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número 8 | 2013 EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) COMISSÃO EDITORIAL Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Charles Orser (Illinois State University, EUA) Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Martin Hall (Cape Town University, South Africa) Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Derivaldo Reis de Sousa Franciely da Luz Oliveira Marcos Rogério Pereira ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL Camila Secolin PROJETO GRÁFICO João Batista Ruela Luiza de Carvalho DIAGRAMAÇÃO João Batista Ruela ISSN 2237-8294 4 EDITORIAL Aline Carvalho ARTIGOS 7 OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI Clarisse Callegari Jacques 22 ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS ARQUEOLÓGICOS Cláudio Baptista Carle 41 O PAPEL DA ARQUEOLOGIA NOS CONFLITOS DECORRENTES DE OCUPAÇÕES IRREGULARES NO SAMBAQUI DA PANAQUATIRA – SÃO JOSÉ DE RIBAMAR – MA Arkley Marques Bandeira 61 “TRÁFICO” DE MATERIAL ARQUEOLÓGICO, TURISMO E COMUNIDADES RIBEIRINHAS: EXPERIÊNCIAS DE UMA ARQUEOLOGIA PARTICIPATIVA EM PARINTINS, AMAZONAS Helena Pinto Lima, Bruno Marcos Moraes e Maria Tereza Vieira Parente 78 OFICINA LÍTICA DE POLIMENTO NO NOROESTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Nanci Vieira de Oliveira 87 ESTUDIO DE IMPACTO ARQUEOLÓGICO EN PUNTA PEREIRA (COLONIA- URUGUAY): METODOLOGÍA APLICADA Y PRINCIPALES RESULTADOS PARA EL CONOCIMIENTO DE LA PREHISTORIA REGIONAL. Irina Capdepont, Laura del Puerto e Hugo Inda 106 A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR: O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NAS ORGANIZAÇÕES FORMAIS DO BRASIL Alejandra Saladino, Carlos Alberto Santos Costa e Elizabete de Castro Mendonça 119 A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI Helder Bruno Palheta Ângelo SUMÁRIO 135 PIXAÇÕES SOB A ÓTICA DA ARQUEOLOGIA URBANA Rafael de Abreu Souza ENTREVISTA 157 GABINO LA ROSA CORZO (Arqueólogo e Cientista Histórico - Universidad de La Habana) Carola Sepúlveda RESENHA 162 HENDERSON, Hope; BERNAL, Sebastián Fajardo (comp.). Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas. 1ª Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012. 232 p. Bruno Sanches Ranzani da Silva SEÇÃO DE GRADUAÇÃO ARTIGO 174 GEOGRAFIA E ARQUEOLOGIA: UMA VISÃO DO CONCEITO DE RUGOSIDADES DE MILTON SANTOS Anderson Sabino e Robson Simões RESENHA 189 ANTÚNEZ, Carlos Arredondo; HERNÁNDEZ, Odlanyer de Lara; RODRÍGUEZ, Bóris Tápanes. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 180p. Vitor Gomes Monteiro Dezembro de 2013 Caros Colegas, É com imensa satisfação que apresentamos o oitavo número da Revista de Arqueologia Pública. Como sempre, esperamos que vocês encontrem no espaço desta Revista uma plataforma para a elaboração de discussões e reflexões acerca de temas vinculados ao grande e aberto campo da Arqueologia Pública. Neste número, em especial, reunimos uma sequência de artigos que transitam por diferentes recortes temporais e espaciais, mas, em comum, trabalham com leituras sobre a cultura material, e produções de memórias a partir destas materialidades.É claro que as posições dos autores aqui reunidos são bastante variadas e não representam, de forma alguma, posturas consonantes sobre as temáticas mencionadas. Acreditamos, todavia, que possibilitar as divergências, discordâncias, acordos e negociações – representadas nesses artigos – é um dos pilares de nossa publicação. Assim, na seção de artigos, os leitores encontrarão produções textuais que se debruçam sobre temáticas vinculadas às memórias quilombolas, ribeirinhas e suas relação com a cultura material; reflexões acerca dos diálogos entre memórias, cultura material e instituições patrimoniais ou museológicas no Brasil; debates acerca da caracterização e estudos de impacto em sítios pré-coloniais tanto no Brasil como no Uruguai; reflexões acerca de atividades turísticas e outras formas de ocupação/uso de sítios arqueológicos e, por fim, algumas leituras acerca da arqueologia urbana no Brasil. Neste número, também publicamos um artigo produzido por alunos de graduação que lançou-se ao desafio de pensar possíveis entrelaçamentos entre a arqueologia e a geografia, partindo de conceitos elaborados por Milton Santos. Ainda neste contexto de pluralidades, disponibilizamos uma entrevista realizada pela doutoranda da Faculdade de Educação (FE-UNICAMP) Carola Sepúlveda – especialistas nas memórias da poetiza chilena Gabriela Mistral – com o arqueólogo cubano Gabino La Rosa Corzo. De forma bastante delicada, La Rosa Corzo expõe suas memórias acerca de sua própria formação e traça reflexões sobre o campo da arqueologia tanto em Cuba como no Brasil. Escolhemos publicar o texto em espanhol; língua na qual entrevistado e entrevistadora se sentem absolutamente em “casa”. EDITORIAL No campo das resenhas, publicamos o texto produzido por Bruno Sanches Ranzani da Silva acerca da obra organizada pelos pesquisadores Hope Henderson e Sebastián Fajardo Bernal. O livro resenhado – Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas (Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012) –traz as reflexões de uma série de autores atuantes no continente americano sobre os diálogos entre arqueologia e antropologia, e, em especial, sobre temas como agência, estrutura, poder, produção, reprodução, colonialismo e desigualdade. Para finalizar esse editorial, gostaríamos de agradecer à todos aqueles que contribuem quase que cotidianamente para a produção semestral da Revista de Arqueologia Pública: alunos e pesquisadores vinculados ao Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (Lap/Nepam/Unicamp), equipe de informática da Coordenadoria de Centros e Núcleos da Unicamp (Cocen), pareceristas anônimos de diferentes instituições de pesquisa nacionais e internacionais, e, claro, aos autores que submetem seus textos a esta Revista. Desejamos uma excelente leitura e ressaltamos que estamos sempre abertos ao diálogo! Aline Carvalho Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 7 OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI The meanings of material culture in daily activities and memory in the Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi families Clarisse Callegari Jacques1 RESUMO Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória e a oralidade a partir de vivências e experiências que tive até agora na comunidade quilombola do Estado do Amapá, chamada Cinco Chagas do Matapi. Destaco o papel da cultura material como mediadora de relações de alteridade, e a participação e o diálogo como aspectos metodológicos importantes da etnografia que contribuem para a prática de uma arqueologia mais reflexiva. Através de vestígios arqueológicos e de atividades atuais da comunidade, é possível estudar os diferentes sentidos da cultura material, entendida como ativa, e capaz de evocar lembranças e imagens de um passado não distante. É com a oralidade queos sentidos da memória, da paisagem e da cultura material se misturam e constituem a história e a identidade da comunidade de Cinco Chagas do Matapi. Palavras-chave: cultura material, memória, quilombolas. ABSTRACT In this article I intend to discuss the theme of the relation between material culture, memory and oral speech through daily experiences I´ve had until now in an african-descendent community in Amapá State (Brasil), called “Cinco Chagas do Matapi”. Material culture plays an important role as a mediator in alterity relations, and participation and dialogue are important ethnographic methodologies that contribute to a more reflexive practice of archaeology. From archaeological remains and recent community activities it is possible to study material culture´s different meanings, as active and capable of evoquing memories and images of a not distant past. It is through oral speech that the senses of memory, landscape and material culture intermixes and constitutes the history of ´Cinco Chagas do Matapi´ community. Key-words: material culture, memory, African-descendants. RESUMEN Este trabajo trata de analizar el tema de la relación de la cultura material de la memoria y la oralidad de las experiencias y vivencias que he tenido hasta ahora en la comunidad de marrón en el estado de Amapá, llamado las Cinco Llagas Matapi. Destacar el papel de la cultura material como mediadora de las relaciones de alteridad, y la participación y el diálogo como los aspectos metodológicos importantes de etnografía que contribuyen a la práctica de la arqueología más reflexiva. A través de actividades arqueológicas y actuales de la comunidad, es posible estudiar los distintos significados de la cultura material, entendida como activa y 1 Doutoranda PPGA/UFPA/CAPES. E-mail: clarissejacques@yahoo.com Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 8 capaz de evocar recuerdos e imágenes de un pasado no muy lejos. Es con ese sentido de la memoria oral, el paisaje y la cultura material se mezclan y forman la historia y la identidad de la comunidad de las Cinco Llagas Matapi. Palabras Clave: cultura material, memoria, cimarrones Introdução A Arqueologia tem se deparado com situações cada vez mais desafiadoras durante seu trabalho de campo. Nos contextos onde os vestígios materiais estão localizados em áreas ocupadas atualmente por comunidades, pequenas vilas e fazendas, dizem respeito não só à vida das pessoas que os produziram e utilizaram no passado, mas possuem significados para diferentes pessoas que entram em contato hoje com esses vestígios. No caso da pesquisa que venho desenvolvendo 2 na Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi, Estado do Amapá, foi encontrada pelos membros desta comunidade uma botija de cerâmica enterrada no meio de uma plantação de mandioca. O interesse da comunidade em querer saber mais sobre esta vasilha me instigou a desenvolver uma pesquisa que levasse em conta a relação destas pessoas com os vestígios arqueológicos neste local. Assim, até agora foram realizadas várias visitas à comunidade de Cinco Chagas, sendo que durante uma delas foi escavada esta vasilha a pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) através de um projeto de resgate emergencial3. Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória e a oralidade4. Neste sentido, parto de vivências que tive até agora na comunidade e destaco que a cultura material teve um papel importante como mediadora de relações de alteridade. Em um primeiro momento discuto uma abordagem teórica acerca dos estudos sobre cultura material, e busco apresentar os vestígios materiais como cultura material ativa, ligada às pessoas e às suas experiências de vida. Em seguida, exploro o potencial da materialidade dos vestígios arqueológicos enquanto evocadores de memórias e histórias a partir de encontros com os moradores de Cinco Chagas. Em um último momento, reflito sobre o papel central da 2 Atualmente, venho desenvolvendo pesquisa de doutorado no Programa de Pós Graduação em Antropologia na Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA/CAPES). 3 Uma vez identificada a boca desta vasilha na roça de mandioca, o IPHAN, em visita a comunidade, solicitou a realização de um projeto de resgate arqueológico para evitar que este vestígio seguisse sofrendo com as ações do tempo. Assim, foi desenvolvido pelo IPHAN um projeto de resgate pontual desta vasilha no qual atuei como coordenadora responsável tendo em vista meu interesse de realizar pesquisas na área. Os resultados desta atividade foram apresentados em forma de relatório a este órgão (JACQUES, 2011). 4 As ideias principais deste artigo foram desenvolvidas no trabalho final da disciplina ´Cultura Material´ ministrada pela Profa. Dra. Marcia Bezerra no PPGA/UFPA e apresentadas no I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral realizado em Belém em 2011. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 9 oralidade na pesquisa, que está me direcionando a lembranças, conhecimentos e fazeres próprios das famílias que vivem nesta comunidade e que, por sua vez, dizem respeito a sua história e ao seu patrimônio. A história da comunidade, presente na memória e contada através da oralidade, se manifesta através da cultura material. Os vestígios materiais e as experiências de vida das pessoas da Comunidade de Cinco Chagas A Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi pertence ao município de Santana, Amapá, e está localizada nas margens do Rio Matapi a 19 quilômetros da cidade de Macapá. Atualmente, a principal atividade das famílias que moram ali é a produção da farinha e sua venda na feira da cidade de Santana, para onde se deslocam periodicamente de barco. A atividade de revolver a terra para plantar e colher a mandioca tem feito com que as pessoas entrem em contato com fragmentos de vasilhas de cerâmica e alguns eventuais instrumentos de pedra polida diariamente. Foi a descoberta de uma botija inteira que chamou atenção, fazendo com que as pessoas entrassem em contato com a Prefeitura de Santana e o IPHAN para preservar esta vasilha e conhecer mais sobre a sua história. O fato de as pessoas terem interesse neste artefato (na minha visão de arqueóloga) me fez visitar a região com o técnico do IPHAN em outubro de 2009 e começar a pensar em um projeto de arqueologia. Enquanto arqueóloga entendi, naquele momento, aquele lugar como um sítio arqueológico com vestígios materiais de vasilhas cerâmicas indígenas ocupado atualmente por uma comunidade quilombola que está interessada em conhecer mais sobre estes artefatos. Os membros de Cinco Chagas, por sua vez, entendem a botija enterrada como parte da sua história, como uma descoberta que deve ser preservada para que pessoas de outros lugares possam visitar. Ainda, segundo o relato de alguns moradores, outras comunidades do Rio Matapi possuem escolas, postos de saúde e igreja, mas não apresentam uma situação como aquela, de aparecimento de uma botija enterrada no solo. É interessante pensarmos nesta informação contextualizando o momento em que esta comunidade se encontra, tendo optado pelo pedido de reconhecimento da Comunidade de Cinco Chagas como comunidade remanescente de quilombo frente ao Estado. As comunidades tradicionais, incluindo-se nestas as comunidades quilombolas, enquanto grupos familiares com percepções do mundo próprias, uso comum de recursos e apropriação privada de bens de forma consensual (ALMEIDA, 2004), possuem também um entendimento próprio sobre o seu patrimônio, onde o passado e o presente estão relacionados. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.10 Neste sentido, o tradicional não se refere somente ao contexto histórico do grupo, mas aos saberes e fazeres atuais. As comunidades possuem especificidades próprias, a ver com a sua história, seu autorreconhecimento e as suas atividades quotidianas. Assim, no caso de Cinco Chagas, além da vasilha enterrada estar associada à história e à identidade das famílias, é um elemento importante enquanto especificidade ou diferencial de legitimidade desta comunidade. Estas são duas visões, uma visão minha e a outra um entendimento que tive em um primeiro momento sobre uma mesma situação, na primeira saída de campo. Com o tempo, tive a oportunidade de visitá-los outras vezes e me convenci que existem ainda muitas outras versões, visões e entendimentos desta história, deste lugar e desta botija enterrada. Além disso, ainda com um olhar de arqueóloga, percebi que alguns dos fragmentos identificados nas roças visitadas dizem respeito a cacos de vasilhas de grupos quilombola e não só de indígenas, conforme algumas pessoas da comunidade já haviam me chamado a atenção. A riqueza da relação da cultura material com as pessoas, as sensações, interpretações, desejos, esperanças, memórias, fascínio que permeia este contato faz com que, neste projeto, a cultura material seja estudada como agente, como ativa e não somente um produto de uma atividade humana. Neste sentido, Miller (1987) destaca que frequentemente os artefatos são associados à sua função, o que muitas vezes determina o nome pelo qual são chamados. Pensar somente nesta perspectiva é limitar o entendimento da cultura material; o autor propõe que o crucial é a relação social do objeto com as pessoas. Pensando esta proposta não só para artefatos, mas para coisas em geral, pois nós nos cercamos delas (CSIKSENTMIHALYI, 1993:25), é estudar a forma como as pessoas entendem e se relacionam com o mundo à sua volta (THOMAS, 1996). Para Tilley (2008), a cultura material pensada em relação à sua materialidade traz a tona uma questão ambígua. Por um lado a matéria é propriedade interessante da cultura material, pois pode proporcionar sensações relacionadas às características como textura, cor e cheiro, que as palavras não conseguem expressar. Por outro lado, a cultura material representa relações sociais e simbolismos que fazem parte do mundo das ideias, e não do material. Sendo assim, o autor propõe o uso do termo objetificação como um conceito que possibilita uma forma de entendimento das relações entre sujeitos e objetos que não são vistos como diferentes; ou seja, as ideias, valores e relações sociais são criadas junto com o processo que faz com que as coisas passem a existir. A objetificação, assim, é um processo que aproxima as pessoas e as coisas, sendo estabelecidos vínculos como os de identidade e memória, que fazem do objeto também um agente. Neste sentido, de entender os objetos enquanto ativos, Gell (1992) ressalta que os Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 11 efeitos que os objetos de arte provocam nas pessoas são o seu poder, uma mágica que liga o mundo material ao campo das ideias (e sentimentos). Pode-se pensar também em uma comunicação (GLASSIE, 1999), que está presente tanto na criação como no consumo de um artefato. Falar de objetos que ‘encantam’, termo usado por GELL (1992: 222), é tocar também no que fascina um arqueólogo. Todavia, prender-se somente em um mundo material, já admirado e analisado pelo pesquisador, é limitar a pesquisa ao sentido da visualidade e ao mundo das coisas. Esta discussão coloca em cena o conceito de ‘cultura material’, que não é entendido neste trabalho somente como coisas palpáveis, mas também é visto no sentido do próprio conceito de objetificação colocado por Tilley (2008), e pode estar representado por uma paisagem ou uma imagem trazida pela memória de um lugar. É desta forma que proponho pensar a cultura material relacionada à Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi. Como foi relatado acima, o primeiro objeto que caracterizou este local como sítio arqueológico foi a vasilha inteira, também chamada de “igaçaba” ou “botija”. Associadas à esta vasilha estão histórias que remetem ao imaginário e ao passado da comunidade. Vários moradores relataram suas diferentes experiências com esta vasilha. Contaram, por exemplo, da surpresa dela ter sido encontrada em um determinado ponto, e de ter permanecido neste mesmo local. Os relatos sobre como ela foi descoberta sempre são associados a uma história passada de geração para geração, que fala de vasilhas com ouro no seu interior e que aparecem nos sonhos das pessoas em lugares diferentes, desaparecendo em certas circunstâncias para reaparecer em outros locais. Do ponto de vista arqueológico, após uma escavação emergencial feita a pedido do IPHAN do Amapá (JACQUES, 2011), constatamos que havia outras duas vasilhas de dimensões menores depositadas junto a esta botija maior, encontrada pela comunidade. O contexto estratigráfico interpretado a partir da escavação indicou a abertura de uma fossa para a deposição destes artefatos. Com a informação de que havia um pequeno pratinho com um pó branco dentro da vasilha maior, e com a descoberta de outros pratos dentro das duas outras vasilhas associadas à principal, interpretei esta deposição como fazendo parte de um contexto funerário associado a uma ocupação indígena 5 . Estes relatos dos moradores locais e as informações da arqueologia contam a história de vida desta vasilha. 5 As características de decoração plástica presentes na superfície das vasilhas cerâmicas escavadas indicam uma semelhança com as características da cerâmica da Fase Mazagão, estudada por Meggers e Evans (1957) e associadas a uma ocupação indígena. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 12 Ao conviver em Cinco Chagas neste período, percebi que ao longo de toda a área onde estão as casas, foram encontrados fragmentos de vasilhas cerâmicas que, uma vez vistos pelas crianças sob a ótica da arqueologia, passaram a encontrá-los ainda mais e a relatar onde se localizavam. O olhar destas crianças, não tão “treinado” (ou poderia dizer “direcionado” ao que eu já conhecia em publicações sobre o tema) quanto o meu, me fez perceber outros fragmentos com características um pouco diferentes das que eu estava acostumada, e que me remeteram às decorações e formatos das “louças” de cerâmica feitas atualmente pela Comunidade Quilombola do Maruanum e expostas para venda na Casa do Artesão em Macapá. Tive a oportunidade de visitar esta outra comunidade, localizada no Rio Maruanum (braço do Rio Matapi) em outro momento, o que me remeteu novamente a um olhar científico arqueológico (com o natural encanto pelos artefatos) preocupado em diferenciar as características dos fragmentos associados a grupos indígenas pretéritos comparando-os com os já vistos em coleções e publicações de arqueologia, das características da “louça” quilombola6. As pessoas de Cinco Chagas com quem conversei sobre o assunto, contam de uma época em que eram compradas vasilhas no Maruanum para guardar água e torrar café, e quando questionei sobre o que achavam dessas diferenças de coloração e decoração nos fragmentos, algumas opinaram que certas vasilhas eram muito antigas, feitas por índios. Adentrar uma discussão sobre a associação destes fragmentos a uma identidade quilombola ou indígena não é o objetivo neste momento, visto que é uma questão delicada e nada simples. O interessante, para esta pesquisa, é perceber como está sendo a relação das pessoas com estes fragmentos e levar em consideração também que a visão da comunidade (e a minha também) tem mudado conforme nos encontramos e ainda poderá mudar. Até agora foi possível constatar que a vasilhainteira é muito importante para essas pessoas, mas não pode ser entendida como o único patrimônio material. Como eles mesmos chamaram a atenção desde o início, a produção de farinha é uma atividade que envolve saberes, técnicas e instrumentos de trabalho também ricos em memória e identidade. Dentro da abordagem aqui proposta para entender os vestígios arqueológicos presentes nesta comunidade e a forma como as pessoas se relacionam com eles, a memória tem um papel importante. É ela que, muitas vezes, reporta as pessoas ao passado, traz à tona imagens e lembranças, confortos e saudades de momentos que são recriados e reinterpretados através da narrativa oral. 6 Trabalho nada fácil ao qual este projeto não está dedicado. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 13 Memórias e histórias na Casa de Farinha Dentre muitos objetos e objetificações relacionadas à vida diária das famílias de Cinco Chagas, e pensados enquanto cultura material ativa, gostaria de destacar os relacionados à atividade de produção de farinha, que dizem respeito desde os cacos de cerâmica e pés de mandioca até os raspadores de mandioca, forno, farinha e outros objetos utilitários e da memória. Cada núcleo familiar planta a mandioca nas suas terras, sendo que pode haver pessoas que vêm de fora e passam um período trabalhando a partir de um acordo com o proprietário. As áreas plantadas estão tanto junto das casas, que por sua vez se localizam ao longo da margem do rio Matapi, como também podem estar mais afastadas. Enquanto em uma parte do terreno são plantadas as mudas, em outra é revolvida a terra e em uma terceira é feita a colheita de mandioca, de forma que essa seja produzida ao longo de todo o ano. A partir da lida e da intimidade com a terra através da plantação, um dos moradores mais antigos da comunidade me indicou as fronteiras das roças onde param de aparecer fragmentos de cerâmica e de terra mais escura, indicativos para o arqueólogo de locais antigamente ocupados. Todas as famílias usam a Casa de Farinha, inclusive ao mesmo tempo, em um processo contínuo que envolve descascar, deixar de molho, ralar, tirar o tucupi e a goma7, espremer a massa, torrar a massa e, ao mesmo tempo, deixar sentar a goma e ferver o tucupi. Enquanto uns estão descascando, outros lidam com outra etapa da produção ao ralar e, ao mesmo tempo, outra família já está no final do processo de torrar e ferver o tucupi. A dinâmica da casa de farinha envolve a circulação de corpos e coisas, como se fosse uma dança onde os corpos se movem sem se tocar, as crianças vêm e vão, ajudando em alguns processos, as mulheres descascando, lavando a mandioca e fervendo o tucupi, e os homens descascando, torrando, ralando e carregando as sacas de massa da mandioca ralada em um processo harmonioso. Para espremer a massa da mandioca, a comunidade construiu uma prensa de madeira que acelera o processo antes feito com o tipiti8. Cada um possui uma preferência de instrumento usado para descascar, seja uma faca menor, maior ou um raspador de metal próprio para isso e argumentam sobre qual é o mais prático e eficiente. As sacas com 7 O tucupi e a goma são resultados do processamento da mandioca brava. Depois de descascada e de ficar de molho, a mandioca é ralada e “lavada” com água. Deste líquido sai o tucupi e a goma, o primeiro é fervido e temperado, e a goma é usada para fazer tapioca. 8 Estrutura cilíndrica feita de trançado de fibra de talo da palmeira do buriti para espremer a massa da mandioca, separando o líquido da massa, que será torrada posteriormente. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 14 a farinha pronta são amontoadas em um canto, parecendo todas iguais aos meus olhos, mas pertencem a produções familiares diferentes. Pensando um pouco nestas sensações e percepções que envolvem esta atividade de produção, destaco as ideias de Spence (2007), que propõe a percepção multisensorial para mostrar como os diferentes sentidos influenciam a percepção do tato. Ao dar-se conta da substância dos objetos, são usados outros sentidos, ou seja, como propõe o autor, nem tudo que acontece em contato com a superfície da pele tem a ver com o toque. O descascar a mandioca implica em consistências de pedaços da mandioca ainda com casca indicadas pelo olhar, mas retiradas com golpes de intensidades diferentes para deixar a raiz livre de reentrâncias de ramificações. No processo de lavagem, ao mexer a massa ralada com água é possível sentir concentrações diferentes e definir a quantidade de tucupi que vai estar presente em cada produção de farinha; pois isso vai mudar o seu gosto. Na torragem, a cor, o deslizar da pá no forno, a granulometria na farinha – às vezes peneirada para ficar mais fina – e provar o ponto certo são percepções essenciais. Enquanto visitante frequente, converso com as pessoas que me explicam o processo e me deixam a par das suas vidas e ficam, ao mesmo tempo, a par da minha. Ao transitar na Casa de Farinha, me deparo com áreas mais quentes, onde é fervido o tucupi e torrada a mandioca, e passo pela fumaça do forno e o vapor da mandioca sendo torrada para chegar onde a água lava a massa e o suco escorre para recipientes onde a goma vai sentar. São cheiros diferentes em cada processo, e o aroma do tucupi fervido com alho e alfavaca predomina na Casa de Farinha, objetificando todo este processo e todos os saberes nele envolvidos. Estas impressões e experiências que tive em campo me levam a pensar no potencial da cultura material enquanto mediadora da relação entre pesquisador e interlocutor. Através dela, a participação e o diálogo também acontecem. A participação acontece no sentido de compartilhamento, no qual o trabalho de campo refere-se a um mundo que compartilhamos com outras pessoas e com outros olhares e sensibilidades, mas com uma mesma convivência (LIMA e SARRÓ, 2006:20). O diálogo é uma relação de alteridade que compartilha o mesmo tempo (FABIAN, 2002) e que implica em uma troca de saberes através da cultura material. Para Carlos R. Brandão (2007) a pesquisa é uma vivência, uma relação interpessoal e de subjetividade, e o envolvimento pessoal e o contexto da pesquisa são dados que fazem parte da prática de campo. A mandioca, em suas diferentes versões, seguindo o gosto de cada um, retoma diferentes significados e relaciona a história do lugar com a biografia particular de cada Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 15 pessoa, assim como associa os fragmentos cerâmicos ao cotidiano da comunidade. Retomando as ideias de Gosden (2005), as coisas de origens e históricos diferentes se juntam para formar um modo de vida com ocorrência e lógica. Na minha ideia inicial, mandioca e fragmentos de cerâmica nada tinham em comum; com o tempo, se tornaram parte de uma mesma história. No meio da cultura material e das histórias, estão as memórias. Estas memórias dizem respeito tanto ao indivíduo como ao coletivo, referindo-se, respectivamente, como ressalta Pollak (1992: 2), aos acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ao qual a pessoa sente pertencer. A primeira não pode ser dissociada da segunda, pois, como coloca Bosi (2004:54), ao refletir sobre os estudos de Halbwachs, a memória do indivíduo está relacionada ao da sua família e com outros contextos nos quais está presente um coletivo como, por exemplo, a Igreja, o trabalho, a escola, que são os grupos de convívio e de referência do sujeito. As diferentes formas de fazer farinha, de perceber a cultura material à sua volta nos remetem a uma história pessoal cheia de detalhes e experiências do indivíduo. Cada um com uma história de vida,cada um se inserindo nas histórias e nas práticas do grupo a partir das suas memórias particulares. Ao mesmo tempo, essas memórias são “herdadas”, como sugere Pollak (1992: 4), e vêm de um contexto compartilhado com outros sujeitos. A ligação entre o indivíduo e o coletivo é intensa e frequente, e pude perceber isso, principalmente, nos relatos sobre os diferentes entendimentos sobre a presença da “igaçaba” ou “botija” enterrada na roça da comunidade. O local onde ela apareceu é importante, mas o que parece ser crucial é a pessoa que a encontra, para quem a botija apareceu em sonho. A forma como me contaram que ela apareceu, como ela foi procurada por esta pessoa e os fenômenos associados ao ponto onde ela se encontrava como ruídos de passos e luzes fortes à noite, variam. A memória, neste sentido, é entendida como uma construção (POLLAK, 1992; BOSI, 2004) que tem a ver com a percepção das pessoas sobre as histórias contadas, suas interpretações e experiências com a cultura material. Ulpiano Menezes (1998), em publicação intitulada “Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público” refere-se ao papel da cultura material nos processos de rememoração ainda sendo abordado pelos pesquisadores de forma tímida o que tende a ser ainda uma prática se tomarmos como importante a influência dos mesmos nas vidas das pessoas. A história do aparecimento da botija é um exemplo: mostra que as relações das pessoas com a cultura material são múltiplas e ricas, suscetíveis a novas interpretações e repassadas através da oralidade. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 16 A Casa de Farinha enquanto cultura material possui suas representações. Seus materiais construtivos, como o telhado feito manualmente com a sobreposição de galhos com folhas longas envolvem também saberes específicos. A origem destes materiais de construção e o destino do produto da Casa de Farinha, bem como a circulação de coisas e pessoas, me remete à ideia de Gonçalves (2007) de que acompanhar o deslocamento dos materiais é entender a dinâmica social. Um dos objetivos dessa comunidade é reformar a Casa de Farinha, considerada “feia” por muitos; precisa ser reformado seu telhado e seu piso, principalmente. Dentre muitos outros, é patrimônio deste local. Como coloca Gosden (2005), devemos olhar a genealogia dos objetos e também as práticas que eles encorajam e permitem. Seguindo esta perspectiva, as pessoas e a cultura material estão entrelaçadas e são entendidas sempre uma em relação à outra. Enquanto figura na paisagem, possui destaque como um lugar importante economicamente falando, um lugar para ser mostrado aos que vêm de fora, um lugar de reuniões e um lugar de convívio diário. Para Thomas (1996), a existência humana implica em estar em algum lugar (ideia que o autor desenvolve a partir do pensamento de Heidegger); este autor discute paisagem, corpo e lugar na arqueologia. A percepção do espaço perpassa a experiência do corpo, a noção de distância, por exemplo, é orientada no mundo de acordo com a maneira que as pessoas entendem o corpo e o que faz parte dele varia de sociedade para sociedade. Falar de espaços e lugares implica também em refletir sobre a visualidade enquanto cultura material. Não se trata de uma casa de farinha qualquer, é um lugar com objetos que fazem sentido para aquelas pessoas, que contam sobre a sua história, que suscitam encontros e estimulam histórias contadas através da oralidade. A prensa foi feita na comunidade e substitui o tipiti, que somente uma pessoa sabe fazer e que vende, às vezes, para outras comunidades. O ato de descascar mandioca tem a ver com o de contar histórias; assim como os momentos de silêncio na casa de farinha direcionam as pessoas aos seus pensamentos e às suas lembranças pessoais. Os vestígios arqueológicos, como cultura material ativa, estão relacionados com a mandioca e objetificam atividades diárias das famílias como o plantio, a colheita e a convivência na casa de farinha. São diversos tipos de cultura material que criam memórias; os cacos agora também lembram a arqueóloga “pesquisadora”, que aparece ocasionalmente e que anda pela área tirando fotos. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 17 A oralidade remete a paisagens e a memórias criadas Ao pensar corpo e espaço e a constituição de paisagens, não podemos deixar de considerar a memória. O corpo enquanto veículo que, estando em um lugar (THOMAS, 1996), permite ao ser humano sentir, ver e mais tarde lembrar através da construção de uma imagem na mente de uma situação, de um lugar. Para Pollak (1992) esses “lugares da memória” estão ligados à lembrança. Esta imagem que vem à mente, criada pela pessoa que viveu uma experiência, pode ser também entendida como cultura material. Pensando a visualidade como fator importante para se entender a cultura material, gostaria de retomar outras experiências que tive em campo e que, refletindo agora, me instigou a pensar a paisagem e a imagem enquanto cultura material. Como visitei a comunidade em momentos diferentes do ano, na época da chuva e na época da seca, uma das pessoas com quem tive maior contato sempre brincou comigo apresentando o terreno como “limpo” na época da seca, pois a vegetação não cresce tanto, e “sujo” no inverno (época de chuva), fazendo com que as pessoas andem somente nas trilhas de uma casa para outra. No inverno, “tudo fica sujo, com mato”, e dá mais trabalho para as pessoas, que têm que “roçar” na volta das casas com maior frequência. São duas paisagens diferentes, e estas paisagens estão relacionadas a uma estética e ao próprio corpo que circula neste espaço. Além disso, nestes momentos diferentes, os objetos que compõe a paisagem variam, algumas coisas ficam visíveis e outras não, ou umas menos e outras mais. Na época da chuva, a superfície fica mais encoberta, mais difícil também para visualizar os fragmentos de cerâmica. Na época em que a vasilha ainda não havia sido escavada, a família proprietária do terreno ficava mais descansada na época de chuva, pois a área onde a vasilha se encontrava ficava mais ‘suja’ e, assim, chamava menos atenção e não corria tanto o risco de pessoas desavisadas irem mexer. Neste sentido, se pensarmos em patrimônio relacionado à ideia de herança – no sentido de cuidar, valorizar e transmitir – e construção, pois é um termo criado a partir do nosso olhar (JORGE, 2000: 125), o termo objetificação é um conceito interessante para se pensar os vestígios arqueológicos, os objetos ligados ao cotidiano da comunidade e a imagem de lugares. Estes, ao mesmo tempo, referem-se à história, à memória e à experiência social dos núcleos familiares que constituem a comunidade. Isso, por sua vez, indica a necessidade de problematizarmos o conceito de patrimônio arqueológico, que se torna mais amplo e que inclui as noções próprias da comunidade sobre o que é importante para eles. Neste sentido, a Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 18 arqueologia colabora buscando a construção conjunta do conhecimento e do patrimônio dos lugares através de práticas de pesquisa participativas. Um lugar que apareceu durante as conversas com os moradores da comunidade de Cinco Chagas foi o “lugar dos antigos”, onde a primeira família ocupou a região, em uma área mais distante das margens do rio Matapi. Tive a oportunidade de visitar este local, onde uma das moradoras da comunidade me acompanhou com seu filho. Foi difícil identificar a trilha para chegar lá, segundo ela, apesar de ser muito perto das outras casas. Isso aconteceu porque o mato já havia tomado conta, o que sempre acontece em época de chuvas. Neste local não há roça. Aos meus olhos, ao visitar o local, vi uma mata com árvores frutíferas e terrenodisforme, e me perdi facilmente na orientação do espaço. Conforme caminhávamos no terreno, a moradora da comunidade procurava na paisagem atual os lugares da sua memória (POLLAK, 1992), sempre acompanhada de seu filho. Seguindo ela, tentei imaginar como poderia ter sido este lugar, como era a casa, como era a roça, como era o lugar de torrar farinha... De repente ela chama atenção para uma bacabeira9, e em um ponto inclinado do terreno encontra na sua lembrança a antiga casa. A partir deste momento ela segue fazendo a leitura daquela paisagem através de uma volta no tempo (considerando esta lembrança também como uma construção, como chama a atenção ROCHA e ECKERT, 2000), às suas memórias e, ao mesmo tempo em que nos conta onde costumava ficar cada coisa, relata para seu filho como era o seu bisavô, e de como ela costumava cuidar dele. Identificamos o antigo poço, encontramos alguns restos da antiga estrutura de madeira da casa e ela chamou a atenção à quantidade de coisas que ainda deveriam estar aparecendo ali naquele lugar, se o mato não tivesse avançado. Ao mesmo tempo em que se lembra dos momentos, explica como era a vida naquela época, e se emociona retomando sentimentos pessoais; o filho, quieto, escuta pacientemente. Já determinados a voltar para casa, nos deparamos com os restos do antigo forno feito com latas emendadas, onde era torrado o café e a farinha. Ela pede que eu tire uma foto do filho segurando este objeto, orgulhosa de mostrar para ele como vivia seu bisavô. Terminamos a visita colhendo uma jaca madura, que seria apreciada juntamente com as lembranças do lugar. Miller (1987) coloca que existe uma relação próxima entre a materialidade do objeto e a materialidade do espaço, sendo que os objetos podem se referir a relações sociais e, neste caso, também ao passado. Com certeza a imagem que eu via e que ela via eram diferentes, a dela uma paisagem da memória, e a minha uma tentativa de transformar o que eu estava 9 Palmeira com fruto a partir do qual é tirado vinho e que é muito consumido pelas comunidades ribeirinhas no Amapá e na Amazônia. Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 19 vendo e o que estava sendo narrado em uma cena à minha frente. Conforme caminhávamos neste espaço, as árvores e os vestígios iam puxando a lembrança de situações do passado, iam retomando a história da comunidade, iam ressignificando a paisagem. Entendendo a memória como “espaço de construção de conhecimento” (ECKERT e ROCHA, 2000: 2), é ver o passado não “(...) necessariamente antagônico ao presente, ao contrário, eles superpõem-se ritmicamente e, num processo ondulatório, ao ponto da sua consolidação, deixam a descoberto a matéria de suas lembranças” (ROCHA e ECKERT, 2000: 13). A partir das experiências que vivi até agora em Cinco Chagas do Matapi, percebi a possibilidade da história ser contada através de narrativas orais tendo os lugares, os momentos e os objetos papéis de contextos que desencadeiam a memória. Em especial, uma vez que pesquiso a relação dos vestígios arqueológicos com as pessoas nesta comunidade, a cultura material evoca e cria memória, imagens, momentos passados, sentimentos. As coisas que nos cercam possuem a capacidade de sintetizar uma história através do seu poder de evocar a memória e instigar a narrativa. Considerações finais Uma pesquisa que leve em consideração abordagens metodológicas como a participação, a dialogia e a problematização sobre a relação de alteridade são perspectivas do campo da antropologia que podem auxiliar o arqueólogo a desenvolver uma prática de pesquisa mais reflexiva e ética (SMITH, 2004; SHANKS e HODDER, 1998). Além disso, a cultura material, enquanto mediadora de relações sociais, apresenta um potencial enorme enquanto abordagem teórica e metodológica para problematizar a alteridade. Os vestígios arqueológicos, enquanto parte do patrimônio de Cinco Chagas, estão relacionados com a sua luta pelo reconhecimento enquanto comunidade quilombola. As narrativas, através de imagens da memória das famílias, estão vinculadas a um sentimento de pertencimento e associam as experiências e identidades sociais manifestas a um território (MARIN e CASTRO, 1999: 76). Imbricadas nas demandas por melhorias sociais e reconhecimento frente ao Estado estão as relações estabelecidas pelas pessoas com a história particular das comunidades e com a materialidade. Os arqueólogos, em suas pesquisas de campo, têm muito a aprender com a oralidade, que mostra alguns sentidos da cultura material; esta, por sua vez, diz respeito às pessoas hoje, e não só a um passado distante. Ainda, os artefatos e vestígios, associados a outros objetos e imagens, remetem a uma identidade própria das pessoas do local, que tem a ver com os seus Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 20 saberes e fazeres, suas casas, suas histórias e suas visões de mundo. Desta forma, não é mais possível ir a campo e não escutar as pessoas, e não deixar a oralidade nos levar para diferentes lugares através das imagens e nos mostrar diferentes perspectivas da cultura material. Referências bibliográficas ALMEIDA, Alfredo W. B. de. “Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização, movimentos sociais e uso comum” In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.6, n. 1, p. 9-32, 2004. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras, 2004. BRANDÃO, C. R. “Reflexões sobre como fazer trabalho de campo” In: Sociedade e Cultura,v.10 n. 1, p. 11-27, 2007. CSIKSENTNIHALYI, Mihaly. “Why we need things”. In: LUBAR, Steven e KINGERY, David. W. (eds.) History from things. Essays on material culture. p. 20-29. Washington and London: Smithsonian Institution Press, 1993. ECKERT, Cornelia.; ROCHA, Ana. L. “Os jogos da memória” In: Iluminuras, Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 2-15, 2000. 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Palavras-chave: Arqueologia, quilombos, imaginário ABSTRACT Study of the various figures in the Brazilian archaeological research Quilombo, held in Rio Grande do Sul, in recent years, considering its collaborative aspects of science and scientists. Keywords: Archaeology, quilombos, imaginary RESUMEN Investigación sobre los diversos imaginarios en los estudios arqueológicos en “quilombos” (sitios cimarrones) brasileños, celebradas en Rio Grande do Sul, en los últimos años, teniendo en cuenta sus aspectos de colaboración de la ciencia y de los científicos. Palabras clave: arqueología, Quilombo, imaginario Introdução Gitibá Faustino (1991: 102) diz que o Brasil é o segundo país do mundo em população negra, sendo que o primeiro seria a Nigéria; me pergunto onde isso influi na arqueologia? A resposta está na imagem (DURAND, 1997) arqueológica sobre vestígios de afro-americanos. A atmosfera, o imaginário acadêmico, é de colaboração entre pesquisadores envolvidos na investigação do tema. “O imaginário é determinado pela ideia de fazer parte de algo” (SILVA, 2012). É sobre imaginário, esta atmosfera ou aura que o texto discorre. 1 LAMINA e PPGA (ICH) – GEPIEM (FAE) – UFPel , Doutor em História- Area de Concentração em Arqueologia (PUCRS). cbcarle@yahoo.com.br Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 23 Segui ideias convergentes que implicam em uma ação colaborativa. Aura instauradora (DURAND, 1997: 19) da arqueologia sobre afro-americanos é inteira, torna-se um imperialismo de imagens na ambiência social, “fantasias adversas”, “recalcamento” de regimes de imagens fixadas em um “momento histórico” (DURAND, 1997: 390). O imaginário revela as ações e as formas de entender o ser no mundo. A aura, imaginário, é instauradora das formas de pensar, sentir e agir. Gilbert Durand, no universo simbólico dos textos, neste caso sobre afro-americanos no sul do Brasil, indica que há uma troca incessante entre as pulsões subjetivas (biopsíquicas) e as intimações objetivas (cósmico-sócio-culturais) que se processa no trajeto antropológico. Que há um dinamismo equilibrador entre pensadores, as grandes imagens tradicionais e as míticas. Mitos que penetram nas orientações mais profundas (DURAND, 1997: 13) da sociedade científica. Há uma instauração do pensar sobre os afro-americanos. Esperava encontrar uma construção colaborativa, imaginada e apresentada nos textos de forma utópica, mas verifiquei ideias individuais de cunho político sobre os vestígios de afro-americanos. É uma visão recalcada. Nenhum lugar é deixado à «Imaginação criadora», ao Imaginário poético. É talvez daí que data a catástrofe que separou o Oriente e o Ocidente em nível do pensamento, o pensamento visionário e o pensamento racional, desde Guillaume d’Auvergne até Descartes, passando por São Tomás de Aquino. O imaginário torna- se aqui no Ocidente cada vez mais recalcado na insignificação ornamental, estética, e, na véspera do século romântico, o divórcio está consumido. (DURAND, 2004: 10) A visão de recalcamento ocidental (sistema imaginal instalado), expresso nas ciências humanas, é fixada pela imagem científica redutora (cartesiana) que se desenvolve no Brasil. Estamos então frente a um recalcamento da ciência ocidental, também na arqueologia brasileira. Investigo este recalcamento nos estudos sobre quilombos e vestígios de afro- americanos. “O imaginário é a marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do vivido. Como reservatório, o imaginário é essa impressão digital do ser no mundo” (SILVA, 2012). Sofri, como arqueólogo, este processo de impregnação simbólica. Esta marca simbólica aparece desde o início do século; percebo-a a partir das discussões travadas com Klaus Hilbert, Arno Kern e Moacyr Flores. Surge então este texto, no limiar entre o cartesianismo e os estudos sobre o imaginário. As “práticas de fronteira são marcadas não somente por relações de 'boa vizinhança', mas também pelo litígio” (GOMES, 2000: 7). O Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 24 litígio em foco é a possibilidade de compreender a aura que se estabeleceu nos estudos sobre os afro-americanos no RS. Na arqueologia brasileira, vemos que a reprodução de velhos modelos, sem uma discussão teórica maior, ainda é persistente. “Uma ciência atinge sua maturidade quando ela conhece seus limites” (KERN, 2002: 116). Não há estes limites e os trabalhos são individualistas, feitos por um cientista que quer se entender múltiplo e que pretende dominar tudo. Um imaginário de regime diurno e com esquema postural heróico (DURAND, 1997: 115-121), um super-homem das ciências. Sigfried Laet coloca o problema da arqueologia na origem, na vinculação com outras disciplinas, perdendo o seu veio condutor, expressando desejos de estudos, na maioria das vezes, individuais, da História da Arte, das Ciências Naturais e da História propriamente dita, perdendo sua constituição própria (LAET, 1959: 14-24). Para Schmitz (1982: 53) a Arqueologia no Brasil procura reconstruir o modo de vida - a tecnologia, a cultura, a sociedade - de populações passadas ou etapas das atuais populações para as quais outras documentações são nulas ou ineficientes, não possuindo problemas, nem teorias exclusivas, partilhando estas com outras ciências. É uma síntese, uma especialização destacada de outras ciências, mas a arqueologia brasileira, na sua aura (imaginário), se pensa total. “O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. O espírito positivista não pode aceitar como vetor de ação algo tão impalpável, apresentado como atmosfera, admitido como aura” (SILVA, 2012). O imaginário é uma sensação que é vivida e não uma ordem de coisas mensuráveis que podem ser quantificadas. Imbuído também por esta sensação, busco entendera atmosfera do estudo arqueológico sobre áreas com vestígios de afro-americanos. Atmosfera para compreender os quilombos arqueológicos Há um reservatório, um motor que agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida individual e grupal que sedimentam um modo de ver em objetos, como espaços, objetos móveis, estruturas. Ali estão registradas as formas de ser, de agir, de sentir e de pensar o futuro ao se estar no mundo. O imaginário “emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor” e como forma nas ações humanas que constituem os sítios que ocupa (SILVA, 2012; DURAND, 2004). Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 25 Estudar sítios arqueológicos históricos tem sido estudar a história dos seus formadores (LIMA, 1985: 88). Esta é a atmosfera da arqueologia histórica no Brasil. “O cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas de objetividade e de neutralidade. A ciência também tem a sua aura. O cientista também se move numa atmosfera” (SILVA, 2012). A atmosfera da “história do negro” e da “arqueologia da escravidão” (como se pensa o estudo sobre afro-americanos) marca os estudos. Assim, entender a atmosfera da história é entender o imaginário que envolve os estudos arqueológicos até o presente. O estudo sobre os afro-americanos é marcado pelo “branqueamento”, constituindo uma atmosfera de segregação racial historiográfica no país (SANTOS, 1991: 81-82), refletindo nos sentidos comuns (MAFFESOLI, 1994) da população diretamente envolvida e em seus movimentos organizados. Efeito que marca as posições, os ideologemas, que são a materialização de valores e de funções ideológicas de um determinado meio social, sendo psíquico e social; por consequência, ideológico, constituindo a materialidade da “ideologia” no cotidiano da vida social (DURAND, 1997: 118). Na historiografia refletida na arqueologia (LIMA, 1985) aparecem estes ideologemas. Escravos realizavam os assassinatos dos proprietários (MOREIRA, 1995), Luis Gama – filho de escravo rebelde – afirmava “que o escravo que matava o seu senhor praticava um ato de legítima defesa” (MOURA, 1987: 80). A confusão ideológica, ideologemas racistas e a atmosfera científica se conflitam. O Movimento Negro, na região meridional do RS, ao entender que o cientista trata os escravos como agressivos, inquiriu historiadores que escreveram sobre isso, a exemplo da obra de Roger da Silva intitulada Muzungas: Consumo e manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul (1828-1888) (Pelotas: EDUCAT, 2001) que foi levada à investigação como uma obra racista, por dizer que os afro- americanos envenenavam seus senhores no período da escravidão. Neste caso, o historiador- autor é afro-americano e seu texto traz os registros históricos e não promove racismo de forma alguma. Insurreições e revoltas também aparecem como formas de oposição à escravidão (SANTOS, 1991: 79; MAESTRI, 1979: 53 e 94; GOMES et al, 1995: 28). Percebe-se contradição na escrita histórica, aura dos estudos arqueológicos (FUNARI, 1996), em relação à percepção dos envolvidos. Mariano Santos – ex-escravo, afirmava que os escravos se suicidavam, apenas esperando a morte de sede, de fome ou de enfermidade, “o dia que Deus chamava” (MAESTRI, 1988: 31). A morte, na atmosfera historiográfica, é colocada como perda mercantil, de força produtiva, que podia assumir proporções endêmicas (MAESTRI, 1979: Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 26 47). A aura econômica amplia a atmosfera das pesquisas. Na urbanização, fugitivos passavam por livres “de cor”, procuravam a proteção de um liberto ou de um senhor de escravos, “acoutando-se”, fato punível por lei (MAESTRI, 1979). Sant-Hilaire (apud MAESTRI, 1979: 80-89) notava que os mais valentes soldados de Artigas eram escravos fugitivos. Presos, os fujões “continuavam causando prejuízos, pois pagos os captores” (desde 1574) as fugas continuavam, aumentando as despesas com os que permaneciam e com os que eram caçados (MAESTRI, 1984: 73-74). A fuga é uma constante. “A maneira mais simples, segura e rápida de um cativo libertar-se era a fuga” (MAESTRI, 1984: 73). Aferida simplicidade é reveladora de uma naturalidade na fuga que não expressa o fato. No Jornal O Mensageiro, Farroupilha que pregava a república e a futura libertação de escravos, nas suas 37 tiragens, em 11 anúncios condena a fuga de escravos. As fugas podiam posteriormente levar à formação de “mocambos” e “quilombos” (SANTOS, 1991: 75; GOMES et al, 1995: 33). As Irmandades, fenômenos urbanos ligados aos “terreiros” e “batuques”, frequentados por escravos, libertos e livres pobres (MAESTRI, 1984: 54), eram importantes no apoio às fugas (GOMES et al, 1995: 29). A imagem criada por estes estudos é econômica, uma atmosfera econômica para a escravidão e para a fuga. As fugas são evidenciadas na historiografia no estudo sobre quilombos. No RS, surgem diversos pequenos quilombos. Quilombos estes que vão além da definição inicial: “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Rei de Portugal ao Conselho Ultramarino, datada de 2 de dezembro de 1740, apud MOURA, 1987: 16). Formam grupos armados, com lideranças na fuga e que se perpetuavam. Segmentos pobres ou perseguidos convergiam aos quilombos. O texto arqueológico, dos lugares (sítios e paisagem) e dos objetos, cria um sentido, uma atmosfera, para compreender os quilombolas. Atmosfera não respeita as ideias criadas pelos próprios grupos a partir de suas realidades para gerar os lugares. A arqueologia segue este caminho, guiado por seu “trajeto” (DURAND, 1997) enquanto ciência. A arqueologia de afro-americanos no Brasil está intimamente ligada à História e à história da ciência, gerando sua atmosfera. Marcando este “trajeto”, Gustaf Oscar Montelius (1843-1921) cria formas de classificação, para coleções estudadas (TRIGGER, 1992: 150), elege variações de forma e decoração, que foram usadas na seriação dos difusionistas no Brasil. Cultura (da Agricultura, um único tipo de cultivo), como organizações humanas (1780), conceito que indica que uma sociedade obedece a padrões definidos, identificáveis, Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 27 como no plantio, visíveis nos artefatos e nos níveis de estratificação diferente de um sítio. Olof Rygh (1866) interpreta pontas de flechas e lanças como “cultura y de un pueblo” da Idade da Pedra (1871), “dos culturas de la Edad de la Piedra y dos pueblos de la Edad de la Piedra” (MEINANDER apud TRIGGER, 1992: 157). A cultura aplicada nas ciências sociais e aos artefatos arqueológicos cria separações culturais por métodos classificatórios e comparativos, nas aproximações e nas diferenças de produção de bens. Gustaf Kossinna (1858-1931), estudando as “tribus” formadoras da “raça germânica” de origem “indo-européia”, em detrimento de outras, divide os vestígios arqueológicos por raças e identifica os povos criativos em contraposição aos povos passivos (TRIGGER, 1992: 159-160). Kossinna busca comprovar a superioridade racial alemã que na dispersão sofria diminuição de suas capacidades criativas. Os amadores, na arqueologia brasileira (cf. André PROUS, 1991), com certeza entraram em contato com os vestígios de afro-americanos, mas não os reconhecem. No Brasil, quilombos foram classificados como áreas de cultura européia ou como áreas de povos não evoluídos, primitivos. O “Branqueamento” criado por arqueólogos amadores se perpetua. A história e a arqueologia, racistas, mascararam a cultura dos afro-americanos maculando-a (SANTOS, 1991: 141). Aatmosfera criada por Jonh Myres (1911) e Arthur Evans (1869), onde a cultura material dos conquistados (passivos) era adotada pelos conquistadores (ativos), se perpetua (TRIGGER, 1992: 162). “A sociedade escravista almejava um cativo que se autoconcebesse como propriedade de outrem ou um negro neutralizado pelo respeito e medo ao amo” (MAESTRI, 1984: 70). A atmosfera onde o afro é inferior, já na arqueologia histórica, o percebe como escravo, ou seja, na sua condição sócio-econômica imposta e não como ente humano. A “arqueologia da escravidão” é um exemplo dessa atmosfera. A atmosfera modelada pelos textos do PRONAPA toma o lugar dos amadores, fundamentada na ideia de que as culturas tinham um pólo inicial de origem e deste é que se desenvolviam para o resto do mundo (TRIGGER, 1992: 145). A única área de origem possível era colocada no Velho Mundo; dispersos desta por migração ou por difusão, criam blocos ou áreas culturais similares e adjacentes. Franz Boas (1858-1942), baseado em Fredrich Ratzel (1844-1901), incorpora a difusão à capacidade de invenção local. Invenções simples, com única origem, gerando a difusão e as alterações regionais, conforme sua dispersão a partir do centro de origem. A aura de que os africanos vieram pela mão dos europeus sem cultura própria e alterada pela ação daquela cultura superior (TRIGGER, 1992: 159). Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 28 Nos Estados Unidos, os estudos etnográficos das cronologias das culturas, de Kidder (1885-1963), dos métodos taxionômicos de classificação (tipificações são feitas e ramificações encontradas), alicerçadas por esquemas dendríticos de interpretação, com as sequências etnográficas, as tipologias e as seriações, formulam, ao final, tradições arqueológicas e culturas (TRIGGER, 1992: 178-183). No Brasil, a Arqueologia Histórico- Cultural, do Smithsonian Instituition (Betty Meggers e Cliford Evans), e a arqueologia amadora brasileira sofrem a influência de um modelo que mescla ideias de Childe (1961) e Montelius (TRIGGER, 1992: 177). Há uma atmosfera de cientificidade na arqueologia. Meggers e Evans propõem “horizontalidades” e “verticalidades” de maneira difusionista de expansão cultural (1958). A metodologia vertical de um sítio, estratigráfica, classificatória e a seriação do material, intercaladas com as relações comerciais e a datação absoluta realizavam entre sítios o sentido de fases dentro de tradições, fruto de pequenas escavações nos sítios. Este modelo determina-se pelos objetos, perdendo a complexidade do todo. Objetos de afro-americanos viram fases, a exemplo da fase Monjolo (JACOBUS, 1996), da Tradição Neo-brasileira do PRONAPA (1965-1970). Eurico Miller, em Santo Antônio da Patrulha (RS), no vale do Rio dos Sinos, investigava níveis estratigráficos como níveis cronológicos. Vale-se de características diagnósticas típicas para afirmar ocupações, tais como a cerâmica, a habitação, a iconografia, entre outras. As transformações culturais derivam de intervenção externas: contatos culturais, comércio e migrações. A informação contida no artefato dá segurança ao arqueólogo. Há fragilidade científica na orientação indutiva, examinando os materiais empíricos recolhidos, ordenando-os, classificando-os, eventualmente comparando-os, realizando generalizações subjetivas (TRIGGER, 1992: 195). Ford (1938) valora os tipos dentro das culturas, correlaciona às diferenças temporais e especiais. A técnica de Mortimer Wheeler (1890-1976) é mais usada para o campo na escavação e no registro tridimensional. David Clarke (1968) cria o tratamento sistemático à tipologia arqueológica em todos os níveis (TRIGGER, 1992: 192-196). Na mesma época, vemos Mortimer Wheeler (1961: 27) criticar escavações que não deram importância às estratigrafias, buscando apenas estruturas arquitetônicas, o que se atmosfera na arqueologia histórica preocupada em comprovar um pensamento modelar em detrimento do universo subjetivo dos humanos envolvidos nestes sítios. Estas técnicas tornam-se fundamentais. “Es acientífico excavar sin plan ni problemas previos a cuya resolución puedan contribuir los dados, pero si se supiera lo que hay en el suelo antes de la excavación no habría razón para excavar” (WATSON; LEBLANC; & REDMAN, 1974: 34). Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 29 O Histórico-Culturalismo manteve-se até hoje sem renovação de técnicas nem implementação completa de seus pressupostos. Nas inúmeras conversas com Klaus Hilbert, entendi que a análise baseada em fósseis diretores, sistemas classificatórios e seriações geram uma redução interpretativa. Reduções parciais, evolucionismos, funcionalismos, estruturalismos e outros criaram a aura arqueológica desta época (final da segunda guerra até os anos 80, no Brasil). Hilbert diz que a descoberta do C14 rompe com a negação das antiguidades e dos períodos pré-cerâmicos. Isto justificava uma colocação de José Joaquim Justiniano Proenza Brochado (informação pessoal, em dezembro de 1992, Curso de Mestrado) de que Betty Meggers não estudava o lítico e preocupava-se muito mais com a cerâmica. Hilbert (2006) explica esta imagem por um “tripé” - objeto, tempo e espaço - identificando fases e tradições, fórmulas fechadas. A superioridade cultural, a assimilação, o abandono total da cultura, a vantagem de uma sobre as outras dava aos quilombos os aspectos de organização social, de produção de bens superados em sua origem africana pela superioridade da cultura européia. Quando trabalhei pela primeira vez com esta ideia, achava ser uma mera hipótese, mas não, isso é um pensamento que vigora ainda hoje no meio acadêmico. Escutei de uma antropóloga, que há anos trabalha com quilombos: “não devemos africanizar os quilombos”; logo depois indicou sua “origem italiana”. Ela falava da aculturação dos quilombos. “Por mais que deseje, o cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas de objetividade e de neutralidade” (SILVA, 2012). A fala desta antropóloga é a atmosfera da cultura europeia como superior. Repetidas vezes, vimos na história e seu reflexo na arqueologia o que nos escreve Joseph Hörmeyer (1986: 78), em 1850, preparando a propaganda para a entrada de alemães: “certo é que um escravo é castigado também aqui, mas assim como um pai castiga seu filho renitente”. Cristina Nery e Gilian Lopes (1988: 534-535) refutam a ideia de castigos brandos, pois nos escravos domésticos (1860-1880), cujas exigências eram menores, a taxa de aleijados e doentes era grande. A ideia de castigos sugere que existia esta necessidade e, portanto, explicita a imagem de inferioridade de época e atual, que se mantém entre pesquisadores e reflete no senso comum. A escravidão, para alguns, impediu o desenvolvimento de eficientes formas produtivas, mantendo a sociedade em uma estrutura fechada, pois “sendo o escravo a base fundamental da estrutura, qualquer mudança estrutural, partindo da cúpula do sistema, previa o fim da condição de ser escravo como último ato, ou seja, o último recurso” (SANTOS, 1991: 72). Louis Conty (apud MAESTRI, 1984: 66) acredita que a charqueada gaúcha Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 30 produziu menos que a uruguaia e a argentina, pois usava escravos em vez de assalariados. É evidente o eurocentrismo na história, refletindo-se na arqueologia. Ocorre uma renovação na aura, com o marxismo na arqueologia, por ilustrar as lutas sociais e evidenciar a ação dos campesinos e trabalhadores. As ideias nacionalistas e evolucionistas agregam-se ao método de Mortimer Wheeler, dando base à arqueologia marxista na América Latina (TRIGGER, 1992: 170-172). A aura eurocêntrica está mantida. É visível no universo antropológico de Darcy Ribeiro, no“O Processo Civilizatório” (1968), cujo prólogo é de Betty J. Meggers (RIBEIRO, 2001: 15), líder do PRONAPA. Meggers enfatizava que: “o mundo atravessa hoje um estado de sublevação. Guerras, rebeliões, golpes, guerrilhas, greves e outras manifestações de tensão comparecem diariamente nos jornais”. Escreve que nos Estados Unidos estavam enfrentando “conflitos dos guetos negros”, os quais “estão se tornando tão inevitáveis quanto os dias quentes de verão e agora ameaçam destruir porções apreciáveis de nossas principais cidades”. Indica já esta sublevação negra como um empecilho ao bom desenvolvimento. “Os conflitos raciais explodem por todos os lados. As enormes diferenças no acesso às vantagens econômicas e educativas não apenas criam problemas específicos, como difundem seus efeitos dilacerados através de toda a ordem social” (RIBEIRO, 2001: 15). Há uma dubiedade neste discurso, pois ao evocar o fim dos conflitos, explica-os pelo meio em que os afro-americanos vivem. Uma atmosfera típica das explicações marxistas na antropologia e na arqueologia brasileira. Publiquei este livro com muito medo. (...) Meu medo devia ter aumentado quando um conhecido intelectual marxista, ledor de importante editora, deu um parecer arrasador sobre O Processo Civilizatório. (...) Mas surgiram vozes de alento (...) Entre eles, a mais competente arqueóloga que conheço: Betty Meggers (Prefácio à quarta edição venezuelana, RIBEIRO, 2001: 23). A imagem marxista invadiu a historiografia; há exemplo das obras de Fernando Henrique Cardoso (1962) e Jacob Gorender (1980), tendo como um dos principais seguidores no RS o historiador Mário Maestri. Basendo-se nesses, considerava o escravo como regulador social, pois quanto mais longe da condição de escravo um cidadão se encontrava, mais alto estaria na escala social. Era regulador de propriedade e a propriedade teria valor na cidadania de época; acredita que estes senhores não podiam imaginar sua vida sem seus escravos, sem seu trabalho. Identifica, segundo suas pesquisas, inúmeros casos de escravos valerem mais que uma propriedade, funcionando também como moeda internacional-comercial (MAESTRI, 1984: 25) e como indexador da economia interna (SANTOS, 1991: 71-72). Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 31 Gilbert Durand (2004: 15) diz que “não nos habituaram a ler (...) através de um contexto de remitologização”. A atmosfera do “herdeiro glorioso das Luzes” é que guia este momento da ciência, tanto no positivismo como no materialismo Pelo menos não são nossas teorias eruditas das ciências sociais do século XIX que procuraram desmitificar nossa quietude progressista! Entretanto... Entretanto Saint Simon, Auguste Comte, principalmente, querem fundar, e fundam (no Rio de Janeiro, esta instituição ainda existe...), uma religião nova com sua liturgia, seu temporal, e mesmo seu santoral! E, no entanto... Sabe-se lá por que Karl Marx deixou crescer uma barba tão bonita, a mais bela barba da história moderna? Simplesmente pela sua admiração por um busto helenístico de Júpiter (o qual ele sempre guardou, em Londres, a forma na ante-sala do seu escritório), ele mesmo se sonhando como sendo o Olimpiano fundador dos novos tempos. Teogonia é o primeiro modelo de um certo progressismo: após a idade dos Titãs, após o reino de Cronos, de repente advém a idade das Luzes olimpianas, a idade da ordem jupiteriana... É exatamente com este Zeus do Olimpo que Karl Marx quis conscientemente, muito conscientemente, parecer... Então, clima estranho este do século XIX, aonde o progressismo vai em direção do avanço tecnológico triunfante até nossa própria época, mas onde os construtores de ideologias totalmente míticas (no sentido bem pejorativo como entendiam os positivismos, quer dizer inverificáveis, utópicas, fantasmáticas...) assombram a ascetização racionalista. (DURAND, 2004: 15) A mítica higienizante do materialismo onde a mão-de-obra afro-americana ocupou todas as instâncias da produção no RS, africanos/escravos como uma abstração. Homogeinização de diferentes grupos linguísticos, que divididos em dialetos e tribos não formam uma unidade, impedidos de permanecer reunidos (SANTOS, 1991: 75). Homogeinização como classe ou cultura, uma mítica positivista/materialista. Os escravos do Brasil meridional foram utilizados no campo, mas em concentração nas charqueadas. Os escravos eram então estenuados por uma jornada de trabalho de 16 horas diárias, apanhando e sendo muitas vezes embebedados para continuar seu trabalho, parando pelo esgotamento ou pela enfermidade (MAESTRI, 1984: 46). A carne salgada barateava o antigo transporte do gado vivo, a produção intensa, competitiva com as saladeiras argentinas e uruguaias que, depois de 1825, passaram a usar assalariados (CORSETTI, 1985: 91). Os sítios de afro-americanos nesta mítica mantêm o “modo de produção” ou um “modelo de subsistência” no “modo de produção capitalista” implementado, relegando ao universo materialista a mítica dos quilombos. A atmosfera em que há a modelação marxista, entendendo o capital industrial como motor da mudança, cria um apelo às relações de poder mecanicamente. O viajante Nicolau Dreys (apud MAESTRI, 1979: 42) considerou a charqueada um estabelecimento penitenciário. No espaço urbano, esta “classe” teria melhorias da vida; e no campo e charqueadas, os escravos estavam mais angustiados (MAESTRI, 1990: 697-698; MAESTRI, 1984: 63). Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 32 Afirma-se que o escravo na cidade se protege entre os seus, os escravos de ganho conquistam a liberdade pela compra de alforrias (MAESTRI, 1990: 699-701-703-705; ISCM, 1994: 51). A circulação livre, jogos, liberdades, eram punidos severamente (MAESTRI, 1990: 699-700) subverte a imagem de classes diferentes entre os escravos ou mesmo do escravo como classe (MOREIRA, 1995: 54). Esta é uma mítica atual nos estudos arqueológicos sobre o negro (CARLE, 2005). As alforrias geravam inúmeras contradições. Roberto dos Santos, ao catalogar uma série de inventários, encontrou um fato curioso em que um escravo possuía escravo (SANTOS, 1991: 112). A pureza ingênua marxista na arqueologia embasada na estratigrafia (TRIGGER, 1992: 186-195) é contra esta imagem. Esta arqueologia evidencia os sítios relacionados a assentamentos de afro-americanos, fruto de discussões internas da ciência no sentido dos limites de seu objeto de estudo em conflito com a história e com a antropologia, principalmente, mas que suscitou na definição da própria ciência como uma disciplina em construção (KERN, 2002: 118). A arqueologia é um estudo da cultura material no seu relacionamento direto com o comportamento humano (KERN, 1996: 7). Ela se ocupa também do ambiente em que gênio (ou gênero humano) se desenvolveu e no qual o homem ainda vive (RAHTZ, 1989: 9). Este mundo pré-determinado por modelos é o mundo da ciência moderna que se arvora a dar sentido à vida pelos modelos (SILVA, 2012). Wheeler (1961: 78) sugeriu que se realizassem escavações em área, com sondagens preliminares para a verificação de estratigrafia. A escavação em área seria possibilitada, para o autor, sem a perda do referencial da estratigrafia, realizando um quadriculamento que manteria “bermas” laterais (paredes em quadrículas) para a visualização estratigráfica e bem como a circulação de operários, com carrinhos e baldes de terra (1961: 80). O método permite uma distinção de diacronia e sincronia, sendo possível detectar os níveis de alteração dos comportamentos dos sítios e, por conseguinte, dos indivíduos que ali se estabeleceram durante o processo de formação dos mesmos. Soluciona problemas nos sítios tais como a composição por uma série de estruturas arqueológicas e arquitetônicas diferenciais à malha arqueológica; a escavação é feita conforme