Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Anais do IX Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira, 1997 CD-ROOM Rio de Janeiro – 2000 ARQUEOLOGIA SOCIAL LATINO AMERICANA E ARQUEOLOGIA CRÍTICA: A POSSIBILIDADE DE UM DIÁLOGO Camilla Agostini Bolsista de Iniciação Científica - MN / UFRJ Lilian Valle Thomaz Arqueóloga - estagiária do MN / UFRJ Christiane Chagas Martins Arqueóloga - estagiária do MN / UFRJ INTRODUÇÃO No auditório da Universidade Estácio de Sá, em abril de 1997, Luís Guillermo Lumbreras apresentou a palestra intitulada "Arqueologia como Ciência Social ", a fim de explanar alguns questionamentos levantados em uma de suas principais obras1, que entendemos estar inserida em um contexto mais amplo: o da chamada Arqueologia Social Latino Americana (ASLA). Durante a palestra, Lumbreras demonstrou um forte interesse em integrar a arqueologia ao contexto social presente. Contando sua trajetória acadêmica, mencionou a preocupação com os problemas que seu país passava e as dificuldades que alguns grupos dentro da sociedade peruana enfrentavam. Questionava- se então sobre o papel do arqueólogo, tendo à sua frente uma mesa cheia de cacos e ao seu lado tantos problemas sociais e políticos. Parece que foi em decorrência de angústias dessa natureza que Lumbreras e outros arqueólogos latino-americanos introduziram, na década de 70, questionamentos sociais e políticos a serem desenvolvidos como pontos centrais na pesquisa arqueológica. Ao mesmo tempo, em que tais questões eram expostas, Lumbreras fazia duras críticas ao pós-processualismo, chegando a esquecer, em um tom de brincadeira, o nome de Ian Hodder, um dos principais arqueólogos ingleses representante dessa corrente. McGuire (1993) lembra que arqueólogos latino-americanos com tendências marxistas criticam arqueólogos pós-processualistas principalmente por terem abordagens superficiais e file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm 2 estarem primariamente ligados a lutas políticas dentro da academia, e ainda, por serem muito subjetivos e relativistas, além de terem um corpo teórico muito eclético. Lembrando questões levantadas pelo próprio Hodder no polêmico World Archaeological Congress de 19862, e sobre a produção da arqueologia crítica de uma maneira geral, percebemos que alguns objetivos e princípios pareciam ter profunda relação com as ideias de Lumbreras. Nosso objetivo, então, é fazer algumas reflexões, na medida em que acreditamos ser importante estar sempre repensando a história da disciplina, para fugir da visão acumulativa e linear em que o último tem sempre razão (Hodder 1991b: 32). Nesse sentido, nos propomos a repensar posições sectárias, como a assumida por Lumbreras na palestra, sem a intenção de fazer uma análise detalhada das vertentes teóricas em questão, mas uma breve reflexão sobre a possibilidade de um diálogo. Antes de desenvolvermos a proposta deste trabalho, vale citar um debate acerca do uso do termo "Arqueologia Social Latino Americana", no qual Patterson (1994) a considerou como uma escola de pensamento3, e, por outro lado, McGuire (1993) e Oyuela-Caycedo et al. (1996) mostraram como a chamada ASLA foi na verdade muito restrita a focos de interesse em alguns países da América Latina, como Peru, Venezuela, México e Cuba, num período específico, e, principalmente, como foram interesses motivados fundamentalmente pelo momento político e histórico dos países em questão, não tendo, assim, constituído um novo corpo teórico-metodológico no sentido estrito da palavra. Isto é, pela falta de relação entre a teoria e prática propostas. Com esse esclarecimento, o título do trabalho pode parecer um tanto estranho: ora, como estabelecer um diálogo com algo que não existiu realmente? No entanto, acreditamos que tais focos de interesse são de suma importância para a arqueologia sul- americana, mesmo que não tenha sido formada uma escola de pensamento como afirmou Patterson. Levantar esta possibilidade de diálogo é exatamente chamar a atenção para pessoas e grupos que talvez não tenham tido o devido reconhecimento na história do pensamento arqueológico. Para analisar essas duas linhas de pensamento que tiveram momentos históricos bem distintos convém esclarecer suas bases teóricas e principais autores, e, no que diz respeito às supostas semelhanças, ilustrar dois quadros: a perspectiva social e a marxista. No entanto, sabemos como são diferentes as suas práticas analíticas, o que talvez explique (mas não justifique) o conflito. Uma breve apreciação dessas práticas talvez possa servir de guia para o diálogo proposto, que pode ser direcionado para uma file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm 3 busca de procedimentos mais adequados, que façam com que a relação do arqueólogo com a sociedade seja intensificada. PERSPECTIVA SOCIAL Para caracterizar as perspectivas sociais e políticas da ASLA e da Arqueologia Crítica tomaremos como quadro analítico os questionamentos levantados, por um lado, no Congresso Internacional de Americanistas, em 1970, quando a ASLA foi formalmente definida ( Patterson, 1994: 533 ), exemplificando-o com posicionamentos particulares de alguns autores, especialmente o de L.G.Lumbreras (1974). E, por outro lado, a polêmica do World Archaeological Congress, de 1986, como foi descrita por Hodder (1995) nos servirá de base. Complementaremos este segundo quadro com outras questões levantadas por autores fundamentados explicitamente na teoria crítica como Shanks & Tilley ( 1987 ). Embora concordemos com Oyuela-Caycedo et al. (1996) sobre o ‘exagero’ de Patterson (1994) ao definir a ASLA, admitiremos alguns pontos levantados pelo autor, a fim de caracterizar princípios gerais seguidos por autores latino americanos que tem como objetivo desenvolver uma arqueologia social. Os principais pontos levantados no Congresso Internacional de Americanistas (CIA)4 foram: (1) o estabelecimento de uma definição da arqueologia como ciência, com o objetivo de ressaltar o aspecto social da disciplina. Lumbreras mostra como a "história da ciência está intimamente ligada à história da luta de classes (...), [e como os] ‘cientistas puros’ preferem sentir-se à margem dessa luta" (1974:29); (2) A necessidade de um exame crítico das fundamentações epistemológicas e da prática arqueológica. Um bom exemplo desse tipo de questionamento são as reflexões do próprio Lumbreras a respeito do conceito de cultura: o autor questiona, justifica e recria o conceito, que no caso seria o de conduta social (1974: 16-24); (3) Rejeitam as formas positivistas e "(...) mecânicas, ou científico-materialistas de evolucionismo cultural" (Patterson, 1994: 533). A crítica, na verdade, tem a sua maior ênfase voltada para o que tais perspectivas deixam de abordar, como o exemplo da visão do objeto arqueológico em si, não encarando-o como a própria cultura5 (Lumbreras, 1974, 19976); (4) "Rejeitam as perspectivas que viam os sistemas sociais complexos como máquinas compostas de partes separadas (...)" e a mudança como resultante de fatores externos do todo social file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm 4 (Patterson 1994: 533). Podemos dizer que esta é uma crítica à perspectiva sistêmica, assumida principalmente pelos processualistas, em favor da visão do todo social. Isto é, são contra a idéia que entende as sociedades através de uma análise funcional das suas partes separadamente (Ibid.); (5) Assumem a perspectiva analítica adotada por Marx em 1857 para as sociedades pré-capitalistas. Não fizeram uma " (...) apropriação e aplicação acrítica das ideias de Marx. [ Mas, ao contrário, propuseram] (...) um exame crítico das fundamentações epistemológicas da prática arqueológica, assim como dos contextos histórico e social aosquais elas são aplicadas" (Ibid.); (6) Adotam o materialismo dialético como crítica ao determinismo econômico. A perspectiva dialética tenderia a ver o todo social como mais do que a soma dos seus elementos constituintes, ou seja, a interrelação entre as partes é mais importante do que as partes em si. E é graças a essas interrelações, entre elementos que são por natureza contraditórios, que as sociedades estão em constante processo de mudança (Ibid.); ( 7 ) Preocupação com a periodização das sociedades pré-colombianas (que teriam sido reduzidas a uma só etapa pela visão do colonizador - visão dominante), com o objetivo de integrar o passado ao presente7; (8) Consideram que a separação pré-história - história como categorias analíticas distintas é mais uma questão ideológica do que de legitimação de questões teórico-metodológicas (Ibid.). E neste sentido deixam clara a preocupação com a influência ideológica do pesquisador na prática científica; (9) Levantam a necessidade de relacionar as interpretações dos arqueólogos às " (...) atividades e perspectivas que estão sendo produzidas e reproduzidas no presente, (...) considerando cuidadosamente a que interesses elas atendem " (Ibid.). Neste ponto, mais uma vez é levantada a importância da relação passado-presente e a posição político-ideológica assumida pelos pesquisadores, tendo em vista, ainda, a repercussão social da prática científica. Durante o World Archaeological Congress (WAC), em 1986, Hodder, entre outros autores, assumiu um posicionamento muito claro com relação ao banimento da África do Sul do congresso e a suposta idéia de liberdade acadêmica. Acreditamos que muitas das reflexões que Hodder levantou têm profunda semelhança, se não são idênticas, às propostas levantadas 16 anos antes no CIA8. Entre as que acreditamos ser importantes para este estudo, estão: (1) Questionamento sobre a neutralidade científica. Hodder mostra como essa idéia "(...) tem raízes profundas no mundo ocidental, (...) [e lembra que] (...) a crítica da ciência ocidental como ideologia foi bem desenvolvida dentro da teoria crítica" (1992: 136). Mostra como o discurso de neutralidade política da ciência, no cenário capitalista, é uma forma de garantir status ao cientista e à própria ciência de file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm 5 uma maneira geral. Neste sentido deixa claro que "dentro do capitalismo, e particularmente num capitalismo de alta tecnologia, a ciência é a base do sucesso industrial", sendo assim, uma forma de prestígio e status social (Ibid.). Complementando esta crítica, Shanks & Tilley (1987) mostraram como "(...) o conhecimento do passado é ao mesmo tempo uma forma de dominação e controle (...)" (Ibid., p. 207), e como "(...) uma arqueologia supostamente neutra serve para sustentar a ordem social existente (...)" (Ibid., p. 199). Foram muitos os autores que se manifestaram nesta direção, esclarecendo como o passado serve de fonte para gerar conhecimentos que guiam a ação social (Durrans, 1989: 67)9, e que isso implica, na verdade, uma forma de criação da consciência social (Leone et al., 1987), o que nos leva ao próximo ponto; (2) A relação passado-presente e a prática social da arqueologia, e ainda, a questão de que a ideologia dominante deve ser criticada e modificada através da ação social, e isso inclui o debate social; (3) Reclamam a falta de pesquisas sobre (e para) as categorias menos favorecidas da sociedade, o que demonstra que a condução da ciência é ideológica e guiada pelos interesses dominantes; (4) Hodder examina as visões de ideologia na literatura arqueológica atualmente, distinguindo, uma mais pessimista, em que a ideologia representa os interesses dos grupos dominantes na sociedade; isto é, a perspectiva dominante é sempre absorvida e não é modificável, podendo-se argumentar que debater sobre o passado as reforça simplesmente. E uma outra, mais otimista; nesta, a sociedade é vista como sendo formada por grupos com diferentes interesses, com ideologias particulares, e que mudança social surge da prática do debate social, e, neste sentido, a ideologia pode ser socialmente ativa, " revelando mais que mascarando" (1995: 140); (5) Levantam questionamentos sobre o conceito de liberdade acadêmica, considerando a ideologia e os interesses sociais do pesquisador. Essa foi uma discussão chave no congresso, devido ao constrangimento com relação ao banimento da África do Sul, que fez com que alguns se colocassem à parte de questionamentos políticos desta natureza, por não considerarem esta uma preocupação tipicamente científica. Criticando este tipo de posicionamento, Hodder afirma que "(...) do mesmo modo que todas as análises da teoria crítica são ideológicas e políticas, assim são todos os pontos de vista em arqueologia, incluindo a ideia de que a ciência arqueológica não é política" (1995: 139). O posicionamento do arqueólogo perante o seu objeto de pesquisa, como vimos, tem extrema importância, na medida em que o conhecimento do passado é criado dentro de um contexto social e político, e este conhecimento nunca será um reflexo da realidade file:///F:/trabalho/00000122/notas.htm 6 passada; ou seja, o enfoque dado pelo pesquisador nunca é politicamente neutro. Nesse sentido são produzidas uma série de críticas a estudos que não desenvolvem este tipo de preocupação. Estas reflexões vêm fazendo com que arqueólogos ressaltem a necessidade do desenvolvimento de pesquisas que visam categorias menos favorecidas da sociedade, assim como a importância da consciência e ação social do pesquisador. A definição de Shanks & Tilley (1987: 198) da arqueologia crítica como um convite para que arqueólogos se concentrem em uma prática transformadora, além de seus questionamentos sobre os objetivos educacionais com o intuito de desafiar a relação do arqueólogo com a sociedade, foram questões que deram continuidade à produção e organização da arqueologia no final da década de 80, e durante a década de 90, que têm repercussão, atualmente, no trabalho de profissionais que vêm se dedicando especialmente à chamada arqueologia pública. PERSPECTIVA MARXISTA Não seria necessário dizer que a teoria marxista foi absorvida por diferentes linhas de pensamento, em épocas distintas e sofreu adaptações e/ou deturpações as mais variadas. Não nos interessa aqui dar um panorama destas diferenças, menos ainda tentar fazer uma síntese do que seria o marxismo e sua aplicação na arqueologia. Mais uma vez, vamos nos restringir a alguns princípios básicos, observando como esses aparecem nas fundamentações da Arqueologia Social e Crítica. Patterson (1994: 532) dá exemplos de diferentes adaptações da teoria marxista em arqueologia. Por um lado, mostra como alguns autores acreditavam que "(...) a teoria social Marxista poderia ser enriquecida pelo diálogo e apropriação de perspectivas neo- Kantianas, científico materialistas, de darwinismo social, e/ou positivistas". E numa outra direção, autores defendiam que "(...) o realismo ontológico de Marx, a dialética materialista, e procedimentos dialéticos e críticos distinguiram a sua teoria social de outros pontos de vista" (1994: 532). Com esses exemplos, dentre outros, o autor mostra como a relação entre o marxismo e a arqueologia é bastante complexa e produzida em vários níveis de sofisticação. Trigger (1993) lista princípios gerais compartilhados por várias linhas anglo- americanas de pensamento marxista, que complementamos com alguns outros pontos anteriormente citados, de maneira que podemos ver, de forma sucinta, que são 7 princípios tanto de arqueólogos latino-americanos, quanto daqueles fundamentados na teoria crítica. Entre eles, podemos citar a preocupação com o todo social, como crítica ao entendimento das sociedades por partes, explicando-as independentemente.Assim, consideram as contradições e conflitos como características vitais das sociedades e fontes internas de mudança. Neste sentido, a visão da mudança sócio-cultural passa a ser fundamental, em contraposição a uma visão funcionalista e a-histórica. O enfoque nas relações contraditórias e conflituosas leva, por sua vez, ao estudo das relações de poder entre grupos e indivíduos de uma sociedade. Como pano de fundo, a visão da história centrada no homem rejeita qualquer forma de determinismo, seja ambiental, ou econômico, buscando, por outro lado, uma perspectiva dialética. Neste sentido, Hodder chega a afirmar que na arqueologia marxista "(...) todas as práticas sociais envolvem relações dialéticas: o desenvolvimento da sociedade ocorre através da unidade de opostos" (1991a: 59). Caracterizando a arqueologia marxista, Hodder dá um panorama da relação entre infra e superestruturas, e como os indivíduos se inserem neste contexto. Menciona que "arqueólogos frequentemente fazem uso da afirmação de Marx, feita em 1859, de que a superestrutura, incorporando a ideologia, está fundamentada e surge da infraestrutura. A ideologia então funciona mascarando as contradições de conflito dentro e entre as forças e relações de produção" (1991a: 63). Shanks e Tilley consideram "esta tradição crítica do marxismo como uma das mais importantes e uma das fontes essenciais para a reconstrução da teoria e prática arqueológicas" (1987: 194). Alguns pressupostos teóricos, como por exemplo, aqueles desenvolvidos por Lumbreras, parecem partir do materialismo histórico de Childe. Pode-se verificar isto quando o autor indica que a preocupação do arqueólogo deve ser com o "(...) ordenamento dos materiais, [devendo] estabelecer o nível de desenvolvimento das forças produtivas, para, em conjunto, poder expor isto à comparação com outros grupos homotaxiais". E ainda, "(...) reconstruir as relações sociais de produção (...)", permitindo assim o estabelecimento de modos de produção característicos ( Lumbreras, 1974: 46 ), sendo o objeto material uma expressão das "(...) chamadas forças produtivas determinadas pelos meios de produção e a força de trabalho" (Ibid.), não admitindo que pela própria metodologia arqueológica fosse possível "(...) entender a ‘superestrutura’ se não se tem uma boa ideia da ‘base’ (1974: 128). Podemos comparar esta última colocação de Lumbreras com algumas conclusões de Childe ( In Trigger, 1989 ), entre 8 as quais a de "(...) que o estudo arqueológico do conhecimento deve ser restrito às questões tecnológicas e em termos de resultados práticos (...)" (1989: 262). Trigger (1989) ilustra a arqueologia marxista de Gordon Childe a partir de suas visitas à URSS na década de 1930, quando então teria iniciado seu estudo sobre as bases filosóficas do marxismo, relacionando-as com a arqueologia. Tais reflexões fizeram com que Trigger se remetesse a considerações do autor, como a "(...) significância de qualquer generalização só podendo ser estabelecida em relação a contextos históricos específicos, (...) [permitindo assim,] o entendimento da evolução e o funcionamento da tecnologia operante. [Defendia uma evolução multilinear, mas] (...) argumentava que de acordo com os princípios marxistas, ao longo do tempo as culturas partilham o mesmo modo de produção e tendem a expandir a semelhança social, política e de formação de instituições culturais (...)" (1989: 260-261). No entanto, Childe parece não ter aceitado "(...) inteiramente o programa soviético (...), [recusando-se] (...) a adotar o seu esquema detalhado de formações socioeconômicas ou qualquer outra formulação unilinear da evolução social" (1989: 255). Manteve a sua visão de difusão como o fator mais importante para o desenvolvimento cultural, e, em nível analítico, a ênfase nas tipologias. Adotando assim, uma perspectiva que entende a mudança social como tendo as suas principais causas nos fatores econômicos. A arqueologia marxista de Childe também serviu como fundamentação básica do pós-processualismo. Mark Leone chama a atenção para o interesse do autor na relação passado-presente que "(...) é criada pela análise das contradições expressas através do surgimento de classes e seus conflitos" (1982: 181). Esta relação envolveria questões ideológicas, criadas e sustentadas pelo próprio pesquisador, e teria importância fundamental para a criação da consciência (1982: 182). E ainda, buscou trabalhar eventos particulares, assumindo que estes seriam determinados historicamente, como iriam fazer os arqueólogos pós-processualistas a partir do início da década de 1980. Procuramos mostrar alguns pressupostos marxistas de ambas as correntes discutidas, que tem a sua intercessão em Gordon Childe. Bem se sabe que as preocupações com os contextos históricos, relações de conflito, relativismo e particularismo históricos, relação passado-presente foram observadas de formas diferentes por autores como Lumbreras e Arenas e aqueles com preocupações como as apresentadas por Hodder, Shanks e Tilley. Podemos observar estas diferenças nas suas práticas analíticas e interpretativas. 9 PERSPECTIVAS PRÁTICAS As perspectivas práticas assumidas por arqueólogos latino-americanos e anglo- americanos são bem distintas, o que demonstra, como vimos, que apesar de compartilharem princípios políticos e sociais e fundamentarem-se em princípios marxistas identificados nas perspectivas de Gordon Childe, têm a sua adaptação e entendimento de formas diferentes. No entanto, tais distinções não deveriam propiciar um conflito, que expressa um preconceito extremo de ambas as partes, e sim, incitar ao debate. Neste sentido, levantamos uma questão que talvez possa servir de ponto de partida: que procedimentos seriam adequados para fazer com que a aplicação dos objetivos políticos e sociais seja bem sucedida, tendo em vista alguns resultados extremamente criticados (e.g. Leone, 1987) ? Na análise das totalidades historicamente constituídas, foram identificadas pelos arqueólogos latino-americanos: a formação socioeconômica, o modo de produção, a cultura e o modo de vida. Estudos realizados por Lumbreras (1972), sobre o surgimento da agricultura no arcaico inferior do Peru, descreve com detalhes os primeiros vegetais e animais domesticados na região e sua distribuição por ecossistemas distintos. O aparecimento de animais e plantas em regiões às quais não pertenciam estava relacionado aos movimentos de sazonalidade e transumância. Questões como o tratamento dos mortos e seus acompanhamentos funerários ficaram muito restritas à descrição do material. Ao analisar culturas mais complexas, como os Inca-Chincha, Lumbreras (ibid.) continua abordando estas sociedades como uma síntese histórica, descrevendo fatos e dados que não demonstram a riqueza e complexidade do todo social. As relações de dominação e resistência são apresentadas factualmente. Os grandes monumentos, como as pirâmides, foram identificados e descritos como um importante centro administrativo, estando a sua complexidade demonstrada pela pluralidade de materiais empregados na sua construção. Identifica as diferentes direções das ruas como evidência de uma administração centralizada durante parte do período pré-incaico. A visão que poderíamos denominar " histórico-cultural " persiste ainda em outros casos estudados por Lumbreras (1979), porém fatores como poder social e prestígio 10 começam a ser evidenciados. Chegou a identificar, no processo de formação da teocracia de Chavín, as relações de poder envolvidas, sobretudo a aliança de sacerdotes com artesãos para a ‘criação’ de ‘deuses severos e detentores do poder’, que por sua vez serviriam como principal elemento de dominação da classe camponesa. Chama a atenção para a formação de uma teocracia, o estabelecimento de classes e dopróprio Estado como um processo que não se desenvolveu sem resistência. Afirma que como toda ‘revolução social’ foi decorrente principalmente do desenvolvimento econômico e tecnológico então atingido. No entanto, assinala aspectos ideológicos da dominação sacerdotal expressos nas esculturas e na arquitetura em pedra, que seriam uma representação de poder e grandeza, revelando a concepção de mundo de quem às impôs a toda a população. Lumbreras (1992) assume a tese de que a tecnologia é a expressão cultural que media a relação entre o homem e a natureza, não admitindo, no entanto, um aspecto monocausal para esta identificação. Realça ainda que a tarefa do arqueólogo é procurar entender quais são as forças motrizes dos processos históricos e os indicadores materiais em que a arqueologia pode se basear para uma explicação de tais processos. Entre estudos que vêm refinando esta prática, podemos nos referir aos trabalhos de Sanoja e Vargas, que, em sua revisão crítica da arqueologia sul-americana (1992), identificaram a proposta de Steward, dentre outras, que se desenvolveu na arqueologia latino-americana, presa aos estudos de causalidade das transformações sociais, enquanto que, por outro lado, arqueólogos como Lumbreras, Veloz, Bate e Lopez baseiam-se em um novo marco conceitual, que procura entender o processo de transformação histórica através das condições internas materiais da sociedade. Nesta perspectiva, as formas de produção e as relações sociais possibilitam o processo de transformação. A análise de uma formação tribal feita pelos autores (1992) é realizada sob uma proposta teórica que reúne três categorias básicas que integra uma formação social em: um modo de produção, um modo de vida (trabalho) e a cultura. Para eles o passado histórico não está dissociado dos processos históricos do presente e não se limitam às atividades de produção destacadas da vida social, mas se integram e se inter-relacionam, propiciando a dinâmica da formação social. Para falar dos aspectos práticos da arqueologia crítica, devemos, antes de mais nada, contextualizá-los dentro do quadro maior do pós-processualismo. Schakel e Little (1992) ilustram bem as suas diversas abordagens e os limites tênues entre elas, identificando os pontos negativos e positivos deste ecletismo. No entanto, podemos 11 identificar em alguns estudos uma aplicação efetiva dos questionamentos que levantamos anteriormente. Entre eles, os estudos de gênero, de classes operárias, escravos e outras categorias que têm a sua história deturpada pela visão dominante, vêm demonstrando aspectos da relação resistência - dominação, até então não muito bem definidos. Spector (1996), desenvolvendo uma arqueologia feminista, vem explicitando o androcentrismo das abordagens em arqueologia, definindo "(...) o significado do gênero como uma categoria analítica" (Ibid., p.486). Neste sentido, recusa-se a admitir a visão simplista e "(...) androcêntrica das atividades como caça, coleta, plantio (...)" e das relações de trabalhos então relacionadas (Ibid., p.487). Ehrenberg (1992), sob uma mesma perspectiva, demonstra como a pré-história pode ser explanada de forma completamente diferente de como é tradicionalmente entendida, identificando o papel da mulher e ressaltando os ambientes ‘domésticos’ e rituais, normalmente negligenciados. CONCLUSÃO Sem dúvida alguma as preocupações políticas e sociais abordadas neste trabalho são de suma importância para a arqueologia atualmente. O Brasil, parece estar à parte destas discussões, a não ser por algumas colocações de Funari (1988, 1995) com relação ao entendimento da história da cultura afro-brasileira, e, por um outro tipo de produção, como esforços que têm como objetivo o crescimento da arqueologia enquanto profissão. Entre estes temos três direções que consideramos principais; uma com relação à questões patrimoniais (Kern, 1995; Lima 1997), outra com o estabelecimento de princípios éticos para a comunidade científica (Lima, 1997), e uma terceira, relacionada diretamente com a educação (Zortéa, 1995; Leite, 1995). Acreditamos que embora estes trabalhos não estejam tratando da prática arqueológica no sentido da produção científica como é tradicionalmente entendida, têm um papel fundamental no amadurecimento da relação da arqueologia com a sociedade, que pode vir a estimular novos enfoques de análise que procurem ampliar seus objetivos nesta direção. Vale lembrar alguns questionamentos sobre a aplicação de questões políticas na arqueologia, como os observados por Bernbeck e Mawr (1997) no trabalho de Kohl e 12 Fawcett que levantaram o problema da "manipulação e destruição dos ‘dados’ arqueológicos, diretamente ligados à construção de identidades coletivas" em casos extremos como nas guerras. A partir de contextos desta natureza refletimos que tipo de repercussão podem ter posições extremadas como as de Shanks e Tilley (1987: 204) que têm "(...) a noção do discurso arqueológico como parte de uma guerra de posições". Como alerta Bell (1991: 80), tais posicionamentos radicais se recusam a estabelecer qualquer critério na adoção da arqueologia crítica, sem "(...) hesitar em impor as suas próprias visões políticas e sociais à teoria arqueológica". Assim, se por um lado, em certos contextos, posicionamentos extremados podem resultar em maiores problemas sociais, uma pretensa neutralidade apenas mascara outros resultados igualmente problemáticos. Desta maneira, concordamos com Bell (ibid.) de que critérios devem ser esclarecidos, sem, contudo, abandonar a consciência política já adquirida. De uma maneira geral, a arqueologia não deve deixar o objetivo de "(...) produzir textos que interroguem o passado na forma de um documento social, forjado no presente, estimulando uma resposta, uma reação, um outro texto" (1987: 207). Neste trabalho, tivemos o intuito de questionar até que ponto posições sectárias podem dificultar um diálogo, que não tem como objetivo chegar a um comum acordo, mas desenvolver soluções de aplicabilidade a certos questionamentos e objetivos, que, por vezes, perdem o seu sentido de pluralidade, isto é, não fogem da ideia de que existem ‘métodos ideais e absolutos para ideias únicas e originais’, característica básica dos provincialismos. Tendo em vista que as questões levantadas em 1970, em Lima, têm objetivos claramente políticos e de repercussão social muito semelhantes àquelas levantadas por arqueólogos anglo-americanos na déc. de 80, não vemos motivos para sectarismos e radicalizações, mesmo sabendo como são diferentes as formas de aplicação desses interesses. AGRADECIMENTOS Gostaríamos de agradecer à Prof a. Tania Andrade Lima que vem nos incentivando a entrar em debates sobre teoria em arqueologia, e seguramente sem seus ensinamentos e orientação não estaríamos publicando estas reflexões. Agradecemos também a todos 13 que direta ou indiretamente participaram deste trabalho, seja nas leituras prévias, seja com constantes incentivos, principalmente às Professoras Ana Cristina de Sousa e Márcia Bezerra de Almeida e aos amigos Valéria Batista Sant’Ana e Alfredo Ignácio Minetti Albertini. E, finalmente, agradecer ao Prof. Lumbreras por nos ter proporcionado estas reflexões com a sua empolgante palestra, e, principalmente por ter nos acolhido e incentivado durante o congresso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENAS, I. Vargas & OBEDIENTE, M. Sanoja. Revisión crítica de la arqueología suramericana. In: Arqueologia Suramericana: nuevas perspectivas. Betty J. Meggers (Ed.). Washington: Smithsonian Institution, 1992. pp 35-43. BELL, James A. Anarchy and Archaeology. In: Processual and Postprocessual Archaeologies: multiple ways of knowing the past. Edited by R. W. Preucel. Center for Archaeological Investigations,Southern Illiniois University at Carbondale, occasional paper no.10, 1991. BERNBECK, Reinhard & MAWR, Bryn. Review: Nationalism, Politics, ans the Practice of Archaeology. Philip L. Kohl and Clare Fawcett, editors. Cambridge University Press, 1995. In: American Antiquity. Vol. 62 ( 1 ), 1997. DURRANS, Brian. Theory, profession, and political rôle of archaeology. In: Shennan, S.J. Archaeological Approaches to Cultural Identity. Routledge, London and New York, 1994 (1989). EHRENBERG, Margaret. Women in Prehistory. London: British Museum Press, 1992 ( 1989 ). FUNARI, P.P.A. Arqueologia e Poder. In: Arqueologia. Ed. Ática; São Paulo, 1988. 14 ______. The archaeology of Palmares and its contribution to the understanding of the histrory of african-american culture. In: Historical Archaeology in Latin America. Columbia, Stanley South Publisher, vol.7, 1995. pp. 1-41. HODDER, I. Politics and ideology in World Archaeological Congress 1986. In: Theory and Practice in Archaeology. Routledge, 1995 ( 1992 ). ______. Reading the Past. Cambridge University Press, 1991a. ______. Postprocessual Archaeology and the Current Debate. In: Processual and Postprocessual Archaeologies: multiple ways of knowing the past. Edited by R. W. Preucel. Center for Archaeological Investigations, Southern Illiniois University at Carbondale, occasional paper no.10, 1991b. KERN, Arno A. A Carta Internacional da Arqueologia - ICOMOS. EDIPUCRS, Porto Alegre, 1995. LEITE, Nívea. O ensino de pré-história nas escolas de 1o. e 2o. grau. In: Coleção Arqueologia. Anais da VIII reunião Científica da SAB, Porto Alegre, EDIPUCRS, no.1, v.2, 1996. pp. 581-598. LEONE, Mark. Childe’s offsring. In: Symbolic and Structural Archaeology. Ian Hodder ( Ed. ). Cambridge: Cambridge University Press, 1982. LEONE, M., POTTER,P.B. & SHACKEL,P.A. Toward a critical archaeology. In: Current Anthropology 28 (3), 1987. pp. 283-92. LIMA, Tania Andrade. Novas ferramentas para o arqueólogo: Da ética que temos à ética que queremos ( ou como falar de princípios neste conturbado fim de século ). In: Anais do IX Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Rio de Janeiro, 1997. ______. Repensando uma relação: os arqueólogos e o IPHAN. In: Anais do IX Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Rio de Janeiro, 1997. 15 LUMBRERAS, J.G. A arqueologia como ciência social. Ediciones Histar: Lima, 1974. ______. The peoples and cultures of ancient Peru. translation by Betty J. Meggers. Washington: Smithsonian Institution, 1974. ______. De los orígenes de la civilización en el Peru. Peisa; Peru, 1988. ______. La Arqueología Sudamericana: tres décadas. In: Arqueologia Suramericana: nuevas perspectivas. Betty J. Meggers (Ed.). Washington: Smithsonian Institution, 1992. pp. 27-32. McGUIRE, R.H. Archaeology and marxism. In:Schiffer, M.B. ed . Archaeological Method and theory. vol. 5. The University of Arizona Press, p.101-157. TILLEY and SHANKS. Social Theory and Archaeology. University of New Mexico Press, 1988, (1987). TRIGGER, B. A history of archaeological thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. ______. Marxism in contemporary western archaeology. In: Schiffer, M.B. ed Archaeological Method and theory, vol. 5, 1993. The University of Arizona Press, p.101-157. OYUELA-CAYCEDO, Augusto; ANAYA, Carlos G. Elera; VALDEZ, Lidio M. Social Archaeology in Latin America?: Comments to T.C. Patterson. In: American Antiquity. vol.62 ( 2 ), 1997. PATTERSON, T.C. Social Archaeology in Latin America: an appreciation. In: American Antiquity. Vol.59 ( 3 ), 1994. pp. 531-537. SCHAKEL, Paul A. and LITTLE, Barbara J. Post-processual approaches to meanings and uses of material culture in historical archaeology. In: Historical Archaeology. vol. 26 (3)1992. pp. 5-11. 16 SPECTOR, Janet D. What this awl means: toward a feminist archaeology. In: Contemporary Archaeology in Theory: a reader. I. Hodder and R. Preucel (Ed.) Oxford: Blackwell Publishers, 1996. ZORTÉA, Andréa de S. Arqueologia e Pedagogia: um intertexto possível sobre a ótica interdisciplinar. In: Coleção Arqueologia. Anais da VIII reunião Científica da SAB, Porto Alegre, EDIPUCRS, no.1, v.2, 1996. pp. 529-540.
Compartilhar