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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM ARQUEOLOGIA Organização Sócio-Política Guarani: Aportes para a Investigação Arqueológica ANDRÉ LUIS R. SOARES Orientador Prof. Dr. José Proenza Brochado Dissertação apresentada como requisito parcial e último para obtenção do título de Mestre em Arqueologia. Porto Alegre, agosto de 1996. Esta dissertação é dedicada: Para os acadêmicos, que tenham compreensão e respeito para com os índios; Para os índios, que tenham paciência e bondade com os brancos; Para minha mulher, que tem tudo isso comigo. Molesta-me a boa gente fazendo-me crua guerra. Esta vida diferente, quem a trouxe, acaso à frente, para danar minha terra? Só eu sou o que nesta aldeia estou como seu guarda vivendo. Às minhas leis eu a rendo; e daqui longe me vou outras aldeias revendo. Como eu, acaso, quem há? Eu sou bem acreditado, eu sou o diabão assado, que era o antigo Guaixará, por aí fora afamado. Muito belo é meu manejo: não quero que alguém o vire, não quero que alguém o tire. Que me deixem, só desejo, que a aldeia toda revire. É bom: mais cauim beber, vomitá-lo e vomitá-lo. Isto é o maior regalo. Isto sim, vamos dizer, isto vamos festejá-lo! Aqui se há de celebrar o valente beberrão. Os capazes de esgotar o cauim, guerreiros são, sempre anseiam por lutar. É bom dançar, enfeitar-se, avermelhar-se em terreiro, se emplumar, pernas pintar-se fumar e negro tornar-se, ter curas de curandeiro. De enraivar-se, andar matando, comer e escravos prender, ser sensual se amancebando, meretrizes espiando: não quero ao índio conter. Para tanto eu visito todo o canto, “acreditem-me!”, dizendo. Vêm em vão, me removendo esses padres entretanto, e a lei de Deus promovendo. Aqui mora alguém que muito escora, junto a mim batalhador, queimado no mesmo ardor: Aimbiré, chefão doutrora, dos índios pervertedor... Fala do Guaixará. Lírica portuguesa e Tupi. Padre José de Anchieta, séc. XVI. Agradecimentos “Ela está no horizonte -diz Fernando Birri. - Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.” Eduardo Galeano, As Palavras Andantes Esta dissertação é uma etapa de um longo processo, e gostaria de agradecer a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, dele participaram em maior ou menor grau. Esta etapa terminou, outras tantas começam a cada dia. No campo acadêmico, este trabalho só foi possível através do voto de confiança de Chico Noelli, que, entre 1991 e 1993, ainda na graduação, concedeu-me uma bolsa de iniciação científica FAPERGS, onde tive contato com os Guarani ‘de papel’, aqueles descritos na bibliografia variada à qual tive acesso. Sua orientação valiosa nos primeiros anos de vida acadêmica me tornaram um pesquisador irrequieto e insatisfeito, com fome de saber. Através do Chico tive acesso à outra academia, séria, obstinada, resoluta e produtora de conhecimento. No mestrado, agradeço ao meu orientador, Prof. Brochado, mais que um professor, um abridor de portas, seja através de seu conhecimento notadamente inesgotável, seja pelos desafios lançados durante os dois anos e meio de contato irregular. Sem suas perguntas desconcertantes e suas afirmações categóricas, nada teria sido feito; minha dívida jamais será paga. Aos colegas que, com paciência e compreensão, apontaram os furos do meu trabalho e da minha pessoa, ao longo destes anos, muito especialmente Chico, Fabíola, Valéria e Adriana, entre tantos outros, um abraço apertado no peito. Essas pessoas leram a primeira (a)versão do trabalho e contribuiram para que eu amadurecesse idéias e espírito. Ao Ivori, cheirueté, pela paciência inesgotável com a qual me conduziu aos Mbyá, acreditando que eu ‘prestava’ e valia a pena, pelas intermináveis horas que me ouviu e jamais falou, criticou ou apontou minhas fraquezas. As janelas que Ivori colocou à disposição de caminhar, no sentido Mbyá, certamente não se esgotarão assim como os ventos do sul. Aguyjevéte. Aos professores do pós-graduação que acreditaram comigo na proposta de fazer arqueologia sem pá, através de índios mortos e vivos, tentando um trabalho tanto ousado como inovador, muito obrigado. Às secretárias do pós-graduação e do CEPA, Rosana, Carla e Márcia, que agüentaram meus sem-número de pedidos e solicitações, aturando com paciência de Jó minhas inquietudes profissionais e pessoais, agradeço a amizade e a compreensão. Devo agradecer imensamente à minha família, em especial aos meus pais, que permitiram que eu estudasse ao invés de contribuir economicamente durante toda a graduação. Publicamente ao meu pai, sobretudo pela sua sede insaciável de conhecimento científico, para um homem de primeiro grau, e minha mãe, que incentivou meus estudos, mesmo sem saber direito até hoje o que é um ‘pós-graduação’. Minhas irmãs que, cada uma à sua maneira, me auxiliaram. Meu irmão que mostrou, em priscas eras, que o homem é o que ele quer ser. Ao CAPES, que, durante dois anos e meio patrocinou-me sem certamente saber lhufas ou bulhufas da minha seriedade como pesquisador, do andamento de minha pesquisa, do meu curriculum, ou mesmo se valia a pena. À minha mulher eu não agradeço: devo a ela o que sou e como estou: todas as palavras não exprimirão uma só gota de poesia que se equipare ao seu olhar, ternura e alegria. A todos que pela minha vida passaram ou pelas quais passei, muito obrigado. Sumário pg Agradecimentos 4 Introdução 7 Capítulo 1 - A Relação entre Arqueologia e a Organização Social 13 1.1 - Continuidade Material e Continuidade Social 14 1.2 - Arqueologia Guarani e os Modelos Sociais 25 1.3- Interdisciplinaridade na Arqueologia 44 Capítulo 2- O Parentesco Guarani 57 2.1 - Linearidade ou Filiação 59 2.2 - Localidade dos Cônjuges após o Casamento 67 2.3 - Relação entre Afins e Não-Afins 74 2.4 - Terminologia de Parentesco e Regras de Casamento 84 CAPÍTULO 3 - A Organização Política e Social 100 3.1 - Cacicado Guarani: Conceito e Abrangência Espacial 103 3.2 - Relações entre Aldeias, Teko’ás e Guarás 119 3.3 - Relações Sociais com Grupos Não-Guarani 138 3.4 - Propostas para Delimitação dos Cacicados Guarani 149 Conclusão 174 Bibliografia 191 Anexos 206 Capítulo 1- A Relação entre Arqueologia e Organização Social “Um conceito de espaço deve ser entendido em um contexto social e cultural. o Espaço é uma categoria social definida alternativamente em contextos sociais e históricos.” Kus, 1983:278.1 Neste capítulo procuro tratar a importância da compreensão da organização social em relação à interpretação dos sítios arqueológicos e padrões de assentamento. Embora pouco comuns no Brasil, os trabalhos que demonstram a existência de uma relação ou associação entre os dados arqueológicos e o comportamento social dos grupos já são bastante conhecidos em outros países2. Estes estudos procuram demonstrar a utilidade de fontes históricas, etnológicas e lingüísticas na interpretação dos sítios arqueológicos. No caso dos Guarani, em que a ligação entre as sociedades desaparecidas (arqueológicas) e as sociedades históricas e atuais é inegável, diversos conteúdos das fontes históricas possibilitam uma aproximação bastante fiel dos grupos no período dos primeiros contatos (Noelli, 1993). 1.1 -Continuidade Material e Continuidade Social “Toda atividade envolve trabalho; todo trabalho é socialmente construído.” Bender, 1985:52.3 Neste item, parto do princípio de que há uma relação estreita entre a cultura material e a organização social. Não é meu objetivo afirmar que a continuidade da primeira é produto da segunda; antes, aponto para uma correlação de ambas ao longo do tempo e do espaço. Se a organização social não determina diretamente a reprodução da cultura material, por outro lado a estimula. Proponho uma unidade e continuidade da organização social destes grupos no períodopré-contato com o europeu. Para tanto, parto de algumas conclusões aceitas para estes grupos: - Há uma unidade e uma continuidade da reprodução da cultura material e provavelmente da subsistência destas sociedades durante pelo menos dezesseis séculos (Brochado, 1984; Noelli, 1993), conforme indicam as datações radiocarbônicas dos sítios arqueológicos4; - Há uma unidade lingüística comprovada pelos dicionários ao longo da conquista e da colonização (Montoya, [1639] 1876; Restivo, [1722] 1892; Gatti, 1985; Cadogan, 1992); - Há uma unidade da família lingüística Tupi-Guarani anterior ao contato com o europeu (como sugerida por Rodrigues, 1964; 1984/5); - Há uma unidade da organização social entre os diferentes grupos de fala Guarani ao longo do contato e atualmente (Susnik, 1979/80; Melià, 1986). As informações a respeito da organização social são escassas e genéricas para o período de contato. A partir da existência de terminologias de parentesco Guarani do Paraguai e dos Tupinambá do litoral, semelhantes tanto qualitativa como quantitativamente5, pressupõe-se uma unidade cultural que permite realizar analogias entre os Guarani e os outros grupos de família lingüística Tupi-Guarani. Considero que as características sociais descritas no período dos primeiros contatos representam uma continuidade do sistema anterior ao contato, assim como acontece com a cultura material e, possivelmente, com a subsistência (Noelli, 1993). Esta organização social persiste até a atualidade, com algumas mudanças6, conforme a bibliografia etnológica. Para tratar da continuidade social deve-se também realizar um recorte temporal, e aqui me refiro a uma continuidade entre o período anterior à conquista e os primeiros contatos com os europeus. A ligação entre os Guarani pré-contato (arqueológico) e os históricos é inegável (Brochado,1984; Schmitz, 1985:6). Essa ligação é que permite fazer uma analogia histórica direta, ou seja, demonstrar a continuidade cultural entre o pré-contato e o histórico (Gould,1971:143-177). Essa continuidade remete diretamente à importância da língua enquanto veículo de informação (Root, 1983:193-219) e manutenção da cultura em uma sociedade ágrafa. As discussões a respeito da língua como reprodutor da cultura podem ser encontradas em Noelli (1993:12-79). Nesta dissertação, seguindo diversos autores, repito enfaticamente que, para os Guarani, “tudo é palavra”, mas com o condicionante de que as palavras da organização social espelham e remetem a uma série de relações que se vinculam diretamente ao universo material. Como afirma Bender, “tecnologia no mais amplo sentido da palavra, que é não só implementos, mas toda a organização do trabalho - é estruturada por relações sociais”7 (1985:52). Desta forma, os contextos arqueológicos, como compreendidos por Hodder8 (1982:27), e as áreas de atividade, como apresentadas por Kent (1984), devem estar relacionados a atividades sociais. A língua Guarani, desde sua provável derivação e formação a partir do proto Tupi-Guarani por volta de dois ou três mil anos atrás9 (proposto por Rodrigues, 1964), vem reproduzindo-se sem variações significativas e, com ela, a organização social e a própria ordem social (Noelli, 1993:16). A língua e a própria sociedade Guarani pode ser vista como resultante de um processo de ‘longa duração’10. A palavra, enquanto ‘alma’ para os Guarani11, é detentora de significado12, ou seja, possui uma representação - um signo- que ao mesmo tempo traz seu conteúdo semântico, que resistem à mudança do seu sentido ao longo do tempo: “a linguagem é o lugar das tradições, dos hábitos mudos do pensamento”13 . Segundo Noelli (1993:14), essa continuidade cultural poderia ser re-interpretada através do conceito de habitus, de Bourdieu (1972:175)14. O conceito de habitus traz em seu bojo uma relação dialética: “o habitus tanto é determinado pelo mundo social quanto determinante da percepção do mesmo” (Hunt, 1985: introdução): “O habitus não é apenas uma estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, mas também uma estrutura estruturada: o princípio da divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, em si próprio, o produto da internalização da divisão em classes sociais.” (Bourdieu, 1984: xiii)15 Sendo assim, as estruturas estruturadas funcionam como estruturas estruturantes, determinando e sendo determinadas pelo mundo social, ou, simplificando, os Guarani responderiam a um estímulo novo com uma resposta velha, já conhecida. Este tipo de conceito se enquadraria perfeitamente no conceito de sociedade prescritiva proposto por Sahlins (1990:17), ou seja, aquelas sociedades onde a reprodução é a ordem social e o comportamento segue a tradição. No caso da sociedade Guarani, quando esta se depara com uma problemática nova, responde com uma atitude nova, baseada na tradição. Voltandoao conceito de “estruturas” de Bourdieu, veremos que as estruturas estruturantes funcionam como uma estrutura estruturada no passado, mas o presente não é o mesmo que o passado. Dito de outra forma, o Guarani se comporta de uma forma tradicional, mas o processo histórico pelo qual esta sociedade passa, ao longo do tempo e do contato com outras sociedades não-Guarani, levam os Guarani a adequar o comportamento à nova situação, tendo como exemplo o passado. A historicidade do grupo pode ser encarada como uma estrutura, pois “organiza a percepção do mundo social [e] é, em si própria, o produto da internalização” (Bourdieu, 1984: xiii). Negar que havia contatos entre as sociedades pré-hispânicas é negar sua própria historicidade16. Sendo assim, o comportamento da sociedade se inspirará em um discurso com tradição no passado, mas não o próprio passado. A historicidade está sempre presente, como diz Sahlins,"o que os antropólogos chamam de 'estruturas' -as relações simbólicas de ordem cultural- é um objeto histórico" (1990:8). O caso Guarani, logo após os primeiros contatos, assemelha-se ao retratado por Sahlins (1990), onde a prescritividade vale para o ethos expansionista e as relações sociais e a performatividade valem para o acesso aos bens materiais (Sahlins, 1990:87). Tratando-se do período pré-contato, os Guarani mantiveram-se reproduzindo com uniformidade a cerâmica e, por extensão, a tecnologia de alimentação e para a captação de recursos, atestados por mais de dois mil anos através das datações de C14 (Noelli, 1993). Por conseguinte, o que procuro afirmar é que, se a cerâmica é um aspecto da cultura material, a organização social subjacente que mantém, estimula e reproduz esta cultura material também deve ter permanecido semelhante no período (Allen & Richardson, 1971). Porém, somente um estudo minucioso considerando todos os aspectos da cultura poderia explicar a presença de elementos que não são comuns a todos os sítios. Como procuro demonstrar no item 1.2, as limitações das coletas e prospecções deixam margem a diversos mal-entendidos em relação à interpretação da cultura material. Porém, a semelhança das formas e do tratamento de superfície entre a cerâmica guarani e a cerâmica do leste Boliviano e Peruano17 (Noelli, 1993:69) pode apontar para uma sociedade não tão prescritiva materialmente, mas mantenedora de um ethos18.Não se conhece, através da etnografia, uma sociedade somente prescritiva ou performativa (Jorge Pozzobon, com. pessoal, 1992), pois isto impediria seu relacionamento com os outros grupos circunvizinhos. Afirmo que a cultura material e a organização social possuem a mesma matriz cultural, mas a reprodução de ambas ocorre de formas diferenciadas. Ainda que uma e outra possam ser consideradas prescritivas, acredito que a cultura material pode ser ‘mais performativa’ ao longo do tempo.19 Os diferentes ambientes ocupados pelos Guarani ao longo do tempo20, bem como os diversos grupos aos quais se miscigenaram podem tê-los feito assimilar diversas características exógenas que provavelmente determinaram a existência das distintas parcialidades21 no período pré-contato22. Mesmo durante aexpansão manteve-se a similaridade entre as diferentes línguas da família Tupi-Guarani, o que, como visto acima, demonstra uma continuidade e provável reprodução da organização social; esta continuidade social pode ser atestada também pela documentação histórica. Embora não sendo farta em informações sobre a organização social, existem dois tipos de dados que são rapidamente percebidos: 1°- As constantemente repetidas citações de ‘borracheira’, poligamia, antropofagia e guerra, (talvez não nesta ordem) em toda documentação seiscentista. Todavia, estas são seguidas do mais completo silêncio sobre detalhes que possibilitem o aprofundamento da pesquisa. Como afirmou Baldus23, “encarando o conjunto das produções de ‘etnologia Guarani’ vemos surgirem dúvidas em toda parte”. 2° Aquelas contidas nos dicionários realizados por Antônio Ruiz de Montoya, o “Tesoro de la Lengva Gvarani” e o “Bocabvlário de la Lengva Gvarani”, [1639] (1876), que reproduzem com bastante fidelidade o sistema Guarani à época dos primeiros contatos. A validade de “O Tesoro” de Montoya é dada por Melià (1987:24)24 : "Entre todos -jesuítas e não jesuítas- excetuando, claro está, os mesmos Guarani- é Antonio Ruiz de Montoya o melhor conhecedor da cultura Guarani, como fica patente em suas diversas obras. O Tesoro de la Lengua Guarani contém a maior suma etnológica Guarani já coletada, uma lavra por enquanto insuficientemente explorada pelos próprios pesquisadores do Guarani. A partir de palavras 'chave', com suas conotações e associações, consegue-se levantar quadros sumamente ricos e bastante completos sobre os mais diversos aspectos da cultura, na sincronia do tempo dos primeiros contatos.”25 Duas palavras mais sobre a utilização dos dicionários de Montoya. Em primeiro lugar, não concordo com a posição de Melià de que as terras do Guairá eram “pouco ou nada batidas pelo espanhol” (1986:94) à época da Conquista Espiritual26. Provavelmente a presença espanhola fosse estranha, mas a presença dos portugueses atrás de escravos é reconhecida a partir de 1544, quando uma junta de caciques dirige-se ao governador Irala com o objetivo de rechaçar os portugueses na região dos rios Piquiri, Paranapanema e Tibagi, no atual Estado do Paraná (Jaeger, 1957:98). A documentação a partir de 154927 revela uma crescente expansão em todas as direções em busca de serviçais para mita e yanaconanato28, sendo estas encomiendas realizadas até a sete jornadas (dias) distante de Ciudad Real via fluvial, na provícia do Guairá (MCA I,pg.126). Se a presença física dos espanhóis não foi sentida, os seus efeitos certamente foram, como atestam alguns verbetes do próprio dicionário. Provavelmente a violência da escravização29, somada ao efeito das epidemias, tenham dado origem a verbetes como opa catû cheânã ocañy cheheguî - ‘morreram todos meus parentes’30 (T:89). ou cheyoguâmo gúara oy êyâ reg - ‘acabaram os do meu país’31 (T:129). Em segundo lugar, mesmo que os dicionários tenham sido escritos em uma região de contato, não significa que o contexto tenha sido alterado profundamente e que a organização social não fosse semelhante. Parece claro que através dos verbetes acima e pela rede de contatos estabelecidos pelos Guarani com seus mensageiros, a influência dos conquistadores se fez perceber muito antes de sua presença. A simples chegada do europeu fez espalhar a morte através das epidemias muito antes do próprio contato.32 Os dicionários são fontes geradas por observadores presentes e são guias para compreensão da língua; nas palavras de Melià, ”para entender e ser entendido” (1986:266). Porém, relativizando-se a atuação de Montoya como missionário a serviço da igreja, existe a possibilidade de que a maior parte dos aspectos da religião ou ligados aos mitos não tenham sido compilados. Como este trabalho versa sobre a organização social, o risco de ausência de informações é menor, uma vez que os padres deveriam conhecer o parentesco indígena para regular o matrimônio segundo os padrões cristãos. Além disso, não existe fonte mais completa, onde se possa observar de forma aprofundada todos os meandros da organização social ainda em funcionamento (Melià, 1986:260-267). O objetivo do dicionário era o conhecimento da sociedade indígena da melhor forma possível, de forma a convencer os nativos à catequese33. Nesta dissertação, utilizo o dicionário enquanto ponto de partida lexical para a comprovação da existência de algumas práticas dentro da organização social e política. Os verbetes que apontam para as instituções sócio-políticas serão comparados com as informações históricas e antropológicas que ratificam sua existência. “E se conclui que têm caciques e que há vassalos, dos nomes que têm para significar a um e outro. -Este é meu vassalo, diz o cacique: cocheboia, em sua língua. E o vassalo diz: cocherubicha, este é meu cacique. E é claro que não teriam nome para significar o que não tivessem.” (Certificação do Padre Juan Suárez de Toledo [1658], In: Bruxel, “A Nobreza dos Caciques Guaranis”, 1958, pg.101)[grifo meu] Em outras palavras, se existem vocábulos para parcialidade34, escravo ou adoção, estas práticas existiam, mas deve-se ler criticamente estes verbetes para aproximar-se do seu conteúdo social contrastando-os com outras fontes, sejam históricas, etnológicas ou por analogia com os outros grupos35. Outra forma de justificar a possibilidade de ter havido a continuidade da organização social é através da contextualização das diversas obras produzidas em torno deste assunto. Colocados lado a lado, os termos coletados para os Guarani coloniais e atuais permanecem idênticos,36 porém reduzidos em número. Se analisados contemporaneamente, a semelhança das terminologias nos primeiros contatos ocorre tanto entre Guarani como entre outros grupos Tupi-Guarani37. Dentro da proposta de que, na arqueologia, o maior indicador da presença cultural da sociedade Guarani continua sendo a cerâmica, e essa mantém-se sem variações significativas até o contato com o europeu (Noelli,1993:12) devo lembrar que “o contexto cultural inclui não somente o meio físico-ecológico, mas também o contexto social“ (Kus, 1983: 286)38. A organização do espaço, das estruturas de habitação e da aldeia obedece também a uma ordenação social (Kus, 1983:291; Eliade,s.d.), ainda não estudada. Aqui aponto para uma problemática da arqueologia brasileira e, em especial, a que trata das comunidades indígenas historicamente conhecidas, onde é impossível desvincular o homo faber do homem social. “Deve-se reconhecer que as ações sociais tem conseqüências não previstas, que existe freqüentemente uma falta de correspondência entre a intenção e os seus efeitos materiais”39 (Friedman,1982). Sendo assim, o trabalho ao qual me proponho é formular uma hipótese de continuidade da cultura material, refletida na cerâmica, e da cultura Guarani enquanto língua falada e reproduzida, através da organização sócio-política e do sistema de parentesco. Esta hipótese complementa-se com o modelo ecológico formulado por Noelli (1993) e, paralelamente, com os dados arqueológicos até agora existentes. 1.2 - Arqueologia Guarani e os Modelos Sociais Quando não temos nenhuma expectativa e nenhuma teoria, não temos nenhum quebra-cabeças.” Moore, 1983:174.40 Tratar da continuidade da organização social e a relação desta com a arqueologia Guarani requer uma revisão do que já foi feito no Brasil. A relação entre as comunidades indígenas e o material arqueológico foi estabelecida desde o primeiro século de contato41, sendo abandonada nos anos ‘50 em virtude de uma profissionalização dos arqueólogos. A partir dos anos ‘60, cria-se o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas - PRONAPA, que, inicialmente, tinha o objetivo de estabelecer cronologias relativas e determinar a direção das influências, migração e difusão das culturas (Noelli, 1993:37) através do método Ford (1962). Essas cronologias estavam organizadas em conjuntos artificiais denominados fases e tradições42. O método Ford (1962:7) visualizava a produçãohumana a partir de uma ótica evolucionista, descartando o ‘homem’ e interessava-se somente pelos “mecanismos pelos quais modificam-se a cultura”. Ford acreditava que as criações humanas só podem surgir por invenção, descobrimento ou empréstimo, sendo que “as novas formas culturais...só podem derivar de forma precedentes” (idem). Desta maneira, Ford reduz a arqueologia a uma ciência ‘definidora de mudanças’ e limita a capacidade humana às inovações através de pequenas modificações ou influência externa à sociedade, afirmando que a cultura material é como um ‘modismo’ temporário onde o arqueólogo observa o passar do tempo (pg.09). Esta seria a tarefa primeira do arqueólogo: “a ordenação dos restos de antigas culturas” através da classificação similar ao sistema zoológico de Lineu (pg.11). Não se pode esquecer que o objetivo era a cronologia, estabelecer o período de ascensão e queda de determinada moda cultural. Este fim, a cronologia relativa, tornou-se desnecessário com as datações por C14. Outro detalhe mal apropriado pelo PRONAPA quanto ao método Ford foi seu conteúdo interpretativo43. A prova que determinava se a seqüência estava certa era sua aplicabilidade. No caso do Programa, não havia fins interpretativos. O fim último era determinar o conjunto ao qual pertenciam os artefatos, sem problematizar as informações obtidas. “A utilização destes conceitos [fases e tradições], descolados do corpo teórico do qual se originam, fez com que o principal objetivo de pesquisa dos arqueólogos influenciados pelo PRONAPA se resumisse, durante muito tempo, na classificação dos registros arqueológicos descobertos em fases e tradições, novas ou já conhecidas. Assim, definir fases e tradições transformou-se em paradigma para um determinado grupo de arqueólogos brasileiros, condenando-os a um contra-senso científico, na medida que os meios para atingir o conhecimento (os conceitos) transformaram-se na finalidade última de sua pesquisa.” (Dias, 1994:25) Além disso, tratava-se a América como exemplo das ‘altas culturas’, cuja porção da cultura material analisável no sítio era a cerâmica. Somada a esta limitação, o método Ford teorizava sobre análises como ocupação do sítio diacronicamente, através da estratigrafia nos sítios e a distribuição espacial das tradições, o que não era seguido pelo Pronapa. Os elementos propostos por Ford para tipificar a cerâmica eram a forma, a decoração, o tratamento de superfície, o método de construção, a cocção, o antiplástico e o material básico, no caso a argila (Ford,1962:20). O Pronapa utilizou, para a cerâmica Guarani, somente o tratamento de superfície e o antiplástico, sendo a decoração incluída no primeiro. Ainda segundo Ford, devido à ausência de indicações temporais e espaciais, os critérios para a tipificação cerâmica deveriam partir de cada pessoa (pg.27), o que redundou, na proposta pronapiana, nos diferentes tipos de corrugado44 e nos outros tratamentos de superfície. Ademais, os critérios deveriam ser partilhados por todos pesquisadores, de forma que as reclassificações produzissem os mesmos resultados, o que não ocorreu no Programa, uma vez que o critério do antiplástico não deveria ser revisto após a primeira análise, pois poderia prejudicar sua definição45. Outra recomendação pouco adotada pelo Pronapa foi a separação das amostras por escavação e por coleta superficial sistemática, bem como as recomendações referentes às percentagens, como a variabilidade de formação de fragmentos a partir de vasilhas grandes ou pequenas, a possibilidade de mais de um tipo de tratamento de superfície na mesma vasilha, a vida útil de cada peça, etc (Ford, 1962:38). Enquanto Ford propunha a utilização conjunta da seriação e da superposicão estratigráfica (pg.41), o Pronapa recomendava a utilização somente da primeira, afirmando que “se uma tal seqüência não concordar plenamente com os resultados das datações C14, as datas podem estar mais erradas do que a seriação” (Meggers & Evans, 1970:79). No tocante à seriação é que se encontra o maior número de disparidades entre o método quantitativo proposto por Ford e a proposta de Betty Meggers para o PRONAPA. Na utilização do método Ford, alguns procedimentos nem sequer foram revistos pelos pronapianos, como o número mínimo de fragmentos para a coleção (100 fragmentos) uma vez que “cada coleção deve recolher-se sem selecionar e deve ser bastante grande para se obter percentagens úteis” (Ford, 1962:42), ao contrário de algumas coleções onde se encontra uma fase definida por um sítio46 (anexo 1). Outra falha recorrente é o controle das amostras, onde pode haver arbitrariedades tanto na coleta superficial, na área que corresponde à totalidade do sítio, no caráter assistemático tanto da coleta quanto da classificação dos tipos. No caso específico da arqueologia Guarani, a coleta aleatória poderia priorizar fragmentos grandes em detrimento dos pequenos, descaracterizando a funcionalidade e a forma das vasilhas. Por exemplo, os cambuchí (talhas) são maiores e produzem maior quantidade de fragmentos, em oposição aos ñaembé ou ñae (pratos). Além disso, pela durabilidade, os yapepó e ñaetá (panelas que vão ao fogo) deveriam produzir maior quantidade de fragmentos em contraposição aos cambuchí, que deveriam ser menos ‘manipulados’ devido as suas dimensões. Outra definição repetida para o caso da Arqueologia Guarani foi a existência de ‘elementos alienígenas’, verificados através das seriações obtidas por coletas superficiais. Em nenhum momento aparecem as hipóteses de reocupação sucessiva, de troca-comércio-apropriação, de sítios revolvidos ou de caráter idiossincrático, como uma coleta de ‘objeto exótico’ em outros locais abandonados ou não. Quanto à estratigrafia, apesar da utilização dos níveis artificiais, Ford acentua que a escavação devem ocorrer em níveis “os mais finos possíveis” (1962:46), devendo-se anotar a estratificação, ou as camadas naturais, uma vez que “o absurdo de seguir níveis artificiais (sic) é o mesmo que seguir a estratificação visível” (Ford, 1962:47), enquanto no Pronapa adotou-se o padrão de 10 centímetros como nível artificial . No lançamento do “Guia para prospecção Arqueológica no Brasil”, por Evans & Meggers (1965) é que se encontram o objetivo real do Programa, a dissonância com a arqueologia Guarani e a falta de eco com o método Ford. Em primeiro lugar, Evans & Meggers iniciam declarando que “a análise arqueológica e sua interpretação dependem, sobretudo, da coleta sistemática de espécimes em sítios arqueológicos e de sua respectiva documentação” (1965:vii)47, proposição que entra em choque com sua própria proposta de se visitar diversos sítios no mesmo dia (Evans e Meggers, 1965:32). Partindo do princípio que a Arqueologia é uma subdivisão da Antropologia, e valorizando a domesticação de plantas como divisor de águas entre a sobrevivência e as altas culturas (pg.4), Evans & Meggers demonstram os limites intrínsecos que o Pronapa traz desde sua formação: a idéia já formada de que a América do Sul foi recentemente ocupada, não apresentando características que legitimem uma pesquisa intensiva além do mapeamento dos sítios e a denominação das Tradições. Além disso, a prática de campo seguindo níveis artificiais de 10 cm distoava da sugerida no Guia e em Ford (1962), onde os níveis artificiais fossem os menores possíveis e passíveis de divisão (Ford,1962:11). Além disso, a premissa básica de que as culturas obrigatoriamente apresentavam mudanças significativas, mesmo em curtos períodos de tempo, obrigou os pronapianos a adequar os sítios à regra, ao invés do contrário48. Ainda no campo das contradições, o trabalho de campo consistiria “na localização de todos os sítios às margens do rio e da escavação de um ou dois cortes estratigráficos em cada um“ (Evans & Meggers, 1965: 32) pois “afortunadamente, os mecanismos de mudança cultural são simples” (sic) (Ford, 1962:7) e a prospecção deveria seguir no ritmo de dois ou três sítios em um dia. Rapidamente enumerando os equívocos que foram perpetuadospelos pronapianos mesmo após a vigência do Programa, percebe-se: - o interesse nas rotas de migração, descartando os sítios de interior, mesmo que próximos aos rios; - a ‘pressa’ na prospecção, partindo da falsa premissa de que a maioria (ou todos) os sítios são “pouco profundos”. A recomendação de trinta sítios em seis semanas totaliza a média de cinco por semana, mesmo em áreas de grande densidade regional (Evans e Meggers, 1965:42); - a realização de cortes do tipo cabine telefônica49 em sítios que poderiam ter centenas de metros quadrados, invalidando os cortes enquanto amostras válidas como pretendidas por Ford (1962). Os cortes de 1x1m ou 2x2m nem sempre trouxeram o mínimo de 150 a 200 cacos para a realização de seqüências seriadas (anexo 1) como pretendiam Evans e Meggers (1965: 36); ao mesmo tempo, estes autores afirmam que em solos compactos deve-se utilizar a picareta para afofá-los, sendo que, após a ‘afofada’ com a picareta, retirar o material com cuidado para não misturá-los de níveis! (sic)( Evans e Meggers, 1965:38). - a observação, quase nunca seguida, de documentar os níveis naturais sempre que possível, ainda que utilizando níveis artificiais de 8 ou 5 cm (ao invés dos dez centímetros generalizados); - a preferência do método oportunístico em detrimento do probabilístico, excluindo grandes áreas pelo objetivo do Programa (Noelli, 1993:36); - a incongruência entre as coletas totais (‘se o material estiver esparso’) e parciais (‘se o material é abundante’), aleatórias (todo material de uma área) ou seletivas, (no caso de “ser reconhecida a seqüência local”, Evans e Meggers, 1965:34)50. Apesar da produção por parte dos próprios pronapianos relativa aos sítios hoje considerados Guarani, Meggers & Evans (1977:34) estabelece o surgimento da Tradição Tupiguarani a oeste do Estado do Paraná no período 500-1000 d.C. e, mesmo reconhecendo que esta tradição está associada aos falantes do Tupi-Guarani51, continua desvinculando a Tradição arqueológica dos grupos historicamente conhecidos (Meggers & Evans, 1977: 36). Os autores afirmam que as seqüências seriadas demonstram a transição da pintura para o corrugado e o escovado. As limitações apontadas acima e no próprio Guia (1965), principalmente no que concerne às coletas e à definição das fases, não foi suficiente para abater o princípio fordiano de mudança e empréstimo das culturas. Ademais, havia contradições nas próprias afirmações sobre a distribuição e sucessão das ‘subtradições’, pois, se a pintura havia cedido lugar ao corrugado e este ao escovado, era impossível que a ‘subtradição pintada’ tivesse chegado ao Estado da Bahia em 1200 d.C. e no Estado do Rio Grande do Norte em 1500 d.C., contrariando sua mesma premissa de ‘expansão rápida’ dos Tupiguarani (Meggers & Evans, 1977:41). Ainda que não admitindo o acúmulo de falhas proposto pelo Pronapa, mas percebendo a limitação da metodologia imposta, Meggers & Evans (1985) publicam “A utilização de seqüências cerâmicas seriadas para inferir comportamento social”, admitindo que “a maioria dos arqueólogos não mais se satisfaz em apenas recuperar e descrever antigos vestígios das atividades humanas” (pg.4), contrariando os objetivos de Ford (1962: 6-7) e do próprio “Guia..” (1965). Esta espécie de mea culpa arqueológica está claramente descrita: “Atualmente acreditamos que fases definidas em termos de seqüência seriada podem ser relacionadas a comunidades autônomas ou semi-autônomas e que as tradições definidas em termos de fases que compartilham um conjunto de elementos cerâmicos, provavelmente, representem entidades tribais ou lingüísticas.” (Meggers & Evans, 1985:5) Porém, a relação entre parcialidades e as ‘fases’ arqueológicas ainda deve ser discutida com muito cuidado, pois tanto a metodologia quanto a ausência de teoria pronapiana deve ser tomada com cautela. Mesmo assim, as duas limitações reconhecidas pelos autores são a pouca diversidade cerâmica e a pouca utilidade em termos espaço-temporais (pg.6), ao contrário de todas as supra-citadas e as que foram reclamadas no encontro final do Programa. O estudo da cerâmica adquiriu uma importância que sobrepujava todas as outras informações existentes, advindas da etno-história, da etnografia, da lingüística e da própria arqueologia (Noelli, 1993:35). “A definição de fases e tradições foi encarada enquanto finalidade última da pesquisa no Brasil e não como um meio para a descrição e a sistematização de dados a serem interpretados pela teoria antropológica. A falta de reflexão teórica na arqueologia brasileira abriu margem para a consolidação de uma visão míope quanto a amplitude do método pronapiano, estruturalmente delimitado ao nível descritivo de análise.” (Dias, 1994:37) Estas descrições perfazem 95% dos ‘modelos teóricos’ criados para elucidar as sociedades Guarani pré-contato com o europeu, sendo que só a partir dos anos ‘90 retomam-se as associações entre arqueologia e etnografia (Noelli, 1993: introdução). A reprodução dos modelos interpretativos dos anos 60 continua tendo seguidores na arqueologia Guarani (Schmitz, 1985; Kern et alii, 1991). Além das seriações cerâmicas ou escavações parciais de algumas casas, a pesquisa pouco se desenvolveu52. Um caso de utilização de métodos de escavação em grandes superfícies, tais quais os usados nos sítios europeus, com a preocupação de registro de todas as evidências, ainda está por ser publicado53. Nesta esteira é que surgem os modelos interpretativos realizados para tentar superar a falta de dados arqueológicos, apoiados na bibliografia ao invés de em escavações (Noelli, 1993; Landa, 1995)54. Esses modelos deveriam ser testados em campo, mas a total impossibilidade financeira e estrutural de se realizarem escavações em áreas amplas e a longo prazo estimula o surgimento de trabalhos bibliográficos visando orientar formas diferentes para as escavações futuras. Meu trabalho inclui-se neste esforço de procurar uma nova ótica para interpretar os sítios que estão por escavar. Aqui lanço uma revisão bibliográfica realizada sobre o parentesco Guarani e apresento algumas fontes sobre o entrosamento entre estes dados e a arqueologia das sociedades complexas. Nas bibliografias históricas e antropológicas, encontram-se dois problemas de ordem metodológica para o estudo do parentesco Guarani: primeiro, a ausência quase total de informações sobre organização social à época do contato e, em segundo lugar, a idéia de "eterno presente etnográfico" nas sociedades indígenas, que resultou em conclusões precipitadas quanto ao sistema de parentesco dos Guarani no período pré-colonial, pois não se consideram fatores como a redução demográfica, os efeitos de epidemias e endemias, as guerras de extermínio, a escravização, a redução espacial e a reestruturação e/ou ressignificação da organização social (Noelli e Soares, 1993; Soares e Noelli, 1995; Lightfoot, 1995:202). As etnografias Guarani contemporâneas que apresentam terminologias também não consideraram a redução terminológica advinda do contato com o europeu (Noelli & Soares, 1993). As únicas exceções são os trabalhos de Wagley (1942) sobre os efeitos do despovoamento na organização social Tapirapé, para os Tupi, e Chase Sardi (1989), sobre os efeitos do deflorestamento entre os Mbyá-Guarani. As pesquisas modernas foram pioneiras em fornecer um novo olhar sobre as sociedades indígenas e suas organizações sociais, acrescentando informações vitais para a compreensão dessas sociedades. Contudo, não recorreram às fontes históricas para se estabelecerem ligações com os sistemas do período colonial. A desvinculação da etnologia com a etno-história causou perdas interpretativas e de constituição de conteúdos antropológicos contemporâneos. Visando contribuir para a redução dos problemas causados por esta desvinculação, procurei reunir todas as informações, arbitrariamente separadas em prejuízo da interpretação e da formação de opinião sobre aspectos culturais Guarani. O parentesco Guarani foi abordado de várias formas, tendo sido organizado diferentemente,em três casos distintos: 1º caso - de grupos Tupi-Guarani, tratados de forma genérica e sem ordem cronológica; 2ºcaso -de um grupo Guarani, delimitado espaço-temporalmente; 3º caso - análise e outros aspectos da organização social de um grupo. Essas abordagens foram realizadas em diferentes momentos, mas sua sistematização segue da abordagem mais genérica para a mais específica, não seguindo ordem cronológica. Todas as informações a respeito dos Tupi-Guarani são válidas e úteis em nível de analogia, uma vez que a proximidade cultural e lingüística permite aproximações por comparação para sanar dúvidas. Porém, busco um modelo para os Guarani dos primeiros contatos. 1° Caso: os trabalhos de Carlos Drumond (1943,1944) listam os termos de parentesco Tupi-Guarani extraídos de fontes dos séculos 17 ao 20, como o Vocabulário na língua Brasílica (Anônimo, séc.XVII,1938), o Dicionário Português Brasiliano (1795), Restivo (1722) e Stradelli (1928). Drumond levanta aspectos gerais da terminologia como o sexo da pessoa que fala (Homem ou Mulher falando - HF ou MF). Observe-se que o autor não distingue os grupos, nem considera a distância temporal que os separa, impossibilitando uma análise rigorosa sobre a organização social. No mesmo caso se enquadra Ayrosa (1950). Fernandes [1947] (1989), apesar de trabalhar com um grupo específico (Tupinambá), desconsidera a distância temporal entre as diferentes fontes e os diferentes objetivos das crônicas que utiliza, sendo criticado por Oliveira Filho (1987) por ter realizado uma "colcha de retalhos etnográficos". Na verdade, e apesar das limitações colocadas acima, o trabalho de Fernandes é o mais rigoroso realizado para o grupo em questão. Mesmo sendo mecanicista, o esgotamento das fontes realizado por Fernandes é pioneiro por abordar uma temática de forma sistemática e exaustiva. 2° caso: Há Watson (1944), que realiza um estudo específico sobre os Kaiová-Guarani. A autora recolheu a terminologia de parentesco durante seis meses na reserva de Taquapirí, considerando o sistema de parentesco como classificatório, ou seja, aquele onde se designa, sob um mesmo termo, pessoas que não pertencem à mesma categoria de parentes (Augé,1975:64). Porém, a autora não considerou o efeito da redução demográfica no uso da terminologia de parentesco, o que impossibilita uma elaboração conclusiva. Também faltou um esgotamento das fontes históricas pesquisadas, deixando a análise documental pouco explorada (Melià, Saul et Muraro, 1987; Noelli et Landa, 1991). Lafone Quevedo, que trabalha unicamente com o “Tesoro” de Montoya, não realiza uma análise sistemática da terminologia (1912) e faz uma interpretação lingüística completamente desprovida de análise, segundo Baldus (1954). Para os Tupinambá, as primeiras listas pertencem a Araújo [1618] (1948), trabalho que não foi aproveitado pela maior parte dos estudiosos (Baldus, 1954). Para as tribos de fala Tupi-Guarani, Galvão (1954) lista os termos para diversas tribos xinguanas, sendo do grupo Tupi as tribos Kamaiurá e Aueti. O autor cita o problema de redução demográfica dos grupos, mas não levanta suas conseqüências para a terminologia e organização social. A similaridade entre as listagens a respeito da terminologia de parentesco é um dos fatores que permite realizar analogias entre os Tupinambá e os Guarani do século XVI. 3° caso: Recalde (1937) faz uma análise lingüística da terminologia, criticada por Baldus (1954) por não ter embasamento etnológico, motivo pelo qual não foi utilizado neste trabalho. Wagley e Galvão (1946), comparando a terminologia de três grupos Tupi-Guarani55, classificam a terminologia do tipo "Dakota, com variações". No mesmo ano, porém, Philipson (1946:16-17), comparando as tabelas do trabalho de Wagley (1946) com as tabelas produzidas por Baldus [1935] (1970) declara que "o trabalho [de Wagley e Galvão] peca por falta completa de análise lingüística" e que não existe "o" sistema de parentesco Tupi-Guarani, mas "sistemas diversos em grupos diversos". Mais tarde, MacDonald (1965) retoma a crítica de Philipson da incompatibilidade entre os sistemas das tribos Tupi-Guarani e o sistema Dakota, apresentando a terminologia de 11 grupos Tupi 56. Esta crítica bibliográfica é necessária para esclarecer que não há trabalho antropológico (etnográfico e etno-histórico) ou histórico que analise acuradamente o funcionamento do sistema de parentesco Guarani da época do contato, para que se possa então, fazer projeções para o período pré-colonial. No tocante à Arqueologia, somente um trabalho foi realizado no Brasil demonstrando a importância da organização social e o parentesco para a interpretação dos sítios arqueológicos (Wüst, 1990). O que se encontra na bibliografia arqueológica é o parentesco sendo utilizado para referendar os achados arqueológicos, como no caso das repetidas informações sobre as casas comportando famílias extensas e os enterramentos em urnas funerárias57. Mesmo com o volume de informações disponíveis, não há trabalhos sobre a importância da família, da chefia e do parentesco para explicar outros motivos para a ocupação das áreas e a expansão dos Guarani sobre seu vasto território pré-colonial. Algumas afirmações feitas ao longo desta dissertação referentes a interpretações sociais para a arqueologia Guarani serão justificadas neste item a partir de exemplos encontrados em outras sociedades conhecidas. Em primeiro lugar, baseado em Kus (1983:290), parto do pressuposto de que todo espaço é ordenado socialmente. O poste central de uma habitação é o ‘centro do mundo’58, representando um universo simbólico que é socialmente organizado (Kus, 1983:291; Kapches, 1990:49-67). No caso Guarani, a arquitetura ainda não foi explorada como fonte59, mas pode-se estabelecer uma analogia geral e indireta, na qual talvez a casa maior seja habitada por maior número de pessoas e conseqüentemente com dimensões espaciais maiores60 (Kapches, 1990:49, Lightfoot e Feinman: 1982: 64-84 e veja planos de topo em Palestrini, 1975, 1984; Chmyz, 1977, 1983; Morais et Perasso, 1984; Schmitz et alii, 1990, apud Noelli, 1993: anexo 1). Nos ‘pueblos’ hopi do sudoeste americano temos uma distribuição espacial da cerâmica dentro das casas que torna possível a distinção dos clãs moradores, suas áreas de armazenamento de grãos, e inclusive as casas pertencentes ao mesmo clã dentro do ‘pueblo’ (Adams, 1983:44-61). No caso da aldeia Guarani, a casa melhor localizada e com a estrutura de habitação maior, mais reforçada e com maior número de fogos pertenceria ao chefe (seu número determinaria o status da casa: Kapches, 1990:49). O caso dos Tucano também serve de parâmetro comparativo para as ocupações ao longo dos grandes cursos fluviais. Segundo sua mitologia61, os clãs antigos foram ocupando os territórios melhores62, dando lugar à ocupação posterior pelos clãs mais ‘jovens’ rio abaixo. Como a ocupação Guarani é por ‘enxameamento’ (Brochado, 1984), deve-se esperar que os sítios mais antigos e ocupados por mais tempo estejam na margem dos grandes cursos hídricos, tanto pela antigüidade como pelo prestígio social (veja capítulo três). No caso Guarani temos o modelo sugerido por Schmitz (1985:45-52) para o movimento das aldeias em um determinado território de domínio. Através da seriação cerâmica, o autor propõe a ocupação e o movimento de duas aldeias, analisados sob a ótica do ‘esgotamento’ de recursos e posterior mudança espacial63. Contrariando esta análise, a partir dos mesmos sítios, sob um enfoque social, suponho, a partir dos mesmos dados, diversas aldeias contemporâneas de dimensões diferentes ou, ainda, uma aldeia maior com uma chefia mais poderosa, que mantém sob sua vassalagem uma (ou mais) aldeia menor, ‘empurrada’ para a área de recursos mais pobres que a várzea (conforme proposta de Lightfoot e Feinman: 1982: 65-66). Propondo este modelo com mais vagar, parto da premissa de que o território é ocupado de forma lenta e manejada em nível ambiental (Noelli, 1993), de forma que a conquista do território será através daguerra64 (item 3.3) ou cuñadazgo (item 2.3). Sendo assim (novamente similar a mitologia Tucano), os ocupantes mais antigos devem ocupar os lugares mais estratégicos (rios principais, controle de recursos ambientais, etc) ao mesmo tempo que ampliam sua rede de parentesco com a chegada de outros grupos que precisam sua permissão para se instalarem (item 3.2). A ocupação, desta forma, processar-se-á em sentido radial a partir do melhor ambiente com mais facilidade de trânsito (pela importância dos convites, item 3.2), em direção à periferia sócio-ambiental, ou seja, menores recursos devido ao menor prestígio (itens 2.2, 3.2). Este modelo não exclui o modelo ecológico já citado (Noelli, 1993) ao mesmo tempo que não é excluído pelos dados arqueológicos. O exemplo os afluentes do rio Jacuí e os dados propiciados pelos trabalhos de prospecção arqueológica nesta região, mesmo que estes dados sejam parciais, não exclui as hipóteses aqui levantadas65. Nos sítios da fase Trombudo, no rio Jacuí (segundo Ribeiro, 1978, 1991), os sítios considerados maiores encontram-se perto do rio Jacuí, tendo sido ocupados por períodos mais longos, enquanto os sítios menores encontram-se encaixados nos vales dos rios Pardo e Pardinho, em altitudes médias de 100 metros acima do nível do mar (distribuídos entre zero e 400m). Os sítios encaixados no vale possuem dimensões menores e profundidade menor da camada estratigráfica com material arqueológico (Ribeiro, 1991:348). Da mesma forma, os recipientes maiores e em maior quantidade encontram-se nos sítios próximos ao rio Jacuí, enquanto nos sítios das encostas o material é proporcionalmente menor e em menor quantidade. Esta proporção mantém-se para o tamanho e número das ‘manchas pretas’ (op.cit.). Como colocado anteriormente, a coleta ‘sistemática’ adotada pelos seguidores do PRONAPA não obedecia ‘transects’ que considerassem o tamanho do sítio, assim como a coleta dos fragmentos podiam não representar a funcionalidade das vasilhas e sua proporção real. Sendo assim, deve-se observar com cautela estas informações dadas por Ribeiro (1987, 1991), aguardando novas prospecções que utilizem coletas totais, escavações em áreas amplas e novas abodagens na análise do material cerâmico66. Ainda assim, pode-se supor67, em nível social, que a aldeia maior seria a principal e, por conseqüência, do chefe, sendo que a posição da casa e da aldeia em relação às outras nos aproximaria do tipo de chefia68, seja apenas de uma família extensa, de aldeia ou de região. A ausência de croquis, no caso de Ribeiro, aliado a ausência de mapeamento dos sítios em escala para o exemplo dado, impede um nível de análise mais aprofundado. No caso do vale do rio Jacuí, os dados arqueológicos não permitem a definição da área ocupada pelos sítios. Se houvesse um mapa da região em escala com o tamanho dos sítios, a dimensão aproximada da distribuição do material cerâmico e a inserção geo-ecológica, poder-se-ia estimar a aldeia principal e as periféricas, obtendo-se talvez até o limite do ‘cacicado’ (Hudson et alii, 1985: 723-737)69. Cruzando-se as informações arqueológicas com as informações dos séculos do contato, poder-se-ia sobrepôr os mapas arqueológicos aos etno-históricos, como buscarei demonstrar no terceiro capítulo. Historicamente, temos o exemplo da cidade de Assunção no Paraguai que foi edificada sobre uma grande aldeia fortificada que era o centro político da região, controlando uma enorme área com aldeias aliadas ou submetidas70. Sob este ponto de vista, a dimensão dos sítios e sua relação com os outros sítios seria proporcional tanto ao tipo de relação social71 como proporcional aos recursos. Os sítios mais próximos aos grandes cursos d’água estariam neste ponto por serem os mais antigos, mais fortes bélica e socialmente; pelas alianças manteriam seu ponto estratégico ao mesmo tempo que reforçariam seu potencial econômico. No caso Guarani, onde a chefia é submetida à conivência de todo grupo, só a manutenção do ethos é que asseguraria o domínio72. Desta forma, explica-se o tipo de distribuição espacial tanto do material arqueológico no sítio como a presença/ausência de determinadas vasilhas nos sítios. Os sítios nos vales encaixados, por possuírem menor representatividade social, poucas alianças, família extensa pouco numerosa, menor número de vassalos/colaboradores, são ‘jogados’ ou empurrados para as zonas limítrofes do teko’á, em zonas ecológicas menos favoráveis. Um sítio como este deve caracterizar-se por pouca incidência de grandes vasilhames (devido à ausência de grandes festas e baixa densidade demográfica por família), casas menores (menor população) e localização que alcança o limite ecológico dos 400 metros acima do nível do mar (Lightfoot e Feinman: 1982: 64-84; Essa hipótese poderia explicar o caso citado acima, em Ribeiro, 1990:348-358). Os sítios grandes, ao contrário, apresentam boa quantidade de ‘cacos’ cerâmicos de grande porte (sinal de vasilhas grandes para grandes famílias e festas contínuas ou repetidas), casas de proporções também grandes (que representam as famílias extensas), grande concentração de material arqueológico e profundidade das ‘manchas pretas’ (Ribeiro, 1978; 1991:347-358) que caracterizaria uma longa ocupação do território (Blitz, 1993: 80-96). Somente o cruzamento de todas as fontes, tanto arqueológicas como históricas e antropológicas, possibilitará ampliar o leque de interpretações a respeito dos sítios, numa visão mais holística de uma sociedade que per se era e é ainda holística. 1.3 Interdisciplinaridade na Arqueologia “.. cada vez mais a noção de ‘disciplinas auxiliares’ está desaparecendo. Os pontos de junção entre as ciências ficam cada vez mais estreitos, muitas vezes quase eliminados.”Noelli, 1993: 21-22. A história da arqueologia no Brasil passou e passa por um contínuo vai-e-vem de aproximação e afastamento da Antropologia e das outras ciências humanas. Desde sua fase mais amadorística, as relações entre o vestígio arqueológico e os grupos indígenas sempre foram buscadas. Após uma discussão infrutífera por parte do PRONAPA, desvinculando as “tradições” e “fases” das comunidades nativas, iniciou-se um debate menos estéril sobre a ligação inevitável entre algumas culturas etnograficamente conhecidas e certos artefatos produzidos por seus antecedentes. Embora ainda existam algumas discussões sobre a vinculação da Arqueologia à Antropologia ou à História73, parto do princípio de que existe uma total independência entre as três disciplinas74. Neste item, discuto que, mais do que uma pluridisciplinaridade, os estudiosos da Arqueologia Guarani devem buscar uma interdisciplinaridade. Embora pareça óbvio este tipo de constatação, vê-se ainda a perseguição de um ideal de super-especialização negativa75, levando à formulação de hipóteses restritas a um universo diminuto76, incompatível com uma sociedade a priori holística77. Um esclarecimento deve ser feito quanto aos conceitos aqui utilizados de multi, pluri e interdisciplinariedade. Os conceitos que utilizo advêm do “Dicionário Atual da Educação”, 1993.78 A partir dos conceitos voltados à pesquisa científica, defino primeiro cada um dos termos acima citados para, desta forma, situar meu trabalho como interdisciplinar. Segundo o dicionário supra-citado, multidisciplinar é a “pessoa que domina diversas disciplinas ou especialidades, mesmo sem ligação aparente entre elas, em um setor de estudos ou atividades.”79 A multidisciplinaridade consiste em uma “abordagem de ensino centrada sobre a justaposição de diversas disciplinas ou matérias exploradas paralelamente”80. Este conceito não deve ser confundido com o de pluridisciplinaridade: “o estudo de um projeto, de um problema ou de um objeto por especialistas de algumas disciplinas, agindo independentemente uns dos outros. A prática simultânea de algumas disciplinas é um modo de organização do pensamento lógico que deve, logicamente, dar um poder metodológico acurado, conhecimentos relativos mais numerosos e diversificados ao objeto. Nestesentido, pode haver concurso de disciplinas, quer dizer, que elas tendam a um objetivo comum por adição de contribuições específicas”81. Ainda segundo o dicionário, o pluridisciplinar é “quem concerne algumas disciplinas mais ou menos vizinhas ou algumas especialidades distintas.”82 ou “pessoa que domina algumas disciplinas ou algumas especialidades num setor de estudos ou de atividades”83. Como o objetivo desta dissertação é criar um modelo de arqueologia social aplicável para a sociedade Guarani, acredito que a melhor abordagem para esta dissertação seja a interdisciplinar. Interdisciplinaridade é “o estudo de um projeto, de um problema ou de um objeto para benefício de especialistas, ou com o auxílio dos conceitos, dos métodos e dos saberes de diversas disciplinas que interagem e se enriquecem mutuamente”84. O pesquisador interdisciplinar é a “pessoa que conseguiu efetuar uma síntese de diversas disciplinas ou dominar diversas especialidades conectadas. À época dos especialistas, o interdisciplinar é uma pérola rara”85. Aprofundando este conceito, o dicionário propõe que a interdisciplinaridade é uma abordagem superior, em nível epistemológico, à multi ou pluridisciplinaridade. A interdisciplinaridade nesta dissertação será empregada como a interação de disciplinas, através dos métodos e técnicas das disciplinas envolvidas, embora o objetivo seja realizar uma arqueologia social. Em determinados momentos, prevalecerão os dados da antropologia, da história, da própria arqueologia e, em menor grau, da lingüística, buscando a contribuição mais pertinente que cada uma delas pode fornecer. No segundo capítulo procuro mostrar a limitação de uma abordagem segmentada86 no estudo do parentesco. Aqui proponho formas de interpretar os sítios arqueológicos a partir do ‘cruzamento das informações’87 de disciplinas como a História, a Antropologia, a Arqueologia e a Lingüística, entre outras. “Devemos reconhecer, entretanto, que a arqueologia do pluralismo está demasiado em sua infância”88 (Lightfoot, 1995:201), embora demonstre no capítulo três que esta abordagem é possível. Tendo como objeto a sociedade Guarani à epoca dos primeiros contatos e sua organização social, deparei-me com a necessidade imediata de construir um corpus explicativo89 holístico, mais abrangente que o antropológico ou o histórico, uma vez que procuro viabilizar uma visão diferente da tradicional para os sítios arqueológicos.90 A produção científica a respeito das sociedades Guarani está rigidamente estabelecida nos conhecimentos produzidos pelas disciplinas acima citadas. Na Arqueologia, inicialmente procurei descobrir os tipos de estruturas que poderiam delimitar os diferentes usos do espaço, conforme o conceito de ‘áreas de atividade’ de Kent (1984). Neste ponto, percebi que os “metros cúbicos”91 de produção arqueológica sobre Guarani estancavam em seriações cerâmicas, análise de antiplástico e, quando muito, na relação entre forma-função. Deste modo, os onze croquis e planos de topo acessíveis92 de escavações em sítios arqueológicos não permitiam o relacionamento entre as ‘manchas pretas’ das casas e qualquer tipo de atividade social ou uso do espaço93, a não ser a delimitação tímida dos fogões para cocção94 ou para aquecimento sob as redes.95 Desta forma, a saída inevitável era encarar a inexistência de escavações em grandes áreas que apresentassem os níveis naturais e a estratigrafia completa, bem como a distribuição horizontal pelo menos para um nível estratigráfico. Do mesmo modo, são exíguas as informações sobre outros artefatos, biofatos ou ecofatos que não sejam a cerâmica, poucos artefatos líticos, o reconhecimento genérico e superficial da flora e fauna sem um aprofundamento nas ligações possíveis que ultrapassem as meras descrições96. “Como resultado, os estudos sobre processo cultural são reduzidos à catalogação de padrões de distribuição espacial e temporal da cultura material”97 (Root, 1983,195). As questões que esta dissertação suscita não serão respondidas com a manutenção de uma “arqueologia de pá” ou “arqueologia de enxada”98. Extrair informações relativas à organização social demografia, período de ocupação dos sítios, expansão dos grupos e ‘guaranização’99 não são possíveis com técnicas e métodos deste tipo. Falo aqui de um universo sensível em micro-níveis100: são necessárias escavações cuidadosas, com retirada de camadas estratigráficas mínimas, com método de decapagem horizontal e análise de micro-sedimentos, incompatíveis com a ausência de investimentos, inexistência de verbas e escassez de pessoal qualificado para longas permanências em campo. Este tipo de trabalho envolveria exposição de áreas em larga escala, uso de níveis culturais e naturais e ênfase na organização espacial dos artefatos e elementos arquitetônicos, bem como a organização do espaço interno e externo, incluindo o lugar dos fogos101, o padrão de descarte e as diferentes áreas de atividades (Noelli, 1993:76; Lightfoot, 1995:204). Não afirmo que este tipo de trabalho não exista: apenas ainda não chegou em larga escala no Brasil102, como é realizado em outros países (veja Renfrew e Bahn, 1993:161-202). As diferentes arqueologias realizadas no Brasil - pré-histórica, histórica e colonial- excluem-se mutuamente e provocam prejuízos interpretativos uma vez que possuem métodos e técnicas diferenciadas, embora tratem do mesmo objeto103. Enquanto afastam-se entre si na qualidade de sub-campos da mesma disciplina, poder-se-ia afirmar que descartam como ‘auxiliares’ as outras ciências humanas. A partir dos arqueólogos que discordavam ou não participaram do PRONAPA, e através da influência das teorias americanas sobre a variabilidade de conceitos e definições de ‘sítio arqueológico’ e suas interpretações, retomou-se a aproximação da arqueologia com outras disciplinas das ciências humanas. Aceitando-se que o objeto era o mesmo nas várias ciências104, não cabia só cruzar as informações, nem tampouco costurá-las, mas analisá-las dentro de um contexto mais amplo com métodos rigorosos que pudessem ser partilhados por todas as disciplinas envolvidas. Neste sentido, debates sobre Hermenêutica e Arqueologia têm sido bem-vindos (Johnsen e Olsen, 1992:419-436)105, e trazem à tona a validade da interpretação processual106 do passado, uma vez que existe o tempo/espaço de formação do sítio e outro do arqueólogo que o investiga. Este debate é importante à medida que se reconhece a diferença entre o estado de início de formação do sítio, o ‘pós-deposicional’ e o presente do arqueólogo, em que se inicia a intervenção, cada qual com processos históricos diferenciados (op. cit. pg. 422)107. Além disso, “há uma relação dialética entre passado e presente: o passado é interpretado em termos do presente”108 (Hodder, 1986: 170), embora esta dialética seja bem mais que apenas sínteses gerando novas perguntas (Johnsen e Olsen, 1992:421). Mesmo que os arqueólogos tenham conseguido livrar-se tardiamente da influência positivista, ao contrário das outras ciências humanas109, ainda se pode expor mais os estudos arqueológicos aos métodos desenvolvidos nas outras disciplinas como História ou Antropologia. Considerando as variáveis existentes - tempo, espaço, sociedade110 - optei pela utilização do método etnohistórico como subsídio crítico das fontes capazes de fornecer uma aproximação razoável da sociedade Guarani à época do contato111. O método etnohistórico responde (ou corresponde) às necessidades deste trabalho pela variedade de disciplinas, o recorte temporal e os diferentes objetivos das fontes. Primeiro, temos a documentação histórica, antropológica, etnográfica e lingüística, que requer não só o domínio das próprias fontes como a crítica do contexto na qual foram produzidas112; Segundo, o recorte temporal deste trabalho, que embora se proponha ao período de contato no século XVI, deve obrigatoriamente complementar-se com fontes dos séculos XVII e XVIII para os Guarani históricos e conhecer as analogias viáveis aos Guarani e Tupi modernos nos séculos XIX e XX113;terceiro, a variedade de objetivos das fontes, que prescindem de uma crítica histórica e devem ser contextualizadas, dada a diferença de interesses em jogo114, sejam viajantes, bandeirantes, governadores, padres ou provinciais. A diversidade de fontes e de recortes temporais não faz deste trabalho uma “colcha de retalhos etnográficos”115 para a Arqueologia Guarani. Antes de qualquer outro, o objetivo é fornecer subsídios para uma interpetação baseada na organização social para a continuidade da cultura e distribuição dos sítios Guarani. “Esta relação entre organização social e a ordenação espacial deveria ser tratada através dos dados do assentamento”116 (Root, 1983: 194), mas a própria arqueologia é incapaz de fornecer, no momento, dados utilizáveis para este tipo de análise. Parto, aqui, da direção contrária: ao invés de ter como ponto de partida o sítio, o padrão de assentamento e os vestígios materiais, proponho fornecer os dados históricos da organização social que permitirão novas abordagens para teorizações sobre a cultura material e a expansão cultural destes grupos: “Entendi desde o começo que, se reproduzisse novamente os métodos e modelos teóricos empregados em outras sínteses e trabalhos sobre os Guarani, que não poderia produzir nada que não fosse repetição do que existia. O que já existia em termos de produção científica nem havia explorado todas as fontes Guarani existentes!” (Noelli, 1993:377) Desta forma, não se pode tratar a Arqueologia Guarani sem as informações históricas, etnográficas e lingüísticas, uma vez que esta carece de teoria explicativa ou modelo que vá além do ecológico. Considerando que o assentamento é “reflexão direta das atividades econômicas e sociais”117 (Willey, 1953:1) e se “o objetivo dos estudos do padrão de assentamento é delimitar padrões regionais de distribuição de sítios em termos de localização, número, tamanho e função” (Root, 1983:196), o estudo das relações sociais pode servir de ponto de partida explicativo para teste em campo a posteriori, uma vez que este tipo de verificação seria impossível a curto prazo. Um modelo social com associação de fontes antropológicas, históricas e lingüísticas pode facilitar e sugerir novos rumos à direção das pesquisas arqueológicas, como, por exemplo, a delimitação dos cacicados na região sul do Brasil118. Embora incipiente na Arqueologia brasileira, outras fontes como a História Oral, a mitologia e as lendas dos grupos podem ser utilizadas como recurso para a localização dos sítios119, para conhecer as formas de utilização dos recursos florísticos, faunísticos e minerais, bem como os motivos êmicos120 para a mudança ou permanência em cada região. Deve-se ter em conta que a melhor interpretação de uma sociedade vem “de dentro”, ou, dito de outra forma, “melhor do que traduzir o texto em algo diferente dele mesmo, o propósito é, tanto quanto possível, compreendê-lo nos próprios termos”121 (Hodder, 1987:8), pois a visão do arqueólogo é, mais das vezes, uma visão “de fora”, uma vez que existe uma diferença entre “a consciência criativa do autor e a consciência reconstrutiva ou receptiva do intérprete”122 (Linge, 1977: xxiv). Essa visão êmica pode auxiliar em diversos fatores, como na interpretação do uso do espaço, da representação deste, do uso do meio, entre outros. Porém, e ainda nas outras disciplinas, faltam estudos exaustivos sobre demografia para a interpretação da expansão e ocupação dos territórios Guarani. Os trabalhos existentes configuram-se abordagens especulativas de maior ou menor acuidade, porém sem subsídios históricos ou arqueológicos que lhes autentiquem veracidade. É o caso do levantamento já realizado por Carneiro da Cunha (Cunha, 1992: introdução) sobre demografia indígena no período do descobrimento do Brasil. Para o caso Guarani, existem dois trabalhos a partir das fontes históricas, um em nível abrangente (Clastres, 1979: 77-98) e outro com recorte espacial e temporal específico (Melià, 1988:46-59). Enquanto Clastres apóia-se e aplica-se à formulação de “hipóteses fortes” (pg.78) sem o necessário rigor científico, Melià formula uma demografia Guarani para o Guairá e Tape (op.cit. pgs.60-89) no período dos primeiros contatos. Melià não descarta a utilização de ‘hipóteses fortes’ mas estimula a criação de modelos particulares123. Em termos arqueológicos, as diversas especulações a respeito de demografia carecem de qualquer rigor científico, uma vez que se baseiam em equívocos mal formulados que têm se repetido. Como exemplo, pode-se citar Prous (1992:441), onde se vincula mecanicamente o número de sítios e quantidade de material à demografia: “Aos poucos, a decoração corrugada se desenvolveria, e se tornaria predominante no interior por volta do século IX: trata-se da subtradição corrugada, composta por numerosas fases cada uma representada por muitos sítios. É período de grande expansão demográfica.” (Prous, 1992: 441) As limitações deste tipo de afirmação são várias, mas aqui vale apenas assinalar que a existência de sítios, neste caso, é fruto da pesquisa arqueológica concentrada, não do aumento do número de sítios. Sabendo que a ocupação da área de domínio pode ser indefinidamente repetida, o aumento de material cerâmico não se torna indicativo de demografia, a menos que tivéssemos certeza da contemporaneidade destas ocupações124. Baseado nestes fatores125 é que proponho a adoção de estudos interdiciplinares no lugar de pluri ou multidisciplinares. Uma vez que a sociedade é holística, não se pode desvincular a economia, a religião e a sociedade (só para citar os assuntos mais estudados). Com isto não estou propondo estudos genéricos ou abrangentes a respeito de “a cultura” sem privilegiar nenhum tema. O que sugiro é abordar uma temática com olhares distintos provenientes de diferentes áreas de conhecimento. Ao invés de buscar explicação em uma das disciplinas, procurar, em todas que estão disponíveis, teorias e modelos que possibilitem interpretações interdisciplinares. Se utilizo as diversas citadas, é por que a problemática assim o exigiu126. Não se trata de um retorno ao enciclopedismo, mas uma volta às ‘indagações’ de cunho científico que não temem levantar hipóteses ou fazer afirmações com dados limitados a um sítio, região ou recorte temporal. Como exemplo, pode-se citar os trabalhos de Moisés Bertoni127 ou de Carlos Teschauer128 nos quais se pode encontrar diversas sugestões científicas hoje comprovadas. Certamente as afirmações que apresento neste trabalho não podem ser estendidas a todos falantes do Guarani ou aos Tupi, através do tempo e do espaço. A carência de informações não permite tanta ousadia. Porém, vale como ponto de partida para outras tantas ‘indagações’ futuras no campo da arqueologia, como “implementação de análises comparativas pan-regionais”129 (Lightfoot, 1995:200). Capítulo 2- O Parentesco “Numa palavra, o parentesco não é apenas um princípio de classificação e de organização, é também um código, uma linguagem mais ou menos ideológica e mais ou menos manipulada. É, pois, uma chave para a interpretação de todas as sociedades...”Augé, 1975:20. O estudo do sistema de parentesco Guarani à época do contato ainda é incipiente. Considerando que esta é uma sociedade mais prescritiva que performativa (Sahlins, 1990), como visto anteriormente, acreditava-se que o estudo das sociedades atuais daria uma idéia clara a respeito do funcionamento destas no período anterior ao contato. Os poucos trabalhos realizados desconsideraram os efeitos das epidemias, endemias, guerras de extermínio e os efeitos a posteriori da missionarização (Noelli e Soares, 1993; Soares e Noelli, 1995). A partir disto, tratar do sistema de parentesco no período de contato requer um levantamento completo da bibliografia dos séculos 16 e 17, que não necessariamente esgota a temática. Igualmente, as lacunas existentes só podem ser parcialmente preenchidas com o auxílio da etnografia, da etno-história e da crítica histórica. Dividi a temática conforme os manuais da antropologia; em primeirolugar, a linearidade ou filiação, que consiste em analisar a que grupo pertencem os membros da família, se do pai ou da mãe; em segundo, a localidade, ou a residência dos casais após o casamento; em terceiro, as relações entre os afins, aqueles que se auxiliam segundo as regras sociais, e os não-afins, que se evitam; por último, retomo a terminologia de parentesco, já explorada em trabalhos anteriores (Soares, 1991b; 1993) e as regras para o casamento entre os Guarani. Mostrarei como estes elementos estão ligados à busca do prestígio, valor central no ethos Guarani. O vocabulário do parentesco está baseado nas definições de Augé (1975), Lévi-Strauss (1982), Viveiros de Castro (Viveiros de Castro, org.1995: convenções, pg.22-24), entre outros. Na maior parte dos casos forneço uma definição sucinta que pode ser ampliada através das discussões existentes nestas obras. Utilizo os termos mais recorrentes, salientando que as discussões teóricas a respeito do emprego deste ou daquele conceito estão fora da alçada deste estudo. 2.1 - A Linearidade (Filiação) “Se os filhos são sempre a semente coalhada do pai e se a mãe não passa de uma intermediária, chamando ao seu próprio filho ‘o filho do meu marido’, ou a semente de meu marido, ou o líquido do meu marido, Cuarasì também precisou de Tupã para transmitir à natureza viva o dom do crescimento e da fecundidade.” Recalde, 1937:65. A linearidade ou reconhecimento da filiação tem sido um tema praticamente inexplorado tanto para os Guarani históricos quanto para os modernos. Os dados que instrumentalizam esta análise provêm, em boa parte, das descrições sobre os grupos Guarani atuais, contrastados com as informações sobre os grupos Guarani e Tupi históricos e atuais. Este estudo certamente não esgota a problemática, mas estimula sua solução . Os documentos históricos do séculos XVI e XVII não possibilitam inferir qualquer tipo de linearidade, de modo que a melhor saída continua sendo o cruzamento das diversas fontes, tanto antropológicas como históricas. Em Montoya (1876), não há verbetes para a linearidade como tal, mas há reconhecimento de parentes paternos e maternos, como no verbete cherúyao caguê ndé - ‘tu és meu parente próximo por parte de meu pai’130 (T:183). Da mesma forma reconhecem-se ambos os antepassados131 - ipicuê, oreramoi (B:168). Há verbetes para heranças materiais: cherub omanobae rama ogui rapa omee chebe - 'meu pai, que havia de morrer, me deu seu arco'132, cherumbacue yâramo aicó - ‘herdei de meu pai’133 (T:336); e inclusive a existência de ‘sobrenomes’, talvez de família: téra îoapi - ‘sobrenome’ (T:359), cherenoîndába -‘sobrenome’134 (T:152), ‘sobrenome de linhagem’- ñemoñang réra, ñe.mona renoyndagûera, yeroca guêra - ‘sobrenome’135 (B:168). Contudo, parece que esses sobrenomes são uma versão ou adaptação européia136. Uma outra forma de buscarmos a linearidade de um grupo é através da terminologia de parentesco: “O termo sobrevive à norma; quando uma relação de parentesco desaparece, a nomenclatura, verdadeiro fóssil social, subsiste e testemunha a antiga realidade; o significante sobrevive ao significado.” (Poirier, 1981: 42-43). Neste caso, a terminologia referenda um tipo de linearidade indiferenciada137, uma vez que se reconhecem os parentes paternos e maternos. Che tuti = meu tio (irmão da mãe) (T:210), che rubi = meu tio (irmão do pai) (T:400), che yayché = minha tia (irmã do pai) (T:209) e che çii = minha tia (irmã da mãe) (T:116). Esta terminologia vale para emissor homem ou mulher (Homem ou Mulher Falando, HF e MF) . A análise dessa terminologia demonstra que, se os termos para pai e irmão do pai são distintos, assim como os termos para mãe e irmã da mãe, reconhecem-se os parentes de ambos progenitores (Soares, 1991b; 1993). Indo além, pode-se afirmar que este tipo de linearidade indiferenciada, tendo como único ponto de partida a terminologia, não privilegia qualquer tipo de aliança por casamento, uma vez que nenhuma das tias (paterna e materna) são tratadas como esposa ou sogra138. Nas sociedades de estrutura elementar de parentesco, onde há uma regra positiva de casamento139 é comum a prima ser tratada como esposa e a tia como sogra, o que não é o caso Guarani (veja item 2.4). A terminologia Guarani também não pode ser considerada “um afastamento em relação aos sistemas dravidianos clássicos” (Silva, 1995), embora existam diversas semelhanças com outros grupos Tupi. A questão da filiação e hereditariedade remete à existência de uma herança de posto ou posição de prestígio, como a liderança do tuvichá140,uma vez que aparentemente não existe em outros casos. Fica diluída, nos textos seiscentistas, a tendência dos chefes de família a manterem seus filhos no poder. Esta seria, mais que uma atitude comum e desvinculada da filiação ou hereditariedade, um elemento do ethos para a manutenção do prestígio dentro da família. O próprio Montoya (1836, apud Susnik, 1983:129) comenta que a liderança é “uma nobreza hereditária mas adquirida com a eloqüência”. Apenas um documento trata direta e claramente da hereditariedade e patrilinearidade do posto de cacique (Bruxel, 1958: 81-112). Refere-se ao depoimento de treze pessoas confirmando a existência de caciques entre os Guarani, de sua vivência em aldeias e do caráter ‘nobre’ deste posto141. Resumidamente, os depoimentos informaam que os caciques devem ser isentos do serviço da mita, pela sua condição de ‘nobreza’, ao mesmo tempo que os espanhóis não perderam a sua própria nobreza ao casarem-se com as filhas dos caciques (op.cit.). A conclusão que tiro desses depoimentos é que tanto Guarani como espanhóis, logo após o primeiro contato, queriam manter seus respectivos status perante suas sociedades. Uma vez que um dos componentes do parentesco Guarani é a formação de aliança via cuñadazgo, os Guarani procuravam formar laços com os espanhóis, ao mesmo tempo que os invasores ‘recebiam’ as filhas dos caciques para casamento. Com isso, os padres impediam os caciques de serem escravizados, enquanto os espanhóis não perderiam seus títulos, pois continuavam a ‘linhagem’ nobre pelo casamento com filhas de caciques. Como o documento refere-se a 1659, portanto mais de um século e meio de contato, encontra-se aqui a provável resposta para os termos presentes no ‘Tesoro’ [1639] sobre linhagens nobres, ‘casta’ de índios, ‘casta’ ou ‘sobrenome’ nobre, etc. Tratava-se de um artifício para que os caciques não prestassem serviço pessoal (mita ou yanaconato) aos ‘encomenderos’, pois seriam ‘nobres’. Ao mesmo tempo, os espanhóis não perderiam seu título nobiliárquico pois ‘casavam-se’ com filhas de ‘linhagens nobres’, isto é, as filhas de caciques. O próprio documento relata, com precisão, como se davam títulos de nobreza (‘Dom Fulano’) ao cacique encomendado (Bruxel, 1958). Não se trata, desta forma, de fonte dos primeiros contatos, mas sim os reflexos destes sobre ambas as sociedades. Outra leitura possível da linearidade é a procura de termos que representem o que Susnik (1979/80; 1983) e Melià, Grünberg e Grünberg (1976) tratam por “linaje”. O termo pode ser traduzido por linhagem, mas implica, antropologicamente falando, a existência de um ancestral comum ou, se fosse um clã, um ancestral mítico comum142. Susnik (1979/80:18-19) afirma que uma das características do ñande reko, modo de ser Guarani, é a existência de um ancestral mítico comum às linhagens. Isto reforçaria a idéia de um sobrenome, ou ‘apelido’ destas linhagens, como visto acima, implicando um sistema ou patri ou matrilinear, uma vez que alguns ancestrais, e não todos, são os antepassados míticos. Entre os Guarani, é mais apropriado falar em kindred, ou seja, um grupo de parentes ligados por laços sangüíneos ou de afinidade em torno de uma pessoa de prestígio. Neste caso, todos os ancestrais são importantes como fundadores de casas. No Bocabulário de Montoya (1876), temos chereiî, cheñemoñangába -‘família, linhagem’143 (B:02) e teií, ñemoñangába -‘casta, linhagem’144 (B:240). No Tesoro temos ñemoñangába
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