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Epidemiologia, fisiopatologia e diagnóstico da insuficiência cardíaca com fração de ejeção de ventrículo esquerdo reduzida
PONTOS-CHAVE
Responsável por grande parte das internações hospitalares, a insuficiência cardíaca (IC) ainda é uma causa importante de morbidade e mortalidade em todo o mundo.
A síndrome da insuficiência cardíaca com fração de ejeção de ventrículo esquerdo reduzida (ICFEVEr) é uma desordem progressiva desencadeada a partir de um insulto inicial que acomete o músculo cardíaco com resultante perda de massa muscular ou, alternativamente, prejuízo na habilidade do miocárdio de gerar força e manter sua função contrátil adequada.
A ativação de mecanismos adaptativos neuro-hormonais na ICFEVEr, que a princípio promove efeito benéfico para a manutenção do débito cardíaco, acaba sendo deletéria em longo prazo pela estimulação do remodelamento ventricular, sobrepondo maior deterioração a um coração já debilitado.
A ICFEVEr pode ser considerada um estado de ativação imune e inflamação persistente expressa pelo aumento dos níveis de várias citocinas pró-inflamatórias.
O remodelamento ventricular é o processo pelo qual fatores mecânicos, neuro-hormonais e genéticos alteram o tamanho, a forma e a função ventricular. Esse processo adaptativo se inicia como um mecanismo compensatório para manter a força contrátil e preservar o estresse da parede. Entretanto, com a progressão da degeneração miocárdica, este se torna mal adaptado e contribui para a piora da insuficiência cardíaca.
O remodelamento ventricular que se desenvolve na ICFEVEr se estende para a eletrofisiologia dos cardiomiócitos, com múltiplas alterações fisiopatológicas que influenciam as propriedades eletrofisiológicas do coração.
A síndrome cardiorrenal é um estado avançado de perda da regulação cardiorrenal que pode se manifestar por um de 5 padrões que incluem insuficiência cardíaca e concomitante e significativa insuficiência renal (IR) (falência cardiorrenal); tipo 1 síndrome cardiorrenal aguda em a IC aguda determina a IR; tipo 2 crônica em que IC crônica IR; tipo 3 nefrocardíaca aguda em que a IR determina IC; tipo 4 nefrocardíaca crônica em que a IR crônica determina IC crônica; tipo 5 secundária em que a doença sistêmica determina IC e IR.
O diagnóstico da IC é feito por meio da história clínica detalhada, do exame físico e de exames complementares laboratoriais e de imagem.
Epidemiologia
A IC tem alta prevalência e grande impacto na morbidade e mortalidade em todo o mundo, sendo hoje um grave problema de saúde pública. Doenças cardiovasculares, apresentaram queda da mortalidade em países industrializados nos últimos 50 anos. Entretanto, a IC é uma notável exceção a essas tendências, sendo ainda uma importante causa de hospitalização nos Estados Unidos e na Europa. Dados do National Heart, Lung, and Blood Framingham Heart Study (FHS) indicam que a incidência de IC se aproxima de 10 casos/1.000 habitantes após a idade de 65 anos, sendo que 75% dos pacientes com IC têm antecedente de hipertensão. Aos 40 anos, o risco de desenvolver IC para homens e mulheres é de 1:5; já acima dos 80 anos, é de 20%. Aos 40 anos, o risco de morrer com IC para quem não tem antecedente de infarto é de 1:9 para homens e 1:6 para mulheres.
Nos últimos 30 anos, a sobrevida após o diagnóstico de IC melhorou, a taxa de mortalidade ajustada por idade diminuiu, e a idade média de morte por HF aumentou. No entanto, globalmente, a mortalidade ainda permanece alta, e cerca de 50% das pessoas diagnosticadas com IC morrerão dentro de 5 anos.
No Brasil, dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2007, quase 40% das internações hospitalares foram relacionadas à IC descompensada. Essa proporção foi de 70% no grupo etário com mais de 60 anos. Nesse mesmo período a IC foi a causa mais frequente de internação na população idosa no Brasil. Os casos de IC são mais prevalentes em homens e idosos. No Brasil e na América Latina, com a expectativa de crescimento da população idosa nas próximas décadas, espera-se um aumento dos indivíduos com IC.
Em um estudo no Rio de Janeiro, a IC com fração de ejeção preservada de ventrículo esquerdo (ICFEVEp) foi mais prevalente em mulheres, com idade média de 61 anos. Já a insuficiência cardíaca com fração de ejeção de ventrículo esquerdo reduzida (ICFEVEr) foi mais prevalente em homens e associada com edema, doença coronariana, insuficiência renal crônica, escores de Boston mais elevados, uso de álcool, cigarro e hospitalizações.
Em 2006, dados da Fundação Seade revelaram que a IC foi responsável por 6,3% dos casos de óbito no estado de São Paulo. Em 42% dos casos não foi possível determinar a etiologia da IC, 23% foram por cardiomiopatia, hipertensão arterial em 14%, doença isquêmica em 9%, doença de Chagas em 8%, choque cardiogênico em 1%, doença pericárdica em 0,04%, amiloidose em 0,1%, doença de Chagas aguda em 0,006% e outras cardiopatias em 3%. Houve redução de mortalidade por IC entre 1999 e 2005, exceto para pacientes acima de 80 anos.
Fisiopatologia da ICFEVEr
A síndrome clínica da ICFEVEr representa um somatório de múltiplas alterações anatômicas, funcionais e biológicas que interagem entre si. Vários modelos complexos já foram descritos para tentar explicar essa síndrome. Inicialmente, a ICFEVEr IC era vista como um problema de excesso de sal e água que provocava anormalidades no fluxo sanguíneo renal, a chamada síndrome cardiorrenal. Em um segundo momento, a partir da observação mais cuidadosa do padrão hemodinâmico, detectou-se que a ICFEVEr estava associada com redução do débito cardíaco e excessiva vasoconstrição periférica, o que originou o “modelo cardiocirculatório ou hemodinâmico”. Entretanto, nem o modelo cardiorrenal nem o cardiocirculatório explicam a lenta progressão da doença.
Em outra visão, a ICFEVEr tem sido descrita como uma enfermidade progressiva desencadeada a partir de um insulto inicial que acomete o músculo cardíaco, com resultante perda de massa muscular ou, alternativamente, prejudica a habilidade desse miocárdio de gerar força e manter sua função contrátil adequada. Esse evento deflagrador pode ser clinicamente silencioso e insidioso, como a expressão de uma cardiomiopatia hereditária, adquirida, ou algum evento agudo e fulminante como a perda de grande massa muscular por infarto agudo do miocárdio.
Mesmo após a instalação de disfunção cardíaca, a maioria dos pacientes pode permanecer assintomática por períodos de tempo variáveis em decorrência da ativação de mecanismos adaptativos neuro-hormonais, dentre os quais se destacam os sistemas renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e nervoso simpático (SNS). Essas adaptações iniciam-se rapidamente, questão de minutos a horas, e são capazes de sustentar ou modular a função ventricular em níveis próximos ao normal. Em longo prazo, outro mecanismo adaptativo é o remodelamento ventricular, em que fatores neuro-hormonais, mecânicos e, possivelmente, genéticos alteram o tamanho, a forma e a função ventricular. Esse remodelamento, que, em princípio, é consequência da ICFEVEr, passa, em um segundo momento, a contribuir para a deterioração da disfunção miocárdica. Quando ocorre a falência dos mecanismos adaptativos, sobretudo do remodelamento ventricular, a ICFEVEr torna-se francamente sintomática.
Modelo de progressão da insuficiência cardíaca com fração de ejeção de ventrículo esquerdo reduzida (ICFEVEr).
Mecanismos fisiopatológicos da ICFEVEr
Ativação neuro-hormonal
Na ICFEVEr, independentemente da causa, ocorre queda do volume arterial circulante efetivo que é detectado pelo sistema barorreceptor renal e extrarrenal, desencadeando a ativação de potentes vasoconstritores e a subsequente retenção de sódio.
Ativação dos elementos sensores e efetores em resposta à redução do enchimento arterial na insuficiência cardíaca com fração de ejeção de ventrículo esquerdo reduzida (ICFEVEr).
Sistema renina-angiotensina-aldosterona
O SRAA, em condições normais, tem um importante papel na manutenção da homeostase de sal e água, e, portanto, no controle da pressãoarterial e da perfusão tecidual. Na ICFEVEr, ocorre aumento da produção de renina pelo aparelho justaglomerular renal por duas vias principais: estimulação dos adrenorreceptores-beta-1 do aparelho justaglomerular, secundário ao aumento da atividade simpática, e ativação dos barorreceptores renais pela queda da pressão hidrostática no glomérulo e na arteríola aferente. Outros mecanismos que interferem no controle da renina são a carga de sódio que chega à mácula densa e a própria retroalimentação negativa proveniente dos níveis de angiotensina II.
A renina atua sobre o angiotensinogênio transformando-o em angiotensina I, que é convertida em angiotensina II pela enzima conversora da angiotensina (ECA). A angiotensina II é um peptídeo biologicamente ativo que se liga a dois diferentes receptores: AT1 e AT2, sendo a maior afinidade pelo AT1, que intermedeia as principais ações no coração, nos vasos, nos rins e no cérebro. A ação da angiotensina II sobre os vasos produz potente vasoconstrição e contribui, juntamente do sistema nervoso simpático, para excessiva elevação da resistência vascular na ICFEVEr. Ela aumenta também a liberação de noradrenalina pelo sistema simpático e estimula a secreção de aldosterona pela glândula suprarrenal, aumentando, em consequência, a reabsorção de sódio no nível de túbulo contornado distal.
Cascata proteica do sistema renina-angiotensina-aldosterona, seus componentes e principais funções. ECA: enzima conversora da angiotensina.
Além dessas ações clássicas, já bem conhecidas, que ajudam no controle do equilíbrio homeostático, recentes descobertas têm evidenciado um papel do SRAA no controle do crescimento e da remodelação de vários tecidos. Não se sabe ao certo se a angiotensina II age como fator de crescimento por si só ou se age como amplificador de outros fatores de crescimento e citocinas. A angiotensina II é um potente estimulador da fibrogênese, e seu efeito envolve vários mecanismos, destacando-se a morte celular pela vasoconstrição intensa, o efeito trófico da angiotensina II nos miócitos e o efeito proliferativo sobre os fibroblastos. A aldosterona também é um importante indutor da fibrose, tanto intersticial como perivascular. Esse estímulo à fibrose tem múltiplas origens ainda não totalmente esclarecidas, em que se destaca o efeito direto no miocárdio e nos fibroblastos, efeito sobre colagenases, hipopotassemia e modulação do efeito da angiotensina II pela elevação de seus receptores. A ativação do SRAA na insuficiência cardíaca, que, a princípio, promove efeitos benéficos para a manutenção do débito cardíaco, acaba sendo deletéria em longo prazo pela estimulação do remodelamento ventricular, sobrepondo maior deterioração a um coração já debilitado.
Sistema nervoso autônomo
Na ICFEVEr ocorre ativação adrenérgica generalizada e retração do sistema parassimpático. A falta de estiramento dos mecanorreceptores situados no arco aórtico, nas artérias carótidas, nas arteríolas aferentes renais e no ventrículo esquerdo por causa da queda da pressão arterial ou do volume sistólico diminui o influxo inibitório para o sistema nervoso autônomo, que ativa vias eferentes simpáticas, promovendo vasoconstrição periférica, aumento da contratilidade cardíaca e taquicardia. O sistema adrenérgico é o integrador da resposta vasoconstritora neuro-hormonal por ação direta na vasoconstrição periférica com redistribuição do fluxo sanguíneo para áreas nobres, como cérebro e coração, além do efeito de estímulo à liberação de vasopressina e renina. Apesar dos efeitos benéficos desses mecanismos, a fim de preservar o fluxo sanguíneo para áreas nobres, suas consequências são prejudiciais. A vasoconstrição generalizada promove aumento da resistência vascular sistêmica e aumento da pós-carga ao ventrículo esquerdo, sobrecarregando um ventrículo já insuficiente. A hipoperfusão da musculatura esquelética leva ao metabolismo anaeróbico, à produção de ácido lático, gerando fraqueza e fadiga. A hipoperfusão esplâncnica promove retenção de nitrogênio e sódio, disfunção hepática e isquemia mesentérica. A hiperativação simpática promove a diminuição tanto no número como na sensibilidade dos receptores beta-1-adrenérgicos miocárdicos, contribuindo à dessensibilização miocárdica ao estímulo adrenérgico. O aumento das concentrações local e circulante de noradrenalina pode contribuir para a hipertrofia dos miócitos, diretamente pela estimulação de receptores alfa e beta-adrenérgicos ou, de modo secundário, ativando o SRAA. A noradrenalina é diretamente tóxica para as células miocárdicas, efeito mediado pela sobrecarga de cálcio ou pela indução da apoptose.
Vasopressina arginina
A vasopressina arginina (AVP) é um hormônio pituitário que age na regulação da água livre e osmolaridade plasmática. Em pacientes com ICFEVEr, o nível desse hormônio é, constantemente, elevado e, apesar da osmolaridade normal ou baixa sentida pelos osmorreceptores centrais, está associado com elevação dos níveis de renina e catecolaminas, que desempenham o papel de estimular a secreção da vasopressina pela neuro-hipófise. Essa secreção não osmótica de AVP é desencadeada pelo estímulo dos barorreceptores arteriais que sentem a redução do enchimento do leito arterial na ICFEVEr. A vasopressina causa vasoconstrição periférica, retenção de água livre por meio de sua ação nos túbulos coletores renais e, consequentemente, hiponatremia dilucional.
Endotelina
Endotelina é um potente peptídeo vasoconstritor liberado pelas células endoteliais. Três subtipos já foram identificados: endotelina-1, endotelina-2 e endotelina-3, todos potentes vasoconstritores. A angiotensina II, a noradrenalina, a vasopressina arginina e a interleucina-1 estimulam a produção da endotelina, que, por sua vez, ativa receptores de endotelina tipo A, que causam vasoconstrição da musculatura lisa. A endotelina também tem potencial de estimular o crescimento e atuar no remodelamento cardíaco.
Peptídeos natriuréticos
A família dos peptídeos natriuréticos é composta por três peptídeos estruturalmente similares: peptídeo natriurético atrial (ANP), peptídeo natriurético cerebral (BNP – brain natriuretic peptide) e peptídeo natriurético tipo-C. O ANP é sintetizado nos átrios e liberado em resposta à distensão deles. Em contraste, o BNP é sintetizado primariamente nos ventrículos e secretado em vigência de sobrecargas pressórica ou volumétrica para esses ventrículos. Embora tanto o ANP quanto o BNP se elevem na ICFEVEr, o BNP se correlaciona melhor com o grau da ICFEVEr. O peptídeo natriurético tipo-C é, basicamente, um regulador local do tônus vascular. Nos rins, os peptídeos natriuréticos promovem vasodilatação da arteríola aferente e vasoconstrição da eferente, e, portanto, aumentam a pressão capilar e a TFG. Eles atuam também nas células mesangiais e aumentam a superfície de filtração. Em nível tubular, esses peptídeos inibem o efeito estimulatório nas bombas de Na+/H+ dos túbulos proximais, na bomba de Na+ no túbulo distal e nos canais de Na+ nos túbulos coletores. Os peptídeos natriuréticos inibem, também, a ação vasoconstritora do SNS, do SRAA, da AVP e da endotelina e agem no sistema nervoso central modulando o tônus vasomotor, a sede e a liberação de AVP. Apesar de sua ação vasodilatadora e natriurética, os peptídeos não conseguem se opor efetivamente à vasoconstrição e à retenção hidrossalina da ICFEVEr. Em resumo, o papel dos peptídeos natriuréticos na IC é no sentido de contrabalançar os efeitos de retenção de sal e água e vasoconstrição estimulados pelo SNS, pelo SRAA e pela vasopressina. Apesar de ser um mecanismo compensatório importante, os peptídeos natriuréticos são insuficientes para superar a intensa vasoconstrição instalada na ICFEVEr.
Neprilisina
A neprilisina é uma enzima responsável pela degradação dos peptídeos natriuréticos vasoativos. Recentemente, o uso de um inibidor da neprilisina associado a um bloqueador do receptor de angiotensina II mostrou-se potencialmente benéfico no tratamento da ICFEVEr, diminuindo a mortalidade global quando em comparaçãoao tratamento-padrão com um inibidor da ECA isolado.
Citocinas pró-inflamatórias
A ICFEVEr pode ser considerada um estado de ativação imune e inflamação persistente expressa pelo aumento dos níveis de várias citocinas pró-inflamatórias. Entre elas, o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa), a interleucina 1 (IL-1) e a interleucina-6 (IL-6) estão aumentados na ICFEVEr. O estímulo para ativação imune evidenciada na ICFEVEr pode se originar de dois mecanismos: estimulação antigênica direta, como na miocardite e no transplante cardíaco; ser secundária a lesão cardíaca que expõe a “novos antígenos”, capazes de deflagrar uma resposta imune contra o próprio coração, como no infarto do miocárdio. Os níveis de citocinas pró-inflamatórias são detectados precocemente nos pacientes com ICFEVEr, mesmo antes da ativação neuro-hormonal. Alguns autores postulam que a ICFEVEr progride, ao menos em parte, como resultado do efeito tóxico exercido pelas citocinas no coração e na circulação periférica. Além da ativação inflamatória, o TNF-alfa é uma das citocinas essenciais para a ativação do catabolismo corpóreo, juntamente com a IL-1, a IL-6 e o interferon-gama, e sua elevação está relacionada à caquexia cardíaca e à miopatia esquelética.
Remodelamento cardíaco
Remodelamento ventricular é o processo pelo qual fatores mecânicos, neuro-hormonais e genéticos alteram o tamanho, a forma e a função ventricular. Os principais pontos do remodelamento cardíaco são a hipertrofia de miócitos e a dilatação cardíaca, com aumento da formação de matriz intersticial. Esse processo adaptativo inicia-se como mecanismo compensatório a fim de manter a força contrátil e preservar o estresse da parede. Entretanto, com a progressão da degeneração miocárdica, esse processo torna-se mal adaptado e contribui para a piora da ICFEVEr. O remodelamento cardíaco é estimulado primariamente pelo estiramento mecânico, porém, vários fatores, incluindo isquemia, hormônios e peptídeos vasoativos, podem modificar os efeitos do fator mecânico. A hipertrofia miocárdica é causada pelo aumento de miofibrilas e mitocôndrias. Conforme o tipo de estímulo, o remodelamento ventricular pode ocorrer de duas maneiras distintas.
Na sobrecarga pressórica, ocorre desenvolvimento de sarcômeros em paralelo, criando remodelamento ventricular concêntrico, com maior aumento da massa em relação ao volume ventricular. No caso da sobrecarga volumétrica, ocorre hipertrofia de sarcômeros em série, o que provoca remodelamento ventricular excêntrico, com maior aumento do volume ventricular em relação à massa. O interstício cardíaco também é muito sensível aos mesmos estímulos mecânicos, inflamatórios e neuro-hormonais que afetam o crescimento dos miócitos. Em condições normais, a matriz extracelular tem um papel biológico determinante nos mecanismos cardíacos. As mudanças na matriz intersticial provocam alterações nas propriedades sistólica e diastólica do coração. A fibrose provoca rigidez miocárdica e heterogeneidade mecânica e elétrica, que desempenham papel importante na gênese de arritmias e deterioração das funções sistólica e diastólica.
A morte celular também é determinante no remodelamento cardíaco, porque causa a perda de massa contrátil, com consequente hipertrofia de células miocárdicas e fibrose reparativa. Tradicionalmente, a perda de miócitos era explicada pela necrose, porém, nas últimas décadas, evidências mostram que a apoptose também contribui para a IC. As causas da apoptose na transição para a falência ventricular são inúmeras. Destacam-se isquemia, estiramento mecânico, estresse da parede, estimulação neuro-hormonal e das citocinas.
Modelo esquemático do remodelamento cardíaco.
Associada ao remodelamento estrutural, a progressão da lesão miocárdica acarreta o desenvolvimento de arritmias e distúrbios de condução. A presença de bloqueio de ramo esquerdo afeta os eventos mecânicos do ciclo cardíaco, alterando a ativação e a contração ventricular e provocando dissincronia ventricular, atraso na abertura e no fechamento da válvula mitral e disfunção diastólica.
Morte celular e remodelamento cardíaco: papel das células-tronco
Classicamente, os miócitos cardíacos, assim como as células nervosas, eram tidos como células pós-mitóticas terminais, altamente diferenciadas e incapazes de regenerar-se. As células endoteliais, musculares lisas e fibroblastos, por sua vez, são capazes de proliferar. Só há pouco tempo, entretanto, demonstrou-se que também os miócitos cardíacos são capazes de sofrer mitose; autores têm sugerido um índice mitótico de 0,015%, o que seria suficiente para gerar 100 g de miocárdio em menos de três meses.
A relevância clínica desses achados experimentais foi sedimentada em 2001 com a demonstração da existência de divisão de miócitos na periferia de áreas necróticas, em pacientes com infarto agudo do miocárdio. Havia dúvida se essas células que proliferavam eram preexistentes no miocárdio ou provinham de precursores a distância que migravam para esse ponto de regeneração.
Em 2002, Quaini et al. demonstraram que células de receptores de transplante cardíaco são capazes de migrar e repovoar o enxerto, sugerindo que a capacidade do tecido cardíaco de regenerar-se ocorria, ao menos em parte, pela migração de células pluripotentes extra cardíacas. A visão do coração como um órgão pós-mitótico tem perdido espaço para um novo conceito no qual as células do miocárdio são continuamente substituídas por novas populações recém-formadas de miócitos, células musculares lisas vasculares e endoteliais. A homeostase cardíaca seria, portanto, regulada por um compartimento de células-tronco cardíacas multipotentes que teriam a habilidade de se transformar em diversas linhagens do miocárdio.
Em condições de aumento da perda celular (como na ICFEVEr), as células-tronco seriam recrutadas em maior número. A progressão da disfunção ventricular ocorreria por desbalanço entre a morte celular (por necrose ou apoptose) e a capacidade tecidual de regeneração. Esse desbalanço pode ser observado em estudo com pacientes com ICFEVEr: nas fases precoces da doença (classes funcionais I e II) há aumento no recrutamento de células CD34+ e células progenitoras endoteliais, provavelmente na tentativa de regeneração celular; nas fases mais tardias (classes funcionais III e IV), ocorre uma depressão nessa mobilização celular, o que pode estar relacionado com o efeito mielodepressivo do TNF-alfa, também elevado nas fases finais da ICFEVEr.
Disfunção endotelial
Alterações na função endotelial podem contribuir para o aumento do tônus vasomotor e do processo de remodelamento vascular observado em pacientes com ICFEVEr. Essa disfunção decorre da redução da produção do óxido nítrico (NO) e/ou de sua inativação pelo endotélio. As principais causas dessa alteração são: aumento da concentração circulante de vários neuro-hormônios (angiotensina II, aldosterona, catecolaminas, endotelina-I), expressão exagerada de citocinas pró-inflamatórias (fator de necrose tumoral alfa, interleucinas-1 e 6), aumento da degradação do fator relaxante bradicinina, produção exagerada de radicais livres e lesão celular apoptótica. Estudos recentes associam a disfunção endotelial ao consumo e ao aumento crônico de sódio, que se ligam às glicosaminoglicanas presentes no endotélio de diversos tecidos, alterando sua composição e, consequentemente, a estrutura endotelial. Isso leva a aumento da resistência vascular, alteração da produção de óxido nítrico e, portanto, ao extravasamento de líquido para o interstício, explicando o aparecimento de edema.
Metabolismo energético
Ao longo dos últimos 20 anos, houve um progresso considerável no tratamento da ICFEVEr com as enzimas conversoras de angiotensina, antagonistas da aldosterona, betabloqueadores e com a terapia de ressincronização. Mesmo com o melhor da terapia moderna, no entanto, a insuficiência cardíaca é ainda associada a uma alta taxa de mortalidade anual. Novos modelos têm sido propostos a fim de explicar a má progressão, apesar da terapia otimizada. Um delesé o modelo do metabolismo energético cardíaco, que vem ganhando destaque nos últimos estudos como um mecanismo importante na insuficiência cardíaca, junto dos modelos antigos. Na ICFEVEr, ocorrem defeitos na produção, na transferência e na utilização de energia pela musculatura cardíaca e esquelética. Esses defeitos provocam alterações no conteúdo de fosfatos de alta energia e redução no potencial de fosforilação, precipitando alterações na homeostase de cálcio e na contratilidade. O miocárdio, em situações de normalidade, usa os ácidos graxos como principal fonte de energia, sendo responsável por 70% do ATP produzido. No entanto, em situações de estresse (isquemia, sobrecarga pressórica), o miocárdio dá preferência à glicose como produtora de ATP, já que ela é mais eficiente e gera maior quantidade de ATP por molécula de oxigênio utilizada. Nessas situações, o balanço oferta/demanda de oxigênio é um fator importante. Conforme o processo de remodelamento progride, porém, essa adaptação metabólica torna-se insuficiente, ocorrendo redução na capacidade de oxidar glicose e diminuição da eficiência energética. Recentemente disfunção de mitocôndrias tem sido proposta como tendo parte importante na ICFEVEp. Quanto maior a oferta de energia, gerada por ácidos graxos e não por glicose, mais ATP será formado e mais energia será poupada, e esta ajudará na recuperação miocárdica em longo prazo. Um exemplo de poupador de energia, ainda em fase de estudos e testes, é a perexilina. Essa medicação leva, em curto prazo, a melhora energética cardíaca com redução de classe funcional pela NYHA, melhor qualidade de vida, porém sem alterar a função ventricular esquerda. 
Miopatia periférica
A ICFEVEr caracteriza-se pela intolerância ao exercício físico. Entre as causas para esse achado incluem-se alterações da periferia, como na perfusão e no metabolismo da musculatura esquelética, bem como anormalidades nos reflexos originários dessa musculatura. Normalmente, o fluxo autonômico e a estimulação simpática durante o exercício são governados pela inter-relação entre o comando central e a informação aferente dos músculos em exercício. Conforme for o aumento do trabalho muscular, maior será o influxo autonômico. As informações que chegam ao cérebro são derivadas da estimulação de mecano e quimiorreceptores. Os quimiorreceptores são estimulados por vários metabólitos, principalmente a acidose. Na ICFEVEp ocorre uma dessensibilização dos quimiorreceptores pela contínua exposição a metabólitos derivados da musculatura esquelética hipoperfundida e uma sensibilização dos mecanossensores pelo ATP ou substâncias relacionadas. Dessa maneira, o controle autonômico deriva quase exclusivamente dos mecanossensores. Nesse contexto, um ciclo vicioso de resposta regulatória inapropriada inicia-se a partir da musculatura esquelética. Em vez de a acidose ser o estímulo para elevação da pressão arterial e restabelecer o fluxo sanguíneo na musculatura em atividade, os mecanossensores já sensibilizados agem no início da atividade física e da contração muscular, provocando uma limitação ainda maior do fluxo sanguíneo muscular.
Anemia na ICFEVEp
Vários estudos têm demonstrado que a anemia é frequentemente observada nos pacientes com ICFEVEp, e está associada a piora dos sintomas e da sobrevida. O grau da anemia está relacionado com a gravidade da ICFEVEp. Em um estudo que avaliou 142 pacientes com ICFEVEp, a concentração média de hemoglobina diminuiu de 13,7 g/dL, em pacientes com ICFEVEp classe funcional I (NYHA), para 10,9 g/dL naqueles com ICFEVEp classe funcional IV. A sobrevida desses pacientes também está relacionada ao nível da hemoglobina, e pequenos graus de anemia (hemoglobina < 12,3 g/dL) estão relacionados com redução de sobrevida.
Néfron: estrutura e local de ação dos mediadores neuro-hormonais e diuréticos.
Em levantamento realizado no Instituto do Coração com os pacientes em acompanhamento na clínica de insuficiência cardíaca, encontrou-se uma prevalência de 10,5% de anemia, utilizando como definição de anemia a concentração de hemoglobina < 12 g/dL; a sobrevida de um ano dos pacientes com anemia foi de 54,6% e, naqueles sem anemia, de 82,9%. A principal causa de anemia na IC é provavelmente a associação de IR e resistência à ação de eritropoetina. A eritropoetina, mesmo estando elevada nos indivíduos com ICFEVEp e anemia, é insuficiente para contrabalançar a queda da hemoglobina. Ocorre déficit na produção de eritropoetina secundária a IR e, associado, há um aumento das citocinas, principalmente do fator de necrose tumoral, que deprime a produção de eritropoetina pelo rim, inibe a hematopoese e diminui a disponibilidade de ferro dos locais de armazenamento para sua utilização pela medula óssea.
Os inibidores da ECA também contribuem para a anemia da ICFEVEp pela inibição da síntese de eritropoetina. Dados do estudo SOLVD evidenciam que pacientes em uso de enalapril apresentavam níveis inferiores de hematócrito quando comparados aos que não são usuários dessa substância. Outros itens relacionados à gênese dessa anemia são a desnutrição e a hemodiluição.
Síndrome cardiorrenal e inibidores da SGLT2
O termo síndrome cardiorrenal tem sido aplicado para a associação de insuficiência cardíaca e de insuficiência renal; no entanto, a síndrome não está claramente definida, assim como seu tratamento. Recente revisão do tema definiu síndrome cardiorrenal como um estado avançado de perda da regulação cardiorrenal que pode se manifestar por cinco padrões: tipo 1 síndrome cardiorrenal aguda em IC aguda determina a IR; tipo 2 crônica em que IC crônica IR; tipo 3 nefrocardíaca aguda em que a IR determina IC; tipo 4 nefrocardíaca crônica em que a IR crônica determina IC crônica; tipo 5 secundária em que doença sistêmica determina IC e IR.
Os sistemas cardiovascular e renal em geral trabalham em sincronia para manter a homeostase hidroeletrolítica. Aproximadamente 20% do débito cardíaco é direcionado para os rins. A TFG é dependente de vários fatores, como gradiente de pressão hidrostática, gradiente de pressão oncótica e permeabilidade da membrana glomerular. Mecanismos neuro-hormonais como SRAA, SNS, AVP, endotelina e o sistema de peptídeos natriuréticos também contribuem para esse equilíbrio.
A resultante da interação dos múltiplos mecanismos adaptativos na insuficiência cardíaca é intensa ativação neuro-hormonal, congestão venosa, redução do fluxo sanguíneo e falência da autorregulação renal intrínseca. A ativação excessiva do SRAA e do SNS provoca elevação da resistência vascular periférica, resultando em um ciclo vicioso de declínio progressivo do desempenho cardíaco.
O rim tenta manter a TFG em pacientes com insuficiência cardíaca, apesar do declínio constante do fluxo sanguíneo renal. Enquanto o índice cardíaco é mantido acima de 1,5 L/ min/m2, a TFG é preservada pelo aumento da fração de filtração, apesar da redução desse fluxo sanguíneo. Quando o índice cardíaco cai abaixo desse limite, os mecanismos compensatórios falham e a TFG declina juntamente com a redução do fluxo sanguíneo renal.
A piora da função renal comumente ocorre nas fases iniciais do tratamento de um episódio de descompensação aguda de insuficiência cardíaca, na maioria das vezes quando os pacientes ainda estão com evidências de sobrecarga de volume.58 O senso comum de relacionar essa piora da função renal diretamente à depleção do volume intravascular não é totalmente verdadeiro. O volume extravascular é redistribuído com rapidez em pacientes hipervolêmicos, evitando a redução aguda do volume intravascular,59 e a TFG é preservada mesmo com um índice cardíaco baixo de até 1,5 L/min/m2.
Múltiplos fatores podem contribuir para a piora da função renal. A vasoconstrição persistente pode estar presente e o uso de vasodilatadores pode melhorar o débito cardíaco e, consequentemente, a perfusão renal. No entanto, a introdução dos inibidores da enzima conversora da angiotensina II e dos bloqueadores do receptor da angiotensina causa vasodilatação da arteríola eferente renal, provocandoredução da pressão capilar intraglomerular e consequente redução da TFG. Na maioria dos casos, o efeito imediato é a elevação dos níveis de creatinina, porém, em longo prazo, esse efeito previne a hiper filtração glomerular e preserva a função renal. Nos dias atuais, a maioria dos pacientes admitidos com insuficiência cardíaca aguda descompensada já é previamente tratada com vasodilatadores, diminuindo a importância desse mecanismo na piora da função renal.
O efeito adverso da congestão e da elevação da pressão venosa central e, portanto, renal também pode estar associado à piora da função renal. A pressão de perfusão renal não é apenas dependente da pressão arterial, sendo determinada pela pressão de perfusão transrenal, que é igual à pressão arterial média menos a pressão venosa central. Hipertensão pulmonar, disfunção ventricular direita e insuficiência tricúspide podem contribuir para a elevação excessiva da pressão venosa renal e reduzir a pressão de perfusão. A inabilidade para reduzir a pressão venosa central pode contribuir para a piora da função renal em pacientes com insuficiência cardíaca agudizada. Desde a publicação do EMPAREG – OUTCOME os usuários de empagliflozina apesar de não terem menor risco de infarto ou acidente vascular encefálico tiveram significativamente melhores desfechos renais e menores eventos por insuficiência cardíaca. Uma das teorias que tentam explicar os benefícios dos iSGLT2 são em decorrência de seus efeitos diuréticos, aumentando em curto prazo o débito urinário, seguido por uma diminuição da pressão arterial sistólica, usualmente com uma mudança sustentada no volume plasmático e peso. As gliflozinas parecem também aumentar a entrega de sódio para a mácula densa e interagem funcionalmente com o trocador de sódio-hidrogênio, a atividade deste transportador parece estar aumentada na insuficiência cardíaca sendo relacionada à resistência diurética e à liberação de peptídeos natriuréticos endógenos, portanto, a melhora da função destes transportadores parece levar à redução da tensão parietal e consequentemente do dano miocárdico. A estenose uni ou bilateral da artéria renal é outro fator que pode provocar piora da função renal na insuficiência cardíaca aguda descompensada e talvez passe despercebida. O ateroembolismo renal, comum em procedimentos vasculares invasivos, também é outra possibilidade. Uso de agentes que perturbem a hemodinâmica renal como anti-inflamatórios não esteroidais ou contrastes, infecção ou obstrução também devem ser considerados em pacientes que apresentam piora aguda da função renal.
Resistência aos diuréticos
Resistência aos diuréticos é definida como a persistência de congestão, acompanhada ou não de piora da função renal, a despeito do uso de doses adequadas de diurético de alça (furosemida, p. ex.). Nos pacientes com IC que iniciam tratamento com diurético, ocorre uma redução inicial no peso e no sódio corporal total. No entanto, um novo estado de equilíbrio é logo alcançado, no qual a entrada e a saída de sódio se igualam. Essa resistência fisiológica ao diurético conhecida como braking phenomenon se desenvolve para prevenir a perda excessiva de sal e água. Dois mecanismos contribuem para esse fenômeno: após uma dose única de diurético, ocorre um efeito rebote de aumento da absorção de sódio, que é mediada por mecanismos não totalmente esclarecidos; e as células do túbulo distal se hipertrofiam com o uso crônico de diuréticos e aumentam a recaptação de sódio, processo que ocorre em resposta ao constante bombardeamento da carga de sódio que alcança o túbulo distal em consequência do bloqueio da bomba Na+/K+. Alguns aspectos da farmacologia dos diuréticos de alça devem ser destacados: a absorção oral desses medicamentos, em especial da furosemida, é prejudicada em vigência de hipoperfusão esplâncnica e edema e, portanto, a via endovenosa deve ser preferida. Os diuréticos de alça são transportados ligados a proteínas e são secretados ativamente no túbulo proximal. Hipoalbuminemia pode interferir no sucesso do tratamento diurético, porém o uso conjunto de albumina não provou ser mais efetivo. Na insuficiência renal, o acúmulo de ácidos orgânicos compete de forma direta com os diuréticos de alça pela secreção no túbulo proximal. Adicionalmente, a redução do fluxo sanguíneo renal inibe o aporte tubular do diurético.
Morte súbita na ICFEVEp
Apesar do avanço no tratamento da ICFEVEp, quase 20% dos pacientes morrem dentro de um ano do diagnóstico, e a mortalidade após oito anos chega a 80%. Desse total de mortes, aproximadamente metade é súbita e inesperada. A causa da morte súbita cardíaca (MSC) pode variar entre os pacientes. Na maioria dos casos, presume-se que seja uma arritmia cardíaca letal, como taquicardia ou fibrilação ventricular. Bradiarritmias e atividade elétrica sem pulso ocorrem menos frequentemente. A MSC em pacientes com ICFEVEp decorre de várias alterações estruturais e funcionais associadas à predisposição genética, que contribuem para o aumento do risco de morrer subitamente. O remodelamento ventricular que se desenvolve na IC também se estende à eletrofisiologia dos cardiomiócitos. O prolongamento do potencial de ação (PA) é característico de células e tecidos isolados de miocárdios com falência ventricular. Além disso, ocorre dispersão da repolarização, o que pode predispor a atividade deflagrada mediada por pós-despolarizações e reentrada.
Situações especiais
Existe uma grande correlação entre diabete melito e cardiomiopatia não isquêmica.67 Cada 1% de incremento na hemoglobina A1c está associado com um aumento de 8% no risco de desenvolver insuficiência cardíaca, mesmo após ajuste para outros fatores como a doença arterial coronariana.68 Além disso, em pacientes com resistência à insulina, mesmo na ausência do diagnóstico de diabete melito a prevalência de alterações estruturais cardíacas e insuficiência cardíaca está aumentando.67 Pacientes com cardiomiopatia não isquêmica são mais resistentes a insulina que uma população-controle saudável, além de serem mais resistentes a insulina que pacientes com doença arterial coronariana. A insulina tem vários efeitos sobre o miocárdio. Ela se liga a um receptor de membrana que, por sua vez, ativa um mediador central, a proteína cinase B (Akt-1). Entre os efeitos desse mediador não relacionados com o metabolismo da glicose destacam-se inibição da apoptose, estimulação da hipertrofia dos miócitos e produção de óxido nítrico. Portanto, a ausência de resposta adequada à insulina leva a redução na produção de óxido nítrico e consequente disfunção endotelial, além de aumento na apoptose e alterações na estrutura cardíaca. Os efeitos metabólicos da ativação do mediador Akt-1 são no sentido de promover o transporte intracelular e o metabolismo da glicose, além de inibir o metabolismo dos ácidos graxos. Assim, respostas adaptativas cardíacas ao estresse, como o mecanismo já relatado de substituição dos ácidos graxos como principal fonte de energia pela glicose, são inibidas na presença de resistência à insulina. Inversamente ao esperado nessas situações, ocorre incremento do metabolismo de ácidos graxos e aumento do consumo de oxigênio, reduzindo a eficiência cardíaca. Além disso, o suprimento de ácidos graxos aumenta de maneira desproporcional a capacidade oxidativa cardíaca e esse acúmulo provoca lipotoxicidade e piora da insuficiência. Em resumo, vários mecanismos podem estar relacionados ao desenvolvimento da cardiomiopatia diabética, com destaque para as alterações no metabolismo cardíaco, com redução da utilização de glicose e piruvato e aumento da oxidação de ácido graxos; as modificações estruturais com aumento da fibrose e glicalização proteica levando a lesão de miócitos, modificações de permeabilidade e apoptose miocitária; doença microvascular; neuropatia cardíaca com distúrbios do fluxo sanguíneo miocárdico e função miocárdica. 
Cardiomiopatia chagásica
A cardiomiopatia chagásica representa o resultado da íntima interação entre o hospedeiro e o parasita (Trypanosoma cruzi).Duas teorias tentam explicar a patogênese das lesões da doença de Chagas: a primeira, com base na persistência do parasita no hospedeiro, defende que as lesões são decorrentes da ruptura mecânica das células parasitadas e de subsequente inflamação; a segunda atribui a agressão celular a um processo autoimune, em que haveria uma reatividade cruzada entre o parasita e o hospedeiro, secundária a um mimetismo molecular entre antígenos do Trypanosoma cruzi e células do hospedeiro. A resposta inflamatória é particularmente ativada na doença de Chagas, com padrão recorrente e períodos de exacerbação, provocando lesão neuronal, alterações microcirculatórias, deformações da matriz cardíaca e, por fim, falência cardíaca. Pacientes com boa resposta imunológica podem conter de forma adequada a infecção parasitária e evoluir para a forma cardíaca indeterminada, caracterizada pela comprovação da infecção pelo parasita associada à ausência de manifestações relacionadas a lesões cardíacas ou digestivas. Há, no entanto, a possibilidade de se encontrar lesões inflamatórias cardíacas de baixo grau de intensidade microscópicas. Hospedeiros com resposta imunológica deficiente e/ou parasitemia elevada favorecem o desenvolvimento de resposta imunológica inadequada e processo inflamatório intenso com lesão das células miocárdicas.
Diagnóstico
Avaliação inicial
O diagnóstico da insuficiência cardíaca é principalmente baseado em história cínica, exame físico e laboratoriais, auxiliados pelos exames imagem. É importante para o diagnóstico da IC a presença de sinais e sintomas sugestivos de disfunção cardíaca, porém, alguns como dispneia e edema são de difícil interpretação, principalmente em obesos, idosos e pneumopatas. Assim, a suspeita clínica inicial deve ser seguida de exames laboratoriais e de imagem. Em 2021 foi publicada a definição universal de insuficiência cardíaca, em que foi sugerido um algoritmo diagnóstico que inclui avaliação clínica, dosagem de peptídeos natriurético e evidência de aumento das pressões de enchimento ventricular. Todas as etapas auxiliam na definição da etiologia da IC e esta, quando identificada, ajuda a definir o modelo fisiopatológico (disfunção sistólica versus função sistólica preservada), o modelo hemodinâmico, estimar prognóstico e identificar pacientes que possam se beneficiar de intervenções terapêuticas específicas (como dispositivos e procedimentos cirúrgicos).
Algoritmo diagnóstico de insuficiência cardíaca. ECG: eletrocardiograma; FE: fração de ejeção; ICC: insuficiência cardíaca congestiva; ICFEr: insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida; ICFEi: insuficiência cardíaca com fração de ejeção intermediária; ICFEp: insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada.
História e exame físico
A história clínica detalhada inclui antecedentes pessoais, epidemiológicos, familiares, início e progressão dos sintomas. Na doença de Chagas, dados como nascimento em zona endêmica, familiares com a doença, associados a sintomas de IC, sugerem a etiologia. Já a presença de angina de peito, antecedente de infarto do miocárdio, aterosclerose, área inativa em eletrocardiograma e disfunção segmentar ao ecocardiograma sugerem etiologia isquêmica. História de hipertensão, arritmias, quimioterapia prévia, hipo/hipertireoidismo, infecções prévias e história familiar de IC também sugerem etiologias diversas da IC. O exame físico cuidadoso é sempre preconizado e ajuda no diagnóstico da IC. Nele inclui-se a observação de sinais e sintomas como dispneia, edema, palpitações, taquicardia. Os sinais mais específicos e de maior valor prognóstico (pressão venosa elevada e B3) são pouco sensíveis e de reprodutibilidade inter-observador limitada, principalmente entre não especialistas. A organização dos sinais e sintomas de forma integrada e hierarquizada, por meio de sistema de pontos ou critérios maiores e menores, facilita e guia melhor o diagnóstico de IC.
Exames complementares
A sensibilidade e a especificidade da avaliação clínica (história e exame físico) para diagnosticar pacientes com IC é baixa, sendo necessária a utilização de exames complementares a fim de melhorar a acurácia no diagnóstico de IC.
Avaliação bioquímica e hematológica
A avaliação inicial desses pacientes deve incluir hemograma para avaliação de anemia, eletrólitos, função renal, glicemia, hemoglobina glicada, perfil lipídico, função hepática e uroanálise, função tireoidiana, troponina, CPK, sorologias e ácido úrico. A função hepática pode estar alterada em casos de congestão e baixo débito. Alteração da função renal pode ocorrer em decorrência de diabete melito, hipertensão arterial sistêmica, débito cardíaco reduzido pela cardiopatia ou efeito do tratamento (uso de diuréticos, inibidores da enzima conversora de angiotensina II e bloqueadores dos receptores da angiotensina). Hipocalemia é um efeito adverso comum do tratamento com diuréticos, e pode causar arritmias. Por outro lado, hipercalemia pode complicar o tratamento com inibidores da enzima conversora de angiotensina II e bloqueadores dos receptores da angiotensina, betabloqueadores e espironolactona, e requerer ajuste terapêutico.
Peptídeos natriuréticos (BNP/NTproBNP)
O BNP e o NTproBNP são os biomarcadores mais utilizados para diagnóstico da IC, assim como para prognóstico na mortalidade e na hospitalização. Eles aumentam conforme há distensão da parede dos ventrículos e estão relacionados com a fração de ejeção e nos casos de hipervolemia. Em prontos-socorros, têm grande importância, pois servem como diferencial da dispneia de origem cardíaca e de outras causas. Níveis normais de BNP possuem valor preditivo negativo de 95% para excluir IC descompensada. Além de identificar pacientes com doença cardíaca sem manifestações clínicas, mas que correm risco de desenvolver IC. No entanto, como qualquer exame laboratorial, os níveis de BNP devem ser interpretados cuidadosamente, pois podem se elevar no sexo feminino, em idosos e em doenças como insuficiência renal, assim como podem diminuir em obesos.
Eletrocardiograma (ECG)
Alterações eletrocardiográficas são frequentes em pacientes com IC. Contudo, a maior relevância do uso desse método nesse contexto é o achado de um eletrocardiograma normal que detém elevado valor preditivo negativo (> 90%) a fim de excluir disfunção ventricular sistólica. Alterações como zona inativa, presença de onda Q e aumento atrial podem ser importantes para o diagnóstico etiológico da IC. Também é utilizado para análise de bradiarritmias e taquiarritmias (principalmente flutter e fibrilação atrial), além de distúrbios de condução atrioventricular (bloqueios atrioventiculares e fasciculares), que podem ser encontrados em casos de IC avançada. Alterações como BRE implicam pior prognóstico e QRS maior do que 130 ms, um critério para indicação de ressincronizador.
Radiografia de tórax
A avaliação de um paciente com IC inclui obrigatoriamente a radiografia de tórax. Com ela avalia-se a presença de cardiomegalia (índice cardiotorácico > 2,5), dilatação de câmaras atriais e ventriculares, congestão pulmonar e derrames pleurais. No entanto, IC pode ocorrer sem cardiomegalia, sobretudo em pacientes com IC aguda ou com função sistólica preservada. Com a elevação progressiva da pressão capilar pulmonar, observa-se, na vasculatura pulmonar, um aumento na trama vasobrônquica, equalização no tamanho dos vasos do ápice e da base, perda da nitidez dos vasos hilares, edema pulmonar intersticial tipo septal visualizado pelas linhas de Kerley e edema pulmonar subpleural com acúmulo de fluido em forma de fuso entre o pulmão e a superfície pleural subjacente. Quando a pressão capilar pulmonar excede 25 mmHg, pode ocorrer edema alveolar com concentração de fluido em torno do hilo. Com o aumento da pressão venosa sistêmica, a veia ázigos e a cava superior podem estar aumentadas na radiografia torácica.
Ecocardiograma
O ecocardiograma Doppler bidimensional é o exame mais utilizado para avaliação da anatomia e da função cardíaca. É um exame barato, rápido e não invasivoque pode ser realizado à beira do leito. Também pode ser feito tanto no repouso quanto no esforço. É um bom método para avaliação da função global e regional do ventrículo esquerdo (VE), da função sistólica (inferior a 50% já é considerado disfunção sistólica) e da função diastólica, da anatomia e da função valvar, avaliação da aorta, veia cava, pericárdio e presença de trombos intracavitários. É um bom exame para avaliação e monitoramento das respostas a várias terapias (medicamentosas ou não). O VE é o mais importante indicador prognóstico em pacientes com isquemia ou cardiomiopatia dilatada e, por meio do ecocardiograma, é possível avaliar suas dimensões, volumes, índice de esfericidade, gravidade da regurgitação mitral (causada pelo aumento do VE e retração das cordoalhas), parâmetros de enchimento sistólico e diastólico, além da pressão sistólica da artéria pulmonar. Mais recentemente, o ecocardiograma tem sido investigado para seu uso na avaliação de pacientes com dissincronia ventricular. Avalia quais pacientes se beneficiarão da terapia, pois 30 a 50% dos pacientes que implantam marca-passo biventricular não têm resposta e nenhuma melhora.
Ressonância magnética
Utilizada para avaliação morfológica e funcional do coração, visualização do pericárdio e dos grandes vasos. Permite a avaliação da função global e segmentar do ventrículo esquerdo e direito, da perfusão miocárdica regional e viabilidade miocárdica, da função sistólica e diastólica e da anatomia orovalvar.
Radioisótopos
A medicina nuclear com técnicas de SPECT (single photon emission tomography) pode contribuir na IC de duas maneiras distintas: avaliação da perfusão miocárdica e da função ventricular de VE e VD. Cintilografia miocárdica de perfusão é utilizada para o diagnóstico de doença arterial coronariana, fornecendo informações de isquemia e viabilidade miocárdica, assim como prognósticas.
Estudo hemodinâmico
A coronariografia está indicada em pacientes com angina ou que possuem evidências de isquemia miocárdica. Pacientes com insuficiência cardíaca em investigação de etiologia de IC e com refratariedade ao tratamento devem ser submetidos a angiografia coronariana, já que a doença arterial coronariana está presente em dois terços dos pacientes com disfunção ventricular. Outras indicações do método incluem: avaliação de pacientes candidatos a transplante cardíaco, auxílio na indicação de tratamento cirúrgico nas disfunções valvares, aneurismas ventriculares e obstruções coronarianas. O teste de esforço na IC é utilizado para avaliação funcional, estratificação prognóstica, avaliação objetiva de classe funcional, além de fornecer informações importantes para a seleção de candidatos a transplante cardíaco. A ergoespirometria consiste na realização do teste de esforço associado à medida da ventilação pulmonar e à análise das concentrações de oxigênio e gás carbônico do ar expirado para quantificação precisa do consumo máximo de oxigênio (VO2 pico) e do limiar anaeróbico. Pico abaixo de 10 mL/kg/ min identifica pacientes com pior prognóstico, enquanto VO2 pico maior que 18 mL/kg/min confere bom prognóstico em pacientes com IC. Algumas variáveis como uso de betabloqueador, idade e sexo podem afetar os valores de VO2 pico.
AVALIAÇÃO DA CAPACIDADE FUNCIONAL NA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA E NOVAS TECNOLOGIAS –ERGOESPIROMETRIA E CARDIOMEMS®
A relação entre a ventilação (VE) e produção de dióxido de carbono (VCO2) expressa como inclinação da relação VE/VCO2 ou slope do VE/VCO2 também mostra-se um parâmetro ergoespirométrico com valor prognóstico em pacientes com IC. Valores maiores que 35 estão relacionados com pior prognóstico. O CardioMEMS® é um sistema de monitoramento remoto das pressões pulmonares que envia em tempo real aos sistemas de saúde as medidas e permite a detecção precoce de piora do quadro clínico, além de permitir ajustes individualizados da medicação prevenindo hospitalizações por insuficiência cardíaca.
RESUMO
A síndrome da insuficiência cardíaca (IC) ainda é uma doença com destaque na saúde pública. Tem elevada prevalência na população, com alta mortalidade morbidade, e é responsável por grande parte das internações hospitalares no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, principalmente entre os idosos. A síndrome clínica da insuficiência cardíaca (IC) representa um somatório de múltiplas alterações anatômicas, funcionais e biológicas que interagem entre si. Mesmo após a disfunção cardíaca instalada, a maioria dos pacientes pode permanecer assintomática por períodos variáveis, em decorrência da ativação de mecanismos adaptativos, dentre os quais se destacam o sistema renina-angiotensina-aldosterona e o sistema nervoso simpático. Essas adaptações iniciam-se rapidamente, em questão de minutos a horas, e são capazes de sustentar ou modular a função ventricular em níveis próximos do normal. Em longo prazo, outro mecanismo adaptativo é o remodelamento ventricular, no qual fatores neuro-hormonais, mecânicos e possivelmente genéticos alteram tamanho, forma e função ventricular. Esse remodelamento ventricular, que a princípio é consequência da ICFEVEr, passa em um segundo momento a contribuir para a deterioração da disfunção miocárdica. Quando ocorre a falência dos mecanismos adaptativos, sobretudo o remodelamento ventricular, a ICFEVEr IC torna-se sintomática. Apesar dos avanços no tratamento, ainda há uma elevada morbidade e mortalidade, assim, novos modelos têm sido propostos para explicar essa progressão da ICFEVEp, apesar do diagnóstico mais precoce e do tratamento otimizado, como o modelo do metabolismo energético. O diagnóstico da IC é realizado inicialmente pela história clínica e pelo exame físico, observando sinais e sintomas sugestivos da síndrome; associados a exames laboratoriais e métodos de imagem como ecocardiograma, eletrocardiograma e ressonância magnética ajudam no correto diagnóstico da IC, assim como em seu correto tratamento.
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