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Cadernos de Estudos e Pesquisas UNIP – Série Estudos e Pesquisas, Ano II, n.º 1-007/96, novembro de 1996, 6 p. 1 POR UMA DISTINÇÃO FUNDAMENTAL ENTRE ETIMOLOGIA E LEXICOGÊNESE E SUAS REPERCUSSÕES NA ORGANIZAÇÃO MACRO E MICROESTRUTURAL DOS DICIONÁRIOS ETIMOLÓGICOS ABSTRACT: This paper establishes a conceptual and terminological distinction between etymology and lexicogenesis, regarded as disciplines dealing with the study of the origin and historical evolution of words. On the basis of this distinction, the existing models of etymological dictionaries are criticised, aiming at showing the importance of turning them into lexicogenical dictionaries. KEYWORDS: Lexical production; Lexicogenesis; Etymology; Etymological dictionaries. RESUMO: Este trabalho estabelece uma distinção conceptual e terminológica entre etimologia e lexicogênese, enquanto disciplinas que se ocupam do estudo da origem e da evolução histórica das palavras. Com base nessa distinção, faz-se uma crítica dos modelos existentes de dicionários etimológicos, com o objetivo de mostrar a importância de transformá-los em dicionários lexicogênicos. PALAVRAS-CHAVE: Produção lexical; Lexicogênese; Etimologia; Dicionários etimológicos. Introdução O presente trabalho pretende estabelecer uma distinção entre a etimologia, ciência muito antiga, e a lexicogênese, teoria que procura abordar novos aspectos da produção lexical, em especial no que respeita às línguas de cultura européias, e que foi por nós proposta pela primeira vez em nossa Tese de Doutoramento (BI4ZZOCCHI, 1994) e a seguir publicada (BIZZOCCHI, 1998). À luz dessa nova abordagem, procuraremos fazer uma crítica dos atuais modelos existentes de dicionários etimológicos, apontando-lhes as principais insuficiências, com o objetivo de demonstrar por que é importante transformar o dicionário etimológico em dicionário lexicogênico, especialmente tendo em vista o tipo de necessidade que motiva a elaboração desse gênero de obra lexicográfica. Procuraremos, subseqüentemente, esboçar um novo paradigma de estruturação desses dicionários, do ponto de vista macro e microestrutural. Etimologia e lexicogênese Entende-se por etimologia o estudo da origem das palavras, a busca do étimo, palavra considerada como ancestral daquela que constitui o objeto da pesquisa etimológica. Essa definição já é, por si mesma, insuficiente. Dada, por exemplo, a palavra portuguesa ópera, seu étimo deve ser buscado no italiano opera, no latim opera (plural de opus), do qual a forma italiana provém por herança, ou, ainda, numa hipotética raiz indo-européia *c3opos? Tal indagação não é de forma alguma irrelevante, visto que só poderemos compreender o que seja um dicionário etimológico na medida em que compreendamos o que vem a ser a etimologia. Longe de ser a “ciência do verdadeiro sentido das palavras” (do grego étymos, “verdadeiro”, e lógos, “ciência, discurso”), como pretendia Dionísio de Halicarnasso, criador do termo, a etimologia tornou-se, ao longo do tempo, a disciplina que estuda a história das palavras. Porém, desde cedo, colocaram-se obstáculos de difícil transposição à tarefa do etimologista: descrever a história de uma palavra é detectar o momento exato de seu aparecimento no léxico da língua, rastreando, em seguida, todo o seu percurso ao longo do tempo, até o presente? Em caso afirmativo, como detectar tal momento? Com efeito, na maioria das vezes, os etimologistas e filólogos só têm acesso ao léxico através da modalidade escrita da língua. Sabe-se, por outro lado, que muitas Cadernos de Estudos e Pesquisas UNIP – Série Estudos e Pesquisas, Ano II, n.º 1-007/96, novembro de 1996, 6 p. 2 palavras de introdução antiqüíssima, e mesmo vernáculas, só foram tardiamente registradas em documentos escritos. Além disso, toda língua tem a capacidade de gerar sempre novas unidades léxicas a partir de outras, já existentes, e o número de criações internas a qualquer sistema lingüístico ultrapassa, de muito, o número de unidades primitivas (vernáculas) ou importadas de outros sistemas. Assim, a história de uma palavra como guarda-roupa se inicia a partir do momento em que duas unidades léxicas autônomas, guardar e roupa se juntam para formar o composto, ou antes, nas ancestrais germânicas *wardōn e *raubō, ou, ainda, no composto francês garde-robe, do qual a palavra portuguesa é uma tradução? As coisas se complicam ainda mais quando introduzimos na discussão acerca da história das palavras o problema do significado. Muitas palavras mudam de significado ao longo do tempo, da mesma forma que muda o significante. Assim, conforme procuraremos demonstrar mais adiante, toda classificação que ignore o aspecto semântico de uma palavra correrá o risco de agrupar numa mesma classe objetos muito diferentes. Por essa razão, devemos, antes de mais nada, alertar para o fato de que o verdadeiro objeto de qualquer estudo etimológico e lexicogênico deve ser o vocábulo, unidade de norma, monossemêmico e monoisotópico, e não a lexia, plurissemêmica e pluriisotópica. Está claro, também, que muito mais importante do que saber-se onde surgiu um determinado elemento léxico é saber-se como, e por que, surgiu tal elemento. Tal observação é importante para que possamos distinguir entre a etimologia propriamente dita e a lexicogênese. A primeira se ocuparia da origem das palavras, numa perspectiva estritamente diacrônica, e de um ponto de vista exclusivamente fonético. Já a segunda estudaria os processos e mecanismos de criação e renovação lexicais, o percurso através do qual as palavras penetram no léxico, procedendo a uma classificação das unidades léxicas da língua segundo sua natureza genética. Dito de outra maneira, a etimologia pesquisaria os antepassados das palavras, ao passo que a lexicogênese estudaria a gestação, o nascimento, a vida e, eventualmente, a morte dos vocábulos no seio da língua. Desse modo, unidades de mesmo étimo serão diferentemente consideradas con- forme os diferentes modos através dos quais chegaram ao léxico. Vê-se assim que, enquanto a etimologia possui vocação eminentemente diacrônica, a lexicogênese é uma disciplina de índole sincrônica, que, entretanto, não hesita em recorrer à diacronia para explicar o porquê dos fenômenos sincronicamente localizados que presidem à dinâmica da criação e renovação lexicais. Juntas, elas poderiam configurar uma espécie de “lexicologia pancrônica”. A não observância dessa distinção primordial entre essas duas disciplinas é a primeira crítica que devemos fazer aos chamados dicionários etimológicos. Designam- se tradicionalmente sob essa rubrica todas as obras lexicográficas que tenham por objeto a origem e evolução das palavras. Decorre daí que a maioria dessas obras é em parte etimológica e em parte lexicogênica, não cumprindo satisfatoriamente nenhum dos dois propósitos. Diríamos, mesmo, que a lexicogênese, face à sua necessidade de buscar na história a explicação do funcionamento do léxico, contém a etimologia. Por essa razão, todo dicionário lexicogênico seria, por conseguinte, etimológico; a recíproca não é necessariamente verdadeira. Assim sendo, acreditamos ser necessário estabelecer alguma forma de normatividade quanto à confecção desse tipo de dicionários, e, para tanto, propomos uma classificação lexicogênica dos vocábulos como um critério possível de elaboração de tais obras, particularmente em relação às línguas européias ocidentais, e, diga-se de passagem, a maior parte dos estudos etimológicos, bem como a maior parte dos dicionários desse gênero, focalizam exatamente essas línguas. Cadernos de Estudos e Pesquisas UNIP – Série Estudos e Pesquisas, Ano II, n.º 1-007/96, novembro de 1996, 6 p. 3 Características dos dicionários etimológicos O que caracteriza e, ao mesmo tempo, diferencia cada modalidade de obra lexicográfica é a sua organização em termos de macro e microestrutura. Do ponto de vista macroestrutural, os dicionáriosetimológicos costumam apresentar uma organização dos artigos por ordem alfabética, agrupando, em geral, no mesmo artigo, todas as acepções de um mesmo lexema. Em certos casos, reúnem no mesmo verbete o lexema primitivo e todos os seus derivados, os quais constituem subentradas da entrada principal do verbete. Tendo em vista que o objetivo precípuo de tais dicionários é indicar a origem e datar a primeira ocorrência escrita de cada palavra, sem considerações de ordem lexicogênica, é freqüente que lexemas homônimos de mesma etimologia figurem no mesmo verbete. De qualquer maneira, quer os lexemas se apresentem agrupados num mesmo artigo ou constituam artigos distintos, cada um deles apresenta uma microestrutura constante, que costuma ter a seguinte configuração: L = {+Entrada +Enunciado Lexicográfico (±PD +PI1 +PI2 ±PP)} onde L = lexema, PD = paradigma definicional, PI = paradigma informacional, PP = paradigma pragmático, e, além disso, os sinais + e ± indicam, respectivamente, presença obrigatória ou facultativa. O paradigma definicional PD resume-se a uma definição sumária (as mais das vezes, constituída de apenas uma palavra ou locução) ou um parassinônimo, suficiente para identificar a acepção focalizada. Em muitas obras, tal paradigma está ausente, o que demonstra o fato de que se privilegia o étimo, em detrimento da lexicogênese do vocábulo. O paradigma informacional PI1 indica a data do primeiro registro escrito da palavra, ou, caso o dicionário faça a distinção das diferentes acepções, a data do primeiro registro escrito de cada acepção, bem como indica o título do documento em que ocorreu esse registro. Por questão de simplicidade e economia de espaço, tal título costuma vir abreviado, sendo transcrito por extenso num índice de documentos históricos da língua citados pelo dicionário, situado no princípio ou no fim da obra. O paradigma informacional PI2 indica o étimo da palavra, isto é, os elementos léxicos ancestrais, quer da língua mãe, quer de estágios sincrônicos anteriores da própria língua. Nos dicionários que trazem informações de caráter lexicogênico (tipo de processo neológico gerador, cunho erudito, popular da palavra etc.), é nesse paradigma que as mesmas são arroladas. Finalmente, o paradigma pragmático PP apresenta a transcrição do(s) primeiro(s) registro(s) do lexema ou de cada acepção do lexema, e, ainda, de exemplos considerados clássicos do uso do vocábulo em questão em textos literários célebres, por escritores de prestígio. Dada essa microestrutura, consideramos que apenas o paradigma pragmático deveria ter caráter facultativo, sendo os demais paradigmas constituintes do enunciado lexicográfico obrigatórios, especialmente a data da primeira ocorrência e o estatuto lexicogênico de cada vocábulo, vale dizer, a classificação do vocábulo segundo o processo através do qual o mesmo entrou na língua, bem como chegou à sua forma atual. A rigor, esta última informação é a mais importante de todas, conforme demonstraremos a seguir. Contudo, é a menos freqüente nos atuais dicionários etimológicos. Ocorre que estes, por não enfocarem o aspecto lexicogênico do vocábulo, Cadernos de Estudos e Pesquisas UNIP – Série Estudos e Pesquisas, Ano II, n.º 1-007/96, novembro de 1996, 6 p. 4 não dão conta do percurso gerativo de criação vocabular. Assim, se procurarmos num dicionário etimológico da língua portuguesa a etimologia dos vocábulos chão e plano, constataremos que ambos provêm do latim planus. Grande parte dos dicionários do gênero sequer indicam a origem vernácula do primeiro vocábulo e a procedência erudita do segundo. Num dicionário etimológico alemão de prestígio como o Duden Etymologisches Wörterbuch, o vocábulo Fernsehen é descrito como sendo resultante da combinação de fern e Sehen, isto é, como um antigo neologismo sintagmático, sem mencionar que Fernsehen é uma perfeita tradução do grecolatinismo sintagmático1 inglês television (alemão fern grego tele, alemão Sehen latim visione). O mesmo vale para annehmen, cujo decalque em face do latim accipere é totalmente ignorado. Ocorre que o processo de empréstimo de tradução às línguas clássicas foi — e de certa forma continua sendo — um dos mais produtivos da história do léxico alemão. Assim, a omissão da informação lexicogênica no dicionário etimológico, sobretudo num dicionário do porte do Duden, leva a ignorar a própria história e a ideologia da língua e do povo alemães. Da mesma forma, os dicionários etimológicos costumam desconsiderar mutações fonético-fonológicas como fator de vulgarização de um vocábulo. Por essa razão, apontam formas como o italiano diretto (empréstimo do latim directus) ou o francês pédoncule (empréstimo do latim pedunculus) como latinismos puros, em que pesem as vulgarizações fonético-fonológicas aplicadas a esses significantes, já no momento de sua introdução, por analogia com formas genuinamente vernáculas como o italiano stretto e o francês oncle, por exemplo. Por outro lado, a não distinção dos diversos vocábulos contidos num mesmo lexema, a que nos referimos acima, não permite dar conta dos diferentes processos lexicogênicos que geraram cada um desses vocábulos. Assim, por exemplo, dado o lexema italiano piano, o mesmo admite as seguintes acepções: piano1, “adj.: liso, plano”; piano2, “subst.: chão, piso”; piano3, “adv.: devagar”; piano4, “subst.: plano (conceito geométrico)”; piano5, “subst.: planta, projeto, estratagema”. As acepções 1 e 2 são vernáculas, sendo que o vocábulo 1 sofreu especialização semântica no discurso da geometria; a acepção 3 constitui derivação imprópria com ressemantização da acepção 1; a acepção 4 constitui empréstimo de tradução semântico em relação ao latim planus; a acepção 5 é empréstimo de significado do neologismo semântico francês plan. Entretanto, qualquer dicionário etimológico da língua italiana aponta todas essas acepções como simples ressemantizações do vernáculo piano. Outra falha que merece destaque nesse tipo de obra lexicográfica diz respeito às refecções. É sabido que o português silêncio, por exemplo, é refecção do vernáculo seenço. Não obstante, poucos dicionários fazem menção a esse fato. Da mesma forma, não arrolam lexemas derivados de nomes próprios, tais como patronímicos, por exemplo. Infelizmente, os dicionários onomásticos, que se ocupam dos nomes próprios, também não arrolam esses derivados. Tampouco encontramos em dicionários etimológicos derivados de siglas, de fractomorfemas etc. Outro aspecto importante dessas obras é que a maior parte delas é de elaboração bastante antiga, não sendo suas sucessivas reedições objeto de atualização ou revisão. Esse fato, somado ao seu caráter conservador, purista mesmo, revelado na escolha das entradas, faz que tais dicionários deixem de fora muitos vocábulos de introdução recente ou de procedência estrangeira. Assim, é pouquíssimo provável encontrarmos num dicionário etimológico vocábulos como computador, informática, executivo (= 1 Quanto à terminologia aqui empregada, cf. Bizzocchi (1998). Cadernos de Estudos e Pesquisas UNIP – Série Estudos e Pesquisas, Ano II, n.º 1-007/96, novembro de 1996, 6 p. 5 administrador de empresas), chique, futebol, gilete, surf (ou mesmo surfe) etc. Observe- se que muitos desses vocábulos não são de introdução tão recente. Conclusão Ao longo deste trabalho, procuramos acentuar a importância do aspecto lexicogênico, e mesmo sua preponderância sobre o aspecto estritamente etimológico do léxico de uma língua, bem como suas implicações na elaboração dos dicionários etimológicos, sobretudo do ponto de vista do tipo de demanda por parte de quem consulta tais dicionários. Tal ordem de preocupações nos conduziu a fazer uma crítica — bastante sumária, reconhecemos — dos dicionários do gênero de que dispomos. Nesse sentido, apresentamos nossa proposta de uma nova organização macro e microestruturaldos dicionários etimológicos. Evidentemente, nossa proposta não é a única possível, nem tampouco pretende ser ideal, mas com base nela se poderia repensar a organização macro e microestrutural desses dicionários, a fim de torná-los, acima de tudo, dicionários lexicogênicos. Nesse tocante, cabe destacar que o maior problema de tais obras é sua própria falta de uniformidade estrutural. Bibliografia BARBOSA, M. A. (1979). Proposta de uma metodologia de análise estrutural e funcional de glossários técnico-científicos. Acta Semiotica et Linguistica, 3, São Paulo: Global. _____ (1989). Da microestrutura dos vocabulários técnico-científicos. Anais do IV Encontro Nacional da ANPOLL. São Paulo: ANPOLL. BIZZOCCHI, A. L. (1991). Aspectos da alotropia nas línguas românicas: esboço de uma tipologia. Anais da 43ª Reunião Anual da SBPC. Rio de Janeiro: SBPC, p. 401- 402. _____ (1994). Processos lexicogênicos em línguas românicas e germânicas. Tese (Doutoramento). 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