Prévia do material em texto
NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 1 CAPÍTULO I A ETIMOLOGIA DE TERMOS DA CULINÁRIA AFRO-BAIANA: um retrato da herança africana na cultura brasileira Samantha de Moura Maranhão Universidade Federal do Piauí Este estudo tem por objeto a origem da terminologia da culinária afro-baiana, com o objetivo de correlacionar a etimologia do vocabulário do campo semântico da culinária afro-baiana às etnias e línguas que a economia escravagista fez chegar à Bahia, bem como analisar a época de introdução deste vocabulário no português brasileiro, segundo a lexicografia nacional. Busca responder à questão: “a etimologia dos termos da culinária afro-baiana é indicativa da origem dos pratos que designa?”. A hipótese testada é a de que a culinária afro-baiana é designada em línguas oeste-africanas, notadamente em iorubá, por termos introduzidos no português do Brasil no século XIX. Buscaram-se os termos culinários típicos da mesa afro- baiana (designativos de pratos e temperos, de alimentos e bebidas) no texto Os Alimentos Puramente Africanos, extraído da obra A Arte NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 2 Culinária na Bahia de Manuel Querino e compilado na Antologia do Negro Brasileiro (CARNEIRO, 2005, p. 467-472). Verificou-se, então, o registro dessa terminologia na versão eletrônica das obras Dicmaxi Michaëlis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (MICHAËLIS, 1998); Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1999) e no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2001); no Dicionário Etimológico Resumido (NASCENTES, 1966) e no Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (CUNHA, 1982), bem como nos Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro- brasileiro (PESSOA DE CASTRO, 2009) e na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (LOPES, 2004). A apresentação dos dados se dá por ordenação alfabética em verbetes que trazem os termos encontrados, sua etimologia, datação e acepção, a que segue uma interpretação destes dados, considerando-se a língua como reflexo da cultura de seus usuários e a importação de material léxico estrangeiro como consequência natural do contato de culturas, particularmente da necessidade designativa decorrente da aquisição de novos referentes proporcionados por este contato. Deste modo, é na Sociolinguística do contato intercomunitário (WEINREICH, 1967) que se colheram os fundamentos teóricos deste trabalho, ao abordar a herança africana na língua e na cultura brasileiras, que, porquanto inegável, nem sempre é suficientemente conhecida. O contato linguístico-cultural e sua consequência na língua Define-se contato de línguas como uma situação em que línguas ou variedades de língua se influenciam, devido a, por NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 3 exemplo, coexistirem em áreas de fronteira, serem de uso de distintos grupos sociais que interagem, ou, ainda, em virtude de conquistas e migrações, situação de que pode resultar a mistura dos falantes em uma única comunidade. Verifica-se, também, em razão de viagens ou da exposição a meios de comunicação de massa (CRYSTAL, 1988, p. 64; TRASK, 2006, p. 65-66; NEUVEU, 2008, p. 80). De acordo com Crystal (1988, p. 64), resultam do contato linguístico empréstimos de palavras, alterações fonológicas e gramaticais, misturas de línguas (pidgins e crioulos) e o crescimento do bilinguismo em várias escalas. Segundo Trask (2006, p. 65-66), o alcance da interferência é proporcional aos diferentes graus (mais ou menos duradouro, mais ou menos intenso) do contato de línguas: 1. se superficial, ocorrem a adoção de palavras e a incorporação destas, geralmente designativas de referentes novos, mas também podem resultar de prestígio; 2. se profundo, afeta a gramática e a pronúncia; 3. se extremo, resulta no abandono de uma língua em favor de outra. Weinreich (1967, p. 05) afirma que alguns antropólogos veem o contato de línguas como um aspecto do contato de culturas, constituindo, portanto, a interferência linguística uma faceta da difusão cultural e da aculturação. Para ele, o empréstimo lexical pode ser explicado a partir da análise dos pontos em que determinado vocabulário é inadequado no ambiente cultural em que o contato ocorre (WEINREICH, 1967, p. 03). Para Sapir (1980, p. 154), sendo o empréstimo vocabular o tipo mais simples de influência interlinguística, verificando-se sempre que há empréstimo de elementos da cultura, o seu estudo permite esclarecer a própria história da cultura, apontando o papel de vários povos no desenvolvimento e na difusão de ideias NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 4 culturais, por meio da análise do grau de infiltração dos seus léxicos em outras línguas. A depender do tipo de contato verificado entre os grupos de línguas distintas, se por coincidência ou contiguidade geográfica ou se à distância, classificam-se os empréstimos, respectivamente, como íntimos ou culturais (BLOOMFIELD, 2005, p. 461; CÂMARA JR., 1988, p. 105, 111; VARGENS, 2007, p. 35). Segundo Trask (2006, p. 66), “Poucas línguas estão – ou já estiveram – suficientemente isoladas para evitar todo tipo de proximidade, e, portanto, virtualmente, toda língua mostra alguma prova de contato antigo ou moderno entre línguas.” Vejamos como se deu a interação do português brasileiro (PB) com línguas africanas na Bahia oitocentista, período em que se verificou a aquisição dos termos da culinária afro-baiana. Presença africana na Bahia e culinária afro-baiana De acordo com Oliveira (1997, p. 40), Luiz Viana Filho aponta 04 ciclos na periodização do comércio negreiro na Bahia: 1. ciclo da Guiné (a partir da segunda metade do século XVI); 2. ciclo de Angola (no século XVII); 3. ciclo da Costa da Mina e do Golfo do Benin (do século XVIII até 1815) e 4. fase da ilegalidade (1816- 1851). Esta periodização é parcialmente alterada por Pierre Verger, que subdivide o terceiro ciclo em dois: 3.1. ciclo da Costa da Mina (três primeiros quartos do século XVIII) e 3.2. ciclo da baía do Benin (de 1770 a 1850). Assim, a partir das últimas décadas do século XVIII e ao longo do século XIX, foi o Sudão Central, região interiorana em relação à Baía do Benin, a procedência de africanos, muitos dos quais islamizados (haussás, nupes, iorubás, bornos, borgus, etc.), NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 5 levados como escravos para a Bahia em decorrência da jihad promovida, a partir de 1804, pelo xeque Usman dan Fodio, fundador do Califado de Sokoto, de cujas guerras expansionistas resultou o cativeiro de habitantes das áreas próximas à baía do Benin, particularmente no período compreendido entre os anos de 1804 e 1810. A presença de escravos islamizados na Bahia está relacionada, portanto, a complexo desdobramento da história da África, em que se misturam religião e política, uma jihad e disputas por expansão territorial (LOVEJOY, 2000, p. 11-12). Segundo Reis (2003, p. 174): [...] desde pelo menos o início da jihād de Usuman dan Fodio, levas de escravos de diferentes grupos étnicos, comprometidos em maior ou menor grau com o Islã, vieram dar na Bahia. Durante as primeiras duas décadas do século XIX, eles eram principalmente haussás, capturados de um ou de outro lado dos conflitos que levaram à formação do Califado de Sokoto, em 1809, seguidos de rebeliões ocasionais de reinos e lideranças submetidos ou ainda não conquistados. Quanto às etnias islamizadas encontradas na Bahia, quando da grande revolta escrava de 1835, afirma Reis (2003, p. 178): Foram os haussás que na Bahia se tornaram prontamente identificadoscom o Islã: haussá e malê, apesar da origem iorubá deste termo, se tornaram sinônimos. Seria, de quebra, mais um atestado da pouca importância numérica dos fulanis na Bahia, eles que na África eram tidos como muçulmanos mais bem treinados. Embora, na Bahia, fossem os haussás os africanos mais intensamente islamizados, os nagôs (iorubás) os sobrepunham, em muito, numericamente. Segundo Reis (2003, p. 179): Não duvido, inclusive, que por volta de 1835 os muçulmanos baianos fossem nagôs na sua maioria e não filhos de nações minoritárias na Bahia, como a haussá e, menor ainda, a tapa, ou a minúscula fulani. De qualquer NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 6 modo, os malês-nagôs tinham poder e prestígio na comunidade africana, pelo menos entre os de sua nação. Segundo Vianna Filho (2008, p. 150-151), o número de escravos importados para a Bahia até 1830 é estimado em cerca de um milhão e cem mil indivíduos, assim distribuídos: 50,6% de escravos oeste-africanos e 47,5% de escravos bantos. Tabela 01 – Tráfico Atlântico: sudaneses e bantos entre os séculos XVI e XIX. Séculos Sudaneses Bantos Média Anual Total XVI XVII XVIII XIX (até 1830) 61.545 402.800 75.480 143.605 252.200 111.450 2.051 6.550 6.231 20.0001 205.150 655.000 186.930 Total durante o tráfico 539.825 507.255 1.067.080 Fonte: VIANNA FILHO, 2008, p. 151. A análise da origem sudanesa ou banta dos escravos levados à Bahia nos séculos XVIII e XIX, em dados registrados em diferentes fontes, aponta, para o período, clara predominância de oeste-africanos (Vianna Filho, 2008, p. 147-150). 1 O total do século XVI se pauta em 33% do total de importações do século XVIII, 30% dos quais relativos à imigração oeste-africana (VIANNA FILHO, 2008, p. 151). NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 7 Tabela 02 – Importação de sudaneses e bantos no século XVIII. Observações Ano Entradas da Costa da Mina Entradas de Angola Média anual para a Costa da Mina Média anual para Angola Carta do Conde de Atouguia em 06-09- 1753 Certidão do Escrivão José Inácio Alvarenga Abreu de Souza em 20-02-1756 Certidão do Escrivão Diogo Pereira Marinho em 26-11-1765 1728 a 1748 1751 1752 1753 1754 1755 1759 1760 1761 1762 1763 1764 1765 1785 1786 1787 1788 1789 1790 1791 1792 99.808 7.496 3.655 4.295 1.443 3.953 4.209 3.319 4.071 4.012 3.427 2.651 2.863 12.233 2.222 2.934 NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 8 Docs. 15.155 e 15.157, Cf. Calógeras in Política Exterior, v. 1 Calógeras. Idem. Mapa Imp. da Bahia, 1798, Calógeras, idem. 1793 1794 1795 1797 1798 1799 1800 3.055 4.558 4.170 4.600 4.903 8.200 6.250 4.039 3.327 3.615 3.498 2.910 2.850 2.411 300 08 4.028 2.522 Fonte: VIANNA FILHO, 2008. p. 147-148. O século XIX vê aumento na importação de mão-de-obra banto, que então constitui cerca de 60% dos escravos baianos: 59,6% de bantos contra 40,4% de sudaneses. Tabela 03 – Importação de sudaneses e bantos no século XIX. Observações Ano Entradas da Costa da Entradas de Angola Total NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 9 Mina Calógeras. Política Exterior do Império. Livro de Visitas em embarcações da África Col. Ms. do Arq. da Prefeitura da Bahia Cf. Estatística de Nina Rodrigues 1801 1803 1804 1805 1806 1807 1808 1809 1810 1812 1813 1814 1815 1816 1817 1818 1819 1820 1821 1822 1823 1824 1825 1826 1827 5.250 5.486 4.214 4.615 6.322 6.361 5.443 7.348 7.725 17.307 384 1.450 3.250 652 1.747 2.717 2.140 00 95 893 20.952 17.580 6.689 8.418 1.600 1.877 4.259 7.858 10.186 6.700 8.736 4.866 6.362 9.039 8.501 5.443 7.443 8.618 3.645 17.196 6.689 8.418 1.600 1.877 4.259 7.858 10.186 NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 10 Cf. Estatística de Miguel Calmon Livros de entrada de embarcações da África Arq. Pref. Bahia Estatística de Miguel Calmon, in Góes Calmon, Vida Econômico- Financeira da Bahia 1828 1829 1830 8.127 12.808 8.425 8.127 12.808 8.425 TOTAL 70.455 104.032 174.487 Fonte: VIANNA FILHO, 2008, p. 149-150. A partir da análise do nome de 102 escravos originários do Sudão Central2, Lovejoy (2002, p. 26-27) aponta que 41 (40%) tinham nomes muçulmanos; 12 (12%) eram seguramente muçulmanos e 04 (4%), provavelmente muçulmanos, o que corresponde a cerca de 56% de afro-muçulmanos. Tabela 04 – Antroponímia e filiação religiosa de escravos centro-sudaneses. Nome dos Escravos Número Porcentagem Muçulmanos Seguramente 41 12 40 12 2 A amostragem analisada por Lovejoy traz, na verdade, 117 indivíduos, 15 dos quais, entretanto, não têm o seu nome registrado, figurando apenas desconhecido na coluna reservada para nome. NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 11 muçulmanos Talvez muçulmanos Cristãos e africanos não-muçulmanos Somente africanos Somente cristãos Sub-total Sem indicação Total 04 37 03 05 102 15 117 04 36 03 05 100 --- Fonte: LOVEJOY, 2002, p. 27. Segundo Lovejoy (2002, p. 27), Embora não se saiba, dentre os escravos com nomes africanos não-muçulmanos, quantos de fato eram islâmicos; nem quantos, dentre detentores de nomes africanos e cristãos, também o fossem, é razoável concluir que pelo menos 56% dos centro- sudaneses eram islamizados. É possível que tal porcentagem fosse ainda mais alta. Escravos de origem não-muçulmana (indicada no registro) com nome muçulmano pode indicar conversão posterior à captura ou à venda, talvez até mesmo na Bahia, assim como nomes africanos não-muçulmanos de escravos originários de regiões islamizadas, como Iorubás e Nupes, não excluem a possibilidade de que os seus portadores fossem islamizados. Para Lovejoy (2002, p. 27), Apesar desta análise de filiação religiosa de escravos e libertos centro-sudaneses ser apenas preliminar, parece que o processo de conversão no Sudão Central, resultante da jihad, tinha continuidade na Bahia. Nomes muçulmanos eram adscritos a escravos de origem não-muçulmana, como “Keuta” [Kyauta], “So- Allah” [Filho de Alá] e “Meidassara” {Mai Nasara], indicando que alguns cativos haviam recebido rudimentos doutrinários islâmicos, normalmente oferecidos por ocasião da captura e venda. Os nomes africanos não islâmicos na origem incluíam NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 12 escravos que claramente eram de origem Ioruba ou Nupe, sendo plausível que alguns deles fossem muçulmanos. Observa-se,do exposto, que, a par da presença banto na Bahia, cuja contribuição linguística e cultural foi objeto de pesquisa em várias áreas, estando fartamente documentada na literatura especializada em Antropologia, Linguística e áreas afins (LOPES, 2006; PESSOA DE CASTRO, 2009), a escravidão afro- muçulmana se deu intensamente ao longo de três séculos e seu legado linguístico-cultural está preservado em hábitos cotidianos, quais o do vestuário e da culinária, objeto deste estudo. Segundo Querino (1928, p. 01), “A cozinha bahiana, como a formação ethinica do Brasil, também apresenta a fusão do português, do indígena e do africano.” O elemento africano, entretanto, concorreria para a excelência da culinária nacional, ao introduzir, nesta, ingredientes e temperos novos. No dizer de Querino (1928, p. 03-04), É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excellencia, a primazia, na arte culinaria do paiz, pois que o elemento africano, com a sua condimentação requintada de exoticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando dahi um producto todo nacional, saboroso, agradavel ao paladar mais exigente, o que excelle a justificada fama que precede a cozinha bahiana. Radel (2006, p. 27) afirma serem inverossímeis as informações disponíveis acerca da culinária africana do século XVI, dado registrarem ingredientes brasileiros introduzidos na África na segunda metade daquele século. Assim, a culinária africana de que temos notícia não seria propriamente do século XVI, mas do XVII. A atual culinária oeste-africana tem por base a afro-baiana, que transpôs o Atlântico na bagagem cultural dos alforriados retornados à África-Ocidental (e não podemos esquecer os NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 13 deportados das revoltas malês verificadas em Salvador e arredores nas 03 primeiras décadas do século XIX). De acordo com Radel (2006, p. 29), A atual cozinha africana das costas do ocidente, de onde veio a maior leva de escravos, tem base significativa em pratos brasileiros, denominação dada aos pratos que no Brasil são chamados da cozinha afro-baiana. O preparo destes pratos brasileiros se tornou possível com a ida para a África de vários ingredientes brasileiros, como o milho, o feijão fradinho, o amendoim, a castanha de caju, o jiló, o maxixe, a farinha de mandioca, o aipim, a pimenta-de-cheiro, o sal, o açúcar, e alguns procedimentos que eles não conheciam como a fritura. Os escravos libertos voltaram à África e para lá levaram o caruru feito com quiabo, as moquecas de peixe e de crustáceo, a feijoada, o mugunzá, a galinha de caçarola, o mocotó e o lombo de porco assado. Os últimos três pratos eram de origem portuguesa já adaptados ao Brasil e que depois migraram para a cozinha sertaneja e para a cozinha africana. Querino (1928, p. 04), por sua vez, dá a conhecer a contribuição africana para a culinária brasileira, “Fôra o africano o introductor do azeite de cheiro, do camarão secco, da pimenta malaguêta, do leite de côco e de outros elementos, no preparo das variadas refeições domesticas da Bahia.” Embora a presença africana se verifique em diversos estados brasileiros, uma culinária brasileira de base africana surgiu apenas na Bahia, o que se credita à homogeneidade de origem (oeste-africana) dos escravos, que importavam consigo uma base culinária simples, mas com um cardápio completo, e que praticavam uma religião com traços comuns, o candomblé jeje- nagô. A culinária afro-baiana estaria ainda diretamente relacionada ao culto dos orixás, cujas comidas votivas se estenderam às mesas nativas. Segundo Radel (2006, p. 29), Assim surgiu uma cozinha nova, feita para servir inicialmente aos escravos nas senzalas, passando para as casas dos capatazes, NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 14 chegando, após subir os degraus da entrada dos sobrados, à mesa do amo, do senhor. No século XIX, comiam-se todos os dias os pratos, da cozinha nova, nas casas da Cidade do Salvador, no Recôncavo e no litoral. No meado do século XX, esta frequência baixou para uma ou duas vezes por semana e, hoje, são poucas casas que os fazem uma vez por mês ou, em casos especiais, como em recepção para visitantes de outros estados. E ainda (RADEL, 2006, p. 29), A cozinha africana derivaria da cozinha dos terreiros do candomblé. Os orixás eram homenageados nos banquetes rituais exigidos pelo culto e cada orixá tinha a sua própria comida votiva. (...) deve ser citado que os brancos aceitaram essas comidas votivas e levaram-nas para a Semana Santa, para a festa de São Cosme e São Damião, para a festa de Santa Bárbara, quando servem caruru, vatapás, efós, feijão fradinho e preto feitos no azeite, ochim-chin de galinha, arroz branco, mucunzá, abará, acarajé, rapadura, rolete de cana e pedaços de coco seco. Dos pratos dos orixás, o da galinha d’Angola, de guiné, tofraco, saqüé, capote, não ficou no cardápio da cozinha afro-baiana, migrou para a sertaneja e é um dos pratos fortes da cozinha nordestina, onde impera, sob a forma de ensopado ou de cabidela, no vale do Cariri, no Ceará, e em todo o Piauí. Uma terceira justificativa para o desenvolvimento da culinária afro-baiana está no cultivo do dendê em solo baiano, único local em que a sua produção vingou. Entretanto, hoje a maioria dos pratos desta culinária tão rica não é sequer lembrada. Para Radel (2006, p. 28), No passado [século XIX], eram conhecidos os seguintes pratos: abará acaçá, acarajé, abo ambrazô, anduzada, anguzô, arros de hauçá, axoxó, badofe, bamba, bobó, caruru, curu, denguê, doburu, ebó, ecuru, efó, efun-oguedê, erampaterê, fufu, humulucu, ipete, latipá, lelê, moqueca, mungunzá, oguedê, obíbó, quibabá, quibebê, quibombo, quimana, quimano, quimbebê, quimassã, quitandê, quitute, quizibu, sabongo, uado, vatapá, xinxim. E, em seguida (RADEL, 2006, p. 28), “Alguns deles nem de nome se conhece mais. É preciso consultar Costumes africanos no NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 15 Brasil de Manuel Querino para saber que estes pratos existiram e saber como eles eram preparados (...).” Metodologia Colheram-se os termos culinários típicos da mesa baiana no texto Os Alimentos Puramente Africanos, extraído da obra A Arte Culinária na Bahia de Manuel Querino e compilado na Antologia do Negro Brasileiro (CARNEIRO, 2005, p. 467-472). Consideraram-se termos designativos de pratos, ingredientes e temperos; formas sinônimas (a exemplo de feijão-de-cheiro e humulucu) e variantes fonéticas (como aluá e aruá). Organizou-se o vocabulário por ordenamento alfabético com a forma-entrada registrada por Querino. O verbete elaborado para este estudo traz datação, ou registro mais antigos de que se tem notícia, de acordo com Houaiss (2001); etimologia, segundo Pessoa de Castro (2005); acepção textual, isto é, extraída do próprio texto de Querino; variantes lexicais, fonéticas ou gráficas documentadas seja no texto de Querino seja nos dicionários consultados, além dos étimos africanos. A seleção dos dicionários brasileiros se deu pela natureza dos mesmos, primeiramente dicionários gerais, quais o Dicmaxi Michaëlis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (MICHAËLIS, 1998); o Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1999) e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2001), que têm por objetivo descrever o léxico de uma língua, considerando, para tanto, variedades diatópicas (regionais), diastráticas (sociais, profissionais inclusive), diacrônicas (históricas) e diafásicas (mais ou menos formais). Em seguida, verificou-se o registro do vocabulário estudado em produtos lexicográficos etimológicos, a saber o Dicionário NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS:AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 16 Etimológico Resumido (NASCENTES, 1966) e o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (CUNHA, 1982). Por fim, foram buscados, ainda, nas obras Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (LOPES, 2004) e Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (PESSOA DE CASTRO, 2005), pela descrição que fazem, respectivamente, da presença africana no Brasil e do seu legado linguístico. As obras supracitadas são identificadas, neste estudo, pelas siglas seguintes: DEA: Dicionário Eletrônico Aurélio DEH: Dicionário Eletrônico Houaiss DELP: Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa DEM: Dicionário Eletrônico Michaëlis DER: Dicionário Etimológico Resumido EBDA:Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana FABA: Falares Africanos na Bahia Na análise dos dados coletados, inserida na mesma seção em que estes são apresentados, correlacionam-se, por um lado, etimologia dos termos da culinária afro-baiana, etnias e línguas africanas presentes na Bahia e, por outro lado, a data mais antiga do registro dos referidos termos no português brasileiro e a história externa da língua, notadamente a sócio-história da presença africana na Bahia. Trata-se, portanto, de compreender a herança cultural africana nesta região, a partir das informações lexicográficas que diferentes obras viabilizam. NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 17 A terminologia da culinária afro-baiana e a herança africana na Bahia Abará – 1871. (kwa). Bolinhos de massa de feijão-fradinho temperada com cebola, sal e azeite-de-cheiro envoltos em folhas de bananeira e cozidos em banho-maria. Var. abalá. Fon. ablá. Aberém – 1853. (kwa). 1. Bolas de massa de milho envoltas em folhas secas de bananeira atadas com fibras tiradas do tronco da referida árvore. O prato é servido com caruru ou com mel de abelha. 2. Aberém preparado com açúcar e ingerido sem acompanhamento. 3. Dissolvido o aberém em água com açúcar, tem-se bebida refrigerante. Var. abarém (1899). Fon. Àblohlèn. Acaçá – 1871. (kwa). Bolinho de massa de milho cozida envolto em folhas de bananeira. Fon. Akasá, acasã. Acarajé – 1899. (kwa). Bolinho de massa de feijão fradinho, temperada com cebola e sal ralados, frito no azeite de dendê e acompanhado de molho a base de pimenta-malagueta seca, cebola e camarões fritos no azeite de dendê. Fon. àklajε. Ior. Àkàrà jε. Var. carajé. Ado – (kwa). Milho torrado reduzido a pó, temperado com azeite- de-cheiro, a que se pode acrescentar mel de abelha. Var. Adum (séc. XIX); uado; dundundum. 3 Aluá – 1578. (banto/hauçá). Água na qual se fermenta o milho por 03 dias, em que, coada, acrescem-se pedaços de rapadura, os quais, diluídos, tornam a bebida um refrigerante. O milho pode ser substituído pela casca do abacaxi. Var. Aruá; ualuá. Kik./kimb./umb. Wala, walwa. Hau. àlewà. Amori – séc. XX. Mesmo que latipá. Origem obscura. 3 Pessoa de Castro (2005, p. 141, 142) distingue os vocábulos ado e adum. O primeiro designa prato votivo e prato da culinária afro-baiana (< ior. Àádun); o segundo, qualifica- os enquanto ‘doces’ ou ‘saborosos’ (ior. adùn). NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 18 Arroz-de-hauçá – Arroz cozido em água sem sal encorpado com pó-de-arroz, consumido com molho elaborado com pimenta- malagueta seca, cebola e camarões ralados e cozidos em azeite-de- cheiro, a que se podia acrescer pequenos pedaços de charque fritos.4 Var. arroz-de-auçá; arroz-de-uçá. Aruá – (banto/hauçá). Mesmo que aluá. Ataró – (kwa). Condimento também conhecido como pimenta da costa. Var. atarê, ataré, atacum. Ior. ataare, atayε’.5 Azeite-de-cheiro – Mesmo que azeite-de-dendê. Azeite-de-dendê – Óleo obtido do fruto do dendezeiro de uso frequente na culinária afro-brasileira. Var. azeite-de-cheiro; dendê (1836, do banto, especificamente do kik./kimb./umbundo (o)ndende). Bejerecum – (kwa). Mesmo que pejerecum. Bolas de Inhame – Bolas grandes de inhame lavado com limão, cozido no sal e pisado em pilão, servido com caruru ou efó.6 Bobó de Inhame – Inhame cortado em pequenos pedaços cozido com água e temperado com o efó.7 Caruru – 1836. (banto). Massa de quiabo, mostarda ou taioba cujo preparo é semelhante ao do efó, a que se acrescem garoupa, peixe assado ou charque e um pouco de água. É ingerido com acaçá ou farinha de mandioca. Var. Calulu, cariru. Kik./kimb. kalulu/kalalu. Dengué – (banto/kwa). Milho branco cozido acrescido açúcar. Kik. Kimb. (di)lenge. Ior. dènguε. 4 Segundo Lopes (2004, p. 74), há quem não associe o termo hauçá à etnia oeste-africana, creditando-o antes a vocábulo iorubá designativo da pimenta-malagueta usado por nagôs baianos (ior. wúsà ‘fruto semelhante à noz’). 5 Em verdade, a forma atarê é a que se encontra como entrada dos verbetes nos produtos lexicográficos consultados, nenhum dos quais registra a forma documentada por Querino. 6 O DEH aponta, para inhame, etimologia africana de origem controversa, citando Lopes, segundo o qual nyam em línguas não-bantas é raiz do verbo ‘comer’, embora haja quem a considere raiz banta. O DEA traz étimo ior. iyã ou mandinga iyambi. 7 De acordo com o DEH, bobó tem o registro mais antigo em 1899 e origem jeje no étimo bo’bo ‘comida de origem africana feita com feijão’. Segundo Pessoa de Castro (2005, p. 176), tem étimo fon abƆbƆ. NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 19 Ebó8 – (kwa). Preparado com milho branco pilado e cozido a que se adicionam azeite-de-cheiro e ori. Pode ser preparado, ainda, a partir da mistura de milho e feijão-fradinho torrado fervidos com um pouco de água e a que se juntam sal e azeite-de-cheiro. Ior. ègbo. Ecuru – (kwa). Farofa de massa de feijão fradinho cozida em banho-maria e diluída em mel de abelha ou em azeite-de-cheiro com sal. Var. cuduru. Ior. èkuru. Efó – 1899. (kwa). Folha de língua de vaga, mostarda ou taioba tornada massa mediante fervura em pouca água, depois que esta é escoada e a folha, espremida, a que se acrescem pimenta- malagueta seca, cebola, sal e camarões ralados e azeite-de-cheiro. Pode ser preparado também com peixe assado ou garoupa. Var. caruru-de-folha. Ior. ε’fƆ’. Efun-Oguedê – (kwa). Farinha de banana de São Tomé, que, ainda verde, é fatiada, seca ao sol e, ao cabo de dias, pisada em pilão e passada em peneira. Ior. guεdε, ‘banana’. Egussi – (kwa). Pevide de abóbora ou melancia empregado como condimento. Fon gùsí/Ior. εgusí. Éran-patere – séc. XX. (kwa). Naco de carne verde fresca, salgada e frita no azeite-de-cheiro. Var. arampatere, erampatere, erampaterê, arampaterê, paterê. Ior. eran kpaterèé ‘pedaços de carne destinados à venda`. Feijão-de-azeite – Mesmo que humuculu.9 Humuculu – (kwa). Feijão-fradinho temperado com cebola, sal, camarões ralados e azeite-de-cheiro cozidos. Var. omolucum, omolucu, omulucu, umulucu, feijão-de-azeite. Fon/Ior. likún. 8 Pessoa de Castro (2005, p. 225) distingue ebó de ebô, pertencendo apenas este último ao campo semântico da culinária. Não constituem as formas citadas, portanto, variantes lexicais. 9 As obras consultadas não registram essa unidade fraseológica (DEA, DEH, DEM, EBDA, FABA). NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 20 Ierê – (kwa). Semente utilizada para condimentar caruru, peixes e galinhas. Ior. iyèré. Ipete – (kwa). Inhame fervido até perder a consistência, temperado com azeite-de-cheiro, camarões, cebola e pimenta ralados. Var. apeté, peté, ipeté. Ior. ikpètε’. Iru – 1587. (kwa). Fava usada como condimento. Ior. irú. Latipá – séc. XX. (kwa).Folhas inteiras de mostardeira fervidas temperadas com efó e fritas no azeite-de-cheiro. Ior. ìšakpá. Massa – 1. Pequenas bolas de arroz cozido e ralado envolvidas em polvilho de arroz. Os afro-muçulmanos fritavam as bolas de arroz no azeite-de-cheiro ou no mel de abelha e consumia o prato em cerimônias religiosas. 2. Dissolvidas as bolas de arroz em água com açúcar, obtém-se bebida refrigerante. Oguedê – (kwa). Banana da terra frita no azeite-de-dendê. Ior. Ɔ’gε’dε’. Olubó – (kwa). Pirão obtido da mistura de farinha da raiz de mandioca com água fervente. Fon. libƆ’/Ior. èlùbƆ’. Ori – séc. XX. (kwa). Gordura obtida de fruto africano que na culinária substitui o azeite-de-cheiro. Ior. ori. 10 Pejerecum – (kwa). Fava usada para temperar o caruru. Var. Bejerecum, pijiricum. Fon/Ior. kpejerecun. Pimenta da costa – 1899. Mesmo que ataró. Xinxin – séc. XX. (kwa). Galinha cortada em pequenos pedaços, cozida com sal, alho e cebola ralados, a que se acrescem camarões secos em quantidade, sal, cebola, sementes ou pevides de abóbora ou melancia ralados e azeite-de-cheiro. Var. Oxinxim. Ior. ‘Ɔšinšin. 10 O DEH traz o ior. ori ‘manteiga de emi’ como étimo de ori. O DEA também indica origem africana para o termo, sem, entretanto, identificar a língua ou o étimo. O FABA apresenta a acepção de ‘cabeça’ para o vocábulo, sem qualquer relação com o termo culinário. NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 21 A análise dos dados mostra que, dos 36 itens lexicais levantados, 28 ou 77,8% do total são de origem africana (abará, aberém, acaçá, acarajé, ado, aluá, aruá, ataró, bejerecum, bobó de inhame, caruru, dengue, ebó, ecuru, efó, efun-oguedê, egussi, éran- patere, humulucu, ierê, ipete, iru, latipá, oguedê, olubó, ori, pejerecum e xinxim); 03 ou 8,3% são híbridos português-língua africana (arroz-de-hauçá, azeite de dendê e bolas de inhame); outros 04 itens ou 11,1% são formas portuguesas (azeite de cheiro, feijão de azeite, massa e pimenta da costa) e apenas 01 vocábulo ou 2,8% do total (amori) tem origem incerta. Dentre os 28 africanismos, 24 itens ou 85,7% do total são originados em língua da família kwa ou no hauçá (abará, aberém, acaçá, acarajé, ado, ataró, bejerecum, bobó de inhame, ebó, ecuru, efó, efun-oguedê, egussi, éran-patere, humulucu, ierê, ipete, iru, latipá, oguedê, olubó, ori, pejerecum, xinxim); 01 termo ou 3,6% do total resulta da evolução de étimo banto (caruru) e 03 formas ou 10,7% delas têm origem simultaneamente creditada a língua(s) banto(s), kwa(s) ou ao hauçá (aluá, aruá, dengué). Dentre as línguas kwa, citam-se o iorubá 21 vezes (acarajé, ataró, bejerecum, bobó, dengué, ebó, ecuru, efó, efun-oguedê, egussi, éran-petere, homulucu, ierê, ipete, iru, latipá, oguedê, olubó, ori, pejerecum, xinxim) e o fon 10 vezes (abará, aberém, acaçá, acarajé, bejerecum, bobó, egussi, humulucu, olubó, pejerecum). Ado traz simplesmente origem kwa, sem identificação de étimo. No hauçá, outra língua oeste-africana, pertencente, entretanto, à família afro-asiática, na classificação de Greenberg (apud Pessoa de Castro, 2005, p. 27), originam-se 02 variantes de um mesmo item lexical (aluá ~ aruá). NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 22 Dentre as línguas bantas, citam-se o quicongo e o quimbundo 04 vezes (aluá ~ aruá, caruru e dengué), a par do umbundo, 02 vezes (aluá ~ aruá). Quanto à datação, observa-se que a introdução do maior número de termos se deu efetivamente no século XIX, quando 08 vocábulos passaram a integrar o léxico do português brasileiro (abará, aberém, acaçá, acarajé, dendê, caruru, efó, pimenta da costa), o que corresponde a 53,4% dos itens datados no DEH. No século XX deu-se a aquisição de 05 formas (amori, éran-patere, latipá, ori, xinxim) ou 33,3% destas, verificando-se no século XVI a introdução de outros 02 itens (aluá e iru) ou 13,3% dos datados. A forte presença sudanesa em Salvador no século XIX ratifica a origem oeste-africana da terminologia da culinária africana na Bahia. A importação lexical no século seguinte pode indicar perpetuidade da referida cozinha na região, ao apontar a continuidade da sua prática. Embora a introdução em massa de iorubás no Brasil tenha se dado nos século XVIII e XIX, o DEH indica antigo registro do termo iru na língua portuguesa já no século XVI, equivalente, entretanto, ao ciclo da Guiné (Pessoa de Castro, 2005, p. 45). Caberia, neste caso, uma investigação da sócio-história do termo, para elucidar tal correlação de origem e datação. Considerações finais Estudo teve por objetivo correlacionar a etimologia do vocabulário do campo semântico da culinária afro-baiana às etnias e línguas introduzidas na Bahia escravagista, considerando, ainda, a datação dos termos, indicativa da sua importação pelo português brasileiro. Considerou, para tanto, o contexto sócio-histórico da NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 23 importação de mão-de-obra escrava nos séculos em que, segundo a lexicografia nacional, deu-se a aquisição dos africanismos culinários, e a etimologia, com a identificação das línguas-fonte deste vocabulário, na perspectiva da sociolinguística do contato de línguas, que compreende a introdução de estrangeirismos em qualquer sistema linguístico como natural na designação de referentes importados. No que concerne à questão norteadora desta breve investigação, se a etimologia dos termos da culinária afro-baiana é efetivamente indicativa da origem dos pratos que designa, podemos dizer que sim, uma vez que reflete a intensa interação da Bahia com o oeste africano e, mesmo que alguns ingredientes e temperos sejam brasileiros, foram os escravos que os (re)introduziram nas mesas baianas nas diversas iguarias com que enriqueceram a culinária nacional. A hipótese testada, de que a culinária afro-baiana é expressa por línguas do Oeste Africano, sobretudo o iorubá, por termos introduzidos no português brasileiro no século XIX, é corroborada pela etimologia e pela datação registradas na lexicografia nacional, uma vez que a maioria dos africanismos levantados se origina em língua da família kwa (iorubá e/ou fon) ou no hauçá (27 de 28 africanismos ou 96,4% destes, considerando-se as formas simultaneamente creditadas a línguas bantas e oeste-africanas). Já a análise da datação apontou introdução dos termos da culinária afro-baiana no português brasileiro no século XIX (08 vocábulos), no século seguinte (05 formas) e 300 anos antes (02 itens datados como integrados no século XVI). Seria interessante analisar o conteúdo semântico destes termos, comparando a descrição do seu preparo feita por Manuel Querino e em tratados modernos de culinária afro-baiana, para NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 24 observar fenômenos de mudança semântica, a exemplo da expansão semântica, uma vez que a descrição de alguns pratos em Manuel Querino não corresponde ao conhecimento do baiano que frequenta carurus oferecidos em homenagem a aniversariantes ou às conquistas da vida cotidiana (ingresso na universidade, emprego, etc.) ou que regularmente recorre aos tabuleiros das baianas para ali abandonar a fome. Também seria adequado investigar a culinária oeste- africana, para conhecer a existência e a evolução dos pratos que a compõem, as convergências com a culinária afro-baiana e mesmo a finalidade de alguns ingredientes. Por exemplo, o emprego da farinha tem por objetivo o sustento do consumidor ou “secar” a comida, de modo a permitir o seu consumo sem o concurso de talheres. A cultura africana está mais arraigada em nosso cotidiano do que em geral nos damos conta e a sua retomada em pesquisas linguísticas,antropológicas, históricas ou sociais permite reavivá-la em nossa consciência, possibilitando melhor identificar quem somos nós, os brasileiros. Referências CARNEIRO, E. (org.). Antologia do negro brasileiro: de Joaquim Nabuco a Jorge Amado, os textos mais significativos sobre a presença do negro em nosso país. Rio de Janeiro, 2005. CARRETER, F. L. Diccionario de términos filológicos. 2. ed. aum. Madrid: Gredos, 1962. CRYSTAL, D. Dicionário de linguística e fonética. Traduzido e adaptado por Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua Portuguesa. 1. ed. 2. impres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 25 DICMAXI Michaëlis Português: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Versão 1.1. Amigo do Mouse Software Ltda., set. 2000. 1CD-ROM. FERREIRA, A. B. de H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente revista e ampliada. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Lexikon Informática Ltda./Sonopress, 1999. 1 CD-ROM. HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0.10. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 1 CD- ROM. IORDAN, I.; MANOLIU, M. Manual de linguística románica. Revisión, reelaboración parcial y notas por Manuel Alvar. 2. reimpressión. Madrid: Gredos, 1989. v. II. p. 133-144. (Biblioteca Románica Hispánica, dirigida por Dámaso Alonso, III. Manuales, 29) LOPES, N. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. LOVEJOY, P. Jihad e escravidão: as origens dos escravos muçulmanos da Bahia. Topoi, Rio de Janeiro, p. 11-44, 2000. MICHAËLIS: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998. (Dicionários Michaëlis) NASCENTES, A. Dicionário etimológico resumido. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1966. NEUVEU, F. Dicionário de ciências da linguagem. Trad. por Albertina Cunha e José Antônio Nunes. Petrópolis: Vozes, 2008. OLIVEIRA, M. I. C. Quem eram os “Negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, n. 19/20, p. 37-73, 1997. PESSOA DE CASTRO, Y. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. 2.e.d Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. QUERINO, M. A arte culinaria na Bahia: breves apontamentos. Salvador: Papelaria Brasileria, 1928. RADEL, G. A cozinha africana da Bahia. Salvador, 2006. NARRATIVAS E IDENTIDADES CULTURAIS: AFRODECENDÊNCIA, AFRICANIDADE E INDÍGENA 26 REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante malê de 1835. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das letras, 2003. SAPIR, E. A linguagem: introdução ao estudo da fala. Tradução e Anexo de J. Mattoso Câmara Jr. São Paulo: Perspectiva, 1980. TARALLO, F.; ALCKMIM, T. Falares crioulos: línguas em contato. São Paulo: Ática, 1987. (Série Fundamentos, 15) TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e linguística. Tradução e adaptação de Rodolfo Ilari. Revisão técnica de Ingedore Koch e Thaïs Cristóforo Silva. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. VARGENS, J. B. de M.; LOPES, N. Islamismo e negritude: da África para o Brasil, da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: UFRJ, 1982. WARDHAUGH, R. An introduction to sociolinguistics. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1992. WEINREICH, U. Languages in contact. 5. ed. The Hague: Mouton, 1967.