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Organização Sócio-Política Guarani

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM ARQUEOLOGIA
Organização Sócio-Política Guarani: Aportes para a Investigação Arqueológica
ANDRÉ LUIS R. SOARES
Orientador
Prof. Dr. José Proenza Brochado
Dissertação apresentada como requisito parcial e
último para obtenção do título de Mestre em
Arqueologia.
Porto Alegre, agosto de 1996.
 Esta dissertação é dedicada:
Para os acadêmicos, que tenham compreensão e respeito para com os índios;
Para os índios, que tenham paciência e bondade com os brancos;
Para minha mulher, que tem tudo isso comigo.
Molesta-me a boa gente
fazendo-me crua guerra.
Esta vida diferente, 
quem a trouxe, acaso à frente,
para danar minha terra?
Só eu sou
o que nesta aldeia estou
como seu guarda vivendo.
Às minhas leis eu a rendo;
e daqui longe me vou
outras aldeias revendo.
Como eu, acaso, quem há?
Eu sou bem acreditado,
eu sou o diabão assado,
que era o antigo Guaixará,
por aí fora afamado.
Muito belo é meu manejo:
não quero que alguém o vire,
não quero que alguém o tire.
Que me deixem, só desejo,
que a aldeia toda revire.
É bom: mais cauim beber,
vomitá-lo e vomitá-lo.
Isto é o maior regalo.
Isto sim, vamos dizer,
isto vamos festejá-lo!
Aqui se há de celebrar
o valente beberrão.
Os capazes de esgotar
o cauim, guerreiros são,
sempre anseiam por lutar.
É bom dançar, enfeitar-se,
avermelhar-se em terreiro,
se emplumar, pernas pintar-se
fumar e negro tornar-se,
ter curas de curandeiro.
De enraivar-se, andar matando,
comer e escravos prender,
ser sensual se amancebando,
meretrizes espiando:
não quero ao índio conter.
Para tanto
eu visito todo o canto,
“acreditem-me!”, dizendo.
Vêm em vão, me removendo
esses padres entretanto,
e a lei de Deus promovendo.
Aqui mora
alguém que muito escora,
junto a mim batalhador,
queimado no mesmo ardor:
Aimbiré, chefão doutrora,
dos índios pervertedor...
Fala do Guaixará. Lírica portuguesa e Tupi. Padre José de
Anchieta, séc. XVI. 
Agradecimentos
“Ela está no horizonte -diz Fernando Birri. - Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei.
Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.” Eduardo Galeano, As Palavras
Andantes
Esta dissertação é uma etapa de um longo processo, e gostaria de agradecer a todos aqueles que, de uma
forma ou de outra, dele participaram em maior ou menor grau. Esta etapa terminou, outras tantas
começam a cada dia.
No campo acadêmico, este trabalho só foi possível através do voto de confiança de Chico Noelli, que,
entre 1991 e 1993, ainda na graduação, concedeu-me uma bolsa de iniciação científica FAPERGS, onde
tive contato com os Guarani ‘de papel’, aqueles descritos na bibliografia variada à qual tive acesso. Sua
orientação valiosa nos primeiros anos de vida acadêmica me tornaram um pesquisador irrequieto e
insatisfeito, com fome de saber. Através do Chico tive acesso à outra academia, séria, obstinada, resoluta
e produtora de conhecimento. 
No mestrado, agradeço ao meu orientador, Prof. Brochado, mais que um professor, um abridor de portas,
seja através de seu conhecimento notadamente inesgotável, seja pelos desafios lançados durante os dois
anos e meio de contato irregular. Sem suas perguntas desconcertantes e suas afirmações categóricas, nada
teria sido feito; minha dívida jamais será paga. 
Aos colegas que, com paciência e compreensão, apontaram os furos do meu trabalho e da minha pessoa,
ao longo destes anos, muito especialmente Chico, Fabíola, Valéria e Adriana, entre tantos outros, um
abraço apertado no peito. Essas pessoas leram a primeira (a)versão do trabalho e contribuiram para que
eu amadurecesse idéias e espírito.
Ao Ivori, cheirueté, pela paciência inesgotável com a qual me conduziu aos Mbyá, acreditando que eu
‘prestava’ e valia a pena, pelas intermináveis horas que me ouviu e jamais falou, criticou ou apontou
minhas fraquezas. As janelas que Ivori colocou à disposição de caminhar, no sentido Mbyá, certamente
não se esgotarão assim como os ventos do sul. Aguyjevéte. 
Aos professores do pós-graduação que acreditaram comigo na proposta de fazer arqueologia sem pá,
através de índios mortos e vivos, tentando um trabalho tanto ousado como inovador, muito obrigado.
Às secretárias do pós-graduação e do CEPA, Rosana, Carla e Márcia, que agüentaram meus sem-número
de pedidos e solicitações, aturando com paciência de Jó minhas inquietudes profissionais e pessoais,
agradeço a amizade e a compreensão. 
Devo agradecer imensamente à minha família, em especial aos meus pais, que permitiram que eu
estudasse ao invés de contribuir economicamente durante toda a graduação. Publicamente ao meu pai,
sobretudo pela sua sede insaciável de conhecimento científico, para um homem de primeiro grau, e minha
mãe, que incentivou meus estudos, mesmo sem saber direito até hoje o que é um ‘pós-graduação’.
Minhas irmãs que, cada uma à sua maneira, me auxiliaram. Meu irmão que mostrou, em priscas eras, que
o homem é o que ele quer ser.
Ao CAPES, que, durante dois anos e meio patrocinou-me sem certamente saber lhufas ou bulhufas da
minha seriedade como pesquisador, do andamento de minha pesquisa, do meu curriculum, ou mesmo se
valia a pena. 
À minha mulher eu não agradeço: devo a ela o que sou e como estou: todas as palavras não exprimirão
uma só gota de poesia que se equipare ao seu olhar, ternura e alegria. 
A todos que pela minha vida passaram ou pelas quais passei, muito obrigado.
 
Sumário pg 
Agradecimentos 4
Introdução 7
Capítulo 1 - A Relação entre Arqueologia e a Organização Social 13
1.1 - Continuidade Material e Continuidade Social 14
1.2 - Arqueologia Guarani e os Modelos Sociais 25
1.3- Interdisciplinaridade na Arqueologia 44
 
Capítulo 2- O Parentesco Guarani 57
2.1 - Linearidade ou Filiação 59
2.2 - Localidade dos Cônjuges após o Casamento 67
2.3 - Relação entre Afins e Não-Afins 74
2.4 - Terminologia de Parentesco e Regras de Casamento 84
 
CAPÍTULO 3 - A Organização Política e Social 100
3.1 - Cacicado Guarani: Conceito e Abrangência Espacial 103
3.2 - Relações entre Aldeias, Teko’ás e Guarás 119
3.3 - Relações Sociais com Grupos Não-Guarani 138
3.4 - Propostas para Delimitação dos Cacicados Guarani 149
 
Conclusão 174
 
Bibliografia 191
 
Anexos 206
Capítulo 1- A Relação entre Arqueologia e Organização Social
“Um conceito de espaço deve ser entendido em um contexto social e cultural. o Espaço é uma categoria
social definida alternativamente em contextos sociais e históricos.” Kus, 1983:278.1
Neste capítulo procuro tratar a importância da compreensão da organização social em relação à
interpretação dos sítios arqueológicos e padrões de assentamento. Embora pouco comuns no Brasil, os
trabalhos que demonstram a existência de uma relação ou associação entre os dados arqueológicos e o
comportamento social dos grupos já são bastante conhecidos em outros países2. Estes estudos procuram
demonstrar a utilidade de fontes históricas, etnológicas e lingüísticas na interpretação dos sítios
arqueológicos.
No caso dos Guarani, em que a ligação entre as sociedades desaparecidas (arqueológicas) e as
sociedades históricas e atuais é inegável, diversos conteúdos das fontes históricas possibilitam uma
aproximação bastante fiel dos grupos no período dos primeiros contatos (Noelli, 1993).
1.1 -Continuidade Material e Continuidade Social
“Toda atividade envolve trabalho; todo trabalho é socialmente construído.” Bender, 1985:52.3
Neste item, parto do princípio de que há uma relação estreita entre a cultura material e a organização
social. Não é meu objetivo afirmar que a continuidade da primeira é produto da segunda; antes, aponto
para uma correlação de ambas ao longo do tempo e do espaço. Se a organização social não determina
diretamente a reprodução da cultura material, por outro lado a estimula. Proponho uma unidade e
continuidade da organização social destes grupos no períodopré-contato com o europeu. Para tanto,
parto de algumas conclusões aceitas para estes grupos: 
- Há uma unidade e uma continuidade da reprodução da cultura material e provavelmente da subsistência
destas sociedades durante pelo menos dezesseis séculos (Brochado, 1984; Noelli, 1993), conforme
indicam as datações radiocarbônicas dos sítios arqueológicos4;
- Há uma unidade lingüística comprovada pelos dicionários ao longo da conquista e da colonização
(Montoya, [1639] 1876; Restivo, [1722] 1892; Gatti, 1985; Cadogan, 1992);
- Há uma unidade da família lingüística Tupi-Guarani anterior ao contato com o europeu (como sugerida
por Rodrigues, 1964; 1984/5);
- Há uma unidade da organização social entre os diferentes grupos de fala Guarani ao longo do contato e
atualmente (Susnik, 1979/80; Melià, 1986).
 As informações a respeito da organização social são escassas e genéricas para o período de contato. A
partir da existência de terminologias de parentesco Guarani do Paraguai e dos Tupinambá do litoral,
semelhantes tanto qualitativa como quantitativamente5, pressupõe-se uma unidade cultural que permite
realizar analogias entre os Guarani e os outros grupos de família lingüística Tupi-Guarani.
Considero que as características sociais descritas no período dos primeiros contatos representam uma
continuidade do sistema anterior ao contato, assim como acontece com a cultura material e,
possivelmente, com a subsistência (Noelli, 1993). Esta organização social persiste até a atualidade, com
algumas mudanças6, conforme a bibliografia etnológica. 
Para tratar da continuidade social deve-se também realizar um recorte temporal, e aqui me refiro a uma
continuidade entre o período anterior à conquista e os primeiros contatos com os europeus. A ligação
entre os Guarani pré-contato (arqueológico) e os históricos é inegável (Brochado,1984; Schmitz, 1985:6).
Essa ligação é que permite fazer uma analogia histórica direta, ou seja, demonstrar a continuidade
cultural entre o pré-contato e o histórico (Gould,1971:143-177).
Essa continuidade remete diretamente à importância da língua enquanto veículo de informação (Root,
1983:193-219) e manutenção da cultura em uma sociedade ágrafa. As discussões a respeito da língua
como reprodutor da cultura podem ser encontradas em Noelli (1993:12-79). Nesta dissertação, seguindo
diversos autores, repito enfaticamente que, para os Guarani, “tudo é palavra”, mas com o condicionante
de que as palavras da organização social espelham e remetem a uma série de relações que se vinculam
diretamente ao universo material. Como afirma Bender, “tecnologia no mais amplo sentido da palavra,
que é não só implementos, mas toda a organização do trabalho - é estruturada por relações sociais”7
(1985:52). Desta forma, os contextos arqueológicos, como compreendidos por Hodder8 (1982:27), e as
áreas de atividade, como apresentadas por Kent (1984), devem estar relacionados a atividades sociais.
A língua Guarani, desde sua provável derivação e formação a partir do proto Tupi-Guarani por volta de
dois ou três mil anos atrás9 (proposto por Rodrigues, 1964), vem reproduzindo-se sem variações
significativas e, com ela, a organização social e a própria ordem social (Noelli, 1993:16). A língua e a
própria sociedade Guarani pode ser vista como resultante de um processo de ‘longa duração’10. A
palavra, enquanto ‘alma’ para os Guarani11, é detentora de significado12, ou seja, possui uma
representação - um signo- que ao mesmo tempo traz seu conteúdo semântico, que resistem à mudança do
seu sentido ao longo do tempo: “a linguagem é o lugar das tradições, dos hábitos mudos do
pensamento”13 . 
Segundo Noelli (1993:14), essa continuidade cultural poderia ser re-interpretada através do conceito de 
habitus, de Bourdieu (1972:175)14. O conceito de habitus traz em seu bojo uma relação dialética: “o 
habitus tanto é determinado pelo mundo social quanto determinante da percepção do mesmo” (Hunt,
1985: introdução): 
“O habitus não é apenas uma estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas,
mas também uma estrutura estruturada: o princípio da divisão em classes lógicas que organiza a
percepção do mundo social é, em si próprio, o produto da internalização da divisão em classes sociais.”
(Bourdieu, 1984: xiii)15
Sendo assim, as estruturas estruturadas funcionam como estruturas estruturantes, determinando e sendo
determinadas pelo mundo social, ou, simplificando, os Guarani responderiam a um estímulo novo com
uma resposta velha, já conhecida. Este tipo de conceito se enquadraria perfeitamente no conceito de
sociedade prescritiva proposto por Sahlins (1990:17), ou seja, aquelas sociedades onde a reprodução é a
ordem social e o comportamento segue a tradição.
No caso da sociedade Guarani, quando esta se depara com uma problemática nova, responde com uma
atitude nova, baseada na tradição. Voltandoao conceito de “estruturas” de Bourdieu, veremos que as
estruturas estruturantes funcionam como uma estrutura estruturada no passado, mas o presente não é o
mesmo que o passado. Dito de outra forma, o Guarani se comporta de uma forma tradicional, mas o
processo histórico pelo qual esta sociedade passa, ao longo do tempo e do contato com outras sociedades
não-Guarani, levam os Guarani a adequar o comportamento à nova situação, tendo como exemplo o
passado. A historicidade do grupo pode ser encarada como uma estrutura, pois “organiza a percepção do
mundo social [e] é, em si própria, o produto da internalização” (Bourdieu, 1984: xiii). Negar que havia
contatos entre as sociedades pré-hispânicas é negar sua própria historicidade16. 
Sendo assim, o comportamento da sociedade se inspirará em um discurso com tradição no passado, mas
não o próprio passado. A historicidade está sempre presente, como diz Sahlins,"o que os antropólogos
chamam de 'estruturas' -as relações simbólicas de ordem cultural- é um objeto histórico" (1990:8). O caso
Guarani, logo após os primeiros contatos, assemelha-se ao retratado por Sahlins (1990), onde a
prescritividade vale para o ethos expansionista e as relações sociais e a performatividade valem para o
acesso aos bens materiais (Sahlins, 1990:87). 
Tratando-se do período pré-contato, os Guarani mantiveram-se reproduzindo com uniformidade a
cerâmica e, por extensão, a tecnologia de alimentação e para a captação de recursos, atestados por mais
de dois mil anos através das datações de C14 (Noelli, 1993). Por conseguinte, o que procuro afirmar é
que, se a cerâmica é um aspecto da cultura material, a organização social subjacente que mantém,
estimula e reproduz esta cultura material também deve ter permanecido semelhante no período (Allen &
Richardson, 1971). 
Porém, somente um estudo minucioso considerando todos os aspectos da cultura poderia explicar a
presença de elementos que não são comuns a todos os sítios. Como procuro demonstrar no item 1.2, as
limitações das coletas e prospecções deixam margem a diversos mal-entendidos em relação à
interpretação da cultura material. Porém, a semelhança das formas e do tratamento de superfície entre a
cerâmica guarani e a cerâmica do leste Boliviano e Peruano17 (Noelli, 1993:69) pode apontar para uma
sociedade não tão prescritiva materialmente, mas mantenedora de um ethos18.Não se conhece, através da
etnografia, uma sociedade somente prescritiva ou performativa (Jorge Pozzobon, com. pessoal, 1992),
pois isto impediria seu relacionamento com os outros grupos circunvizinhos. Afirmo que a cultura
material e a organização social possuem a mesma matriz cultural, mas a reprodução de ambas ocorre de
formas diferenciadas. Ainda que uma e outra possam ser consideradas prescritivas, acredito que a cultura
material pode ser ‘mais performativa’ ao longo do tempo.19 
Os diferentes ambientes ocupados pelos Guarani ao longo do tempo20, bem como os diversos grupos aos
quais se miscigenaram podem tê-los feito assimilar diversas características exógenas que provavelmente
determinaram a existência das distintas parcialidades21 no período pré-contato22.
Mesmo durante aexpansão manteve-se a similaridade entre as diferentes línguas da família
Tupi-Guarani, o que, como visto acima, demonstra uma continuidade e provável reprodução da
organização social; esta continuidade social pode ser atestada também pela documentação histórica.
Embora não sendo farta em informações sobre a organização social, existem dois tipos de dados que são
rapidamente percebidos:
1°- As constantemente repetidas citações de ‘borracheira’, poligamia, antropofagia e guerra, (talvez não
nesta ordem) em toda documentação seiscentista. Todavia, estas são seguidas do mais completo silêncio
sobre detalhes que possibilitem o aprofundamento da pesquisa. Como afirmou Baldus23, “encarando o
conjunto das produções de ‘etnologia Guarani’ vemos surgirem dúvidas em toda parte”.
2° Aquelas contidas nos dicionários realizados por Antônio Ruiz de Montoya, o “Tesoro de la Lengva
Gvarani” e o “Bocabvlário de la Lengva Gvarani”, [1639] (1876), que reproduzem com bastante
fidelidade o sistema Guarani à época dos primeiros contatos.
A validade de “O Tesoro” de Montoya é dada por Melià (1987:24)24 :
"Entre todos -jesuítas e não jesuítas- excetuando, claro está, os mesmos Guarani- é Antonio Ruiz de
Montoya o melhor conhecedor da cultura Guarani, como fica patente em suas diversas obras. O Tesoro de
la Lengua Guarani contém a maior suma etnológica Guarani já coletada, uma lavra por enquanto
insuficientemente explorada pelos próprios pesquisadores do Guarani. A partir de palavras 'chave', com
suas conotações e associações, consegue-se levantar quadros sumamente ricos e bastante completos sobre
os mais diversos aspectos da cultura, na sincronia do tempo dos primeiros contatos.”25
Duas palavras mais sobre a utilização dos dicionários de Montoya. Em primeiro lugar, não concordo com
a posição de Melià de que as terras do Guairá eram “pouco ou nada batidas pelo espanhol” (1986:94) à
época da Conquista Espiritual26. Provavelmente a presença espanhola fosse estranha, mas a presença
dos portugueses atrás de escravos é reconhecida a partir de 1544, quando uma junta de caciques dirige-se
ao governador Irala com o objetivo de rechaçar os portugueses na região dos rios Piquiri, Paranapanema e
Tibagi, no atual Estado do Paraná (Jaeger, 1957:98).
A documentação a partir de 154927 revela uma crescente expansão em todas as direções em busca de
serviçais para mita e yanaconanato28, sendo estas encomiendas realizadas até a sete jornadas (dias)
distante de Ciudad Real via fluvial, na provícia do Guairá (MCA I,pg.126). Se a presença física dos
espanhóis não foi sentida, os seus efeitos certamente foram, como atestam alguns verbetes do próprio
dicionário. Provavelmente a violência da escravização29, somada ao efeito das epidemias, tenham dado
origem a verbetes como opa catû cheânã ocañy cheheguî - ‘morreram todos meus parentes’30 (T:89).
ou cheyoguâmo gúara oy êyâ reg - ‘acabaram os do meu país’31 (T:129).
Em segundo lugar, mesmo que os dicionários tenham sido escritos em uma região de contato, não
significa que o contexto tenha sido alterado profundamente e que a organização social não fosse
semelhante. Parece claro que através dos verbetes acima e pela rede de contatos estabelecidos pelos
Guarani com seus mensageiros, a influência dos conquistadores se fez perceber muito antes de sua
presença. A simples chegada do europeu fez espalhar a morte através das epidemias muito antes do
próprio contato.32
 Os dicionários são fontes geradas por observadores presentes e são guias para compreensão da língua;
nas palavras de Melià, ”para entender e ser entendido” (1986:266). Porém, relativizando-se a atuação de
Montoya como missionário a serviço da igreja, existe a possibilidade de que a maior parte dos aspectos
da religião ou ligados aos mitos não tenham sido compilados. Como este trabalho versa sobre a
organização social, o risco de ausência de informações é menor, uma vez que os padres deveriam
conhecer o parentesco indígena para regular o matrimônio segundo os padrões cristãos. Além disso, não
existe fonte mais completa, onde se possa observar de forma aprofundada todos os meandros da
organização social ainda em funcionamento (Melià, 1986:260-267). O objetivo do dicionário era o
conhecimento da sociedade indígena da melhor forma possível, de forma a convencer os nativos à
catequese33. 
Nesta dissertação, utilizo o dicionário enquanto ponto de partida lexical para a comprovação da existência
de algumas práticas dentro da organização social e política. Os verbetes que apontam para as instituções
sócio-políticas serão comparados com as informações históricas e antropológicas que ratificam sua
existência. 
“E se conclui que têm caciques e que há vassalos, dos nomes que têm para significar a um e outro. -Este é
meu vassalo, diz o cacique: cocheboia, em sua língua. E o vassalo diz: cocherubicha, este é meu cacique. 
E é claro que não teriam nome para significar o que não tivessem.” (Certificação do Padre Juan
Suárez de Toledo [1658], In: Bruxel, “A Nobreza dos Caciques Guaranis”, 1958, pg.101)[grifo meu]
Em outras palavras, se existem vocábulos para parcialidade34, escravo ou adoção, estas práticas existiam,
mas deve-se ler criticamente estes verbetes para aproximar-se do seu conteúdo social contrastando-os
com outras fontes, sejam históricas, etnológicas ou por analogia com os outros grupos35.
Outra forma de justificar a possibilidade de ter havido a continuidade da organização social é através da
contextualização das diversas obras produzidas em torno deste assunto. Colocados lado a lado, os termos
coletados para os Guarani coloniais e atuais permanecem idênticos,36 porém reduzidos em número. Se
analisados contemporaneamente, a semelhança das terminologias nos primeiros contatos ocorre tanto
entre Guarani como entre outros grupos Tupi-Guarani37.
Dentro da proposta de que, na arqueologia, o maior indicador da presença cultural da sociedade Guarani
continua sendo a cerâmica, e essa mantém-se sem variações significativas até o contato com o europeu
(Noelli,1993:12) devo lembrar que “o contexto cultural inclui não somente o meio físico-ecológico, mas
também o contexto social“ (Kus, 1983: 286)38. A organização do espaço, das estruturas de habitação e
da aldeia obedece também a uma ordenação social (Kus, 1983:291; Eliade,s.d.), ainda não estudada.
 Aqui aponto para uma problemática da arqueologia brasileira e, em especial, a que trata das comunidades
indígenas historicamente conhecidas, onde é impossível desvincular o homo faber do homem social.
“Deve-se reconhecer que as ações sociais tem conseqüências não previstas, que existe freqüentemente
uma falta de correspondência entre a intenção e os seus efeitos materiais”39 (Friedman,1982). Sendo
assim, o trabalho ao qual me proponho é formular uma hipótese de continuidade da cultura material,
refletida na cerâmica, e da cultura Guarani enquanto língua falada e reproduzida, através da organização
sócio-política e do sistema de parentesco. Esta hipótese complementa-se com o modelo ecológico
formulado por Noelli (1993) e, paralelamente, com os dados arqueológicos até agora existentes.
1.2 - Arqueologia Guarani e os Modelos Sociais 
Quando não temos nenhuma expectativa e nenhuma teoria, não temos nenhum
quebra-cabeças.” Moore, 1983:174.40
Tratar da continuidade da organização social e a relação desta com a arqueologia Guarani requer uma
revisão do que já foi feito no Brasil. A relação entre as comunidades indígenas e o material arqueológico
foi estabelecida desde o primeiro século de contato41, sendo abandonada nos anos ‘50 em virtude de uma
profissionalização dos arqueólogos. A partir dos anos ‘60, cria-se o Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas - PRONAPA, que, inicialmente, tinha o objetivo de estabelecer cronologias relativas e
determinar a direção das influências, migração e difusão das culturas (Noelli, 1993:37) através do método
Ford (1962). Essas cronologias estavam organizadas em conjuntos artificiais denominados fases e
tradições42. 
O método Ford (1962:7) visualizava a produçãohumana a partir de uma ótica evolucionista, descartando
o ‘homem’ e interessava-se somente pelos “mecanismos pelos quais modificam-se a cultura”. Ford
acreditava que as criações humanas só podem surgir por invenção, descobrimento ou empréstimo, sendo
que “as novas formas culturais...só podem derivar de forma precedentes” (idem). Desta maneira, Ford
reduz a arqueologia a uma ciência ‘definidora de mudanças’ e limita a capacidade humana às inovações
através de pequenas modificações ou influência externa à sociedade, afirmando que a cultura material é
como um ‘modismo’ temporário onde o arqueólogo observa o passar do tempo (pg.09). Esta seria a tarefa
primeira do arqueólogo: “a ordenação dos restos de antigas culturas” através da classificação similar ao
sistema zoológico de Lineu (pg.11). Não se pode esquecer que o objetivo era a cronologia, estabelecer o
período de ascensão e queda de determinada moda cultural. Este fim, a cronologia relativa, tornou-se
desnecessário com as datações por C14. 
Outro detalhe mal apropriado pelo PRONAPA quanto ao método Ford foi seu conteúdo interpretativo43.
A prova que determinava se a seqüência estava certa era sua aplicabilidade. No caso do Programa, não
havia fins interpretativos. O fim último era determinar o conjunto ao qual pertenciam os artefatos, sem
problematizar as informações obtidas. 
“A utilização destes conceitos [fases e tradições], descolados do corpo teórico do qual se originam, fez
com que o principal objetivo de pesquisa dos arqueólogos influenciados pelo PRONAPA se resumisse,
durante muito tempo, na classificação dos registros arqueológicos descobertos em fases e tradições, novas
ou já conhecidas. Assim, definir fases e tradições transformou-se em paradigma para um determinado
grupo de arqueólogos brasileiros, condenando-os a um contra-senso científico, na medida que os meios
para atingir o conhecimento (os conceitos) transformaram-se na finalidade última de sua pesquisa.” (Dias,
1994:25)
Além disso, tratava-se a América como exemplo das ‘altas culturas’, cuja porção da cultura material
analisável no sítio era a cerâmica. Somada a esta limitação, o método Ford teorizava sobre análises como
ocupação do sítio diacronicamente, através da estratigrafia nos sítios e a distribuição espacial das
tradições, o que não era seguido pelo Pronapa. 
Os elementos propostos por Ford para tipificar a cerâmica eram a forma, a decoração, o tratamento de
superfície, o método de construção, a cocção, o antiplástico e o material básico, no caso a argila
(Ford,1962:20). O Pronapa utilizou, para a cerâmica Guarani, somente o tratamento de superfície e o
antiplástico, sendo a decoração incluída no primeiro. Ainda segundo Ford, devido à ausência de
indicações temporais e espaciais, os critérios para a tipificação cerâmica deveriam partir de cada pessoa
(pg.27), o que redundou, na proposta pronapiana, nos diferentes tipos de corrugado44 e nos outros
tratamentos de superfície. Ademais, os critérios deveriam ser partilhados por todos pesquisadores, de
forma que as reclassificações produzissem os mesmos resultados, o que não ocorreu no Programa, uma
vez que o critério do antiplástico não deveria ser revisto após a primeira análise, pois poderia prejudicar
sua definição45. 
Outra recomendação pouco adotada pelo Pronapa foi a separação das amostras por escavação e por coleta
superficial sistemática, bem como as recomendações referentes às percentagens, como a variabilidade de
formação de fragmentos a partir de vasilhas grandes ou pequenas, a possibilidade de mais de um tipo de
tratamento de superfície na mesma vasilha, a vida útil de cada peça, etc (Ford, 1962:38). Enquanto Ford
propunha a utilização conjunta da seriação e da superposicão estratigráfica (pg.41), o Pronapa
recomendava a utilização somente da primeira, afirmando que “se uma tal seqüência não concordar
plenamente com os resultados das datações C14, as datas podem estar mais erradas do que a seriação”
(Meggers & Evans, 1970:79).
No tocante à seriação é que se encontra o maior número de disparidades entre o método quantitativo
proposto por Ford e a proposta de Betty Meggers para o PRONAPA. Na utilização do método Ford,
alguns procedimentos nem sequer foram revistos pelos pronapianos, como o número mínimo de
fragmentos para a coleção (100 fragmentos) uma vez que “cada coleção deve recolher-se sem selecionar
e deve ser bastante grande para se obter percentagens úteis” (Ford, 1962:42), ao contrário de algumas
coleções onde se encontra uma fase definida por um sítio46 (anexo 1). 
Outra falha recorrente é o controle das amostras, onde pode haver arbitrariedades tanto na coleta
superficial, na área que corresponde à totalidade do sítio, no caráter assistemático tanto da coleta quanto
da classificação dos tipos. No caso específico da arqueologia Guarani, a coleta aleatória poderia priorizar
fragmentos grandes em detrimento dos pequenos, descaracterizando a funcionalidade e a forma das
vasilhas. Por exemplo, os cambuchí (talhas) são maiores e produzem maior quantidade de fragmentos,
em oposição aos ñaembé ou ñae (pratos). Além disso, pela durabilidade, os yapepó e ñaetá (panelas que
vão ao fogo) deveriam produzir maior quantidade de fragmentos em contraposição aos cambuchí, que
deveriam ser menos ‘manipulados’ devido as suas dimensões. Outra definição repetida para o caso da
Arqueologia Guarani foi a existência de ‘elementos alienígenas’, verificados através das seriações obtidas
por coletas superficiais. Em nenhum momento aparecem as hipóteses de reocupação sucessiva, de
troca-comércio-apropriação, de sítios revolvidos ou de caráter idiossincrático, como uma coleta de
‘objeto exótico’ em outros locais abandonados ou não. 
Quanto à estratigrafia, apesar da utilização dos níveis artificiais, Ford acentua que a escavação devem
ocorrer em níveis “os mais finos possíveis” (1962:46), devendo-se anotar a estratificação, ou as camadas
naturais, uma vez que “o absurdo de seguir níveis artificiais (sic) é o mesmo que seguir a estratificação
visível” (Ford, 1962:47), enquanto no Pronapa adotou-se o padrão de 10 centímetros como nível artificial
. 
No lançamento do “Guia para prospecção Arqueológica no Brasil”, por Evans & Meggers (1965) é que
se encontram o objetivo real do Programa, a dissonância com a arqueologia Guarani e a falta de eco com
o método Ford.
Em primeiro lugar, Evans & Meggers iniciam declarando que “a análise arqueológica e sua interpretação
dependem, sobretudo, da coleta sistemática de espécimes em sítios arqueológicos e de sua respectiva
documentação” (1965:vii)47, proposição que entra em choque com sua própria proposta de se visitar
diversos sítios no mesmo dia (Evans e Meggers, 1965:32). 
Partindo do princípio que a Arqueologia é uma subdivisão da Antropologia, e valorizando a domesticação
de plantas como divisor de águas entre a sobrevivência e as altas culturas (pg.4), Evans & Meggers
demonstram os limites intrínsecos que o Pronapa traz desde sua formação: a idéia já formada de que a
América do Sul foi recentemente ocupada, não apresentando características que legitimem uma pesquisa
intensiva além do mapeamento dos sítios e a denominação das Tradições. Além disso, a prática de campo
seguindo níveis artificiais de 10 cm distoava da sugerida no Guia e em Ford (1962), onde os níveis
artificiais fossem os menores possíveis e passíveis de divisão (Ford,1962:11). Além disso, a premissa
básica de que as culturas obrigatoriamente apresentavam mudanças significativas, mesmo em curtos
períodos de tempo, obrigou os pronapianos a adequar os sítios à regra, ao invés do contrário48. 
 Ainda no campo das contradições, o trabalho de campo consistiria “na localização de todos os sítios às
margens do rio e da escavação de um ou dois cortes estratigráficos em cada um“ (Evans & Meggers,
1965: 32) pois “afortunadamente, os mecanismos de mudança cultural são simples” (sic) (Ford, 1962:7) e
a prospecção deveria seguir no ritmo de dois ou três sítios em um dia. Rapidamente enumerando os
equívocos que foram perpetuadospelos pronapianos mesmo após a vigência do Programa, percebe-se:
- o interesse nas rotas de migração, descartando os sítios de interior, mesmo que próximos aos rios;
- a ‘pressa’ na prospecção, partindo da falsa premissa de que a maioria (ou todos) os sítios são “pouco
profundos”. A recomendação de trinta sítios em seis semanas totaliza a média de cinco por semana,
mesmo em áreas de grande densidade regional (Evans e Meggers, 1965:42); 
- a realização de cortes do tipo cabine telefônica49 em sítios que poderiam ter centenas de metros
quadrados, invalidando os cortes enquanto amostras válidas como pretendidas por Ford (1962). Os cortes
de 1x1m ou 2x2m nem sempre trouxeram o mínimo de 150 a 200 cacos para a realização de seqüências
seriadas (anexo 1) como pretendiam Evans e Meggers (1965: 36); ao mesmo tempo, estes autores
afirmam que em solos compactos deve-se utilizar a picareta para afofá-los, sendo que, após a ‘afofada’
com a picareta, retirar o material com cuidado para não misturá-los de níveis! (sic)( Evans e Meggers,
1965:38).
- a observação, quase nunca seguida, de documentar os níveis naturais sempre que possível, ainda que
utilizando níveis artificiais de 8 ou 5 cm (ao invés dos dez centímetros generalizados);
- a preferência do método oportunístico em detrimento do probabilístico, excluindo grandes áreas pelo
objetivo do Programa (Noelli, 1993:36);
- a incongruência entre as coletas totais (‘se o material estiver esparso’) e parciais (‘se o material é
abundante’), aleatórias (todo material de uma área) ou seletivas, (no caso de “ser reconhecida a seqüência
local”, Evans e Meggers, 1965:34)50. 
Apesar da produção por parte dos próprios pronapianos relativa aos sítios hoje considerados Guarani,
Meggers & Evans (1977:34) estabelece o surgimento da Tradição Tupiguarani a oeste do Estado do
Paraná no período 500-1000 d.C. e, mesmo reconhecendo que esta tradição está associada aos falantes do
Tupi-Guarani51, continua desvinculando a Tradição arqueológica dos grupos historicamente conhecidos
(Meggers & Evans, 1977: 36). Os autores afirmam que as seqüências seriadas demonstram a transição da
pintura para o corrugado e o escovado. As limitações apontadas acima e no próprio Guia (1965),
principalmente no que concerne às coletas e à definição das fases, não foi suficiente para abater o
princípio fordiano de mudança e empréstimo das culturas. Ademais, havia contradições nas próprias
afirmações sobre a distribuição e sucessão das ‘subtradições’, pois, se a pintura havia cedido lugar ao
corrugado e este ao escovado, era impossível que a ‘subtradição pintada’ tivesse chegado ao Estado da
Bahia em 1200 d.C. e no Estado do Rio Grande do Norte em 1500 d.C., contrariando sua mesma premissa
de ‘expansão rápida’ dos Tupiguarani (Meggers & Evans, 1977:41).
Ainda que não admitindo o acúmulo de falhas proposto pelo Pronapa, mas percebendo a limitação da
metodologia imposta, Meggers & Evans (1985) publicam “A utilização de seqüências cerâmicas seriadas
para inferir comportamento social”, admitindo que “a maioria dos arqueólogos não mais se satisfaz em
apenas recuperar e descrever antigos vestígios das atividades humanas” (pg.4), contrariando os objetivos
de Ford (1962: 6-7) e do próprio “Guia..” (1965). Esta espécie de mea culpa arqueológica está
claramente descrita:
“Atualmente acreditamos que fases definidas em termos de seqüência seriada podem ser relacionadas a
comunidades autônomas ou semi-autônomas e que as tradições definidas em termos de fases que
compartilham um conjunto de elementos cerâmicos, provavelmente, representem entidades tribais ou
lingüísticas.” (Meggers & Evans, 1985:5)
Porém, a relação entre parcialidades e as ‘fases’ arqueológicas ainda deve ser discutida com muito
cuidado, pois tanto a metodologia quanto a ausência de teoria pronapiana deve ser tomada com cautela.
Mesmo assim, as duas limitações reconhecidas pelos autores são a pouca diversidade cerâmica e a pouca
utilidade em termos espaço-temporais (pg.6), ao contrário de todas as supra-citadas e as que foram
reclamadas no encontro final do Programa. O estudo da cerâmica adquiriu uma importância que
sobrepujava todas as outras informações existentes, advindas da etno-história, da etnografia, da
lingüística e da própria arqueologia (Noelli, 1993:35).
“A definição de fases e tradições foi encarada enquanto finalidade última da pesquisa no Brasil e não
como um meio para a descrição e a sistematização de dados a serem interpretados pela teoria
antropológica. A falta de reflexão teórica na arqueologia brasileira abriu margem para a consolidação de
uma visão míope quanto a amplitude do método pronapiano, estruturalmente delimitado ao nível
descritivo de análise.” (Dias, 1994:37)
Estas descrições perfazem 95% dos ‘modelos teóricos’ criados para elucidar as sociedades Guarani
pré-contato com o europeu, sendo que só a partir dos anos ‘90 retomam-se as associações entre
arqueologia e etnografia (Noelli, 1993: introdução).
A reprodução dos modelos interpretativos dos anos 60 continua tendo seguidores na arqueologia Guarani
(Schmitz, 1985; Kern et alii, 1991). Além das seriações cerâmicas ou escavações parciais de algumas
casas, a pesquisa pouco se desenvolveu52. Um caso de utilização de métodos de escavação em grandes
superfícies, tais quais os usados nos sítios europeus, com a preocupação de registro de todas as
evidências, ainda está por ser publicado53.
Nesta esteira é que surgem os modelos interpretativos realizados para tentar superar a falta de dados
arqueológicos, apoiados na bibliografia ao invés de em escavações (Noelli, 1993; Landa, 1995)54. Esses
modelos deveriam ser testados em campo, mas a total impossibilidade financeira e estrutural de se
realizarem escavações em áreas amplas e a longo prazo estimula o surgimento de trabalhos bibliográficos
visando orientar formas diferentes para as escavações futuras. Meu trabalho inclui-se neste esforço de
procurar uma nova ótica para interpretar os sítios que estão por escavar. 
Aqui lanço uma revisão bibliográfica realizada sobre o parentesco Guarani e apresento algumas fontes
sobre o entrosamento entre estes dados e a arqueologia das sociedades complexas. 
Nas bibliografias históricas e antropológicas, encontram-se dois problemas de ordem metodológica para o
estudo do parentesco Guarani: primeiro, a ausência quase total de informações sobre organização social à
época do contato e, em segundo lugar, a idéia de "eterno presente etnográfico" nas sociedades indígenas,
que resultou em conclusões precipitadas quanto ao sistema de parentesco dos Guarani no período
pré-colonial, pois não se consideram fatores como a redução demográfica, os efeitos de epidemias e
endemias, as guerras de extermínio, a escravização, a redução espacial e a reestruturação e/ou
ressignificação da organização social (Noelli e Soares, 1993; Soares e Noelli, 1995; Lightfoot, 1995:202).
As etnografias Guarani contemporâneas que apresentam terminologias também não consideraram a
redução terminológica advinda do contato com o europeu (Noelli & Soares, 1993). As únicas exceções
são os trabalhos de Wagley (1942) sobre os efeitos do despovoamento na organização social Tapirapé,
para os Tupi, e Chase Sardi (1989), sobre os efeitos do deflorestamento entre os Mbyá-Guarani.
As pesquisas modernas foram pioneiras em fornecer um novo olhar sobre as sociedades indígenas e suas
organizações sociais, acrescentando informações vitais para a compreensão dessas sociedades. Contudo,
não recorreram às fontes históricas para se estabelecerem ligações com os sistemas do período colonial. A
desvinculação da etnologia com a etno-história causou perdas interpretativas e de constituição de
conteúdos antropológicos contemporâneos. Visando contribuir para a redução dos problemas causados
por esta desvinculação, procurei reunir todas as informações, arbitrariamente separadas em prejuízo da
interpretação e da formação de opinião sobre aspectos culturais Guarani.
O parentesco Guarani foi abordado de várias formas, tendo sido organizado diferentemente,em três casos
distintos:
1º caso - de grupos Tupi-Guarani, tratados de forma genérica e sem ordem cronológica;
2ºcaso -de um grupo Guarani, delimitado espaço-temporalmente;
3º caso - análise e outros aspectos da organização social de um grupo.
Essas abordagens foram realizadas em diferentes momentos, mas sua sistematização segue da abordagem
mais genérica para a mais específica, não seguindo ordem cronológica. Todas as informações a respeito
dos Tupi-Guarani são válidas e úteis em nível de analogia, uma vez que a proximidade cultural e
lingüística permite aproximações por comparação para sanar dúvidas. Porém, busco um modelo para os
Guarani dos primeiros contatos.
1° Caso: os trabalhos de Carlos Drumond (1943,1944) listam os termos de parentesco Tupi-Guarani
extraídos de fontes dos séculos 17 ao 20, como o Vocabulário na língua Brasílica (Anônimo,
séc.XVII,1938), o Dicionário Português Brasiliano (1795), Restivo (1722) e Stradelli (1928). Drumond
levanta aspectos gerais da terminologia como o sexo da pessoa que fala (Homem ou Mulher falando - HF
ou MF). Observe-se que o autor não distingue os grupos, nem considera a distância temporal que os
separa, impossibilitando uma análise rigorosa sobre a organização social. No mesmo caso se enquadra
Ayrosa (1950). 
Fernandes [1947] (1989), apesar de trabalhar com um grupo específico (Tupinambá), desconsidera a
distância temporal entre as diferentes fontes e os diferentes objetivos das crônicas que utiliza, sendo
criticado por Oliveira Filho (1987) por ter realizado uma "colcha de retalhos etnográficos". Na verdade, e
apesar das limitações colocadas acima, o trabalho de Fernandes é o mais rigoroso realizado para o grupo
em questão. Mesmo sendo mecanicista, o esgotamento das fontes realizado por Fernandes é pioneiro por
abordar uma temática de forma sistemática e exaustiva. 
2° caso: Há Watson (1944), que realiza um estudo específico sobre os Kaiová-Guarani. A autora recolheu
a terminologia de parentesco durante seis meses na reserva de Taquapirí, considerando o sistema de
parentesco como classificatório, ou seja, aquele onde se designa, sob um mesmo termo, pessoas que não
pertencem à mesma categoria de parentes (Augé,1975:64). Porém, a autora não considerou o efeito da
redução demográfica no uso da terminologia de parentesco, o que impossibilita uma elaboração
conclusiva. Também faltou um esgotamento das fontes históricas pesquisadas, deixando a análise
documental pouco explorada (Melià, Saul et Muraro, 1987; Noelli et Landa, 1991). 
Lafone Quevedo, que trabalha unicamente com o “Tesoro” de Montoya, não realiza uma análise
sistemática da terminologia (1912) e faz uma interpretação lingüística completamente desprovida de
análise, segundo Baldus (1954). 
Para os Tupinambá, as primeiras listas pertencem a Araújo [1618] (1948), trabalho que não foi
aproveitado pela maior parte dos estudiosos (Baldus, 1954). Para as tribos de fala Tupi-Guarani, Galvão
(1954) lista os termos para diversas tribos xinguanas, sendo do grupo Tupi as tribos Kamaiurá e Aueti. O
autor cita o problema de redução demográfica dos grupos, mas não levanta suas conseqüências para a
terminologia e organização social. A similaridade entre as listagens a respeito da terminologia de
parentesco é um dos fatores que permite realizar analogias entre os Tupinambá e os Guarani do século
XVI. 
3° caso: Recalde (1937) faz uma análise lingüística da terminologia, criticada por Baldus (1954) por não
ter embasamento etnológico, motivo pelo qual não foi utilizado neste trabalho. Wagley e Galvão (1946),
comparando a terminologia de três grupos Tupi-Guarani55, classificam a terminologia do tipo "Dakota,
com variações". No mesmo ano, porém, Philipson (1946:16-17), comparando as tabelas do trabalho de
Wagley (1946) com as tabelas produzidas por Baldus [1935] (1970) declara que "o trabalho [de Wagley
e Galvão] peca por falta completa de análise lingüística" e que não existe "o" sistema de parentesco
Tupi-Guarani, mas "sistemas diversos em grupos diversos". Mais tarde, MacDonald (1965) retoma a
crítica de Philipson da incompatibilidade entre os sistemas das tribos Tupi-Guarani e o sistema Dakota,
apresentando a terminologia de 11 grupos Tupi 56. 
Esta crítica bibliográfica é necessária para esclarecer que não há trabalho antropológico (etnográfico e
etno-histórico) ou histórico que analise acuradamente o funcionamento do sistema de parentesco Guarani
da época do contato, para que se possa então, fazer projeções para o período pré-colonial.
No tocante à Arqueologia, somente um trabalho foi realizado no Brasil demonstrando a importância da
organização social e o parentesco para a interpretação dos sítios arqueológicos (Wüst, 1990). O que se
encontra na bibliografia arqueológica é o parentesco sendo utilizado para referendar os achados
arqueológicos, como no caso das repetidas informações sobre as casas comportando famílias extensas e
os enterramentos em urnas funerárias57. Mesmo com o volume de informações disponíveis, não há
trabalhos sobre a importância da família, da chefia e do parentesco para explicar outros motivos para a
ocupação das áreas e a expansão dos Guarani sobre seu vasto território pré-colonial. 
Algumas afirmações feitas ao longo desta dissertação referentes a interpretações sociais para a
arqueologia Guarani serão justificadas neste item a partir de exemplos encontrados em outras sociedades
conhecidas. 
Em primeiro lugar, baseado em Kus (1983:290), parto do pressuposto de que todo espaço é ordenado
socialmente. O poste central de uma habitação é o ‘centro do mundo’58, representando um universo
simbólico que é socialmente organizado (Kus, 1983:291; Kapches, 1990:49-67).
No caso Guarani, a arquitetura ainda não foi explorada como fonte59, mas pode-se estabelecer uma
analogia geral e indireta, na qual talvez a casa maior seja habitada por maior número de pessoas e
conseqüentemente com dimensões espaciais maiores60 (Kapches, 1990:49, Lightfoot e Feinman: 1982:
64-84 e veja planos de topo em Palestrini, 1975, 1984; Chmyz, 1977, 1983; Morais et Perasso, 1984;
Schmitz et alii, 1990, apud Noelli, 1993: anexo 1). Nos ‘pueblos’ hopi do sudoeste americano temos uma
distribuição espacial da cerâmica dentro das casas que torna possível a distinção dos clãs moradores, suas
áreas de armazenamento de grãos, e inclusive as casas pertencentes ao mesmo clã dentro do ‘pueblo’
(Adams, 1983:44-61).
No caso da aldeia Guarani, a casa melhor localizada e com a estrutura de habitação maior, mais reforçada
e com maior número de fogos pertenceria ao chefe (seu número determinaria o status da casa: Kapches,
1990:49). O caso dos Tucano também serve de parâmetro comparativo para as ocupações ao longo dos
grandes cursos fluviais. Segundo sua mitologia61, os clãs antigos foram ocupando os territórios
melhores62, dando lugar à ocupação posterior pelos clãs mais ‘jovens’ rio abaixo. Como a ocupação
Guarani é por ‘enxameamento’ (Brochado, 1984), deve-se esperar que os sítios mais antigos e ocupados
por mais tempo estejam na margem dos grandes cursos hídricos, tanto pela antigüidade como pelo
prestígio social (veja capítulo três). 
No caso Guarani temos o modelo sugerido por Schmitz (1985:45-52) para o movimento das aldeias em
um determinado território de domínio. Através da seriação cerâmica, o autor propõe a ocupação e o
movimento de duas aldeias, analisados sob a ótica do ‘esgotamento’ de recursos e posterior mudança
espacial63. Contrariando esta análise, a partir dos mesmos sítios, sob um enfoque social, suponho, a partir
dos mesmos dados, diversas aldeias contemporâneas de dimensões diferentes ou, ainda, uma aldeia maior
com uma chefia mais poderosa, que mantém sob sua vassalagem uma (ou mais) aldeia menor,
‘empurrada’ para a área de recursos mais pobres que a várzea (conforme proposta de Lightfoot e
Feinman: 1982: 65-66).
Propondo este modelo com mais vagar, parto da premissa de que o território é ocupado de forma lenta e
manejada em nível ambiental (Noelli, 1993), de forma que a conquista do território será através daguerra64 (item 3.3) ou cuñadazgo (item 2.3). Sendo assim (novamente similar a mitologia Tucano), os
ocupantes mais antigos devem ocupar os lugares mais estratégicos (rios principais, controle de recursos
ambientais, etc) ao mesmo tempo que ampliam sua rede de parentesco com a chegada de outros grupos
que precisam sua permissão para se instalarem (item 3.2). A ocupação, desta forma, processar-se-á em
sentido radial a partir do melhor ambiente com mais facilidade de trânsito (pela importância dos convites,
item 3.2), em direção à periferia sócio-ambiental, ou seja, menores recursos devido ao menor prestígio
(itens 2.2, 3.2). 
Este modelo não exclui o modelo ecológico já citado (Noelli, 1993) ao mesmo tempo que não é excluído
pelos dados arqueológicos. O exemplo os afluentes do rio Jacuí e os dados propiciados pelos trabalhos de
prospecção arqueológica nesta região, mesmo que estes dados sejam parciais, não exclui as hipóteses aqui
levantadas65.
Nos sítios da fase Trombudo, no rio Jacuí (segundo Ribeiro, 1978, 1991), os sítios considerados maiores
encontram-se perto do rio Jacuí, tendo sido ocupados por períodos mais longos, enquanto os sítios
menores encontram-se encaixados nos vales dos rios Pardo e Pardinho, em altitudes médias de 100
metros acima do nível do mar (distribuídos entre zero e 400m). Os sítios encaixados no vale possuem
dimensões menores e profundidade menor da camada estratigráfica com material arqueológico (Ribeiro,
1991:348). Da mesma forma, os recipientes maiores e em maior quantidade encontram-se nos sítios
próximos ao rio Jacuí, enquanto nos sítios das encostas o material é proporcionalmente menor e em
menor quantidade. Esta proporção mantém-se para o tamanho e número das ‘manchas pretas’ (op.cit.).
Como colocado anteriormente, a coleta ‘sistemática’ adotada pelos seguidores do PRONAPA não
obedecia ‘transects’ que considerassem o tamanho do sítio, assim como a coleta dos fragmentos podiam
não representar a funcionalidade das vasilhas e sua proporção real. Sendo assim, deve-se observar com
cautela estas informações dadas por Ribeiro (1987, 1991), aguardando novas prospecções que utilizem
coletas totais, escavações em áreas amplas e novas abodagens na análise do material cerâmico66. 
Ainda assim, pode-se supor67, em nível social, que a aldeia maior seria a principal e, por conseqüência,
do chefe, sendo que a posição da casa e da aldeia em relação às outras nos aproximaria do tipo de
chefia68, seja apenas de uma família extensa, de aldeia ou de região. A ausência de croquis, no caso de
Ribeiro, aliado a ausência de mapeamento dos sítios em escala para o exemplo dado, impede um nível de
análise mais aprofundado. 
No caso do vale do rio Jacuí, os dados arqueológicos não permitem a definição da área ocupada pelos
sítios. Se houvesse um mapa da região em escala com o tamanho dos sítios, a dimensão aproximada da
distribuição do material cerâmico e a inserção geo-ecológica, poder-se-ia estimar a aldeia principal e as
periféricas, obtendo-se talvez até o limite do ‘cacicado’ (Hudson et alii, 1985: 723-737)69. Cruzando-se
as informações arqueológicas com as informações dos séculos do contato, poder-se-ia sobrepôr os mapas
arqueológicos aos etno-históricos, como buscarei demonstrar no terceiro capítulo.
 Historicamente, temos o exemplo da cidade de Assunção no Paraguai que foi edificada sobre uma grande
aldeia fortificada que era o centro político da região, controlando uma enorme área com aldeias aliadas ou
submetidas70. 
Sob este ponto de vista, a dimensão dos sítios e sua relação com os outros sítios seria proporcional tanto
ao tipo de relação social71 como proporcional aos recursos. Os sítios mais próximos aos grandes cursos
d’água estariam neste ponto por serem os mais antigos, mais fortes bélica e socialmente; pelas alianças
manteriam seu ponto estratégico ao mesmo tempo que reforçariam seu potencial econômico. No caso
Guarani, onde a chefia é submetida à conivência de todo grupo, só a manutenção do ethos é que
asseguraria o domínio72. 
 Desta forma, explica-se o tipo de distribuição espacial tanto do material arqueológico no sítio como a
presença/ausência de determinadas vasilhas nos sítios. Os sítios nos vales encaixados, por possuírem
menor representatividade social, poucas alianças, família extensa pouco numerosa, menor número de
vassalos/colaboradores, são ‘jogados’ ou empurrados para as zonas limítrofes do teko’á, em zonas
ecológicas menos favoráveis. Um sítio como este deve caracterizar-se por pouca incidência de grandes
vasilhames (devido à ausência de grandes festas e baixa densidade demográfica por família), casas
menores (menor população) e localização que alcança o limite ecológico dos 400 metros acima do nível
do mar (Lightfoot e Feinman: 1982: 64-84; Essa hipótese poderia explicar o caso citado acima, em
Ribeiro, 1990:348-358). 
Os sítios grandes, ao contrário, apresentam boa quantidade de ‘cacos’ cerâmicos de grande porte (sinal de
vasilhas grandes para grandes famílias e festas contínuas ou repetidas), casas de proporções também
grandes (que representam as famílias extensas), grande concentração de material arqueológico e
profundidade das ‘manchas pretas’ (Ribeiro, 1978; 1991:347-358) que caracterizaria uma longa ocupação
do território (Blitz, 1993: 80-96).
Somente o cruzamento de todas as fontes, tanto arqueológicas como históricas e antropológicas,
possibilitará ampliar o leque de interpretações a respeito dos sítios, numa visão mais holística de uma
sociedade que per se era e é ainda holística.
1.3 Interdisciplinaridade na Arqueologia
“.. cada vez mais a noção de ‘disciplinas auxiliares’ está desaparecendo. Os pontos de
junção entre as ciências ficam cada vez mais estreitos, muitas vezes quase
eliminados.”Noelli, 1993: 21-22.
A história da arqueologia no Brasil passou e passa por um contínuo vai-e-vem de aproximação e
afastamento da Antropologia e das outras ciências humanas. Desde sua fase mais amadorística, as
relações entre o vestígio arqueológico e os grupos indígenas sempre foram buscadas. Após uma discussão
infrutífera por parte do PRONAPA, desvinculando as “tradições” e “fases” das comunidades nativas,
iniciou-se um debate menos estéril sobre a ligação inevitável entre algumas culturas etnograficamente
conhecidas e certos artefatos produzidos por seus antecedentes. Embora ainda existam algumas
discussões sobre a vinculação da Arqueologia à Antropologia ou à História73, parto do princípio de que
existe uma total independência entre as três disciplinas74.
Neste item, discuto que, mais do que uma pluridisciplinaridade, os estudiosos da Arqueologia Guarani
devem buscar uma interdisciplinaridade. Embora pareça óbvio este tipo de constatação, vê-se ainda a
perseguição de um ideal de super-especialização negativa75, levando à formulação de hipóteses restritas
a um universo diminuto76, incompatível com uma sociedade a priori holística77.
Um esclarecimento deve ser feito quanto aos conceitos aqui utilizados de multi, pluri e
interdisciplinariedade. Os conceitos que utilizo advêm do “Dicionário Atual da Educação”, 1993.78
A partir dos conceitos voltados à pesquisa científica, defino primeiro cada um dos termos acima citados
para, desta forma, situar meu trabalho como interdisciplinar. Segundo o dicionário supra-citado,
multidisciplinar é a “pessoa que domina diversas disciplinas ou especialidades, mesmo sem ligação
aparente entre elas, em um setor de estudos ou atividades.”79 A multidisciplinaridade consiste em uma
“abordagem de ensino centrada sobre a justaposição de diversas disciplinas ou matérias exploradas
paralelamente”80. 
Este conceito não deve ser confundido com o de pluridisciplinaridade:
 “o estudo de um projeto, de um problema ou de um objeto por especialistas de algumas disciplinas,
agindo independentemente uns dos outros. A prática simultânea de algumas disciplinas é um modo de
organização do pensamento lógico que deve, logicamente, dar um poder metodológico acurado,
conhecimentos relativos mais numerosos e diversificados ao objeto. Nestesentido, pode haver concurso
de disciplinas, quer dizer, que elas tendam a um objetivo comum por adição de contribuições
específicas”81. 
Ainda segundo o dicionário, o pluridisciplinar é “quem concerne algumas disciplinas mais ou menos
vizinhas ou algumas especialidades distintas.”82 ou “pessoa que domina algumas disciplinas ou algumas
especialidades num setor de estudos ou de atividades”83.
Como o objetivo desta dissertação é criar um modelo de arqueologia social aplicável para a sociedade
Guarani, acredito que a melhor abordagem para esta dissertação seja a interdisciplinar.
Interdisciplinaridade é “o estudo de um projeto, de um problema ou de um objeto para benefício de
especialistas, ou com o auxílio dos conceitos, dos métodos e dos saberes de diversas disciplinas que
interagem e se enriquecem mutuamente”84. O pesquisador interdisciplinar é a “pessoa que conseguiu
efetuar uma síntese de diversas disciplinas ou dominar diversas especialidades conectadas. À época dos
especialistas, o interdisciplinar é uma pérola rara”85. Aprofundando este conceito, o dicionário propõe
que a interdisciplinaridade é uma abordagem superior, em nível epistemológico, à multi ou
pluridisciplinaridade. A interdisciplinaridade nesta dissertação será empregada como a interação de
disciplinas, através dos métodos e técnicas das disciplinas envolvidas, embora o objetivo seja realizar
uma arqueologia social. Em determinados momentos, prevalecerão os dados da antropologia, da história,
da própria arqueologia e, em menor grau, da lingüística, buscando a contribuição mais pertinente que
cada uma delas pode fornecer.
No segundo capítulo procuro mostrar a limitação de uma abordagem segmentada86 no estudo do
parentesco. Aqui proponho formas de interpretar os sítios arqueológicos a partir do ‘cruzamento das
informações’87 de disciplinas como a História, a Antropologia, a Arqueologia e a Lingüística, entre
outras. “Devemos reconhecer, entretanto, que a arqueologia do pluralismo está demasiado em sua
infância”88 (Lightfoot, 1995:201), embora demonstre no capítulo três que esta abordagem é possível.
Tendo como objeto a sociedade Guarani à epoca dos primeiros contatos e sua organização social,
deparei-me com a necessidade imediata de construir um corpus explicativo89 holístico, mais abrangente
que o antropológico ou o histórico, uma vez que procuro viabilizar uma visão diferente da tradicional
para os sítios arqueológicos.90
A produção científica a respeito das sociedades Guarani está rigidamente estabelecida nos conhecimentos
produzidos pelas disciplinas acima citadas. Na Arqueologia, inicialmente procurei descobrir os tipos de
estruturas que poderiam delimitar os diferentes usos do espaço, conforme o conceito de ‘áreas de
atividade’ de Kent (1984). Neste ponto, percebi que os “metros cúbicos”91 de produção arqueológica
sobre Guarani estancavam em seriações cerâmicas, análise de antiplástico e, quando muito, na relação
entre forma-função. Deste modo, os onze croquis e planos de topo acessíveis92 de escavações em sítios
arqueológicos não permitiam o relacionamento entre as ‘manchas pretas’ das casas e qualquer tipo de
atividade social ou uso do espaço93, a não ser a delimitação tímida dos fogões para cocção94 ou para
aquecimento sob as redes.95 
Desta forma, a saída inevitável era encarar a inexistência de escavações em grandes áreas que
apresentassem os níveis naturais e a estratigrafia completa, bem como a distribuição horizontal pelo
menos para um nível estratigráfico. Do mesmo modo, são exíguas as informações sobre outros artefatos,
biofatos ou ecofatos que não sejam a cerâmica, poucos artefatos líticos, o reconhecimento genérico e
superficial da flora e fauna sem um aprofundamento nas ligações possíveis que ultrapassem as meras
descrições96. “Como resultado, os estudos sobre processo cultural são reduzidos à catalogação de
padrões de distribuição espacial e temporal da cultura material”97 (Root, 1983,195). 
As questões que esta dissertação suscita não serão respondidas com a manutenção de uma “arqueologia
de pá” ou “arqueologia de enxada”98. Extrair informações relativas à organização social demografia,
período de ocupação dos sítios, expansão dos grupos e ‘guaranização’99 não são possíveis com técnicas e
métodos deste tipo. 
Falo aqui de um universo sensível em micro-níveis100: são necessárias escavações cuidadosas, com
retirada de camadas estratigráficas mínimas, com método de decapagem horizontal e análise de
micro-sedimentos, incompatíveis com a ausência de investimentos, inexistência de verbas e escassez de
pessoal qualificado para longas permanências em campo. Este tipo de trabalho envolveria exposição de
áreas em larga escala, uso de níveis culturais e naturais e ênfase na organização espacial dos artefatos e
elementos arquitetônicos, bem como a organização do espaço interno e externo, incluindo o lugar dos
fogos101, o padrão de descarte e as diferentes áreas de atividades (Noelli, 1993:76; Lightfoot, 1995:204).
Não afirmo que este tipo de trabalho não exista: apenas ainda não chegou em larga escala no Brasil102,
como é realizado em outros países (veja Renfrew e Bahn, 1993:161-202).
As diferentes arqueologias realizadas no Brasil - pré-histórica, histórica e colonial- excluem-se
mutuamente e provocam prejuízos interpretativos uma vez que possuem métodos e técnicas
diferenciadas, embora tratem do mesmo objeto103. Enquanto afastam-se entre si na qualidade de
sub-campos da mesma disciplina, poder-se-ia afirmar que descartam como ‘auxiliares’ as outras ciências
humanas. 
A partir dos arqueólogos que discordavam ou não participaram do PRONAPA, e através da influência das
teorias americanas sobre a variabilidade de conceitos e definições de ‘sítio arqueológico’ e suas
interpretações, retomou-se a aproximação da arqueologia com outras disciplinas das ciências humanas.
Aceitando-se que o objeto era o mesmo nas várias ciências104, não cabia só cruzar as informações, nem
tampouco costurá-las, mas analisá-las dentro de um contexto mais amplo com métodos rigorosos que
pudessem ser partilhados por todas as disciplinas envolvidas.
Neste sentido, debates sobre Hermenêutica e Arqueologia têm sido bem-vindos (Johnsen e Olsen,
1992:419-436)105, e trazem à tona a validade da interpretação processual106 do passado, uma vez que
existe o tempo/espaço de formação do sítio e outro do arqueólogo que o investiga. Este debate é
importante à medida que se reconhece a diferença entre o estado de início de formação do sítio, o
‘pós-deposicional’ e o presente do arqueólogo, em que se inicia a intervenção, cada qual com processos
históricos diferenciados (op. cit. pg. 422)107. Além disso, “há uma relação dialética entre passado e
presente: o passado é interpretado em termos do presente”108 (Hodder, 1986: 170), embora esta dialética
seja bem mais que apenas sínteses gerando novas perguntas (Johnsen e Olsen, 1992:421). 
Mesmo que os arqueólogos tenham conseguido livrar-se tardiamente da influência positivista, ao
contrário das outras ciências humanas109, ainda se pode expor mais os estudos arqueológicos aos
métodos desenvolvidos nas outras disciplinas como História ou Antropologia. Considerando as variáveis
existentes - tempo, espaço, sociedade110 - optei pela utilização do método etnohistórico como subsídio
crítico das fontes capazes de fornecer uma aproximação razoável da sociedade Guarani à época do
contato111.
O método etnohistórico responde (ou corresponde) às necessidades deste trabalho pela variedade de
disciplinas, o recorte temporal e os diferentes objetivos das fontes. Primeiro, temos a documentação
histórica, antropológica, etnográfica e lingüística, que requer não só o domínio das próprias fontes como
a crítica do contexto na qual foram produzidas112; Segundo, o recorte temporal deste trabalho, que
embora se proponha ao período de contato no século XVI, deve obrigatoriamente complementar-se com
fontes dos séculos XVII e XVIII para os Guarani históricos e conhecer as analogias viáveis aos Guarani e
Tupi modernos nos séculos XIX e XX113;terceiro, a variedade de objetivos das fontes, que prescindem
de uma crítica histórica e devem ser contextualizadas, dada a diferença de interesses em jogo114, sejam
viajantes, bandeirantes, governadores, padres ou provinciais. 
A diversidade de fontes e de recortes temporais não faz deste trabalho uma “colcha de retalhos
etnográficos”115 para a Arqueologia Guarani. Antes de qualquer outro, o objetivo é fornecer subsídios
para uma interpetação baseada na organização social para a continuidade da cultura e distribuição dos
sítios Guarani. “Esta relação entre organização social e a ordenação espacial deveria ser tratada através
dos dados do assentamento”116 (Root, 1983: 194), mas a própria arqueologia é incapaz de fornecer, no
momento, dados utilizáveis para este tipo de análise. Parto, aqui, da direção contrária: ao invés de ter
como ponto de partida o sítio, o padrão de assentamento e os vestígios materiais, proponho fornecer os
dados históricos da organização social que permitirão novas abordagens para teorizações sobre a cultura
material e a expansão cultural destes grupos:
 “Entendi desde o começo que, se reproduzisse novamente os métodos e modelos teóricos empregados
em outras sínteses e trabalhos sobre os Guarani, que não poderia produzir nada que não fosse repetição
do que existia. O que já existia em termos de produção científica nem havia explorado todas as fontes
Guarani existentes!” (Noelli, 1993:377)
Desta forma, não se pode tratar a Arqueologia Guarani sem as informações históricas, etnográficas e
lingüísticas, uma vez que esta carece de teoria explicativa ou modelo que vá além do ecológico.
Considerando que o assentamento é “reflexão direta das atividades econômicas e sociais”117 (Willey,
1953:1) e se “o objetivo dos estudos do padrão de assentamento é delimitar padrões regionais de
distribuição de sítios em termos de localização, número, tamanho e função” (Root, 1983:196), o estudo
das relações sociais pode servir de ponto de partida explicativo para teste em campo a posteriori, uma
vez que este tipo de verificação seria impossível a curto prazo. Um modelo social com associação de
fontes antropológicas, históricas e lingüísticas pode facilitar e sugerir novos rumos à direção das
pesquisas arqueológicas, como, por exemplo, a delimitação dos cacicados na região sul do Brasil118. 
Embora incipiente na Arqueologia brasileira, outras fontes como a História Oral, a mitologia e as lendas
dos grupos podem ser utilizadas como recurso para a localização dos sítios119, para conhecer as formas
de utilização dos recursos florísticos, faunísticos e minerais, bem como os motivos êmicos120 para a
mudança ou permanência em cada região. Deve-se ter em conta que a melhor interpretação de uma
sociedade vem “de dentro”, ou, dito de outra forma, “melhor do que traduzir o texto em algo diferente
dele mesmo, o propósito é, tanto quanto possível, compreendê-lo nos próprios termos”121 (Hodder,
1987:8), pois a visão do arqueólogo é, mais das vezes, uma visão “de fora”, uma vez que existe uma
diferença entre “a consciência criativa do autor e a consciência reconstrutiva ou receptiva do
intérprete”122 (Linge, 1977: xxiv).
Essa visão êmica pode auxiliar em diversos fatores, como na interpretação do uso do espaço, da
representação deste, do uso do meio, entre outros. Porém, e ainda nas outras disciplinas, faltam estudos
exaustivos sobre demografia para a interpretação da expansão e ocupação dos territórios Guarani. Os
trabalhos existentes configuram-se abordagens especulativas de maior ou menor acuidade, porém sem
subsídios históricos ou arqueológicos que lhes autentiquem veracidade. É o caso do levantamento já
realizado por Carneiro da Cunha (Cunha, 1992: introdução) sobre demografia indígena no período do
descobrimento do Brasil. 
Para o caso Guarani, existem dois trabalhos a partir das fontes históricas, um em nível abrangente
(Clastres, 1979: 77-98) e outro com recorte espacial e temporal específico (Melià, 1988:46-59). Enquanto
Clastres apóia-se e aplica-se à formulação de “hipóteses fortes” (pg.78) sem o necessário rigor científico,
Melià formula uma demografia Guarani para o Guairá e Tape (op.cit. pgs.60-89) no período dos
primeiros contatos. Melià não descarta a utilização de ‘hipóteses fortes’ mas estimula a criação de
modelos particulares123.
Em termos arqueológicos, as diversas especulações a respeito de demografia carecem de qualquer rigor
científico, uma vez que se baseiam em equívocos mal formulados que têm se repetido. Como exemplo,
pode-se citar Prous (1992:441), onde se vincula mecanicamente o número de sítios e quantidade de
material à demografia:
“Aos poucos, a decoração corrugada se desenvolveria, e se tornaria predominante no interior por volta do
século IX: trata-se da subtradição corrugada, composta por numerosas fases cada uma representada por
muitos sítios. É período de grande expansão demográfica.” (Prous, 1992: 441) 
As limitações deste tipo de afirmação são várias, mas aqui vale apenas assinalar que a existência de sítios,
neste caso, é fruto da pesquisa arqueológica concentrada, não do aumento do número de sítios. Sabendo
que a ocupação da área de domínio pode ser indefinidamente repetida, o aumento de material cerâmico
não se torna indicativo de demografia, a menos que tivéssemos certeza da contemporaneidade destas
ocupações124. 
Baseado nestes fatores125 é que proponho a adoção de estudos interdiciplinares no lugar de pluri ou
multidisciplinares. Uma vez que a sociedade é holística, não se pode desvincular a economia, a religião e
a sociedade (só para citar os assuntos mais estudados). Com isto não estou propondo estudos genéricos ou
abrangentes a respeito de “a cultura” sem privilegiar nenhum tema. O que sugiro é abordar uma
temática com olhares distintos provenientes de diferentes áreas de conhecimento. Ao invés de buscar
explicação em uma das disciplinas, procurar, em todas que estão disponíveis, teorias e modelos que
possibilitem interpretações interdisciplinares. Se utilizo as diversas citadas, é por que a problemática
assim o exigiu126.
Não se trata de um retorno ao enciclopedismo, mas uma volta às ‘indagações’ de cunho científico que não
temem levantar hipóteses ou fazer afirmações com dados limitados a um sítio, região ou recorte temporal.
Como exemplo, pode-se citar os trabalhos de Moisés Bertoni127 ou de Carlos Teschauer128 nos quais se
pode encontrar diversas sugestões científicas hoje comprovadas. Certamente as afirmações que apresento
neste trabalho não podem ser estendidas a todos falantes do Guarani ou aos Tupi, através do tempo e do
espaço. A carência de informações não permite tanta ousadia. Porém, vale como ponto de partida para
outras tantas ‘indagações’ futuras no campo da arqueologia, como “implementação de análises
comparativas pan-regionais”129 (Lightfoot, 1995:200). 
Capítulo 2- O Parentesco
“Numa palavra, o parentesco não é apenas um princípio de classificação e de
organização, é também um código, uma linguagem mais ou menos ideológica e mais ou
menos manipulada. É, pois, uma chave para a interpretação de todas as
sociedades...”Augé, 1975:20.
O estudo do sistema de parentesco Guarani à época do contato ainda é incipiente. Considerando que esta
é uma sociedade mais prescritiva que performativa (Sahlins, 1990), como visto anteriormente,
acreditava-se que o estudo das sociedades atuais daria uma idéia clara a respeito do funcionamento destas
no período anterior ao contato. Os poucos trabalhos realizados desconsideraram os efeitos das epidemias,
endemias, guerras de extermínio e os efeitos a posteriori da missionarização (Noelli e Soares, 1993;
Soares e Noelli, 1995). A partir disto, tratar do sistema de parentesco no período de contato requer um
levantamento completo da bibliografia dos séculos 16 e 17, que não necessariamente esgota a temática.
Igualmente, as lacunas existentes só podem ser parcialmente preenchidas com o auxílio da etnografia, da
etno-história e da crítica histórica. Dividi a temática conforme os manuais da antropologia; em primeirolugar, a linearidade ou filiação, que consiste em analisar a que grupo pertencem os membros da família,
se do pai ou da mãe; em segundo, a localidade, ou a residência dos casais após o casamento; em terceiro,
as relações entre os afins, aqueles que se auxiliam segundo as regras sociais, e os não-afins, que se
evitam; por último, retomo a terminologia de parentesco, já explorada em trabalhos anteriores (Soares,
1991b; 1993) e as regras para o casamento entre os Guarani. Mostrarei como estes elementos estão
ligados à busca do prestígio, valor central no ethos Guarani. 
O vocabulário do parentesco está baseado nas definições de Augé (1975), Lévi-Strauss (1982), Viveiros
de Castro (Viveiros de Castro, org.1995: convenções, pg.22-24), entre outros. Na maior parte dos casos
forneço uma definição sucinta que pode ser ampliada através das discussões existentes nestas obras.
Utilizo os termos mais recorrentes, salientando que as discussões teóricas a respeito do emprego deste ou
daquele conceito estão fora da alçada deste estudo.
2.1 - A Linearidade (Filiação)
“Se os filhos são sempre a semente coalhada do pai e se a mãe não passa de uma
intermediária, chamando ao seu próprio filho ‘o filho do meu marido’, ou a semente de
meu marido, ou o líquido do meu marido, Cuarasì também precisou de Tupã para
transmitir à natureza viva o dom do crescimento e da fecundidade.” Recalde, 1937:65.
A linearidade ou reconhecimento da filiação tem sido um tema praticamente inexplorado tanto para os
Guarani históricos quanto para os modernos. Os dados que instrumentalizam esta análise provêm, em boa
parte, das descrições sobre os grupos Guarani atuais, contrastados com as informações sobre os grupos
Guarani e Tupi históricos e atuais. Este estudo certamente não esgota a problemática, mas estimula sua
solução .
Os documentos históricos do séculos XVI e XVII não possibilitam inferir qualquer tipo de linearidade,
de modo que a melhor saída continua sendo o cruzamento das diversas fontes, tanto antropológicas como
históricas.
Em Montoya (1876), não há verbetes para a linearidade como tal, mas há reconhecimento de parentes
paternos e maternos, como no verbete cherúyao caguê ndé - ‘tu és meu parente próximo por parte de
meu pai’130 (T:183). Da mesma forma reconhecem-se ambos os antepassados131 - ipicuê, oreramoi 
(B:168). Há verbetes para heranças materiais: cherub omanobae rama ogui rapa omee chebe - 'meu
pai, que havia de morrer, me deu seu arco'132, cherumbacue yâramo aicó - ‘herdei de meu pai’133
(T:336); e inclusive a existência de ‘sobrenomes’, talvez de família: téra îoapi - ‘sobrenome’ (T:359), 
cherenoîndába -‘sobrenome’134 (T:152), ‘sobrenome de linhagem’- ñemoñang réra, ñe.mona
renoyndagûera, yeroca guêra - ‘sobrenome’135 (B:168). Contudo, parece que esses sobrenomes são
uma versão ou adaptação européia136.
Uma outra forma de buscarmos a linearidade de um grupo é através da terminologia de parentesco: “O
termo sobrevive à norma; quando uma relação de parentesco desaparece, a nomenclatura, verdadeiro
fóssil social, subsiste e testemunha a antiga realidade; o significante sobrevive ao significado.” (Poirier,
1981: 42-43).
Neste caso, a terminologia referenda um tipo de linearidade indiferenciada137, uma vez que se
reconhecem os parentes paternos e maternos. Che tuti = meu tio (irmão da mãe) (T:210), che rubi = meu
tio (irmão do pai) (T:400), che yayché = minha tia (irmã do pai) (T:209) e che çii = minha tia (irmã da
mãe) (T:116). Esta terminologia vale para emissor homem ou mulher (Homem ou Mulher Falando, HF e
MF) . 
A análise dessa terminologia demonstra que, se os termos para pai e irmão do pai são distintos,
assim como os termos para mãe e irmã da mãe, reconhecem-se os parentes de ambos progenitores
(Soares, 1991b; 1993). Indo além, pode-se afirmar que este tipo de linearidade indiferenciada, tendo
como único ponto de partida a terminologia, não privilegia qualquer tipo de aliança por casamento, uma
vez que nenhuma das tias (paterna e materna) são tratadas como esposa ou sogra138. Nas sociedades de
estrutura elementar de parentesco, onde há uma regra positiva de casamento139 é comum a prima ser
tratada como esposa e a tia como sogra, o que não é o caso Guarani (veja item 2.4). A terminologia
Guarani também não pode ser considerada “um afastamento em relação aos sistemas dravidianos
clássicos” (Silva, 1995), embora existam diversas semelhanças com outros grupos Tupi.
A questão da filiação e hereditariedade remete à existência de uma herança de posto ou posição de
prestígio, como a liderança do tuvichá140,uma vez que aparentemente não existe em outros casos. Fica
diluída, nos textos seiscentistas, a tendência dos chefes de família a manterem seus filhos no poder. Esta
seria, mais que uma atitude comum e desvinculada da filiação ou hereditariedade, um elemento do ethos 
para a manutenção do prestígio dentro da família. O próprio Montoya (1836, apud Susnik, 1983:129)
comenta que a liderança é “uma nobreza hereditária mas adquirida com a eloqüência”.
Apenas um documento trata direta e claramente da hereditariedade e patrilinearidade do posto de cacique
(Bruxel, 1958: 81-112). Refere-se ao depoimento de treze pessoas confirmando a existência de caciques
entre os Guarani, de sua vivência em aldeias e do caráter ‘nobre’ deste posto141. Resumidamente, os
depoimentos informaam que os caciques devem ser isentos do serviço da mita, pela sua condição de
‘nobreza’, ao mesmo tempo que os espanhóis não perderam a sua própria nobreza ao casarem-se com as
filhas dos caciques (op.cit.). A conclusão que tiro desses depoimentos é que tanto Guarani como
espanhóis, logo após o primeiro contato, queriam manter seus respectivos status perante suas sociedades.
Uma vez que um dos componentes do parentesco Guarani é a formação de aliança via cuñadazgo, os
Guarani procuravam formar laços com os espanhóis, ao mesmo tempo que os invasores ‘recebiam’ as
filhas dos caciques para casamento. Com isso, os padres impediam os caciques de serem escravizados,
enquanto os espanhóis não perderiam seus títulos, pois continuavam a ‘linhagem’ nobre pelo casamento
com filhas de caciques. Como o documento refere-se a 1659, portanto mais de um século e meio de
contato, encontra-se aqui a provável resposta para os termos presentes no ‘Tesoro’ [1639] sobre linhagens
nobres, ‘casta’ de índios, ‘casta’ ou ‘sobrenome’ nobre, etc. Tratava-se de um artifício para que os
caciques não prestassem serviço pessoal (mita ou yanaconato) aos ‘encomenderos’, pois seriam ‘nobres’.
Ao mesmo tempo, os espanhóis não perderiam seu título nobiliárquico pois ‘casavam-se’ com filhas de
‘linhagens nobres’, isto é, as filhas de caciques. O próprio documento relata, com precisão, como se
davam títulos de nobreza (‘Dom Fulano’) ao cacique encomendado (Bruxel, 1958). Não se trata, desta
forma, de fonte dos primeiros contatos, mas sim os reflexos destes sobre ambas as sociedades.
 Outra leitura possível da linearidade é a procura de termos que representem o que Susnik
(1979/80; 1983) e Melià, Grünberg e Grünberg (1976) tratam por “linaje”. O termo pode ser traduzido
por linhagem, mas implica, antropologicamente falando, a existência de um ancestral comum ou, se fosse
um clã, um ancestral mítico comum142. Susnik (1979/80:18-19) afirma que uma das características do 
ñande reko, modo de ser Guarani, é a existência de um ancestral mítico comum às linhagens. Isto
reforçaria a idéia de um sobrenome, ou ‘apelido’ destas linhagens, como visto acima, implicando um
sistema ou patri ou matrilinear, uma vez que alguns ancestrais, e não todos, são os antepassados míticos.
Entre os Guarani, é mais apropriado falar em kindred, ou seja, um grupo de parentes ligados por laços
sangüíneos ou de afinidade em torno de uma pessoa de prestígio. Neste caso, todos os ancestrais são
importantes como fundadores de casas. No Bocabulário de Montoya (1876), temos chereiî, 
cheñemoñangába -‘família, linhagem’143 (B:02) e teií, ñemoñangába -‘casta, linhagem’144 (B:240).
No Tesoro temos ñemoñangába

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