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CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA: UMA ABORDAGEM INTERSECCIONAL DE RAÇA, ETNIA, GÊNERO E SEXUALIDADE NO ESPAÇO EDUCACIONAL CORPORALITY AND DIFFERENCE IN SCHOOL GEOGRAPHY AND GEOGRAPHY OF SCHOOL: AN INTERSECTIONAL APPROACH TO RACE, ETHNICITY, GENDER AND SEXUALITY IN EDUCATIONAL SPACE CORPORALIDAD Y DIFERENCIA EN LA GEOGRAFÍA ESCOLAR E EN LA GEOGRAFÍA DE LA ESCUELA: UN ENFOQUE INTERSECCIONAL DE RAZA, ETNIA, GÉNERO Y SEXUALIDAD EN EL ESPACIO EDUCATIVO ALEX RATTS Instituto de Estudos Socioambientais – Universidade Federal de Goiás/Campus Samambaia, Goiânia(GO). E-mail: alexratts@uol.com.br * Artigo publicado em fevereiro de 2018. Resumo: Este artigo é composto de reflexões que emergem em meio a estudos e pesquisas sobre as questões da diferença – étnica, racial, de gênero e sexual –, no campo da geografia e em áreas afins, alguns dos quais voltados a processos e espaços educacionais. Inicialmente, articulamos as questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade com a geografia escolar nas perspectivas crítica e “pós-críticas”. Posteriormente, refletimos sobre a diferença e a abordagem interseccional que articulam marcas ou marcadores, tendo em vista estudos de relações raciais, feministas e queer. Abordamos, ainda, o corpo e a corporeidade na análise espacial e trazemos alguns casos noticiados por jornais ocorridos em escolas. Ao final, propomos alguns pontos de discussão acerca deste tema face às demandas sociais. Palavras-chave: corporeidade, diferença, geografia escolar. Terra Livre São Paulo Ano 31, Vol.1, n 46 p. 114-141 TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 115 Abstract: This article is made up of reflections that emerge in the context of studies and researches with the question of the difference – ethnic, racial, gender and sexual – in the field of geography and related areas, some of them focused on educational processes and spaces. Initially, we articulated the ethnic-racial, gender and sexuality issues with school geography in the critical and “post-critical” perspectives. Subsequently, we reflect the difference and the intersectional approach that articulate brands or markers, in view of race relations, feminist and queer studies. We also approach body and corporality in spatial analysis and bring some cases reported by newspapers in schools. In the end, we propose some points of discussion about the theme in face of social demands. Keywords: corporality, difference, school geography. Resumen: Este artículo se compone de reflexiones que surgen en medio de los estudios e investigaciones con la cuestión de la diferencia – étnico, racial, de género y sexual – en el campo de la geografía y otros campos relacionados, algunos de los cuales orientados para procesos y espacios educativos. Inicialmente, correlacionamos las cuestiones étnicas e raciales, de género y de sexualidad a la geografía escolar en las perspectivas críticas e “post-críticas”. A continuación, reflejamos la diferencia e el enfoque interseccional que articula marcas o marcadores, en vista de los estudios de las relaciones raciales, feminista y queer. Sin embargo, nos acercamos al cuerpo y la corporalidad en el análisis espacial. También traemos algunos casos reportados por los periódicos que tuvieron lugar en las escuelas. Al final, se proponen algunos puntos de discusión sobre el tema, con miras a las demandas sociales. Palabras clave: corporalidad, diferencia, geografía escolar. Introdução Este artigo é composto de reflexões que emergem em meio a um processo de estudos e pesquisas sobre a questão da diferença – étnica, racial, de gênero e sexual – na geografia e em áreas afins, alguns dos quais voltados a processos e espaços educacionais, seja com a trajetória espacial de estudantes, intelectuais, trabalhadores(as) ou ativistas ou com os espaços educacionais em si, em área urbana, em quilombos e terras indígenas.1 Compreendemos a geografia escolar como um conjunto de estudos dos conteúdos, metodologias e práticas pedagógicas, 1 A primeira versão (não publicada) deste artigo foi apresentada na mesa redonda “Ensino de geografia e multiculturalidade”, realizada no 12º Encontro Nacional de Práticas de Ensino de Geografia (ENPEG), entre os dias 15 e 19 de setembro de 2013, na Universidade Federal da Paraíba, Campus I, João Pessoa/PB. RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 116 recursos e materiais didáticos, pautados no âmbito da ciência geográfica, mas também como um campo de observações, interações e intervenções entre corpos discente, docente e técnico – para além de metáforas – e os espaços educacionais formais (escolas ou universidades) ou informais, vistos como espaços sociais e geográficos (GARRIDO PEREIRA, 2015). Neste sentido, intentamos retomar princípios da geografia contemporânea que se situam entre a vertente crítica, especialmente no horizonte da cidadania e dos direitos humanos, e outros que são considerados pouco ou não geográficos, identificados com vertentes denominadas “pós-críticas”, que tratam das diferenciações étnico-raciais, de gênero e sexualidade.2 Mais que um enquadramento epistemológico, neste momento, o importante é identificar um temário que emerge na sociedade brasileira em tempos de reação aos governos autoritários e no período de redemocratização, e que foi reconhecido por alguns(mas) teóricos(as) da geografia, mas não direta e incisivamente nas áreas de ensino e didática.3 Apontamentos sobre as questões étnico-racial, de gênero e sexualidade na geografia escolar A “virada crítica”, em parte da Europa Ocidental, nos Estados Unidos e no Brasil, entre os anos 1970 e 1980, é bem conhecida na literatura geográfica, com implicações na 2 Esta denominação é dada aos estudos de gênero, feministas e queer, mas também às “narrativas étnica e racial”, como o faz Silva, T. (2004). Este autor reconhece que estas duas últimas questões permeiam outros arcabouços teóricos, a exemplo da perspectiva crítica. No escopo deste artigo, não poderemos aprofundar este tema, mas cabe dizer que há geógrafos(as) que as refletem nesta vertente. 3 O uso da variação entre masculino e feminino atende ao reconhecimento da presença diferenciada e da feminilização da ciência geográfica, mas não recobre todos os sujeitos, pois há pessoas que não se encaixam na divisão binária de gênero. TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 117 transformação da geografia escolar, com datações ou periodizações diferenciadas.4 Este foi também o período de retomada dos movimentos negro, indigenista e de mulheres e da organização de um movimento homossexual. Como o Brasil vivia uma ditadura militar (1964-1985), as propostas pedagógicas anteriores, a exemplo do método Paulo Freire, sofreram um revés. No entanto, algumas pessoas e grupos, além de estudiosos(as), mantiveram a memória e a história de experiências como a ação educacional da Frente Negra Brasileira (FNB), como a campanha pró-instrução de 1934 (São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul) (GONÇALVES, SILVA, 2000) e a prática pedagógica e artística do Teatro Experimental do Negro, fundado em 1944, no Rio de Janeiro (ROMÃO, 2005). Tais ideias e proposições, muitas vezes, passaram ao largo do ensino de geografia. Apesar de parecerem temas novos, as questões étnico- raciais e de gênero, relativas a “negros”, “indígenas” e “mulheres”, são mencionadas em textos identificados como pertencentes à vertente crítica da geografia escolar dos anos 1980. Ao identificar uma crise e também uma pluralidade no marxismo, Vesentini (1987) chama a atenção para a ligação deste quadro com a emergência de movimentos sociais que não se definem pelo pertencimentode classe, enunciando uma “crise” no método, compreendido e praticado de forma diversa: “[...] a crise do marxismo, derivada principalmente do refluxo do movimento operário ao lado do recrudescimento das lutas ecológicas, feministas, regionais, étnicas etc., além do resultado concreto da evolução histórica do ‘socialismo real’” (VESENTINI, 1987, p. 65). Ao tratar da realidade social de estudantes, este autor indica que as questões agrária, da violência policial, da mulher ou do feminismo devem ser tratadas com grupos específicos, tendo em vista a relação “dialética” entre docentes e discentes: 4 No Brasil, entre publicações e eventos relacionados à chamada geografia cultural, identificamos alguns pontos de inserção dos temas da diferença, mas que não incidem no centro das formulações teóricas. RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 118 E outro elemento importantíssimo é a realidade social do aluno, os seus interesses existenciais. Por exemplo, não se deve deixar de enfocar a questão agrária quando estamos lecionando para filhos de acampados ou de “bóias-frias”. E não se pode deixar de trabalhar a questão da violência policial para alunos da periferia dos grandes centros urbanos. Da mesma forma, é extremamente motivador (e motivação é algo basilar para o ensino) abordar a questão da mulher e do feminismo em turmas de secretariado. E assim por diante. Ou seja: não se trata nem de partir do nada e nem de simplesmente aplicar no ensino o saber científico; deve haver uma relação dialética entre esse saber e a realidade do aluno – daí o professor não ser um mero reprodutor, mas um criador (VESENTINI, 1987, p. 78). Em outro trecho do artigo, Vesentini aponta questões da mulher, do racismo e da segregação étnica como relevantes para o ensino de geografia e para a relação docente-discente como práxis política impulsionada a partir de uma motivação: Já os nossos objetivos, como professores de geografia, não são exatamente esses: interessa-nos, antes de mais nada, suprimir dialeticamente o aluno enquanto tal para que ele se torne um igual, um parceiro na práxis afinal, como cidadão. E motivação para estudos, debates, pesquisas etc. é imprescindível nesse ensino: não será uma totalidade fechada, definida, pronta, altamente abstrata, que irá motivar o educando do ensino médio (quanto ao do ensino elementar, pior ainda), mas sim questões ligadas às contradições da nossa época, tais como a situação da mulher, o racismo e a segregação étnica, a distribuição social da renda e seus motivos, a problemática dos jovens e dos idosos etc. (VESENTINI, 1987, p. 83). Mais uma citação deste autor se correlaciona com alguns dos temas aqui tratados, que, em seu entendimento, devem colaborar para trazer mais criticidade ao ensino de geografia: Dessa mesma forma, deve-se abandonar ou repensar muitos temas tradicionais no ensino da geografia. Um ensino de geografia voltado para a criticidade do aluno, para a formação de cidadãos plenos, não consiste pura e simplesmente em renovar os mesmos temas da geografia tradicional, mas, principalmente, em repropor tudo: excluir certos assuntos (tais como fusos horários, “geografia astronômica” ou “evolução da geografia”, para citar apenas três exemplos), desenvolver itens novos (como a degradação TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 119 ambiental, a situação da mulher na sociedade moderna, a questão da burocracia e da democracia etc.) e retrabalhar os restantes (VESENTINI, 1987, p. 87-88). Por fim, Vesentini lista algumas “questões motivadoras” para o ensino de geografia, sendo uma delas o apartheid sul- africano, que se tornou tema comum de livros didáticos e paradidáticos desta área, nos anos 1980 e 1990. Paganelli (1987), em seu estudo sobre o ensino de geografia para crianças, também menciona as questões raciais e de gênero como pertinentes ao processo de aprendizagem infantil: A tarefa do professor, neste momento, é oferecer experiências concretas sobre o espaço local, discutir os estereótipos do modelo de uma classe, dos papéis sociais congelados do homem, da mulher, do negro, do trabalhador, relativizando o absoluto e dogmático do pensamento infantil, do sim-não, do bom-mau, do inferior-superior, preenchendo assim “os vazios”, os claros de uma linguagem ideológica (PAGANELLI, 1987, p. 143). No entanto, esta autora alerta para o fato de que os docentes não deveriam se tornar restritos às suas aproximações com os movimentos sociais – em plena emergência, nos anos 1980 – para que o não ensino transpusesse estas situações mais diretas: A segunda que reduz o ensino à prática de aliança com os movimentos sociais, denunciando as situações concretas da terra, dos índios, dos marginalizados, da poluição – ecologia, assumindo os professores, o que bem caracteriza M. Chauí, em relação aos intelectuais da década de 80, o papel de “funcionários do povo”: uma prática necessária e rica, mas que, sem o devido suporte, corre o risco de não permitir ao aluno uma autonomia de elaboração conceitual, transformando-o em um mero reprodutor da linha de pensamento do mestre (PAGANELLI, 1987, p. 136). Em nosso entendimento, este aspecto que Paganelli levanta se refaz, se amplia e se complexifica na reconhecida reflexão acadêmica e política feita por geógrafas(os) em suas pesquisas e práticas de ensino na observação direta dos movimentos sociais ou como militantes. As menções às questões raciais, étnicas e de gênero continuam em vários textos afeitos à geografia escolar. Cabe reter RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 120 destas leituras alguns aspectos para o cenário atual: 1) os movimentos sociais, particularmente de negros, indígenas e mulheres/feministas, como se sabe, estavam no horizonte de estudo e de militância de algumas(uns) geógrafas(os), e podem comparecer como tema na geografia escolar, desde a sala de aula, passando pelo livro didático, chegando à geografia da escola, a depender da sua constituição socioespacial: escolas públicas ou privadas, indígenas, rurais ou quilombolas; 2) a chamada “realidade social” dos(as) estudantes (e, por inferência, das escolas) era – como ainda é – parte constitutiva do percurso político- pedagógico a ser traçado pelos(as) docentes, e interfere na formação da “comunidade pedagógica” (HOOKS, 2013), que envolve os pertencimentos de raça, etnia, gênero e classe, entre outros, do conjunto de segmentos da comunidade escolar, e, particularmente, o contexto discursivo da sala de aula. No campo da pedagogia, surgiram propostas que tentaram abarcar a diferenciação cultural e étnica brasileira, mas, no tocante às questões de raça, gênero e sexualidade, consideramos que há muita resistência em incorporá-las. Acerca deste quadro, Louro assim se posiciona: Agora as pesquisas têm procurado “compreender a educação articulada ao todo social”. No entanto, este “todo social” tem sido, por sua vez, entendido de modo reduzido, ou seja, fundamentalmente, como a sociedade capitalista, dividida em classes sociais antagônicas. Apenas eventualmente são feitas menções à existência de outras contradições (como as oposições de gênero, raça, idade, religião). Assim sendo, parece ainda restar aos que assumem o desafio de trabalhar com tais contradições o ônus de reafirmar sua validade (LOURO, 1994, p. 34). Parece ser este o caso dos estudos e pesquisa que tratam de raça, etnia, gênero, sexualidade e corporeidade na ciência geográfica contemporânea, particularmente no Brasil, que se aproximam e se diferenciam das abordagens crítica e cultural. As noções de “multiculturalidade” e “diversidade”, advindas de outros contextos nacionais e disciplinares, têm sido adotadas por TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 121 estudiosas(os)do ensino de geografia. Em nosso entendimento, no Brasil, estas noções são, em grande parte, lidas como uma renovação da ideia de “mestiçagem cultural” entre os segmentos negro, branco e indígena, negando ou sobrepujando as demandas específicas de grupos étnico-raciais subalternos, a exemplo das duas últimas coletividades e de algumas que nem chegam a ser mencionadas, a exemplo dos(as) ciganos(as). Estudos relativamente recentes pautam a questão da racialidade e da sexualidade na geografia escolar por meio de distintas abordagens. Há estudos que tratam da implementação dos conteúdos ligados à história e à geografia africana e afro- brasileira em perspectiva não eurocêntrica (SANTOS, 2007; OLIVEIRA, 2015). Outras proposições vêm sendo colocadas, a exemplo do estudo de Tonini (2002) acerca de gênero, geração e etnia no livro didático. Souza (2008) estuda os percursos urbanos e metropolitanos entre residência, trabalho, lazer e militância de um conjunto de professoras identificadas como negras, oriundas das classes populares e trabalhadoras em escolas públicas de Goiânia, e afirma a pertinência da inter-relação entre as dimensões raciais e espaciais: Uma das intenções desta pesquisa é, justamente, como diz Certeau, traçar e compreender os trajetos, os caminhos feitos e significados pelos sujeitos, buscando perceber como eles, ou melhor, elas representam o olhar a si mesmos e aos outros. As trajetórias socioespaciais demonstram as histórias de vida das professoras, abarcando as dificuldades socioeconômicas, a luta para fugir delas, os deslocamentos espaciais realizados, a espacialidade de suas práticas cotidianas e a dimensão espacial das relações raciais (SOUZA, 2008, p. 51). Santos e Ratts (2015) estudam as trajetórias socioespaciais de estudantes negros(as) na Universidade Federal de Goiás, com especial atenção a locais de residência, migração, estudo, lazer e militância. A identificação de um grupo de estudantes que também são ativistas possibilita observar mudanças na formação acadêmica em que estes(as) conseguem RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 122 incorporar a temática étnico-racial em seus estudos e pesquisas, nas suas áreas de formação, notoriamente nas Humanidades, inclusive na geografia. Ao enveredar pelos estudos de gênero, Silva (2009) tem se voltado a problematizar a ausência da questão da sexualidade no ensino de geografia (JUNKES, SILVA, 2009). Em coletânea que trata da espacialidade de travestis (SILVA, CHIMIN JR., ORNAT, 2013), nas narrativas, a escola, assim como a residência familiar de nascimento ou formação inicial, é apontada como local de transfobia (discriminação para com travestis e transexuais), com alusão a processos de “evasão” que, de fato, correspondem a expulsões mais ou menos explícitas. Estas reflexões têm referências das teorias de relações raciais, do feminismo e/ou da teoria queer,5 se aproximam ou se distanciam da perspectiva crítica e trazem para a geografia uma proposta de abordagem a partir do corpo ou da corporeidade (SILVA, ORNAT, CHIMIM JR., 2013; RATTS, 2011) que pode ser desdobrada no âmbito do ensino e da didática. Uma abordagem geográfica que agregamos é a que considera relação do espaço escolar com a cidade e a cidadania. Garrido Pereira (2005) propõe discutir a correlação entre justiça social, escola e os temas da diversidade e da inclusão: Uno de los cuestionamientos más importantes desarrollados en los últimos años, es aquel referido a la promoción de la Justicia Social. La escuela aparece como una institución a la que se le demanda la producción de igualdad, ya sea en condiciones de redistribución de oportunidades o productos, 5 O termo queer, nos afirma Louro (2001, p. 546), “pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais”. Ainda segundo esta autora (2001, p. 546), “queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora”. Louro também observa que “efetivamente, a teoria queer pode ser vinculada às vertentes do pensamento ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX, problematizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agência, de identificação” (LOURO, 2001, p. 547). TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 123 ya sea en el reconocimiento de la diversidad (GARRIDO PEREIRA, 2005, p. 2).6 Este autor segue evidenciando a recepção dessas questões segundo os paradigmas pedagógicos crítico (marxista e neomarxista), experiencial (fenomenológico, hermenêutico e existencialista) e pós-crítico (teorias do reconhecimento, da subalternidade, do pós-colonialismo e do desconstrucionismo), o que resultaria em duas visões a respeito da justiça social: Una centrada en el tema de la redistribución de condiciones y productos educativos (principalmente referida a la influencia de los pedagogos críticos) y una centrada en la consideración legítima de las experiencias diferenciales con que los sujetos habitan lo social (principalmente referida a la influencia de los pedagogos experienciales y de los pedagogos post-críticos) (GARRIDO PEREIRA, 2005, p. 5).7 Na composição do que, por vezes, denomina de “mundo escolar”, Garrido Pereira recoloca os componentes de classe, com base na teoria do reconhecimento, acrescenta a “experiência interseccional subjetiva” e aponta as dimensões raciais e de sexo: Clasismo, Racismo y Sexismo conjurando un campo interseccional, en donde las categorías opresoras debieron ser revisitadas en el mundo escolar, para definir la forma en que la diversidad y los mecanismos de inclusión promovidos por la escuela, terminaban por tensionar el desarrollo de los principios de justicia social entre quienes participan de los procesos educativos formales (GARRIDO PEREIRA, 2005, p. 7).8 6 Tradução livre: “Um dos questionamentos mais importantes desenvolvidos, nos últimos anos, é aquele que se refere à promoção da justiça social. A escola aparece como uma instituição que demanda a promoção da igualdade, quer em termos de redistribuição de oportunidades ou produtos, quer no reconhecimento da diversidade.” 7 Tradução livre: “Uma voltada para a questão da redistribuição de condições e produtos educacionais (referindo-se principalmente à influência de pedagogos críticos) e outra focada em consideração legítima de experiências diferenciais com que os indivíduos habitam o social (principalmente referindo-se à influência de pedagogos experienciais e pedagogos pós-críticos). 8 Tradução livre: “Classismo, Racismo e Sexismo conjurando um campo interseccional, onde as categorias de opressão devem ser revistas no mundo da RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 124 Para este autor, reconhecer a diversidade, a diferença e a alteridade implica em entender que o espaço educacional é composto de vários “tipos de sujeitos”. Uma escola que se pretenda inclusiva deve ampliar ao máximo o conjunto de segmentos a serem atendidos. Um exemplo a se considerar é que, em face da crítica às pedagogias politicamente conservadoras e discriminadoras, tornou-se uma demanda contemporânea dos movimentos negro, de mulheres e feministas pautar o direito à educação para estes públicos. Mais recentemente, o movimento LGBT tem se engajado neste campo. Diversidade, diferença e interseccionalidade A noção de diferença emerge de muitos lugares epistemológicos: da teoria feminista, dos estudos culturais e dos estudos subalternos, entre outras vertentes. Podemos apontar destas algumas formulações de Audre Lorde (2003),Stuart Hall (2000) e Avtar Brah (2006). A diferença está no horizonte das interações sociais e políticas, nestas perspectivas, das relações raciais (negros(as), brancos(as), mestiços(as) e outros segmentos que podem ser racializados), de etnicidade (indígenas, quilombolas, ciganos(as) e outros grupos que podem passar por processos de etnicização), de gênero e sexualidade (mulheres, travestis, transexuais, homens, lésbicas, gays, bissexuais e pessoas que não se enquadram nestas definições). Algumas dessas coletividades – étnicas e raciais – têm longo percurso de abordagem por parte da antropologia e também da sociologia. Há categorias da diferença como gênero que, ainda que tenham recebido uma atenção de historiadoras(es), não estão vinculadas a uma única área do conhecimento. Na geografia, como escola, para definir a forma em que a diversidade e os mecanismos de inclusão promovidos pela escola acabavam por tensionar o desenvolvimento dos princípios da justiça social entre aqueles que participam de processos educativos formais.” TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 125 dissemos, é relativamente recente a reflexão contínua acerca dessas questões, ressaltando que os estudos de gênero têm crescido no Brasil. Indígenas, quilombolas e ciganos têm sido tratados por meio da correlação entre identidade étnica, territórios e territorialidades. Raça e sexualidade seguem como marcas da diferença que ainda merecem maiores esforços de pesquisa. Emerge também da teoria feminista e/ou dos estudos de relações raciais, particularmente de teóricas negras, a noção de interseccionalidade, a abordagem inter-relacionada das categorias de raça, gênero e classe como eixos de dominação ou discriminação. Inicialmente, esta expressão não era utilizada, mas estava no pensamento sobre a diferença de Audre Lorde (2003), na pesquisa historiográfica sobre mulher, raça e classe de Ângela Davis (1983), nos Estados Unidos, e nos ensaios de Beatriz Nascimento (2015) sobre espaços de mulheres negras, no Brasil, na interpretação sociológica do racismo, do sexismo e do classismo de Lélia Gonzalez (1983), e toma forma e expressão nos artigos de Kimberlé Crenshaw (2002; 1991), que a insere na análise da situação de mulheres, particularmente negras. Os “marcadores da diferença” podem ser vistos e discutidos tendo o corpo e a corporeidade como categorias de pensamento – sociais, espaciais e culturais, antropológicas, geográficas e históricas –, e, neste caso, remetidas ao espaço escolar/acadêmico, agregando aspectos das ausências, presenças, barreiras, recusas, discriminações etc. A teórica feminista Bell Hooks (2013), que, no campo da pedagogia, se identifica com o pensamento de Paulo Freire, aponta que, nos espaços escolares, devido a uma formação que distingue e separa corpo e mente, somos levados(as) a não evidenciar o corpo: “O mundo público do ensino institucional era um local onde o corpo tinha de ser apagado, tinha de passar despercebido” (HOOKS, 2013, p. 253). Esta autora alude que as identificações projetadas no corpo, as raciais e de gênero, por exemplo, também são eclipsadas nos espaços educacionais: RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 126 Formadas no contexto filosófico do dualismo metafísico ocidental, muitas de nós aceitamos a noção de que existe uma cisão entre o corpo e a mente. Crendo nisso, as pessoas entram na sala de aula para ensinar como se apenas a mente estivesse presente, e não o corpo. Chamar atenção para o corpo é trair o legado de repressão e de negação que nos foi transmitido pelos professores que nos antecederam, em geral brancos e do sexo masculino. Mas os nossos antecessores não brancos eram igualmente ávidos por negar o corpo (HOOKS, 2013, p. 253). O corpo está situado na tênue e tensa linha entre privado e público, entre individualidade e cidadania. A corporeidade remete à subjetividade, e há quem tenha receios de lançar luz sobre esta instância, que não implica em resvalar para a exposição da privacidade. Corpo e corporeidade na análise espacial Algumas(uns) geógrafas(os), à semelhança de outras(os) pesquisadoras(es) do campo da antropologia e dos estudos de raça, gênero e sexualidade, têm se dedicado a trazer o corpo como uma categoria de análise. Uma das indicações do corpo e da corporeidade como passíveis de inserção no repertório geográfico vem dos ensaios, artigos de opinião e entrevistas de Milton Santos que tratam da cidadania e do racismo, temas que não são reconhecidos como centrais na sua obra.9 Ao discutir o racismo na sociedade brasileira, Santos (1987) retoma os horizontes complementares da cidadania e da individualidade abordados no livro O espaço do cidadão e acrescenta a dimensão da corporalidade:10 9 Na pesquisa de Cirqueira (2010), fica demonstrado que Milton Santos aborda a temática étnico-racial desde seus primeiros livros, incluindo os estudos de cidade, urbanização e cidadania dos anos 1980. Nos anos 1990, como estudante de pós- graduação na Universidade de São Paulo, o autor deste artigo assistiu a palestras de Santos que tratavam desta questão. 10 Consideramos “corporeidade” e “corporalidade” como sinônimos, assim como o faz o autor citado. Outras(os) autoras(es) os distinguem. TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 127 Penso haver três dados centrais para entender essas questões do preconceito, do racismo, da discriminação. O primeiro é a corporalidade, o segundo é a individualidade e o terceiro é a questão da cidadania. São as três questões que vão ser a base da maneira como estamos juntos, da maneira como nos vemos juntos, da maneira como pretendemos continuar juntos. Resumindo, a corporalidade inclui dados objetivos, a individualidade inclui dados subjetivos e a cidadania inclui dados políticos e propósitos jurídicos (SANTOS, 1987, p. 134). Santos, neste livro, prossegue apontando a dimensão espacial do corpo, que ele denomina de lugaridade, correlacionando-a com as situações de preconceito, de um “olhar enviesado”: A corporeidade nos leva a pensar na localização (talvez pudéssemos chamar de lugaridade), a destreza de cada um de nós, isto é, a capacidade de fazer coisas bem ou mal, muito ou pouco e as possibilidades daí decorrentes. E aí aparece em resumo, o meu corpo, o corpo do lugar, o corpo do mundo. Eu sou visto, no meio, pelo meu corpo. Quem sabe o preconceito não virá do exame da minha individualidade, nem da consideração da minha cidadania, mas da percepção da minha corporalidade. A individualidade permita, a partir do bom senso, alcançar certo grau de exercício da transindividualidade, e aí a consciência do outro e dos outros, a consciência do mundo. E afinal a cidadania, que é o exercício de direitos e supõe a ciência dos direitos que temos e a capacidade de reivindicar mais (SANTOS, 1997, p. 134- 135). Ressaltamos que este autor havia tratado deste aspecto ao pensar as “cidadanias mutiladas” (SANTOS, 2000; 1997; 1996), com atenção particular para pobres, mulheres e negros. A partir de suas formulações e de estudos, consideramos que, numa comunidade escolar, os trajetos (urbanos e/ou rurais, marcados por renda e/ou identificações aludidas) não são os mesmos para cada um destes “corpos”. Podemos inferir e indagar: o que é (ou seria) o exercício da cidadania, a individualidade e a corporeidade para estudantes e professores(as), mas também para os(as) técnicos(as), o segmento menos evidenciado do espaço escolar? RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 128 Na perspectiva crítica, mas com outros propósitos, tendo em vista o estudo do lugar, Carlos menciona o corpoao pensar a tríade identidade-habitante-cidade: O lugar é a porção do espaço apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores, é o bairro, é a praça, é a rua, e nesse sentido poderíamos afirmar que não seria jamais a metrópole ou mesmo a cidade latu sensu a menos que seja a pequena vila ou cidade – vivida/conhecida/reconhecida em todos os cantos (CARLOS, 1996, p. 20-21). Em outra abordagem, vinculada à geografia cultural, Sarmento (2009) propõe o corpo como conceito para a análise espacial em consonância com a reflexão acerca de mobilidade, escala e lugar. As leituras raciais deste tema incluem a corporeidade do próprio geógrafo. Este autor pensa as “geografias do corpo” em consonância com as dimensões da diferença: “Raça”, etnicidade, classe, sexualidade, género etc. constituem processos de normalização (que frequentemente são construídas como naturais) entendidas por Foucault como prisões sociais, sobre os quais a geografia deve reflectir com uma certa dose de plasticidade. O reconhecer e aprender a partir das geografias do corpo, sejam elas experiências individuais e de escala micro, ou processos de marginalização e discriminação de escala mais abrangente (que não se devem restringir aos locais paradigmáticos de diversidade étnica urbana “exótica”), permite abordar não a diferença por si, mas a diferença significativa (SARMENTO, 2009, p. 277- 278). Com certa ênfase, Azevedo, Pimenta e Sarmento (2009) se voltam para corpo como categoria de análise associada a outras, que, por sua vez, são “marcadores da diferença” e/ou categorias identitárias. Cabe mencionar Longhurst (2005), que redige um verbete sobre “corpo” para um dicionário de geografia cultural, indicando a relevância do tema. Corporeidades e a diferença de raça, gênero e sexualidade na escola TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 129 A partir de três notícias veiculadas recentemente por determinados jornais impressos e eletrônicos, discutiremos alguns aspectos de como a corporeidade, em sua relação com a diferença, é tratada ou silenciada no espaço escolar, suscitando discursos de vários agentes. Estas notícias foram escolhidas pela visibilidade que alçaram e pelos temas que suscitam. Primeiramente, trazemos o caso de um menino negro de 8 anos ofendido por uma colega no que tange a seu pertencimento racial, caso narrado por uma professora à mãe do menino, que, por sua vez, o tornou público: Um garoto de 8 anos foi ofendido por uma colega de sala por ser negro, segundo denúncia registrada na polícia pela mãe nesta quarta-feira (27), no Distrito Federal. De acordo com ela, o caso ocorreu antes do carnaval, no colégio La Salle, do Núcleo Bandeirante, e foi relatado pela professora da turma. [...] “Ela disse que viu uma coleguinha dizendo para ele que ele nunca vai arranjar namorada, que ninguém nunca vai gostar dele, porque ele é preto, sujo, feio e fedido”, conta [a mãe] (MORAIS, 2013). Segundo a notícia, o menino lembrava com pesar o fato, indagando o porquê das marcas negativas que lhe foram atribuídas pela colega. A mãe do menino procurou a escola propondo que o tema fosse tratado abertamente com as(os) responsáveis pelas crianças, caracterizando a situação como racismo. Uma representante da instituição relatou que a discussão da “diversidade” se dava no âmbito da sala de aula. Outro jornal trouxe a notícia com mais alguns elementos que não alteram o quadro aqui exposto (MORAIS, 2013; OLIVEIRA, 2013). Esta notícia, da forma como está relatada, plena de recortes e interpretações, se assemelha ao que se conhece na sociedade brasileira: 1) a acusação racial lançada, neste caso, de uma criança para outra, com uma testemunha adulta, atinge a pessoa negra na sua corporeidade (cor, beleza, odor, limpeza), com elementos do racismo que se consolidou em determinados pensamentos científicos, na segunda metade do século XIX, e que atribui tais características a uma suposta inferioridade negra; 2) a criança atingida, humilhada, se vê envolta numa barreira de RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 130 retorno ao local de estudo; 3) a representação da instituição escolar afirma conhecer e abordar a diversidade, mas não parece disposta a enfrentar a situação em suas especificidades; 4) a mãe, informada dos seus direitos, tenta uma ação coletiva, político- pedagógica, e não punitiva. Ao não ser atendida, apela para a lei que tipifica o racismo como crime, e a escola utiliza a noção de ofensa, à semelhança do que tem sido levado a juízo como caso de “injúria racial”. No que concerne à construção de gênero e sexualidade que também permeia a performance corporal, uma outra notícia, relativa a uma escola de São Paulo que atende um público de alta renda, traz alguns aspectos para a reflexão em pauta. Um estudante vai a uma festa junina com roupas femininas, e é retirado do local. No dia seguinte, em solidariedade a ele, um colega seu comparece à aula vestido com uma saia, e é impelido a voltar para casa por não usar roupas “adequadas”. Alunos(as) atuais e ex-alunos(as) fazem um “saiaço”: Mais de 50 alunos e alunas do colégio [...], na zona sul de São Paulo, foram à escola vestindo saia, na manhã desta segunda-feira (10). Foi um protesto pelo fato de o colégio ter censurado o comportamento de dois alunos que usaram saia, um na quinta-feira (6), durante uma festa junina, e outro na sexta (7). Batizado de “saiaço”, o ato foi articulado na sexta, depois que um aluno do terceiro ano do ensino médio, de 17 anos, foi mandado de volta para casa por usar saia. Ele, por sua vez, havia se vestido assim em apoio a um colega censurado no dia anterior por ir de menina em uma festa junina. Esse aluno não foi punido, mas a diretoria pediu que ele colocasse roupas “mais adequadas”. O estudante diz que foi retirado da sala e levado à coordenadoria do colégio, na penúltima aula do dia. Ouviu que o traje ia contra os “costumes” (Folha de São Paulo, 14/05/2013). No caso em foco, narrado também em outra matéria jornalística (GUILHERME, 2013), segundo a escola, não havia exigência de uniforme para o corpo discente. No entanto, a construção das feminilidades e masculinidades se faz em consonância com o que se observa na sociedade, em que o uso de TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 131 calças compridas se distingue, em grande parte, para cada identidade de gênero e a saia torna-se atributo feminino. Na escola contemporânea, cujas salas de aula são “mistas”, no que concerne às distinções de gênero, aparentemente, há poucas diferenciações sociais e espaciais, a exemplo da separação dos banheiros. Como a oposição de gênero, na sociedade, é tratada de forma reduzida aos binarismos homem/mulher e masculino/feminino (que são uma construção social, mas não a única), o mesmo se observa na escola. Considerando ainda a montagem dos textos e as ênfases do veículo jornalístico, os discursos do diretor e da mãe do aluno indicam abordagens distintas. O diretor da escola faz crítica à atitude do estudante, que seria apoiado por sua família, e se diz preocupado com a segurança deste aluno no trajeto escola-casa, contradizendo-se na ação quando impõe que este retorne para sua casa. Diz ainda que a escola aborda a diversidade. A mãe do aluno, afeita a essas discussões, aponta o “problema de gênero” e outras questões. Este caso pode ser considerado como um caso que se delineia entre normas – da sociedade e do espaço escolar – que também afetam a construção do gênero, da sexualidade e da corporeidade, sobretudo de discentes. A reação das(os) estudantes, que fazem o “saiaço” e escrevem uma carta, é significativa, particularmente ao questionar a liberdade para com o uso do uniforme e a rigidez com a indumentária definida a partir de uma interpretaçãodo gênero. Por fim, um terceiro caso noticiado traz a trajetória social, corpórea – portanto, espacial –, de uma diretora transexual, de origem indígena e popular, de uma escola pública estadual em Curitiba (CARAZZAI, 2013; PIVA, 2013). As matérias jornalísticas tratam de uma dimensão de sua trajetória em que ela, ao não se reconhecer em sua “identidade biológica” masculina atribuída, passa a se definir e a se vestir a partir de uma “identidade de RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 132 gênero” feminina. A reportagem inicia com o destaque que este caso assumiu: Não há estatística oficial, mas a professora L. M., 41, gosta de dizer que é uma das únicas, senão a única, diretora transexual eleita democraticamente no ensino público no país. Há três anos, ela é diretora-adjunta de um colégio estadual de São José dos Pinhais (região metropolitana de Curitiba) – cargo para o qual foi reeleita em 2011, mesmo diante da “resistência de uma minoria”, segundo ela. [...] Formada em História e Letras e professora concursada da rede estadual de ensino, L. relutou antes de assumir sua identidade (CARAZZAI, 2013). A professora e diretora relata as discriminações que a levaram a deixar o espaço familiar e a cidade do interior onde residiu. Parte da sua trajetória não é relatada, e, então, as narrativas passam a tratar da sua cirurgia de transgenitalização (ou seja, de aspectos de sua privacidade) e também da mudança de sua documentação e de sua eleição como professora e diretora (na verdade, diretora adjunta), indicando que houve uma reação negativa, superada por um apoio de parte da comunidade escolar. Bento (2011) aponta que, na escola, crianças, adolescentes e jovens que não se encaixam na definição de gênero que lhes é atribuída (masculina ou feminina), podem ser constrangidas ou discriminadas em suas corporeidades e práticas. Muitas vezes, são pessoas não têm uma definição identitária como mulheres ou homens, gays, lésbicas, travestis ou transexuais. Desta forma, a escola, assim como a residência familiar e outros locais, revela-se um espaço da heteronormatividade e lócus da expulsão de adolescentes e jovens com esta identidade em processo, um corpo “em fabricação” (BENTO, 2011). No caso da trajetória de travestis, Silva e Ornat (2010) trazem à tona o fato, em parte conhecido, de indivíduos nas mesmas faixas etárias mencionadas que passam por situações de violência nos espaços familiar e escolar que os levam a abandonar TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 133 estes locais, posto que não se enquadram na normatividade de gênero e sexual. A experiência pessoal, privada, torna-se pública e marca a relação de indivíduos e grupos com o espaço: “O espaço urbano composto pelas histórias de vida das travestis aqui retratadas espelha o sofrimento de exclusão espacial da escola, das instituições de saúde e religiosas” (SILVA, ORNAT, 2010, p. 89). Mesmo que, em determinada perspectiva, docentes se considerem críticos(as), em outras, podem ser normatizadores(as), a exemplo do campo da sexualidade, em que a sociedade está dividida rigidamente em espaços para dois gêneros, como houve e ainda há, em salas de aulas, atividades educativas, uso dos banheiros e definições de uniforme. A atenção para esta dimensão pode ser compartilhada por docentes de diversas áreas, neste caso, a geografia e disciplinas afins, nas quais a diferença pode ser compreendida no horizonte dos direitos: Há um saudável incômodo de educadores/as, gestores/as das políticas públicas e do ativismo em trazer para o cotidiano escolar a reflexão dos direitos humanos em uma perspectiva ampla. Está em curso, portanto, a produção incessante de contradiscursos, e a escola, de múltiplas formas, está inserida nessa disputa (BENTO, 2011, p. 557). Nas três situações elencadas, a trajetória dos corpos considerados diferentes ou transgressores foi, em algum momento, tratada com estranhamento ou discriminação. No caso da diretora transexual, parece que o tempo de convivência na comunidade escolar, em face da sua atuação como docente e gestora, possibilitou uma situação de efetivo respeito à diferença.11 11 No emergir de aportes teóricos e de ilações plurais, entre as contradições que constituem os espaços educacionais formais da escola básica e das universidades, sujeitos e subjetividades entram em cena, a exemplo de pesquisas realizadas por pesquisadoras/docentes travestis, uma delas voltada para as trajetórias de estudantes travestis (ANDRADE, 2012) e outra para a travestilidade e transexualidade nos meandros do processo pedagógico (REIDEL, 2013). Não sem os esforços de ativistas pesquisadores(as), temas como a homofobia na escola têm sido introduzidos nas políticas públicas educacionais, no Brasil (JUNQUEIRA, 2009). RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 134 Ao trazer a corporeidade como categoria de análise, é possível apreender que há interpretações culturais e sociais, diferenciadas e desiguais, dos corpos racializados, generificados e sexualizados em face da normatividade que assume uma dimensão espacial no espaço escolar, sobretudo em relação com o espaço familiar e do entorno, na escala do bairro e da cidade. Pontos para uma abordagem da diferença e da corporeidade na geografia escolar Nossa ideia não é finalizar este artigo com uma conclusão, e sim trazer alguns pontos de uma reflexão que se volta para o lugar da diferença na escola e no ensino para além da negação. Tendo em mente os arcabouços teóricos da geografia em sua pluralidade contemporânea, é possível aproximar abordagens críticas e plurais, a exemplo dos estudos de relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade: A possibilidade de inserir (ou ampliar a inserção), na formação inicial e continuada em geografia, a diferença (étnica, racial, de gênero e sexualidade) como uma categoria de entendimento, sem se deter nos extremos da negação ou da absolutização do corpo e da corporeidade no espaço educacional, incluindo os corpos (das/os) docentes, discentes e técnicos, suas trajetórias socioespaciais e os lugares, paisagens, territórios e outras espacialidades desses sujeitos individuais e coletivos. Ampliar as reflexões acerca de raça, etnia, gênero e sexualidade e outros “marcadores da diferença” na comunidade escolar, a exemplo de religião e preferências ideológicas e musicais, particularmente na trajetória de discentes, no que se refere à construção de suas corporeidades TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 135 e à sua formação, e não somente em casos tratados como discriminação ou bullying. Identificar e reconhecer as situações em que discentes, técnicos(as) e docentes sejam ou reivindicam ser identificados(as) como masculinas, femininas, travestis, transexuais, lembrando quem não se define pelo gênero ou pela sexualidade, assim como negras(os), quilombolas, indígenas, ciganas(os), pobres, deficientes, pertencentes a religiões de matriz africana e outros grupos sociais subalternos e discriminados. Entre os diálogos em sala de aula e os encontros nos pátios, em meio aos trajetos dos corpos discentes, docentes e técnicos, pensar a possibilidade (tendo em vista, particularmente, a escola integral) de a comunidade escolar rever e tentar superar as separações com as localidades e comunidades onde estão inseridas. Ampliar e consolidar o ensino de geografia ligada à África e à diáspora africana, sobretudo no Brasil, com base nas demandas específicas que resultaram na Lei 10639/03, que altera um artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e também naLei 11645/08, que acrescenta a história e a cultura indígenas, considerando a produção de pesquisadoras(es) e de núcleos específicos, almejando que estes temas se estendam efetivamente para a formação inicial e continuada das(os) professoras(es) de geografia e para os níveis fundamental e médio de ensino. Temos em mente que há espaços sociais diferenciados no tocante à raça, à etnia, ao gênero, à sexualidade e à classe, e que algumas escolas são marcadas por estas identificações por se situarem em áreas indígenas, quilombolas ou rurais. Tais diferenciações estão na base de alguns espaços acadêmicos que se dedicam ao ensino e à pesquisa, a exemplo dos cursos de educação intercultural para povos indígenas, de educação do campo e/ou quilombola e também dos núcleos de estudos africanos, afro- RATTS, A. CORPOREIDADE E DIFERENÇA NA GEOGRAFIA ESCOLAR E NA GEOGRAFIA DA ESCOLA... 136 brasileiros e/ou indígenas. A presença de profissionais com formação em geografia nestes locais merece levantamentos e estudos. Outra questão, associada a esta, é a abordagem da diferença em salas multiétnicas, plurirraciais e multiculturais como parecem ou deveriam ser as escolas públicas urbanas e as universidades, ainda que, em face de sua localização, conformação e áreas concentrem determinadas corporeidades marcadas em termos de raça, gênero, sexualidade e classe: escolas situadas em bairros de maioria pobre/negra ou classe média alta/branca. A diferença está nos corpos e nos espaços sociais, e, assim, cabe ser abordada na geografia escolar. O corpo – e suas identificações – pode ser reconhecido como uma categoria de pensamento e ação. Mecanismos de seleção bastante específicos estão na base da geografia da escola no tocante à configuração dos corpos discente, técnico e docente em termos das diferenciações de renda e pertencimentos étnicos, raciais e de gênero. A cidadania incompleta, suprimida, de pessoas, grupos e coletividades torna-se um tema e um dilema do saber-fazer geográfico que é instigado por demandas de uma escola, de uma educação e de um ensino plurais e democráticos. Referências bibliográficas “Alunos do Colégio Bandeirantes vestem saias durante protesto”. Folha de São Paulo, 10/06/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2013/06/1292569-alunos- do-colegio-bandeirantes-vestem-saias-durante-protesto.shtml Acesso em 16/06/2013. ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. (Dissertação de mestrado em Educação). Fortaleza: UFC, 279p., 2012. AZEVEDO, Ana Francisca de; PIMENTA, José Ramiro; SARMENTO, João. “As geografias culturais do corpo”. In: ______. TERRA LIVRE – N. 46 (1): 114-141, 2016 137 (org.) Geografias do corpo: ensaios de Geografia Cultural. Porto: Figueirinhas, p. 11-30, 2009. 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