Buscar

Revista_Arqueologia_Publica_8_2013

Prévia do material em texto

número 8 | 2013 
 
 
 
 
EDITORES 
Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) 
Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) 
 
COMISSÃO EDITORIAL 
Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) 
Andrés Zarankin (UFMG) 
Charles Orser (Illinois State University, EUA) 
Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) 
Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) 
Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) 
Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) 
Nanci Vieira Oliveira (UERJ) 
 
CONSELHO EDITORIAL 
Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) 
Gilson Martins (UFMS) 
José Luiz de Morais (MAE/USP) 
Laurent Olivier (Université de Paris, França) 
Martin Hall (Cape Town University, South Africa) 
Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) 
 
COMISSÃO TÉCNICA 
Derivaldo Reis de Sousa 
Franciely da Luz Oliveira 
Marcos Rogério Pereira 
 
ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL 
Camila Secolin 
 
PROJETO GRÁFICO 
João Batista Ruela 
Luiza de Carvalho 
 
DIAGRAMAÇÃO 
João Batista Ruela 
 
ISSN 
2237-8294 
 
 
 
 
 
 
 
4 EDITORIAL 
Aline Carvalho 
 
 
ARTIGOS 
 
7 OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS 
FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI 
Clarisse Callegari Jacques 
 
22 ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS 
ARQUEOLÓGICOS 
Cláudio Baptista Carle 
 
41 O PAPEL DA ARQUEOLOGIA NOS CONFLITOS DECORRENTES DE 
OCUPAÇÕES IRREGULARES NO SAMBAQUI DA PANAQUATIRA – SÃO JOSÉ 
DE RIBAMAR – MA 
Arkley Marques Bandeira 
 
61 “TRÁFICO” DE MATERIAL ARQUEOLÓGICO, TURISMO E COMUNIDADES 
RIBEIRINHAS: EXPERIÊNCIAS DE UMA ARQUEOLOGIA PARTICIPATIVA EM 
PARINTINS, AMAZONAS 
Helena Pinto Lima, Bruno Marcos Moraes e Maria Tereza Vieira Parente 
 
78 OFICINA LÍTICA DE POLIMENTO NO NOROESTE DO ESTADO DO RIO DE 
JANEIRO 
Nanci Vieira de Oliveira 
 
87 ESTUDIO DE IMPACTO ARQUEOLÓGICO EN PUNTA PEREIRA (COLONIA-
URUGUAY): METODOLOGÍA APLICADA Y PRINCIPALES RESULTADOS PARA 
EL CONOCIMIENTO DE LA PREHISTORIA REGIONAL. 
Irina Capdepont, Laura del Puerto e Hugo Inda 
 
106 A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR: O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NAS 
ORGANIZAÇÕES FORMAIS DO BRASIL 
Alejandra Saladino, Carlos Alberto Santos Costa e Elizabete de Castro 
Mendonça 
 
119 A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI 
Helder Bruno Palheta Ângelo 
 
SUMÁRIO 
135 PIXAÇÕES SOB A ÓTICA DA ARQUEOLOGIA URBANA 
Rafael de Abreu Souza 
 
ENTREVISTA 
157 GABINO LA ROSA CORZO (Arqueólogo e Cientista Histórico - Universidad de La 
Habana) 
Carola Sepúlveda 
 
RESENHA 
 
162 HENDERSON, Hope; BERNAL, Sebastián Fajardo (comp.). Reproducción social y 
creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia 
suramericanas. 1ª Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012. 232 p. 
Bruno Sanches Ranzani da Silva 
 
 
SEÇÃO DE GRADUAÇÃO 
 
ARTIGO 
 
174 GEOGRAFIA E ARQUEOLOGIA: UMA VISÃO DO CONCEITO 
DE RUGOSIDADES DE MILTON SANTOS 
Anderson Sabino e Robson Simões 
 
RESENHA 
 
189 ANTÚNEZ, Carlos Arredondo; HERNÁNDEZ, Odlanyer de Lara; RODRÍGUEZ, 
Bóris Tápanes. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El 
Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – 
Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 180p. 
 Vitor Gomes Monteiro 
 
 
Dezembro de 2013 
 
Caros Colegas, 
 
É com imensa satisfação que apresentamos o oitavo número da Revista de 
Arqueologia Pública. Como sempre, esperamos que vocês encontrem no espaço desta Revista 
uma plataforma para a elaboração de discussões e reflexões acerca de temas vinculados ao 
grande e aberto campo da Arqueologia Pública. Neste número, em especial, reunimos uma 
sequência de artigos que transitam por diferentes recortes temporais e espaciais, mas, em 
comum, trabalham com leituras sobre a cultura material, e produções de memórias a partir 
destas materialidades.É claro que as posições dos autores aqui reunidos são bastante variadas 
e não representam, de forma alguma, posturas consonantes sobre as temáticas mencionadas. 
Acreditamos, todavia, que possibilitar as divergências, discordâncias, acordos e negociações 
– representadas nesses artigos – é um dos pilares de nossa publicação. 
Assim, na seção de artigos, os leitores encontrarão produções textuais que se 
debruçam sobre temáticas vinculadas às memórias quilombolas, ribeirinhas e suas relação 
com a cultura material; reflexões acerca dos diálogos entre memórias, cultura material e 
instituições patrimoniais ou museológicas no Brasil; debates acerca da caracterização e 
estudos de impacto em sítios pré-coloniais tanto no Brasil como no Uruguai; reflexões acerca 
de atividades turísticas e outras formas de ocupação/uso de sítios arqueológicos e, por fim, 
algumas leituras acerca da arqueologia urbana no Brasil. Neste número, também publicamos 
um artigo produzido por alunos de graduação que lançou-se ao desafio de pensar possíveis 
entrelaçamentos entre a arqueologia e a geografia, partindo de conceitos elaborados por 
Milton Santos. 
Ainda neste contexto de pluralidades, disponibilizamos uma entrevista realizada pela 
doutoranda da Faculdade de Educação (FE-UNICAMP) Carola Sepúlveda – especialistas nas 
memórias da poetiza chilena Gabriela Mistral – com o arqueólogo cubano Gabino La Rosa 
Corzo. De forma bastante delicada, La Rosa Corzo expõe suas memórias acerca de sua 
própria formação e traça reflexões sobre o campo da arqueologia tanto em Cuba como no 
Brasil. Escolhemos publicar o texto em espanhol; língua na qual entrevistado e entrevistadora 
se sentem absolutamente em “casa”. 
EDITORIAL 
No campo das resenhas, publicamos o texto produzido por Bruno Sanches Ranzani 
da Silva acerca da obra organizada pelos pesquisadores Hope Henderson e Sebastián Fajardo 
Bernal. O livro resenhado – Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones 
desde la antropologia y la arqueologia suramericanas (Ed. Cordoba: Encuentro Grupo 
Editor, 2012) –traz as reflexões de uma série de autores atuantes no continente americano 
sobre os diálogos entre arqueologia e antropologia, e, em especial, sobre temas como agência, 
estrutura, poder, produção, reprodução, colonialismo e desigualdade. 
 Para finalizar esse editorial, gostaríamos de agradecer à todos aqueles que contribuem 
quase que cotidianamente para a produção semestral da Revista de Arqueologia Pública: 
alunos e pesquisadores vinculados ao Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte 
(Lap/Nepam/Unicamp), equipe de informática da Coordenadoria de Centros e Núcleos da 
Unicamp (Cocen), pareceristas anônimos de diferentes instituições de pesquisa nacionais e 
internacionais, e, claro, aos autores que submetem seus textos a esta Revista. Desejamos uma 
excelente leitura e ressaltamos que estamos sempre abertos ao diálogo! 
 
 
Aline Carvalho 
 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
7 
 
OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS 
FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI 
 
The meanings of material culture in daily activities and memory in the Comunidade 
Quilombola de Cinco Chagas do Matapi families 
 
Clarisse Callegari Jacques1 
 
 
RESUMO 
 
Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória e a 
oralidade a partir de vivências e experiências que tive até agora na comunidade quilombola do 
Estado do Amapá, chamada Cinco Chagas do Matapi. Destaco o papel da cultura material 
como mediadora de relações de alteridade, e a participação e o diálogo como aspectos 
metodológicos importantes da etnografia que contribuem para a prática de uma arqueologia 
mais reflexiva. Através de vestígios arqueológicos e de atividades atuais da comunidade, é 
possível estudar os diferentes sentidos da cultura material, entendida como ativa, e capaz de 
evocar lembranças e imagens de um passado não distante. É com a oralidade queos sentidos 
da memória, da paisagem e da cultura material se misturam e constituem a história e a 
identidade da comunidade de Cinco Chagas do Matapi. 
 
Palavras-chave: cultura material, memória, quilombolas. 
 
ABSTRACT 
 
In this article I intend to discuss the theme of the relation between material culture, memory 
and oral speech through daily experiences I´ve had until now in an african-descendent 
community in Amapá State (Brasil), called “Cinco Chagas do Matapi”. Material culture plays 
an important role as a mediator in alterity relations, and participation and dialogue are 
important ethnographic methodologies that contribute to a more reflexive practice of 
archaeology. From archaeological remains and recent community activities it is possible to 
study material culture´s different meanings, as active and capable of evoquing memories and 
images of a not distant past. It is through oral speech that the senses of memory, landscape 
and material culture intermixes and constitutes the history of ´Cinco Chagas do Matapi´ 
community. 
 
Key-words: material culture, memory, African-descendants. 
 
RESUMEN 
 
Este trabajo trata de analizar el tema de la relación de la cultura material de la memoria y la 
oralidad de las experiencias y vivencias que he tenido hasta ahora en la comunidad de marrón 
en el estado de Amapá, llamado las Cinco Llagas Matapi. Destacar el papel de la cultura 
material como mediadora de las relaciones de alteridad, y la participación y el diálogo como 
los aspectos metodológicos importantes de etnografía que contribuyen a la práctica de la 
arqueología más reflexiva. A través de actividades arqueológicas y actuales de la comunidad, 
es posible estudiar los distintos significados de la cultura material, entendida como activa y 
 
1 Doutoranda PPGA/UFPA/CAPES. E-mail: clarissejacques@yahoo.com 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
8 
 
capaz de evocar recuerdos e imágenes de un pasado no muy lejos. Es con ese sentido de la 
memoria oral, el paisaje y la cultura material se mezclan y forman la historia y la identidad de 
la comunidad de las Cinco Llagas Matapi. 
 
Palabras Clave: cultura material, memoria, cimarrones 
 
Introdução 
 
A Arqueologia tem se deparado com situações cada vez mais desafiadoras durante 
seu trabalho de campo. Nos contextos onde os vestígios materiais estão localizados em áreas 
ocupadas atualmente por comunidades, pequenas vilas e fazendas, dizem respeito não só à 
vida das pessoas que os produziram e utilizaram no passado, mas possuem significados para 
diferentes pessoas que entram em contato hoje com esses vestígios. 
No caso da pesquisa que venho desenvolvendo 2 na Comunidade Quilombola de 
Cinco Chagas do Matapi, Estado do Amapá, foi encontrada pelos membros desta comunidade 
uma botija de cerâmica enterrada no meio de uma plantação de mandioca. O interesse da 
comunidade em querer saber mais sobre esta vasilha me instigou a desenvolver uma pesquisa 
que levasse em conta a relação destas pessoas com os vestígios arqueológicos neste local. 
Assim, até agora foram realizadas várias visitas à comunidade de Cinco Chagas, sendo que 
durante uma delas foi escavada esta vasilha a pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e 
Artístico Nacional (IPHAN) através de um projeto de resgate emergencial3. 
Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória 
e a oralidade4. Neste sentido, parto de vivências que tive até agora na comunidade e destaco 
que a cultura material teve um papel importante como mediadora de relações de alteridade. 
Em um primeiro momento discuto uma abordagem teórica acerca dos estudos sobre cultura 
material, e busco apresentar os vestígios materiais como cultura material ativa, ligada às 
pessoas e às suas experiências de vida. Em seguida, exploro o potencial da materialidade dos 
vestígios arqueológicos enquanto evocadores de memórias e histórias a partir de encontros 
com os moradores de Cinco Chagas. Em um último momento, reflito sobre o papel central da 
 
2 Atualmente, venho desenvolvendo pesquisa de doutorado no Programa de Pós Graduação em Antropologia na 
Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA/CAPES). 
3 Uma vez identificada a boca desta vasilha na roça de mandioca, o IPHAN, em visita a comunidade, solicitou a 
realização de um projeto de resgate arqueológico para evitar que este vestígio seguisse sofrendo com as ações do 
tempo. Assim, foi desenvolvido pelo IPHAN um projeto de resgate pontual desta vasilha no qual atuei como 
coordenadora responsável tendo em vista meu interesse de realizar pesquisas na área. Os resultados desta 
atividade foram apresentados em forma de relatório a este órgão (JACQUES, 2011). 
4 As ideias principais deste artigo foram desenvolvidas no trabalho final da disciplina ´Cultura Material´ 
ministrada pela Profa. Dra. Marcia Bezerra no PPGA/UFPA e apresentadas no I Congresso Pan-Amazônico e 
VII Encontro da Região Norte de História Oral realizado em Belém em 2011. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
9 
 
oralidade na pesquisa, que está me direcionando a lembranças, conhecimentos e fazeres 
próprios das famílias que vivem nesta comunidade e que, por sua vez, dizem respeito a sua 
história e ao seu patrimônio. A história da comunidade, presente na memória e contada 
através da oralidade, se manifesta através da cultura material. 
 
Os vestígios materiais e as experiências de vida das pessoas da Comunidade de Cinco 
Chagas 
 
A Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi pertence ao município de 
Santana, Amapá, e está localizada nas margens do Rio Matapi a 19 quilômetros da cidade de 
Macapá. Atualmente, a principal atividade das famílias que moram ali é a produção da farinha 
e sua venda na feira da cidade de Santana, para onde se deslocam periodicamente de barco. A 
atividade de revolver a terra para plantar e colher a mandioca tem feito com que as pessoas 
entrem em contato com fragmentos de vasilhas de cerâmica e alguns eventuais instrumentos 
de pedra polida diariamente. Foi a descoberta de uma botija inteira que chamou atenção, 
fazendo com que as pessoas entrassem em contato com a Prefeitura de Santana e o IPHAN 
para preservar esta vasilha e conhecer mais sobre a sua história. 
O fato de as pessoas terem interesse neste artefato (na minha visão de arqueóloga) 
me fez visitar a região com o técnico do IPHAN em outubro de 2009 e começar a pensar em 
um projeto de arqueologia. Enquanto arqueóloga entendi, naquele momento, aquele lugar 
como um sítio arqueológico com vestígios materiais de vasilhas cerâmicas indígenas ocupado 
atualmente por uma comunidade quilombola que está interessada em conhecer mais sobre 
estes artefatos. Os membros de Cinco Chagas, por sua vez, entendem a botija enterrada como 
parte da sua história, como uma descoberta que deve ser preservada para que pessoas de 
outros lugares possam visitar. Ainda, segundo o relato de alguns moradores, outras 
comunidades do Rio Matapi possuem escolas, postos de saúde e igreja, mas não apresentam 
uma situação como aquela, de aparecimento de uma botija enterrada no solo. É interessante 
pensarmos nesta informação contextualizando o momento em que esta comunidade se 
encontra, tendo optado pelo pedido de reconhecimento da Comunidade de Cinco Chagas 
como comunidade remanescente de quilombo frente ao Estado. 
As comunidades tradicionais, incluindo-se nestas as comunidades quilombolas, 
enquanto grupos familiares com percepções do mundo próprias, uso comum de recursos e 
apropriação privada de bens de forma consensual (ALMEIDA, 2004), possuem também um 
entendimento próprio sobre o seu patrimônio, onde o passado e o presente estão relacionados. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.10 
 
Neste sentido, o tradicional não se refere somente ao contexto histórico do grupo, mas aos 
saberes e fazeres atuais. As comunidades possuem especificidades próprias, a ver com a sua 
história, seu autorreconhecimento e as suas atividades quotidianas. Assim, no caso de Cinco 
Chagas, além da vasilha enterrada estar associada à história e à identidade das famílias, é um 
elemento importante enquanto especificidade ou diferencial de legitimidade desta comunidade. 
Estas são duas visões, uma visão minha e a outra um entendimento que tive em um 
primeiro momento sobre uma mesma situação, na primeira saída de campo. Com o tempo, 
tive a oportunidade de visitá-los outras vezes e me convenci que existem ainda muitas outras 
versões, visões e entendimentos desta história, deste lugar e desta botija enterrada. Além disso, 
ainda com um olhar de arqueóloga, percebi que alguns dos fragmentos identificados nas roças 
visitadas dizem respeito a cacos de vasilhas de grupos quilombola e não só de indígenas, 
conforme algumas pessoas da comunidade já haviam me chamado a atenção. A riqueza da 
relação da cultura material com as pessoas, as sensações, interpretações, desejos, esperanças, 
memórias, fascínio que permeia este contato faz com que, neste projeto, a cultura material 
seja estudada como agente, como ativa e não somente um produto de uma atividade humana. 
Neste sentido, Miller (1987) destaca que frequentemente os artefatos são associados 
à sua função, o que muitas vezes determina o nome pelo qual são chamados. Pensar somente 
nesta perspectiva é limitar o entendimento da cultura material; o autor propõe que o crucial é 
a relação social do objeto com as pessoas. Pensando esta proposta não só para artefatos, mas 
para coisas em geral, pois nós nos cercamos delas (CSIKSENTMIHALYI, 1993:25), é 
estudar a forma como as pessoas entendem e se relacionam com o mundo à sua volta 
(THOMAS, 1996). 
Para Tilley (2008), a cultura material pensada em relação à sua materialidade traz a 
tona uma questão ambígua. Por um lado a matéria é propriedade interessante da cultura 
material, pois pode proporcionar sensações relacionadas às características como textura, cor e 
cheiro, que as palavras não conseguem expressar. Por outro lado, a cultura material representa 
relações sociais e simbolismos que fazem parte do mundo das ideias, e não do material. Sendo 
assim, o autor propõe o uso do termo objetificação como um conceito que possibilita uma 
forma de entendimento das relações entre sujeitos e objetos que não são vistos como 
diferentes; ou seja, as ideias, valores e relações sociais são criadas junto com o processo que 
faz com que as coisas passem a existir. 
A objetificação, assim, é um processo que aproxima as pessoas e as coisas, sendo 
estabelecidos vínculos como os de identidade e memória, que fazem do objeto também um 
agente. Neste sentido, de entender os objetos enquanto ativos, Gell (1992) ressalta que os 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
11 
 
efeitos que os objetos de arte provocam nas pessoas são o seu poder, uma mágica que liga o 
mundo material ao campo das ideias (e sentimentos). Pode-se pensar também em uma 
comunicação (GLASSIE, 1999), que está presente tanto na criação como no consumo de um 
artefato. 
Falar de objetos que ‘encantam’, termo usado por GELL (1992: 222), é tocar também 
no que fascina um arqueólogo. Todavia, prender-se somente em um mundo material, já 
admirado e analisado pelo pesquisador, é limitar a pesquisa ao sentido da visualidade e ao 
mundo das coisas. Esta discussão coloca em cena o conceito de ‘cultura material’, que não é 
entendido neste trabalho somente como coisas palpáveis, mas também é visto no sentido do 
próprio conceito de objetificação colocado por Tilley (2008), e pode estar representado por 
uma paisagem ou uma imagem trazida pela memória de um lugar. É desta forma que 
proponho pensar a cultura material relacionada à Comunidade Quilombola de Cinco Chagas 
do Matapi. 
Como foi relatado acima, o primeiro objeto que caracterizou este local como sítio 
arqueológico foi a vasilha inteira, também chamada de “igaçaba” ou “botija”. Associadas à 
esta vasilha estão histórias que remetem ao imaginário e ao passado da comunidade. Vários 
moradores relataram suas diferentes experiências com esta vasilha. Contaram, por exemplo, 
da surpresa dela ter sido encontrada em um determinado ponto, e de ter permanecido neste 
mesmo local. Os relatos sobre como ela foi descoberta sempre são associados a uma história 
passada de geração para geração, que fala de vasilhas com ouro no seu interior e que 
aparecem nos sonhos das pessoas em lugares diferentes, desaparecendo em certas 
circunstâncias para reaparecer em outros locais. 
Do ponto de vista arqueológico, após uma escavação emergencial feita a pedido do 
IPHAN do Amapá (JACQUES, 2011), constatamos que havia outras duas vasilhas de 
dimensões menores depositadas junto a esta botija maior, encontrada pela comunidade. O 
contexto estratigráfico interpretado a partir da escavação indicou a abertura de uma fossa para 
a deposição destes artefatos. Com a informação de que havia um pequeno pratinho com um 
pó branco dentro da vasilha maior, e com a descoberta de outros pratos dentro das duas outras 
vasilhas associadas à principal, interpretei esta deposição como fazendo parte de um contexto 
funerário associado a uma ocupação indígena 5 . Estes relatos dos moradores locais e as 
informações da arqueologia contam a história de vida desta vasilha. 
 
5 As características de decoração plástica presentes na superfície das vasilhas cerâmicas escavadas indicam uma 
semelhança com as características da cerâmica da Fase Mazagão, estudada por Meggers e Evans (1957) e 
associadas a uma ocupação indígena. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
12 
 
Ao conviver em Cinco Chagas neste período, percebi que ao longo de toda a área 
onde estão as casas, foram encontrados fragmentos de vasilhas cerâmicas que, uma vez vistos 
pelas crianças sob a ótica da arqueologia, passaram a encontrá-los ainda mais e a relatar onde 
se localizavam. O olhar destas crianças, não tão “treinado” (ou poderia dizer “direcionado” ao 
que eu já conhecia em publicações sobre o tema) quanto o meu, me fez perceber outros 
fragmentos com características um pouco diferentes das que eu estava acostumada, e que me 
remeteram às decorações e formatos das “louças” de cerâmica feitas atualmente pela 
Comunidade Quilombola do Maruanum e expostas para venda na Casa do Artesão em 
Macapá. 
Tive a oportunidade de visitar esta outra comunidade, localizada no Rio Maruanum 
(braço do Rio Matapi) em outro momento, o que me remeteu novamente a um olhar científico 
arqueológico (com o natural encanto pelos artefatos) preocupado em diferenciar as 
características dos fragmentos associados a grupos indígenas pretéritos comparando-os com 
os já vistos em coleções e publicações de arqueologia, das características da “louça” 
quilombola6. As pessoas de Cinco Chagas com quem conversei sobre o assunto, contam de 
uma época em que eram compradas vasilhas no Maruanum para guardar água e torrar café, e 
quando questionei sobre o que achavam dessas diferenças de coloração e decoração nos 
fragmentos, algumas opinaram que certas vasilhas eram muito antigas, feitas por índios. 
Adentrar uma discussão sobre a associação destes fragmentos a uma identidade 
quilombola ou indígena não é o objetivo neste momento, visto que é uma questão delicada e 
nada simples. O interessante, para esta pesquisa, é perceber como está sendo a relação das 
pessoas com estes fragmentos e levar em consideração também que a visão da comunidade (e 
a minha também) tem mudado conforme nos encontramos e ainda poderá mudar. Até agora 
foi possível constatar que a vasilhainteira é muito importante para essas pessoas, mas não 
pode ser entendida como o único patrimônio material. Como eles mesmos chamaram a 
atenção desde o início, a produção de farinha é uma atividade que envolve saberes, técnicas e 
instrumentos de trabalho também ricos em memória e identidade. 
Dentro da abordagem aqui proposta para entender os vestígios arqueológicos 
presentes nesta comunidade e a forma como as pessoas se relacionam com eles, a memória 
tem um papel importante. É ela que, muitas vezes, reporta as pessoas ao passado, traz à tona 
imagens e lembranças, confortos e saudades de momentos que são recriados e reinterpretados 
através da narrativa oral. 
 
6 Trabalho nada fácil ao qual este projeto não está dedicado. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
13 
 
 
Memórias e histórias na Casa de Farinha 
 
Dentre muitos objetos e objetificações relacionadas à vida diária das famílias de 
Cinco Chagas, e pensados enquanto cultura material ativa, gostaria de destacar os 
relacionados à atividade de produção de farinha, que dizem respeito desde os cacos de 
cerâmica e pés de mandioca até os raspadores de mandioca, forno, farinha e outros objetos 
utilitários e da memória. Cada núcleo familiar planta a mandioca nas suas terras, sendo que 
pode haver pessoas que vêm de fora e passam um período trabalhando a partir de um acordo 
com o proprietário. As áreas plantadas estão tanto junto das casas, que por sua vez se 
localizam ao longo da margem do rio Matapi, como também podem estar mais afastadas. 
Enquanto em uma parte do terreno são plantadas as mudas, em outra é revolvida a terra e em 
uma terceira é feita a colheita de mandioca, de forma que essa seja produzida ao longo de 
todo o ano. A partir da lida e da intimidade com a terra através da plantação, um dos 
moradores mais antigos da comunidade me indicou as fronteiras das roças onde param de 
aparecer fragmentos de cerâmica e de terra mais escura, indicativos para o arqueólogo de 
locais antigamente ocupados. 
Todas as famílias usam a Casa de Farinha, inclusive ao mesmo tempo, em um 
processo contínuo que envolve descascar, deixar de molho, ralar, tirar o tucupi e a goma7, 
espremer a massa, torrar a massa e, ao mesmo tempo, deixar sentar a goma e ferver o tucupi. 
Enquanto uns estão descascando, outros lidam com outra etapa da produção ao ralar e, ao 
mesmo tempo, outra família já está no final do processo de torrar e ferver o tucupi. 
A dinâmica da casa de farinha envolve a circulação de corpos e coisas, como se fosse 
uma dança onde os corpos se movem sem se tocar, as crianças vêm e vão, ajudando em 
alguns processos, as mulheres descascando, lavando a mandioca e fervendo o tucupi, e os 
homens descascando, torrando, ralando e carregando as sacas de massa da mandioca ralada 
em um processo harmonioso. Para espremer a massa da mandioca, a comunidade construiu 
uma prensa de madeira que acelera o processo antes feito com o tipiti8. Cada um possui uma 
preferência de instrumento usado para descascar, seja uma faca menor, maior ou um raspador 
de metal próprio para isso e argumentam sobre qual é o mais prático e eficiente. As sacas com 
 
7 O tucupi e a goma são resultados do processamento da mandioca brava. Depois de descascada e de ficar de 
molho, a mandioca é ralada e “lavada” com água. Deste líquido sai o tucupi e a goma, o primeiro é fervido e 
temperado, e a goma é usada para fazer tapioca. 
8 Estrutura cilíndrica feita de trançado de fibra de talo da palmeira do buriti para espremer a massa da mandioca, 
separando o líquido da massa, que será torrada posteriormente. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
14 
 
a farinha pronta são amontoadas em um canto, parecendo todas iguais aos meus olhos, mas 
pertencem a produções familiares diferentes. 
Pensando um pouco nestas sensações e percepções que envolvem esta atividade de 
produção, destaco as ideias de Spence (2007), que propõe a percepção multisensorial para 
mostrar como os diferentes sentidos influenciam a percepção do tato. Ao dar-se conta da 
substância dos objetos, são usados outros sentidos, ou seja, como propõe o autor, nem tudo 
que acontece em contato com a superfície da pele tem a ver com o toque. O descascar a 
mandioca implica em consistências de pedaços da mandioca ainda com casca indicadas pelo 
olhar, mas retiradas com golpes de intensidades diferentes para deixar a raiz livre de 
reentrâncias de ramificações. No processo de lavagem, ao mexer a massa ralada com água é 
possível sentir concentrações diferentes e definir a quantidade de tucupi que vai estar presente 
em cada produção de farinha; pois isso vai mudar o seu gosto. Na torragem, a cor, o deslizar 
da pá no forno, a granulometria na farinha – às vezes peneirada para ficar mais fina – e provar 
o ponto certo são percepções essenciais. 
Enquanto visitante frequente, converso com as pessoas que me explicam o processo e 
me deixam a par das suas vidas e ficam, ao mesmo tempo, a par da minha. Ao transitar na 
Casa de Farinha, me deparo com áreas mais quentes, onde é fervido o tucupi e torrada a 
mandioca, e passo pela fumaça do forno e o vapor da mandioca sendo torrada para chegar 
onde a água lava a massa e o suco escorre para recipientes onde a goma vai sentar. São 
cheiros diferentes em cada processo, e o aroma do tucupi fervido com alho e alfavaca 
predomina na Casa de Farinha, objetificando todo este processo e todos os saberes nele 
envolvidos. 
Estas impressões e experiências que tive em campo me levam a pensar no potencial 
da cultura material enquanto mediadora da relação entre pesquisador e interlocutor. Através 
dela, a participação e o diálogo também acontecem. A participação acontece no sentido de 
compartilhamento, no qual o trabalho de campo refere-se a um mundo que compartilhamos 
com outras pessoas e com outros olhares e sensibilidades, mas com uma mesma convivência 
(LIMA e SARRÓ, 2006:20). O diálogo é uma relação de alteridade que compartilha o mesmo 
tempo (FABIAN, 2002) e que implica em uma troca de saberes através da cultura material. 
Para Carlos R. Brandão (2007) a pesquisa é uma vivência, uma relação interpessoal e de 
subjetividade, e o envolvimento pessoal e o contexto da pesquisa são dados que fazem parte 
da prática de campo. 
A mandioca, em suas diferentes versões, seguindo o gosto de cada um, retoma 
diferentes significados e relaciona a história do lugar com a biografia particular de cada 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
15 
 
pessoa, assim como associa os fragmentos cerâmicos ao cotidiano da comunidade. 
Retomando as ideias de Gosden (2005), as coisas de origens e históricos diferentes se juntam 
para formar um modo de vida com ocorrência e lógica. Na minha ideia inicial, mandioca e 
fragmentos de cerâmica nada tinham em comum; com o tempo, se tornaram parte de uma 
mesma história. 
No meio da cultura material e das histórias, estão as memórias. Estas memórias 
dizem respeito tanto ao indivíduo como ao coletivo, referindo-se, respectivamente, como 
ressalta Pollak (1992: 2), aos acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ao 
qual a pessoa sente pertencer. A primeira não pode ser dissociada da segunda, pois, como 
coloca Bosi (2004:54), ao refletir sobre os estudos de Halbwachs, a memória do indivíduo 
está relacionada ao da sua família e com outros contextos nos quais está presente um coletivo 
como, por exemplo, a Igreja, o trabalho, a escola, que são os grupos de convívio e de 
referência do sujeito. 
As diferentes formas de fazer farinha, de perceber a cultura material à sua volta nos 
remetem a uma história pessoal cheia de detalhes e experiências do indivíduo. Cada um com 
uma história de vida,cada um se inserindo nas histórias e nas práticas do grupo a partir das 
suas memórias particulares. Ao mesmo tempo, essas memórias são “herdadas”, como sugere 
Pollak (1992: 4), e vêm de um contexto compartilhado com outros sujeitos. A ligação entre o 
indivíduo e o coletivo é intensa e frequente, e pude perceber isso, principalmente, nos relatos 
sobre os diferentes entendimentos sobre a presença da “igaçaba” ou “botija” enterrada na roça 
da comunidade. O local onde ela apareceu é importante, mas o que parece ser crucial é a 
pessoa que a encontra, para quem a botija apareceu em sonho. A forma como me contaram 
que ela apareceu, como ela foi procurada por esta pessoa e os fenômenos associados ao ponto 
onde ela se encontrava como ruídos de passos e luzes fortes à noite, variam. 
A memória, neste sentido, é entendida como uma construção (POLLAK, 1992; BOSI, 
2004) que tem a ver com a percepção das pessoas sobre as histórias contadas, suas 
interpretações e experiências com a cultura material. Ulpiano Menezes (1998), em publicação 
intitulada “Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público” refere-se 
ao papel da cultura material nos processos de rememoração ainda sendo abordado pelos 
pesquisadores de forma tímida o que tende a ser ainda uma prática se tomarmos como 
importante a influência dos mesmos nas vidas das pessoas. A história do aparecimento da 
botija é um exemplo: mostra que as relações das pessoas com a cultura material são múltiplas 
e ricas, suscetíveis a novas interpretações e repassadas através da oralidade. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
16 
 
A Casa de Farinha enquanto cultura material possui suas representações. Seus 
materiais construtivos, como o telhado feito manualmente com a sobreposição de galhos com 
folhas longas envolvem também saberes específicos. A origem destes materiais de construção 
e o destino do produto da Casa de Farinha, bem como a circulação de coisas e pessoas, me 
remete à ideia de Gonçalves (2007) de que acompanhar o deslocamento dos materiais é 
entender a dinâmica social. Um dos objetivos dessa comunidade é reformar a Casa de Farinha, 
considerada “feia” por muitos; precisa ser reformado seu telhado e seu piso, principalmente. 
Dentre muitos outros, é patrimônio deste local. Como coloca Gosden (2005), devemos olhar a 
genealogia dos objetos e também as práticas que eles encorajam e permitem. Seguindo esta 
perspectiva, as pessoas e a cultura material estão entrelaçadas e são entendidas sempre uma 
em relação à outra. 
Enquanto figura na paisagem, possui destaque como um lugar importante 
economicamente falando, um lugar para ser mostrado aos que vêm de fora, um lugar de 
reuniões e um lugar de convívio diário. Para Thomas (1996), a existência humana implica em 
estar em algum lugar (ideia que o autor desenvolve a partir do pensamento de Heidegger); 
este autor discute paisagem, corpo e lugar na arqueologia. A percepção do espaço perpassa a 
experiência do corpo, a noção de distância, por exemplo, é orientada no mundo de acordo 
com a maneira que as pessoas entendem o corpo e o que faz parte dele varia de sociedade para 
sociedade. Falar de espaços e lugares implica também em refletir sobre a visualidade 
enquanto cultura material. Não se trata de uma casa de farinha qualquer, é um lugar com 
objetos que fazem sentido para aquelas pessoas, que contam sobre a sua história, que suscitam 
encontros e estimulam histórias contadas através da oralidade. A prensa foi feita na 
comunidade e substitui o tipiti, que somente uma pessoa sabe fazer e que vende, às vezes, 
para outras comunidades. O ato de descascar mandioca tem a ver com o de contar histórias; 
assim como os momentos de silêncio na casa de farinha direcionam as pessoas aos seus 
pensamentos e às suas lembranças pessoais. 
Os vestígios arqueológicos, como cultura material ativa, estão relacionados com a 
mandioca e objetificam atividades diárias das famílias como o plantio, a colheita e a 
convivência na casa de farinha. São diversos tipos de cultura material que criam memórias; os 
cacos agora também lembram a arqueóloga “pesquisadora”, que aparece ocasionalmente e 
que anda pela área tirando fotos. 
 
 
 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
17 
 
A oralidade remete a paisagens e a memórias criadas 
 
Ao pensar corpo e espaço e a constituição de paisagens, não podemos deixar de 
considerar a memória. O corpo enquanto veículo que, estando em um lugar (THOMAS, 1996), 
permite ao ser humano sentir, ver e mais tarde lembrar através da construção de uma imagem 
na mente de uma situação, de um lugar. Para Pollak (1992) esses “lugares da memória” estão 
ligados à lembrança. Esta imagem que vem à mente, criada pela pessoa que viveu uma 
experiência, pode ser também entendida como cultura material. 
Pensando a visualidade como fator importante para se entender a cultura material, 
gostaria de retomar outras experiências que tive em campo e que, refletindo agora, me 
instigou a pensar a paisagem e a imagem enquanto cultura material. Como visitei a 
comunidade em momentos diferentes do ano, na época da chuva e na época da seca, uma das 
pessoas com quem tive maior contato sempre brincou comigo apresentando o terreno como 
“limpo” na época da seca, pois a vegetação não cresce tanto, e “sujo” no inverno (época de 
chuva), fazendo com que as pessoas andem somente nas trilhas de uma casa para outra. No 
inverno, “tudo fica sujo, com mato”, e dá mais trabalho para as pessoas, que têm que “roçar” 
na volta das casas com maior frequência. São duas paisagens diferentes, e estas paisagens 
estão relacionadas a uma estética e ao próprio corpo que circula neste espaço. 
Além disso, nestes momentos diferentes, os objetos que compõe a paisagem variam, 
algumas coisas ficam visíveis e outras não, ou umas menos e outras mais. Na época da chuva, 
a superfície fica mais encoberta, mais difícil também para visualizar os fragmentos de 
cerâmica. Na época em que a vasilha ainda não havia sido escavada, a família proprietária do 
terreno ficava mais descansada na época de chuva, pois a área onde a vasilha se encontrava 
ficava mais ‘suja’ e, assim, chamava menos atenção e não corria tanto o risco de pessoas 
desavisadas irem mexer. 
Neste sentido, se pensarmos em patrimônio relacionado à ideia de herança – no 
sentido de cuidar, valorizar e transmitir – e construção, pois é um termo criado a partir do 
nosso olhar (JORGE, 2000: 125), o termo objetificação é um conceito interessante para se 
pensar os vestígios arqueológicos, os objetos ligados ao cotidiano da comunidade e a imagem 
de lugares. Estes, ao mesmo tempo, referem-se à história, à memória e à experiência social 
dos núcleos familiares que constituem a comunidade. Isso, por sua vez, indica a necessidade 
de problematizarmos o conceito de patrimônio arqueológico, que se torna mais amplo e que 
inclui as noções próprias da comunidade sobre o que é importante para eles. Neste sentido, a 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
18 
 
arqueologia colabora buscando a construção conjunta do conhecimento e do patrimônio dos 
lugares através de práticas de pesquisa participativas. 
Um lugar que apareceu durante as conversas com os moradores da comunidade de 
Cinco Chagas foi o “lugar dos antigos”, onde a primeira família ocupou a região, em uma área 
mais distante das margens do rio Matapi. Tive a oportunidade de visitar este local, onde uma 
das moradoras da comunidade me acompanhou com seu filho. Foi difícil identificar a trilha 
para chegar lá, segundo ela, apesar de ser muito perto das outras casas. Isso aconteceu porque 
o mato já havia tomado conta, o que sempre acontece em época de chuvas. Neste local não há 
roça. Aos meus olhos, ao visitar o local, vi uma mata com árvores frutíferas e terrenodisforme, e me perdi facilmente na orientação do espaço. 
Conforme caminhávamos no terreno, a moradora da comunidade procurava na 
paisagem atual os lugares da sua memória (POLLAK, 1992), sempre acompanhada de seu 
filho. Seguindo ela, tentei imaginar como poderia ter sido este lugar, como era a casa, como 
era a roça, como era o lugar de torrar farinha... De repente ela chama atenção para uma 
bacabeira9, e em um ponto inclinado do terreno encontra na sua lembrança a antiga casa. A 
partir deste momento ela segue fazendo a leitura daquela paisagem através de uma volta no 
tempo (considerando esta lembrança também como uma construção, como chama a atenção 
ROCHA e ECKERT, 2000), às suas memórias e, ao mesmo tempo em que nos conta onde 
costumava ficar cada coisa, relata para seu filho como era o seu bisavô, e de como ela 
costumava cuidar dele. Identificamos o antigo poço, encontramos alguns restos da antiga 
estrutura de madeira da casa e ela chamou a atenção à quantidade de coisas que ainda 
deveriam estar aparecendo ali naquele lugar, se o mato não tivesse avançado. Ao mesmo 
tempo em que se lembra dos momentos, explica como era a vida naquela época, e se 
emociona retomando sentimentos pessoais; o filho, quieto, escuta pacientemente. Já 
determinados a voltar para casa, nos deparamos com os restos do antigo forno feito com latas 
emendadas, onde era torrado o café e a farinha. Ela pede que eu tire uma foto do filho 
segurando este objeto, orgulhosa de mostrar para ele como vivia seu bisavô. Terminamos a 
visita colhendo uma jaca madura, que seria apreciada juntamente com as lembranças do lugar. 
Miller (1987) coloca que existe uma relação próxima entre a materialidade do objeto 
e a materialidade do espaço, sendo que os objetos podem se referir a relações sociais e, neste 
caso, também ao passado. Com certeza a imagem que eu via e que ela via eram diferentes, a 
dela uma paisagem da memória, e a minha uma tentativa de transformar o que eu estava 
 
9 Palmeira com fruto a partir do qual é tirado vinho e que é muito consumido pelas comunidades ribeirinhas no 
Amapá e na Amazônia. 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
19 
 
vendo e o que estava sendo narrado em uma cena à minha frente. Conforme caminhávamos 
neste espaço, as árvores e os vestígios iam puxando a lembrança de situações do passado, iam 
retomando a história da comunidade, iam ressignificando a paisagem. Entendendo a memória 
como “espaço de construção de conhecimento” (ECKERT e ROCHA, 2000: 2), é ver o 
passado não “(...) necessariamente antagônico ao presente, ao contrário, eles superpõem-se 
ritmicamente e, num processo ondulatório, ao ponto da sua consolidação, deixam a 
descoberto a matéria de suas lembranças” (ROCHA e ECKERT, 2000: 13). 
A partir das experiências que vivi até agora em Cinco Chagas do Matapi, percebi a 
possibilidade da história ser contada através de narrativas orais tendo os lugares, os momentos 
e os objetos papéis de contextos que desencadeiam a memória. Em especial, uma vez que 
pesquiso a relação dos vestígios arqueológicos com as pessoas nesta comunidade, a cultura 
material evoca e cria memória, imagens, momentos passados, sentimentos. As coisas que nos 
cercam possuem a capacidade de sintetizar uma história através do seu poder de evocar a 
memória e instigar a narrativa. 
 
Considerações finais 
 
Uma pesquisa que leve em consideração abordagens metodológicas como a 
participação, a dialogia e a problematização sobre a relação de alteridade são perspectivas do 
campo da antropologia que podem auxiliar o arqueólogo a desenvolver uma prática de 
pesquisa mais reflexiva e ética (SMITH, 2004; SHANKS e HODDER, 1998). Além disso, a 
cultura material, enquanto mediadora de relações sociais, apresenta um potencial enorme 
enquanto abordagem teórica e metodológica para problematizar a alteridade. 
Os vestígios arqueológicos, enquanto parte do patrimônio de Cinco Chagas, estão 
relacionados com a sua luta pelo reconhecimento enquanto comunidade quilombola. As 
narrativas, através de imagens da memória das famílias, estão vinculadas a um sentimento de 
pertencimento e associam as experiências e identidades sociais manifestas a um território 
(MARIN e CASTRO, 1999: 76). Imbricadas nas demandas por melhorias sociais e 
reconhecimento frente ao Estado estão as relações estabelecidas pelas pessoas com a história 
particular das comunidades e com a materialidade. 
Os arqueólogos, em suas pesquisas de campo, têm muito a aprender com a oralidade, 
que mostra alguns sentidos da cultura material; esta, por sua vez, diz respeito às pessoas hoje, 
e não só a um passado distante. Ainda, os artefatos e vestígios, associados a outros objetos e 
imagens, remetem a uma identidade própria das pessoas do local, que tem a ver com os seus 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
20 
 
saberes e fazeres, suas casas, suas histórias e suas visões de mundo. Desta forma, não é mais 
possível ir a campo e não escutar as pessoas, e não deixar a oralidade nos levar para diferentes 
lugares através das imagens e nos mostrar diferentes perspectivas da cultura material. 
 
Referências bibliográficas 
 
ALMEIDA, Alfredo W. B. de. “Terras tradicionalmente ocupadas: processos de 
territorialização, movimentos sociais e uso comum” In: Revista Brasileira de Estudos 
Urbanos e Regionais, v.6, n. 1, p. 9-32, 2004. 
 
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras, 
2004. 
 
BRANDÃO, C. R. “Reflexões sobre como fazer trabalho de campo” In: Sociedade e 
Cultura,v.10 n. 1, p. 11-27, 2007. 
 
CSIKSENTNIHALYI, Mihaly. “Why we need things”. In: LUBAR, Steven e KINGERY, 
David. W. (eds.) History from things. Essays on material culture. p. 20-29. Washington and 
London: Smithsonian Institution Press, 1993. 
 
ECKERT, Cornelia.; ROCHA, Ana. L. “Os jogos da memória” In: Iluminuras, Porto Alegre, 
v. 1, n. 2, p. 2-15, 2000. Disponível online em: 
http://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/9108. 
 
FABIAN, J. Time and the other. How anthropology makes its object. [1983]. New York: 
Columbia Univ. Press, 2002. 
 
GELL, Alfred. “The Technology of Enchantment and the Enchantment of Technology”. In: 
COOTE, Jeremy e SHELTON, Anthony. (eds.) Anthropology, Art and Aesthetics. p. 40-63. 
Oxford: Clarendon Press, 1992. 
 
GLASSIE, Henry. Material culture. Indianapolis: Indiana University Press, 1999. 
 
GONÇALVES, Reginaldo. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de 
Janeiro: Editora Garamond, 2007. 
 
GOSDEN, Chris. “What do objects want?” In: Journal of Archaeological Method and Theory, 
v. 12, n. 3, p. 193-211, 2005. 
 
JACQUES, Clarisse C. Relatório de Atividades do Projeto: Resgate Emergencial 
Arqueológico na Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi, AP. IPHAN, agosto 
de 2011, datiloscrito. 
 
JORGE, V. O. “Por uma concepção abrangente e dinâmica do patrimônio arqueológico: 
algumas ideias para um debate” In: Arqueologia, património e cultura. Lisboa: Instituto 
Piaget, 2000. 
 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
21 
 
LIMA, Antónia P. de; SARRÓ, Ramon. “Introdução. Já dizia Malinowski: sobre as condições 
da possibilidade da produção etnográfica” In: LIMA, Antónia Pedroso de; SARRÓ, Ramon 
(orgs.). Terrenos Metropolitanos-ensaios sobre produção etnográfica. Lisboa: ICS, 2006. 
 
MARIN, Rosa. A.; CASTRO Edna. R. “Mobilização Política de Comunidades Negras Rurais: 
Domínios de um conhecimento praxiológico” In: Novos Cadernos NAEA, v.2, n. 2, dezembro, 
1999. 
 
MEGGERS, B. J.; EVANS, C. “Archaeological Investigations at the Mouth of the Amazon. 
Smithsonian Institution” In: Bureau of American Ethnology, Bulletin 167. Washington: 
Government Printing Office, 1957. 
 
MENEZES, Ulpiano B. “Memória e cultura material:documentos pessoais no espaço 
público” In: Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 89-104, 1998. 
 
MILLER, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford: Blackwell, 1987. 
 
POLLAK, Michael. “Memória e identidade social” In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 
5, n. 10, p. 200-212, 1992. 
 
ROCHA, Ana. L.; ECKERT, Cornelia. “Imagens do tempo nos meandros da memória: por 
uma etnografia da duração” In: Iluminuras, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 2-14, 2000. Disponível 
online em: http://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/8928/5157. 
 
SHANKS, Michael.; HODDER, Ian. “Processual, postprocessual and interpretative 
archaeologies” In: WITHLEY, D (ed.). Reader in Archaeological Theory: post-processual 
and cognitive approaches. p. 69-95. London: Routledge, 1998. 
 
SMITH, Linda. “Archaeolological theory and ‘the Politics of the Past’” In: Archaeological 
Theory and the politics of Cultural Heritage. London: Routledge, 2004. 
 
SPENCE, Charles. “Making sense of touch: a multisensory approach to the perception of 
objects” In: PYE, Elizabeth (ed.) Touch: handling objects in museum and heritage contexts. 
Walnut Creek: Left Coast Press, 2007. 
THOMAS, Julien. Time, culture and identity. An interpretative archaeology. London & New 
York: Routledge, 1996. 
 
TILLEY, Christopher. “Objetification” In: TILLEY, Christopher; KEANE, Webb; 
KÜCHLER, Susanne; ROWLANDS, Mike e SPYER, Patricia. (eds) Handbook of material 
culture. New York: Sage, 2008. 
 
 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
22 
 
ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS 
ARQUEOLÓGICOS 
 
Studies on the imaginary in the atmosphere of Quilombo archaeological 
 
Cláudio Baptista Carle1 
 
 
RESUMO 
 
Estudo sobre os diversos imaginários nas pesquisas de quilombos arqueológicos brasileiros, 
realizadas no Rio Grande do Sul, nos últimos anos, considerando seus aspectos colaborativos 
entre ciências e cientistas. 
 
Palavras-chave: Arqueologia, quilombos, imaginário 
 
ABSTRACT 
 
Study of the various figures in the Brazilian archaeological research Quilombo, held in Rio 
Grande do Sul, in recent years, considering its collaborative aspects of science and scientists. 
 
Keywords: Archaeology, quilombos, imaginary 
 
RESUMEN 
 
Investigación sobre los diversos imaginarios en los estudios arqueológicos en “quilombos” 
(sitios cimarrones) brasileños, celebradas en Rio Grande do Sul, en los últimos años, teniendo 
en cuenta sus aspectos de colaboración de la ciencia y de los científicos. 
 
Palabras clave: arqueología, Quilombo, imaginario 
 
Introdução 
 
Gitibá Faustino (1991: 102) diz que o Brasil é o segundo país do mundo em 
população negra, sendo que o primeiro seria a Nigéria; me pergunto onde isso influi na 
arqueologia? A resposta está na imagem (DURAND, 1997) arqueológica sobre vestígios de 
afro-americanos. A atmosfera, o imaginário acadêmico, é de colaboração entre pesquisadores 
envolvidos na investigação do tema. “O imaginário é determinado pela ideia de fazer parte de 
algo” (SILVA, 2012). É sobre imaginário, esta atmosfera ou aura que o texto discorre. 
 
1 LAMINA e PPGA (ICH) – GEPIEM (FAE) – UFPel , Doutor em História- Area de Concentração em 
Arqueologia (PUCRS). cbcarle@yahoo.com.br 
 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
23 
 
Segui ideias convergentes que implicam em uma ação colaborativa. Aura 
instauradora (DURAND, 1997: 19) da arqueologia sobre afro-americanos é inteira, torna-se 
um imperialismo de imagens na ambiência social, “fantasias adversas”, “recalcamento” de 
regimes de imagens fixadas em um “momento histórico” (DURAND, 1997: 390). O 
imaginário revela as ações e as formas de entender o ser no mundo. A aura, imaginário, é 
instauradora das formas de pensar, sentir e agir. Gilbert Durand, no universo simbólico dos 
textos, neste caso sobre afro-americanos no sul do Brasil, indica que há uma troca incessante 
entre as pulsões subjetivas (biopsíquicas) e as intimações objetivas (cósmico-sócio-culturais) 
que se processa no trajeto antropológico. Que há um dinamismo equilibrador entre 
pensadores, as grandes imagens tradicionais e as míticas. Mitos que penetram nas orientações 
mais profundas (DURAND, 1997: 13) da sociedade científica. Há uma instauração do pensar 
sobre os afro-americanos. 
Esperava encontrar uma construção colaborativa, imaginada e apresentada nos textos 
de forma utópica, mas verifiquei ideias individuais de cunho político sobre os vestígios de 
afro-americanos. É uma visão recalcada. 
 
Nenhum lugar é deixado à «Imaginação criadora», ao Imaginário poético. É talvez 
daí que data a catástrofe que separou o Oriente e o Ocidente em nível do 
pensamento, o pensamento visionário e o pensamento racional, desde Guillaume 
d’Auvergne até Descartes, passando por São Tomás de Aquino. O imaginário torna-
se aqui no Ocidente cada vez mais recalcado na insignificação ornamental, estética, 
e, na véspera do século romântico, o divórcio está consumido. (DURAND, 2004: 
10) 
 
A visão de recalcamento ocidental (sistema imaginal instalado), expresso nas 
ciências humanas, é fixada pela imagem científica redutora (cartesiana) que se desenvolve no 
Brasil. Estamos então frente a um recalcamento da ciência ocidental, também na arqueologia 
brasileira. Investigo este recalcamento nos estudos sobre quilombos e vestígios de afro-
americanos. 
“O imaginário é a marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do 
vivido. Como reservatório, o imaginário é essa impressão digital do ser no mundo” (SILVA, 
2012). Sofri, como arqueólogo, este processo de impregnação simbólica. Esta marca 
simbólica aparece desde o início do século; percebo-a a partir das discussões travadas com 
Klaus Hilbert, Arno Kern e Moacyr Flores. Surge então este texto, no limiar entre o 
cartesianismo e os estudos sobre o imaginário. As “práticas de fronteira são marcadas não 
somente por relações de 'boa vizinhança', mas também pelo litígio” (GOMES, 2000: 7). O 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
24 
 
litígio em foco é a possibilidade de compreender a aura que se estabeleceu nos estudos sobre 
os afro-americanos no RS. 
Na arqueologia brasileira, vemos que a reprodução de velhos modelos, sem uma 
discussão teórica maior, ainda é persistente. “Uma ciência atinge sua maturidade quando ela 
conhece seus limites” (KERN, 2002: 116). Não há estes limites e os trabalhos são 
individualistas, feitos por um cientista que quer se entender múltiplo e que pretende dominar 
tudo. Um imaginário de regime diurno e com esquema postural heróico (DURAND, 1997: 
115-121), um super-homem das ciências. 
Sigfried Laet coloca o problema da arqueologia na origem, na vinculação com outras 
disciplinas, perdendo o seu veio condutor, expressando desejos de estudos, na maioria das 
vezes, individuais, da História da Arte, das Ciências Naturais e da História propriamente dita, 
perdendo sua constituição própria (LAET, 1959: 14-24). 
Para Schmitz (1982: 53) a Arqueologia no Brasil procura reconstruir o modo de vida 
- a tecnologia, a cultura, a sociedade - de populações passadas ou etapas das atuais populações 
para as quais outras documentações são nulas ou ineficientes, não possuindo problemas, nem 
teorias exclusivas, partilhando estas com outras ciências. É uma síntese, uma especialização 
destacada de outras ciências, mas a arqueologia brasileira, na sua aura (imaginário), se pensa 
total. “O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. O espírito 
positivista não pode aceitar como vetor de ação algo tão impalpável, apresentado como 
atmosfera, admitido como aura” (SILVA, 2012). 
O imaginário é uma sensação que é vivida e não uma ordem de coisas mensuráveis 
que podem ser quantificadas. Imbuído também por esta sensação, busco entendera atmosfera 
do estudo arqueológico sobre áreas com vestígios de afro-americanos. 
 
Atmosfera para compreender os quilombos arqueológicos 
 
Há um reservatório, um motor que agrega imagens, sentimentos, lembranças, 
experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida individual e grupal que 
sedimentam um modo de ver em objetos, como espaços, objetos móveis, estruturas. Ali estão 
registradas as formas de ser, de agir, de sentir e de pensar o futuro ao se estar no mundo. O 
imaginário “emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento 
propulsor” e como forma nas ações humanas que constituem os sítios que ocupa (SILVA, 
2012; DURAND, 2004). 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
25 
 
Estudar sítios arqueológicos históricos tem sido estudar a história dos seus 
formadores (LIMA, 1985: 88). Esta é a atmosfera da arqueologia histórica no Brasil. “O 
cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas 
de objetividade e de neutralidade. A ciência também tem a sua aura. O cientista também se 
move numa atmosfera” (SILVA, 2012). A atmosfera da “história do negro” e da “arqueologia 
da escravidão” (como se pensa o estudo sobre afro-americanos) marca os estudos. Assim, 
entender a atmosfera da história é entender o imaginário que envolve os estudos 
arqueológicos até o presente. 
O estudo sobre os afro-americanos é marcado pelo “branqueamento”, constituindo 
uma atmosfera de segregação racial historiográfica no país (SANTOS, 1991: 81-82), 
refletindo nos sentidos comuns (MAFFESOLI, 1994) da população diretamente envolvida e 
em seus movimentos organizados. Efeito que marca as posições, os ideologemas, que são a 
materialização de valores e de funções ideológicas de um determinado meio social, sendo 
psíquico e social; por consequência, ideológico, constituindo a materialidade da “ideologia” 
no cotidiano da vida social (DURAND, 1997: 118). 
Na historiografia refletida na arqueologia (LIMA, 1985) aparecem estes ideologemas. 
Escravos realizavam os assassinatos dos proprietários (MOREIRA, 1995), Luis Gama – filho 
de escravo rebelde – afirmava “que o escravo que matava o seu senhor praticava um ato de 
legítima defesa” (MOURA, 1987: 80). A confusão ideológica, ideologemas racistas e a 
atmosfera científica se conflitam. O Movimento Negro, na região meridional do RS, ao 
entender que o cientista trata os escravos como agressivos, inquiriu historiadores que 
escreveram sobre isso, a exemplo da obra de Roger da Silva intitulada Muzungas: Consumo e 
manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul (1828-1888) (Pelotas: 
EDUCAT, 2001) que foi levada à investigação como uma obra racista, por dizer que os afro-
americanos envenenavam seus senhores no período da escravidão. Neste caso, o historiador-
autor é afro-americano e seu texto traz os registros históricos e não promove racismo de forma 
alguma. Insurreições e revoltas também aparecem como formas de oposição à escravidão 
(SANTOS, 1991: 79; MAESTRI, 1979: 53 e 94; GOMES et al, 1995: 28). Percebe-se 
contradição na escrita histórica, aura dos estudos arqueológicos (FUNARI, 1996), em relação 
à percepção dos envolvidos. 
Mariano Santos – ex-escravo, afirmava que os escravos se suicidavam, apenas 
esperando a morte de sede, de fome ou de enfermidade, “o dia que Deus chamava” 
(MAESTRI, 1988: 31). A morte, na atmosfera historiográfica, é colocada como perda 
mercantil, de força produtiva, que podia assumir proporções endêmicas (MAESTRI, 1979: 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
26 
 
47). A aura econômica amplia a atmosfera das pesquisas. Na urbanização, fugitivos passavam 
por livres “de cor”, procuravam a proteção de um liberto ou de um senhor de escravos, 
“acoutando-se”, fato punível por lei (MAESTRI, 1979). Sant-Hilaire (apud MAESTRI, 1979: 
80-89) notava que os mais valentes soldados de Artigas eram escravos fugitivos. Presos, os 
fujões “continuavam causando prejuízos, pois pagos os captores” (desde 1574) as fugas 
continuavam, aumentando as despesas com os que permaneciam e com os que eram caçados 
(MAESTRI, 1984: 73-74). 
A fuga é uma constante. “A maneira mais simples, segura e rápida de um cativo 
libertar-se era a fuga” (MAESTRI, 1984: 73). Aferida simplicidade é reveladora de uma 
naturalidade na fuga que não expressa o fato. No Jornal O Mensageiro, Farroupilha que 
pregava a república e a futura libertação de escravos, nas suas 37 tiragens, em 11 anúncios 
condena a fuga de escravos. As fugas podiam posteriormente levar à formação de 
“mocambos” e “quilombos” (SANTOS, 1991: 75; GOMES et al, 1995: 33). As Irmandades, 
fenômenos urbanos ligados aos “terreiros” e “batuques”, frequentados por escravos, libertos e 
livres pobres (MAESTRI, 1984: 54), eram importantes no apoio às fugas (GOMES et al, 
1995: 29). A imagem criada por estes estudos é econômica, uma atmosfera econômica para a 
escravidão e para a fuga. 
As fugas são evidenciadas na historiografia no estudo sobre quilombos. No RS, 
surgem diversos pequenos quilombos. Quilombos estes que vão além da definição inicial: 
“toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não 
tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Rei de Portugal ao Conselho 
Ultramarino, datada de 2 de dezembro de 1740, apud MOURA, 1987: 16). Formam grupos 
armados, com lideranças na fuga e que se perpetuavam. Segmentos pobres ou perseguidos 
convergiam aos quilombos. 
O texto arqueológico, dos lugares (sítios e paisagem) e dos objetos, cria um sentido, 
uma atmosfera, para compreender os quilombolas. Atmosfera não respeita as ideias criadas 
pelos próprios grupos a partir de suas realidades para gerar os lugares. A arqueologia segue 
este caminho, guiado por seu “trajeto” (DURAND, 1997) enquanto ciência. 
A arqueologia de afro-americanos no Brasil está intimamente ligada à História e à 
história da ciência, gerando sua atmosfera. Marcando este “trajeto”, Gustaf Oscar Montelius 
(1843-1921) cria formas de classificação, para coleções estudadas (TRIGGER, 1992: 150), 
elege variações de forma e decoração, que foram usadas na seriação dos difusionistas no 
Brasil. Cultura (da Agricultura, um único tipo de cultivo), como organizações humanas 
(1780), conceito que indica que uma sociedade obedece a padrões definidos, identificáveis, 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
27 
 
como no plantio, visíveis nos artefatos e nos níveis de estratificação diferente de um sítio. 
Olof Rygh (1866) interpreta pontas de flechas e lanças como “cultura y de un pueblo” da 
Idade da Pedra (1871), “dos culturas de la Edad de la Piedra y dos pueblos de la Edad de la 
Piedra” (MEINANDER apud TRIGGER, 1992: 157). 
A cultura aplicada nas ciências sociais e aos artefatos arqueológicos cria separações 
culturais por métodos classificatórios e comparativos, nas aproximações e nas diferenças de 
produção de bens. Gustaf Kossinna (1858-1931), estudando as “tribus” formadoras da “raça 
germânica” de origem “indo-européia”, em detrimento de outras, divide os vestígios 
arqueológicos por raças e identifica os povos criativos em contraposição aos povos passivos 
(TRIGGER, 1992: 159-160). Kossinna busca comprovar a superioridade racial alemã que na 
dispersão sofria diminuição de suas capacidades criativas. Os amadores, na arqueologia 
brasileira (cf. André PROUS, 1991), com certeza entraram em contato com os vestígios de 
afro-americanos, mas não os reconhecem. No Brasil, quilombos foram classificados como 
áreas de cultura européia ou como áreas de povos não evoluídos, primitivos. O 
“Branqueamento” criado por arqueólogos amadores se perpetua. A história e a arqueologia, 
racistas, mascararam a cultura dos afro-americanos maculando-a (SANTOS, 1991: 141). Aatmosfera criada por Jonh Myres (1911) e Arthur Evans (1869), onde a cultura material dos 
conquistados (passivos) era adotada pelos conquistadores (ativos), se perpetua (TRIGGER, 
1992: 162). “A sociedade escravista almejava um cativo que se autoconcebesse como 
propriedade de outrem ou um negro neutralizado pelo respeito e medo ao amo” (MAESTRI, 
1984: 70). A atmosfera onde o afro é inferior, já na arqueologia histórica, o percebe como 
escravo, ou seja, na sua condição sócio-econômica imposta e não como ente humano. A 
“arqueologia da escravidão” é um exemplo dessa atmosfera. 
A atmosfera modelada pelos textos do PRONAPA toma o lugar dos amadores, 
fundamentada na ideia de que as culturas tinham um pólo inicial de origem e deste é que se 
desenvolviam para o resto do mundo (TRIGGER, 1992: 145). A única área de origem 
possível era colocada no Velho Mundo; dispersos desta por migração ou por difusão, criam 
blocos ou áreas culturais similares e adjacentes. Franz Boas (1858-1942), baseado em 
Fredrich Ratzel (1844-1901), incorpora a difusão à capacidade de invenção local. Invenções 
simples, com única origem, gerando a difusão e as alterações regionais, conforme sua 
dispersão a partir do centro de origem. A aura de que os africanos vieram pela mão dos 
europeus sem cultura própria e alterada pela ação daquela cultura superior (TRIGGER, 1992: 
159). 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
28 
 
Nos Estados Unidos, os estudos etnográficos das cronologias das culturas, de Kidder 
(1885-1963), dos métodos taxionômicos de classificação (tipificações são feitas e 
ramificações encontradas), alicerçadas por esquemas dendríticos de interpretação, com as 
sequências etnográficas, as tipologias e as seriações, formulam, ao final, tradições 
arqueológicas e culturas (TRIGGER, 1992: 178-183). No Brasil, a Arqueologia Histórico-
Cultural, do Smithsonian Instituition (Betty Meggers e Cliford Evans), e a arqueologia 
amadora brasileira sofrem a influência de um modelo que mescla ideias de Childe (1961) e 
Montelius (TRIGGER, 1992: 177). Há uma atmosfera de cientificidade na arqueologia. 
Meggers e Evans propõem “horizontalidades” e “verticalidades” de maneira 
difusionista de expansão cultural (1958). A metodologia vertical de um sítio, estratigráfica, 
classificatória e a seriação do material, intercaladas com as relações comerciais e a datação 
absoluta realizavam entre sítios o sentido de fases dentro de tradições, fruto de pequenas 
escavações nos sítios. Este modelo determina-se pelos objetos, perdendo a complexidade do 
todo. 
Objetos de afro-americanos viram fases, a exemplo da fase Monjolo (JACOBUS, 
1996), da Tradição Neo-brasileira do PRONAPA (1965-1970). Eurico Miller, em Santo 
Antônio da Patrulha (RS), no vale do Rio dos Sinos, investigava níveis estratigráficos como 
níveis cronológicos. Vale-se de características diagnósticas típicas para afirmar ocupações, 
tais como a cerâmica, a habitação, a iconografia, entre outras. As transformações culturais 
derivam de intervenção externas: contatos culturais, comércio e migrações. A informação 
contida no artefato dá segurança ao arqueólogo. Há fragilidade científica na orientação 
indutiva, examinando os materiais empíricos recolhidos, ordenando-os, classificando-os, 
eventualmente comparando-os, realizando generalizações subjetivas (TRIGGER, 1992: 195). 
Ford (1938) valora os tipos dentro das culturas, correlaciona às diferenças temporais 
e especiais. A técnica de Mortimer Wheeler (1890-1976) é mais usada para o campo na 
escavação e no registro tridimensional. David Clarke (1968) cria o tratamento sistemático à 
tipologia arqueológica em todos os níveis (TRIGGER, 1992: 192-196). Na mesma época, 
vemos Mortimer Wheeler (1961: 27) criticar escavações que não deram importância às 
estratigrafias, buscando apenas estruturas arquitetônicas, o que se atmosfera na arqueologia 
histórica preocupada em comprovar um pensamento modelar em detrimento do universo 
subjetivo dos humanos envolvidos nestes sítios. Estas técnicas tornam-se fundamentais. “Es 
acientífico excavar sin plan ni problemas previos a cuya resolución puedan contribuir los 
dados, pero si se supiera lo que hay en el suelo antes de la excavación no habría razón para 
excavar” (WATSON; LEBLANC; & REDMAN, 1974: 34). 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
29 
 
O Histórico-Culturalismo manteve-se até hoje sem renovação de técnicas nem 
implementação completa de seus pressupostos. Nas inúmeras conversas com Klaus Hilbert, 
entendi que a análise baseada em fósseis diretores, sistemas classificatórios e seriações geram 
uma redução interpretativa. Reduções parciais, evolucionismos, funcionalismos, 
estruturalismos e outros criaram a aura arqueológica desta época (final da segunda guerra até 
os anos 80, no Brasil). Hilbert diz que a descoberta do C14 rompe com a negação das 
antiguidades e dos períodos pré-cerâmicos. Isto justificava uma colocação de José Joaquim 
Justiniano Proenza Brochado (informação pessoal, em dezembro de 1992, Curso de 
Mestrado) de que Betty Meggers não estudava o lítico e preocupava-se muito mais com a 
cerâmica. Hilbert (2006) explica esta imagem por um “tripé” - objeto, tempo e espaço - 
identificando fases e tradições, fórmulas fechadas. 
A superioridade cultural, a assimilação, o abandono total da cultura, a vantagem de 
uma sobre as outras dava aos quilombos os aspectos de organização social, de produção de 
bens superados em sua origem africana pela superioridade da cultura européia. Quando 
trabalhei pela primeira vez com esta ideia, achava ser uma mera hipótese, mas não, isso é um 
pensamento que vigora ainda hoje no meio acadêmico. Escutei de uma antropóloga, que há 
anos trabalha com quilombos: “não devemos africanizar os quilombos”; logo depois indicou 
sua “origem italiana”. Ela falava da aculturação dos quilombos. “Por mais que deseje, o 
cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas 
de objetividade e de neutralidade” (SILVA, 2012). A fala desta antropóloga é a atmosfera da 
cultura europeia como superior. 
Repetidas vezes, vimos na história e seu reflexo na arqueologia o que nos escreve 
Joseph Hörmeyer (1986: 78), em 1850, preparando a propaganda para a entrada de alemães: 
“certo é que um escravo é castigado também aqui, mas assim como um pai castiga seu filho 
renitente”. Cristina Nery e Gilian Lopes (1988: 534-535) refutam a ideia de castigos brandos, 
pois nos escravos domésticos (1860-1880), cujas exigências eram menores, a taxa de aleijados 
e doentes era grande. A ideia de castigos sugere que existia esta necessidade e, portanto, 
explicita a imagem de inferioridade de época e atual, que se mantém entre pesquisadores e 
reflete no senso comum. 
A escravidão, para alguns, impediu o desenvolvimento de eficientes formas 
produtivas, mantendo a sociedade em uma estrutura fechada, pois “sendo o escravo a base 
fundamental da estrutura, qualquer mudança estrutural, partindo da cúpula do sistema, previa 
o fim da condição de ser escravo como último ato, ou seja, o último recurso” (SANTOS, 
1991: 72). Louis Conty (apud MAESTRI, 1984: 66) acredita que a charqueada gaúcha 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
30 
 
produziu menos que a uruguaia e a argentina, pois usava escravos em vez de assalariados. É 
evidente o eurocentrismo na história, refletindo-se na arqueologia. 
Ocorre uma renovação na aura, com o marxismo na arqueologia, por ilustrar as lutas 
sociais e evidenciar a ação dos campesinos e trabalhadores. As ideias nacionalistas e 
evolucionistas agregam-se ao método de Mortimer Wheeler, dando base à arqueologia 
marxista na América Latina (TRIGGER, 1992: 170-172). A aura eurocêntrica está mantida. 
É visível no universo antropológico de Darcy Ribeiro, no“O Processo Civilizatório” 
(1968), cujo prólogo é de Betty J. Meggers (RIBEIRO, 2001: 15), líder do PRONAPA. 
Meggers enfatizava que: “o mundo atravessa hoje um estado de sublevação. Guerras, 
rebeliões, golpes, guerrilhas, greves e outras manifestações de tensão comparecem 
diariamente nos jornais”. Escreve que nos Estados Unidos estavam enfrentando “conflitos dos 
guetos negros”, os quais “estão se tornando tão inevitáveis quanto os dias quentes de verão e 
agora ameaçam destruir porções apreciáveis de nossas principais cidades”. Indica já esta 
sublevação negra como um empecilho ao bom desenvolvimento. “Os conflitos raciais 
explodem por todos os lados. As enormes diferenças no acesso às vantagens econômicas e 
educativas não apenas criam problemas específicos, como difundem seus efeitos dilacerados 
através de toda a ordem social” (RIBEIRO, 2001: 15). Há uma dubiedade neste discurso, pois 
ao evocar o fim dos conflitos, explica-os pelo meio em que os afro-americanos vivem. Uma 
atmosfera típica das explicações marxistas na antropologia e na arqueologia brasileira. 
 
Publiquei este livro com muito medo. (...) Meu medo devia ter aumentado quando 
um conhecido intelectual marxista, ledor de importante editora, deu um parecer 
arrasador sobre O Processo Civilizatório. (...) Mas surgiram vozes de alento (...) 
Entre eles, a mais competente arqueóloga que conheço: Betty Meggers (Prefácio à 
quarta edição venezuelana, RIBEIRO, 2001: 23). 
 
A imagem marxista invadiu a historiografia; há exemplo das obras de Fernando 
Henrique Cardoso (1962) e Jacob Gorender (1980), tendo como um dos principais seguidores 
no RS o historiador Mário Maestri. Basendo-se nesses, considerava o escravo como regulador 
social, pois quanto mais longe da condição de escravo um cidadão se encontrava, mais alto 
estaria na escala social. Era regulador de propriedade e a propriedade teria valor na cidadania 
de época; acredita que estes senhores não podiam imaginar sua vida sem seus escravos, sem 
seu trabalho. Identifica, segundo suas pesquisas, inúmeros casos de escravos valerem mais 
que uma propriedade, funcionando também como moeda internacional-comercial (MAESTRI, 
1984: 25) e como indexador da economia interna (SANTOS, 1991: 71-72). 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
31 
 
Gilbert Durand (2004: 15) diz que “não nos habituaram a ler (...) através de um 
contexto de remitologização”. A atmosfera do “herdeiro glorioso das Luzes” é que guia este 
momento da ciência, tanto no positivismo como no materialismo 
 
Pelo menos não são nossas teorias eruditas das ciências sociais do século XIX que 
procuraram desmitificar nossa quietude progressista! Entretanto... Entretanto Saint 
Simon, Auguste Comte, principalmente, querem fundar, e fundam (no Rio de 
Janeiro, esta instituição ainda existe...), uma religião nova com sua liturgia, seu 
temporal, e mesmo seu santoral! E, no entanto... Sabe-se lá por que Karl Marx 
deixou crescer uma barba tão bonita, a mais bela barba da história moderna? 
Simplesmente pela sua admiração por um busto helenístico de Júpiter (o qual ele 
sempre guardou, em Londres, a forma na ante-sala do seu escritório), ele mesmo se 
sonhando como sendo o Olimpiano fundador dos novos tempos. Teogonia é o 
primeiro modelo de um certo progressismo: após a idade dos Titãs, após o reino de 
Cronos, de repente advém a idade das Luzes olimpianas, a idade da ordem 
jupiteriana... É exatamente com este Zeus do Olimpo que Karl Marx quis 
conscientemente, muito conscientemente, parecer... Então, clima estranho este do 
século XIX, aonde o progressismo vai em direção do avanço tecnológico triunfante 
até nossa própria época, mas onde os construtores de ideologias totalmente míticas 
(no sentido bem pejorativo como entendiam os positivismos, quer dizer 
inverificáveis, utópicas, fantasmáticas...) assombram a ascetização racionalista. 
(DURAND, 2004: 15) 
 
A mítica higienizante do materialismo onde a mão-de-obra afro-americana ocupou 
todas as instâncias da produção no RS, africanos/escravos como uma abstração. 
Homogeinização de diferentes grupos linguísticos, que divididos em dialetos e tribos não 
formam uma unidade, impedidos de permanecer reunidos (SANTOS, 1991: 75). 
Homogeinização como classe ou cultura, uma mítica positivista/materialista. Os escravos do 
Brasil meridional foram utilizados no campo, mas em concentração nas charqueadas. Os 
escravos eram então estenuados por uma jornada de trabalho de 16 horas diárias, apanhando e 
sendo muitas vezes embebedados para continuar seu trabalho, parando pelo esgotamento ou 
pela enfermidade (MAESTRI, 1984: 46). A carne salgada barateava o antigo transporte do 
gado vivo, a produção intensa, competitiva com as saladeiras argentinas e uruguaias que, 
depois de 1825, passaram a usar assalariados (CORSETTI, 1985: 91). 
Os sítios de afro-americanos nesta mítica mantêm o “modo de produção” ou um 
“modelo de subsistência” no “modo de produção capitalista” implementado, relegando ao 
universo materialista a mítica dos quilombos. A atmosfera em que há a modelação marxista, 
entendendo o capital industrial como motor da mudança, cria um apelo às relações de poder 
mecanicamente. O viajante Nicolau Dreys (apud MAESTRI, 1979: 42) considerou a 
charqueada um estabelecimento penitenciário. No espaço urbano, esta “classe” teria melhorias 
da vida; e no campo e charqueadas, os escravos estavam mais angustiados (MAESTRI, 1990: 
697-698; MAESTRI, 1984: 63). 
Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. 
 
32 
 
Afirma-se que o escravo na cidade se protege entre os seus, os escravos de ganho 
conquistam a liberdade pela compra de alforrias (MAESTRI, 1990: 699-701-703-705; ISCM, 
1994: 51). A circulação livre, jogos, liberdades, eram punidos severamente (MAESTRI, 1990: 
699-700) subverte a imagem de classes diferentes entre os escravos ou mesmo do escravo 
como classe (MOREIRA, 1995: 54). Esta é uma mítica atual nos estudos arqueológicos sobre 
o negro (CARLE, 2005). 
As alforrias geravam inúmeras contradições. Roberto dos Santos, ao catalogar uma 
série de inventários, encontrou um fato curioso em que um escravo possuía escravo 
(SANTOS, 1991: 112). A pureza ingênua marxista na arqueologia embasada na estratigrafia 
(TRIGGER, 1992: 186-195) é contra esta imagem. Esta arqueologia evidencia os sítios 
relacionados a assentamentos de afro-americanos, fruto de discussões internas da ciência no 
sentido dos limites de seu objeto de estudo em conflito com a história e com a antropologia, 
principalmente, mas que suscitou na definição da própria ciência como uma disciplina em 
construção (KERN, 2002: 118). A arqueologia é um estudo da cultura material no seu 
relacionamento direto com o comportamento humano (KERN, 1996: 7). Ela se ocupa também 
do ambiente em que gênio (ou gênero humano) se desenvolveu e no qual o homem ainda vive 
(RAHTZ, 1989: 9). 
Este mundo pré-determinado por modelos é o mundo da ciência moderna que se 
arvora a dar sentido à vida pelos modelos (SILVA, 2012). Wheeler (1961: 78) sugeriu que se 
realizassem escavações em área, com sondagens preliminares para a verificação de 
estratigrafia. A escavação em área seria possibilitada, para o autor, sem a perda do referencial 
da estratigrafia, realizando um quadriculamento que manteria “bermas” laterais (paredes em 
quadrículas) para a visualização estratigráfica e bem como a circulação de operários, com 
carrinhos e baldes de terra (1961: 80). O método permite uma distinção de diacronia e 
sincronia, sendo possível detectar os níveis de alteração dos comportamentos dos sítios e, por 
conseguinte, dos indivíduos que ali se estabeleceram durante o processo de formação dos 
mesmos. Soluciona problemas nos sítios tais como a composição por uma série de estruturas 
arqueológicas e arquitetônicas diferenciais à malha arqueológica; a escavação é feita 
conforme