mundo real e seus aparentes mistérios à luz do método científico nos mostra que, de certa forma, é “mágico” estar vivo e que a palavra “mundano” jamais deveria ter a conotação pejorativa que possui hoje, uma vez que entender o mundo real possui beleza ímpar. Nesse sentido, explicações sobrenaturais, na verdade, não nos explicam nada e, ainda pior, excluem ou reduzem a possibilidade de que algo seja explicado no futuro. Se algo é tido como sobrenatural, então está fora do alcance de uma explicação natural e testável e, para nós, cientistas, paradoxalmente perde seu caráter mágico (Dawkins, 2012). Nesse cenário, o efeito placebo e os vieses comentados no item anterior deste capítulo chegam a ser tão poéticos quanto reais, e certamente são mais “mágicos” do que as explicações mirabolantes e fantasiosas que algumas terapias integrativas oferecem para justificar suas supostas eficácias. A história que a Ciência nos apresenta sobre o mundo real e o funcionamento do nosso corpo é seguramente mais interessante do que qualquer mitologia sobre pílulas, gotas ou agulhas mágicas. Você provavelmente já cansou de ouvir a expressão: "Isso foi efeito placebo". Na área de medicamentos, uma “substância placebo” consiste em uma substância inerte, sem efeito terapêutico intrínseco, mas que. mesmo assim. provoca efeitos terapêuticos no usuário. Existem centenas de casos anedóticos documentados na história que mostram efeitos surpreendentes, como o uso de água salgada no lugar de morfina como substância analgésica durante a Segunda Guerra, ou cirurgias que conseguiram ser bem executadas e com pouca dor na era pré-anestésica (Beecher, 1955). Hoje em dia, nem sempre temos experimentos com o uso de placebo, pois, nos casos em que já existe um tratamento aprovado e eficaz para determinada doença, não seria ético usar um placebo em um grupo de pessoas doentes. Por esse motivo, muitas vezes compara-se a nova 43 intervenção com um grupo recebendo a intervenção mais antiga. Assim, quantificar cientificamente a magnitude do efeito placebo nem sempre é fácil. Em uma tentativa mais científica, há o estudo de Daniel Moerman, que avaliou o uso de placebo na úlcera gástrica. A vantagem de avaliar úlcera, ao invés de dor, é que a úlcera é possível de ser quantificada e registrada de modo objetivo, por meio de uma endoscopia. A ideia do pesquisador foi inteligente porque ele reuniu dados de diversos estudos e comparou os “grupos placebos” desses estudos. Dessa forma, ele fez uma comparação entre a taxa de sucesso de cura da úlcera entre pacientes que recebiam 2 comprimidos de açúcar por dia e pacientes que recebiam 4 comprimidos de açúcar por dia. Ao comparar os resultados, notou que pacientes que receberam 4 comprimidos placebo tiveram maior taxa de sucesso do que os que receberam apenas 2 comprimidos (De Craen et al., 1999; Moerman, 1983) Outros experimentos mostraram que injeções placebo provocam efeitos terapêuticos maiores que comprimidos (Grenfell, Briggs, & Holland, 1961). Cirurgias placebo (fazer um corte na pele e fechar sem de fato fazer nenhum procedimento), efeitos maiores que injeções. Ou seja, parece existir um significado cultural do tratamento medicamentoso, baseado na nossa percepção popular de que quanto mais dramática uma intervenção terapêutica, mais eficaz é a terapia. E olha que interessante: placebos com rótulos comerciais fazem mais efeito que placebos "sem marca" e placebos mais caros, mais efeito que placebos mais baratos. Isso pode inclusivenos ajudar a entender o porquê da menor percepção de eficácia de medicamentos genéricos (que em geral são mais baratos e não possuem nome comercial) por algumas pessoas (Branthwaite & Cooper, 1981; Waber, Shiv, Carmon, & Ariely, 2008). Contudo, muitos indivíduos e profissionais de saúde se apoiam no “mágico efeito placebo” como justificativa para utilizar ou prescrever medicamentos sem demonstração de eficácia. Essa prática questionável 44 se traduz no seguinte pensamento de senso comum: “Se não faz mal, pelo menos faz efeito placebo”. Aqui é necessário fazermos uma ressalva racional: o que leva profissionais e pesquisadores a, muitas vezes, supervalorizarem o efeito placebo, é a observação da melhora dos pacientes que fazem parte do grupo placebo (controle) de um experimento. Mas você já sabe que a melhora dos pacientes de um grupo controle não se dá apenas pelo efeito placebo, mas pela combinação dele com diversos outros vieses, como a história natural da doença, a regressão à média, o efeito Hawthorne etc. Sob essa nova ótica, o efeito placebo, isoladamente, perde grande parte de sua magnitude. Assim, para mensurarmos o impacto apenas do efeito placebo, de fato, precisaríamos ter um grupo que recebesse uma “pílula placebo” comparado a um grupo controle que não recebesse nada. Nem sequer uma pílula “de mentira”. Contudo, o grupo que não recebesse nada sofreria outros vieses pelo fato de o estudo não estar “cego”. Ou seja, estaríamos sempre enviesados em nossas conclusões. Dessa forma, não existe justificativa plausível e racional para a prescrição deliberada de placebos (Kienle & Kiene, 1997). Mesmo sem prescrever nada ao paciente, esses vieses podem estar presentes. Parece ainda mais estranho não é mesmo? Um simples diagnóstico (até mesmo um diagnóstico placebo/falso) pode “melhorar” os resultados apresentados pelo paciente (Thomas, 1987). Isso se relaciona diretamente com o efeito de muitas terapias integrativas. Em diversas dessas práticas, o terapeuta não apenas prescreve uma intervenção, mas frequentemente oferece explicações e faz diagnósticos, de modo menos ortodoxo e pragmático, podendo chegar a empregar palavras de grande impacto psicológico, mas de pouco significado clínico e com nenhuma evidência sólida na área da saúde, tais como “ortomolecular” ou “quântico”. Isso significa que mesmo uma “explicação placebo” (fantasiosa) pode gerar resultados aparentemente 45 benéficos ao paciente, ainda que na ausência de uma intervenção com eficácia intrínseca ou mesmo na ausência de qualquer intervenção. Sofrer influência destes vieses não é demérito, todos nós estamos sujeitos a isso. Quando alguém sente melhora no quadro de dor após usar um placebo, não significa que a dor era “psicológica” ou uma “frescura”. O que estamos discutindo neste tópico é que, para uma dada intervenção ser considerada eficaz, ela deve provar que possui eficácia superior à observada no grupo placebo. Afinal, se ela for tão eficaz quanto um placebo, significa que não possui eficácia intrínseca. A essa altura da leitura do texto, é comum surgir o seguinte questionamento: “Você está afirmando que muitas das terapias integrativas são, na verdade, como se fossem placebos elaborados. Então como você explica o efeito ‘placebo’ em crianças, ou mesmo em animais, que usam essas terapias?” Ora, parte dos vieses que estudamos até aqui também acontecerão em indivíduos mais jovens ou de outras espécies. A história natural da doença e a regressão à média, por exemplo, são universais. Essa pergunta vem da ideia equivocada de que placebo é equivalente a sugestionamento. E, sendo assim, animais e crianças pequenas que não sabem que estão sendo medicados, não poderiam ser sugestionados. Porém, você deve ter percebido ao longo deste capítulo, que quando o “efeito placebo” é citado, não estamos nos referindo a um único efeito. É, na verdade, fruto de uma série de vieses. O primeiro ponto a se levantar é que, embora um bebê ou um animal não possam falar, os pais de crianças e os tutores de animais não apenas sabem falar, mas também sofrem influência de muitos vieses ao observar seus filhos ou animais de estimação. Sendo assim, a criança ou o cachorro podem não ser tão sugestionáveis, mas o pai ou tutor certamente são. Esse “efeito placebo indireto” tem sido descrito na literatura como “placebo by proxy”, algo como “placebo por procuração”, em uma tradução literal. Eu gosto de chamá-lo de “placebo por tabela”. 46 Suponha que uma criança está doente, com tosse e febre. Os pais estão muito preocupados. Fazem expressões faciais sérias ao conversarem com o filho e usam frases como: “você está péssimo, precisamos ir para um médico”, “estou muito preocupado com você, você está muito abatido”. Independentemente da medicação ou intervenção prescrita pelo médico/terapeuta, apenas o fato de serem acolhidos por um profissional já é algo tranquilizador. Quando a criança começa a usar o medicamento prescrito, os pais ficam mais aliviados, começam a sorrir mais e a dizer: “logo você vai ficar bem”! Essa mudança drástica nas expectativas dos pais e no ambiente da criança podem promover mudanças positivas no desfecho (ou na percepção do desfecho), independentemente de efeito intrínseco da intervenção (Grelotti & Kaptchuk, 2011). E no caso de animais? No caso de animais, temos também o placebo por tabela somado ao condicionamento. Desde os experimentos de Pavlov, sabemos que uma resposta fisiológica (salivação) pode ser condicionada a uma “substância inerte” (como tocar um sino). Experimentos similares para outras respostas, comparando medicamentos e placebos também foram observadas em animais e estão bem documentados na literatura (Meissner et al., 2011). Estudos mal conduzidos geram mais resultados positivos. Mesmo sabendo de todas essas variáveis de confundimento, muitos experimentos acabam sendo executados sem os devidos cuidados, e isso não impede que sejam publicados. Isso é perigoso, pois muitos defensores de terapias duvidosas se apoiam em tais estudos para afirmar que a terapia que utilizam ou praticam é eficaz. A prática do “cherry picking” de artigos, que em português poderíamos chamar de “catação de piolho”, é um dos pilares da negação da ciência (Dunning, 2019). Ao escolhermos apenas artigos científicos com resultados positivos (mesmo que sejam de baixa qualidade) para justificar nossa prática, ignorando 47 todo o ecossistema científico de resultados negativos, estamos inclinados a praticar uma terapia pseudocientífica. Quando criticamos um estudo ou dizemos que não podemos levá- lo em consideração porque o mesmo é "pouco confiável", não fazemos isso por preconceito ou por um viés pessoal ou moral (ou político/ideológico). É pelo fato óbvio de que se um estudo não for bem feito, seus resultados devem ser observados com muito cuidado e possivelmente serão pouco confiáveis. Fazer pesquisa de um modo sólido nem sempre custa mais caro ou é mais difícil. É mais uma questão de não ter virado as costas para o método científico. Uns ignoram a ciência propositalmente, enquanto outros demonstram claramente falta de treinamento e compreensão da área. Mas, o mais interessante disso tudo, é que os estudos "falhos" são justamente aqueles que favorecem os resultados positivos de terapias duvidosas. Algo que podemos chamar de “falso-positivo”. Já os estudos bem realizados e preocupados em eliminar todos aqueles fatores de confusão comentados no tópico anterior deste capítulo, costumam mostrar que boa parte dos tratamentos não são melhores que o placebo. Esse rigor garante que um resultado positivo signifique que um medicamento de fato funciona (de maneira superior ao placebo) e compensa o custo de ser utilizado. Há algum tempo observamos esse fenômeno, e é possível afirmar que existe uma relaçãopraticamente linear entre a qualidade metodológica de um experimento sobre um tratamento e o resultado obtido. Quanto pior o estudo, maior a chance de o resultado ser (falsamente) positivo. Uma ferramenta para medir e tornar essa análise mais objetiva é o "score de Jadad", uma checklist com 7 itens que avaliam se o estudo foi randomizado, se houve mascaramento (cegamento) adequado, controle com placebo, entre outros fatores, que asseguram o rigor experimental. Assim, a nota de um estudo varia entre 0 (estudo muito pobre) e 5 (estudo rigoroso e adequado) (Jadad et al., 1996). O 48 pesquisador Edzard Ernst avaliou estudos clínicos sobre a homeopatia e ilustrou perfeitamente esse efeito ao correlacionar esses dados em um gráfico: quanto mais baixa a nota do estudo no eixo x, maior a probabilidade de o resultado ser positivo no eixo y. Conforme o estudo fica mais rigoroso, os resultados são menos animadores (E. Ernst & Pittler, 2000). Em outras palavras: quer que, a qualquer custo, sua terapia pareça efetiva (mesmo não sendo)? Faça um estudo mal feito. Por tudo que foi apresentado nesta seção é que não podemos confiar na eficácia de um medicamento ou tratamento apenas pela experiência subjetiva, representada pela frase clássica: "eu usei e funcionou". E é por este mesmo motivo que, para atestar a eficácia de um tratamento inovador, precisamos compará-lo com um placebo ou a um tratamento preexistente em estudos científicos de qualidade. Fitoterapia, Homeopatia e Florais: o que é natural não faz mal Em uma roda de conversa alguém fala: “Homeopatia é só água, puro efeito placebo”. Alguém se incomoda e exclama: “Eu discordo! Estou usando um fitoterápico ótimo que me ajuda a dormir”. Outro complementa: “Eu acho bem melhor usar esses tratamentos naturais, eu uso Florais pra ansiedade porque não faz mal igual a esses remédios industrializados”. Pronto, a confusão está feita. Misturamos tratamentos com princípios totalmente diferentes, colocamos tudo na sacola do “natural” e ainda entendemos que isso é completamente inócuo para a saúde. Antes de tudo, precisamos aqui definir mais claramente algumas questões. A primeira delas é separar Fitoterapia de Homeopatia e Florais de Bach. A Fitoterapia consiste na utilização de plantas para o tratamento ou prevenção de doenças. Utilizam-se determinadas plantas de caráter medicinal/terapêutico, em diversas formas farmacêuticas (como cápsulas, xaropes, soluções orais etc.) sem necessariamente isolar um princípio ativo específico. O uso de plantas com finalidades terapêuticas 49 acompanha a história do homem desde seus primeiros registros (Ferreira et al., 2014). O uso do ópio para alívio de dores, a mastigação de folhas de coca em regiões de grande altitude, consumo de boldo para problemas digestórios, entre inúmeros outros exemplos, antigos ou recentes, nos mostram a amplitude dessa prática. O primeiro item a se saber sobre os fitoterápicos é que o extrato de uma planta não é um princípio ativo isolado. É um conjunto de substâncias químicas, algumas com atividade biológica relevante (flavonoides, alcaloides, terpenos, taninos, fitormônios etc.), que podem promover alterações no organismo humano. Essas alterações podem levar a um efeito terapêutico e, frequentemente, também podem conduzir a efeitos adversos, intoxicações e interações medicamentosas importantes (Ferreira et al., 2014). Com isso, a alegação de “o que é natural não faz mal” não faz sentido lógico e é perigosa, pois proporciona uma falsa sensação de segurança ao usuário. Esse “apelo natural” acaba tornando esse tipo de tratamento mais atrativo a populações mais vulneráveis (como gestantes, crianças e idosos), expondo-os ao risco de seu uso indiscriminado (Bacchi et al., 2013). Se você ainda não estiver convencido, basta lembrar que nicotina e estricnina são alcaloides e o ópio é uma mistura de alcaloides de plantas. São, portanto, “substâncias naturais” de origem vegetal, mas com grande potencial tóxico. De modo geral, fitoterápicos agem no organismo de maneira semelhante a alguns medicamentos convencionais, podendo promover tanto efeitos terapêuticos quanto efeitos adversos e tóxicos. A maior diferença está na dificuldade de padronização dessas substâncias e na menor compreensão sobre sua ação farmacológica precisa, doses e mecanismo de ação, pois uma planta é um conjunto de fitoelementos que podem sofrer variações de acordo com a espécie, forma de cultivo, época de colheita, local de produção etc. Além disso, muitas das indicações são de origem popular e com pouca base em evidências científicas (Pray, 2006). 50 Assim, o uso e prescrição de medicamentos fitoterápicos deve seguir a mesma lógica e rigor de medicamentos convencionais: observar se ensaios clínicos adequados demonstram eficácia intrínseca em relação à determinada doença e avaliar os benefícios da terapia frente aos riscos de efeitos adversos e interações medicamentosas que o fitoterápico pode provocar. Ainda dentro deste tema, algumas pessoas costumam utilizar chás ou preparações caseiras de plantas, com finalidade terapêutica. Deve-se notar que, embora possa haver algum efeito benéfico (em boa parte dos casos, questionável), a forma de preparo em cada local é variável e a quantidade (ou parte) da planta utilizada pode diferir bastante, sendo muito difícil estimar efeitos terapêuticos intrínsecos e em qual dose ocorreriam. Da mesma forma, há possibilidade de efeitos adversos e interações não intencionais com medicamentos que o paciente já faz uso (Manteiga, Park, & Ali, 1997). Uma vez definido o que é fitoterapia, cabe afirmar que homeopatia e a terapia floral não se enquadram nessa mesma categoria. A homeopatia segue a filosofia da “lei do semelhante”, que estabelece que uma doença pode ser curada por uma substância capaz de reproduzir os mesmos sintomas dessa doença, desde que diluída em doses “infinitesimais” (um jeito diferente de falar que é tão diluído que é impossível detectar a presença da substância na solução) e “dinamizadas” (outro jeito de dizer que o frasco foi agitado muitas vezes). Já a terapia floral trabalha com o conceito de que, na presença de calor, as flores transferem sua “energia” para a água, formando soluções orais que, de alguma forma, se relacionam com as emoções humanas. Note que, diferentemente da fitoterapia (e dos medicamentos convencionais), tanto homeopatia quanto terapia floral trabalham baseadas em conceitos filosóficos bem diferentes daqueles que norteiam a medicina. Isso faz com que possamos abrir mão do rigor científico e da necessidade de evidências? Como vimos nos tópicos iniciais deste 51 capítulo, pode ser um caminho perigoso e obscuro confiar apenas na nossa percepção subjetiva de eficácia de tratamentos. Por isso, os próximos tópicos buscam se aprofundar em duas das mais difundidas terapias complementares e integrativas no Brasil. Homeopatia: a cura do semelhante pelo semelhante com ajuda da memória da água A homeopatia constitui um bom exemplo que pode funcionar como um estereótipo didático sobre as terapias integrativas. Vários dos elementos que estão presentes no lobby dos tratamentos alternativos, se fazem presentes aqui: o argumento de autoridade apoiado no fato de ser uma “prática histórica”; explicações que soam científicas e explicam seu funcionamento, ainda que na contramão daquilo que conhecemos sobre fisiopatologia e mecanismos de ação de medicamentos; uma grande ênfase em inúmeros benefícios da prática, na ausência de malefícios, e assim por diante. Ao estudá-la, portanto, podemos entender melhor os efeitos e vieses explicados no início desse capítulo. A criação da homeopatia é atribuída ao médico alemão Samuel Hahnemann no fim do século XVIII. Por esse motivo, é especialmente importante entender os tratamentos
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