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Roteiro e Narrativa Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Me. Mirian Aparecida Meliani Nunes Revisão Textual: Prof.ª Me. Natalia Conti Conceitos Fundamentais de Roteirização • O Começo de Tudo; • O que é mesmo um Roteiro? • Conceitos de Jogos; • O Conceito de Roteiro de Ficção; • Introdução aos Elementos Básicos e Regras do Roteiro; • Características Técnicas do Roteiro. · Assimilar as funções narrativas de um roteiro de ficção; ser capaz de identificar as funções da roteirização nas diferentes produções ficcio- nais; compreender o roteiro inserido no universo dos jogos digitais; conhecer as técnicas de estruturação de um roteiro básico. OBJETIVO DE APRENDIZADO Conceitos Fundamentais de Roteirização Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização O Começo de Tudo Iniciar um texto, como este que você acompanha agora, é sempre um processo que causa certa angústia ao autor. Ele pensa geralmente durante muito tempo como e por onde começar a contar a sua história. Vasculha referências, relembra as narrativas que já ouviu, leu ou assistiu, reúne as memórias. A escolha das palavras é importante, pois usar termos desconhecidos vai dificultar o entendimento, ao passo que excesso de modéstia narrativa pode colocar em dúvida a seriedade e o rigor da prosa. Levados pelo nosso tema, a construção de um Roteiro, vamos navegar por águas turbulentas onde bifurcações como essa deverão surgir, exigindo escolhas. Ou, talvez melhor, portas misteriosas podem se abrir e oferecer mil e uma visões de galáxias próximas ou distantes. Basta você encontrar a resposta que a esfinge certamente exigirá. Caro aluno, a aventura de desbravar os processos criativos ligados à construção de um roteiro começa agora mesmo. Você é meu convidado a percorrer esse caminho munido do seu joystick, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.1 Figura1 – Roteirizar é um processo que se assemelha a mapear um caminho, em uma aventura cujo destino final pode se modificar profundamente durante o trajeto Fonte: iStock/Getty Images O que é mesmo um Roteiro? Compreender a função do Roteiro em um jogo digital exige o entendimento prévio da função do roteiro como elemento central de organização da ação e do desenvolvimento de uma produção artística ficcional que envolve o uso de tecnologia audiovisual. São produções complexas que demandam planejamento 1 “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” é uma frase célebre do cineasta brasileiro Glauber Rocha, um dos idealizadores do movimento do Cinema Novo, que se propunha a retratar a realidade brasileira, mesmo com baixos orçamentos, na década de 60 do século XX. 8 9 para otimizar os recursos humanos e financeiros e o roteiro é o mapa que será seguido por todos os envolvidos no processo de criação. Imagine só uma equipe de cinema que reúne um diretor, vários atores escalados para cenas diferentes, operadores de câmeras, de áudio, iluminação, maquiadores etc. Eles precisam não apenas conhecer toda a história que será contada, cena a cena, mas também os detalhes referentes a cenário, locação (onde as gravações serão realizadas), diálogos, cortes e outros recursos que um bom roteirista deverá indicar de acordo com a narrativa que construiu. Há cenas que apenas apresentam os personagens, outras pretendem deixar claro o cenário ou o tempo em que a trama se desenrola; existem aquelas que conduzem ao clímax da história e, claro, às cenas finais de desenlace. Ao conhecê-las previa- mente, o diretor e sua equipe poderão planejar as gravações de maneira adequada. Mas como isso acontece em um roteiro criado para games, uma vez que as equipes e etapas de produção são essencialmente distintas do cinema? Alguns autores acreditam que a linguagem desenhada para uma determinada mídia (como o cinema) acaba sendo incorporada e reinventada por novas mídias emergentes (como os games): “Do mesmo modo que os games absorvem as lingua- gens de outras mídias, estas também passaram a incorporar recursos semióticos e estéticos que são próprios dos games. É por isso que a interação entre filmes e games é cada vez mais frequente.” (SANTAELLA, 2013) Nos jogos digitais, o Roteiro assume o papel de fio condutor da ação do player e da jogabilidade, orientando todos os profissionais das equipes artística, técnica e gerencial. A programação do game só pode ser iniciada, portanto, quando o rotei- ro aponta o caminho a ser seguido, como uma bússola. Saber contar uma boa história por meio da ação, das escolhas oferecidas aos players e dos níveis projetados torna-se um desafio à altura dos mais ousados jogadores. Figura 2 – Uma história criada para ser um livro pode se transformar em um seriado, que pode se transformar em um game e em inúmeros produtos derivados. Esse fenômeno é conhecido como transmídia Fonte: iStock/Getty Images 9 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Games e seriados, seriados e cinema, cinema e teatro, teatro e literatura. Todas essas diferentes produções artísticas têm como ponto em comum o desafio de levar o público para “dentro” da sua história. A narrativa e o roteiro são as ferramentas essenciais para chegar lá. Quais exemplos de obras que transitaram de uma mídia a outra você conhece? Reflita sobre os elementos originais da trama e como eles foram traduzidos por meio de um roteiro para a nova mídia. Ex pl or Conceitos de Jogos Agora, vamos abordar algumas das principais características dos Jogos. Jogar é uma atividade quase tão antiga quanto a própria formação da sociedade humana. Faz parte da nossa História a necessidade de buscar atividades lúdicas, divertidas, capazes de auxiliar o processo de integração social, de gerar aprendizado por meio do prazer e da compensação. A recompensa psicológica proporcionada pelo jogo normalmente se apre- senta na sensação de vitória sobre um adversário ou na realização de um desa- fio, além da simples satisfação de brincar com outras pessoas. Por meio des- sa resposta positiva, aprendemos a aceitar as regras estipuladas previamente, respeitando o grupo e adotando uma conduta ética acordada coletivamente. É por isso que os games tornaram-se uma ferramenta muitoutilizada em processos educacionais nas escolas e nas empresas, além de um negócio que movimenta quase um bilhão de dólares na indústria do entretenimento2. Vamos acompa- nhar como isso tudo começou? Os gamers de 2600 a.C. Um dos registros oficiais mais antigos de jogos de tabuleiro refere-se ao Jogo Real de Ur, datado de 2.600 a.C.. Descoberto pelo arqueólogo inglês Sir Leonard Woolley, em uma expedição organizada pelo Museu Britânico e pela Universidade da Pensilvânia ao sul do Iraque, local da antiga Mesopotâmia, entre 1922 e 1934, foi encontrado junto ao túmulo de membros da nobreza, atestando a importância dada aos jogos nas sociedades mais antigas. Este jogo pode ser testado online no site do The British Museum’s Mesopotamia: https://goo.gl/E0rhJEx pl or 2 A expectativa de crescimento anual do mercado global de games é de cerca de 12% até 2020, atingindo a cifra de US$ 1 bilhão em lucro, considerando apenas os jogos e a publicidade que é realizada neles. Isso deve fazer com que o Brasil ultrapasse o México e se torne o maior mercado da América Latina. Fonte: PwC. 10 11 A tradição dos jogos com autores anônimos Assim como os Jogos de Ur, vários outros chegaram até nós sem que conhecês- semos seus autores. Eles não possuem um plano original documentado, portanto seus projetistas são anônimos. Há pequenas variações nas regras e sua versão atual geralmente é o resultado de várias pequenas inovações testadas e introduzidas ao longo do tempo e da experiência de jogabilidade. Jogos de tabuleiro, como xadrez, damas e gamão, encaixam-se nessa definição. Figura 3 – Vários jogos de tabuleiros atravessaram o tempo sendo reinventados, sem possuir um projetista conhecido. Eles fazem parte da tradição do jogo como elemento de diversão, aprendizado e sociabilidade Fonte: iStock/Getty Images Olhar com curiosidade para toda a experiência acumulada na criação, desenvol- vimento e execução dos mais variados jogos é uma atitude que oferece repertório, inspiração e conhecimento. Sem dúvida, algo que precisamos para projetar jogos digitais capazes de responder aos desafios humanos que, em sua essência, conti- nuam muito parecidos ao longo do tempo: desejo de compartilhar momentos de diversão; vontade de colocar à prova a própria capacidade; habilidade e coragem de tomar decisões; possibilidade de abrir horizontes para romper limites, experi- mentar a vitória e a superação. Jogos projetados Os jogos projetados são aqueles que foram criados por um autor conhecido, cujas origens chegaram até nós. O basquete, por exemplo, foi elaborado por James A. Naismith, professor de Educação Física, em 1891. Ao longo do tempo, várias regras foram aperfeiçoadas, gerando uma acomodação do desenvolvimento do jogo à experiência acumulada pelos jogadores. 11 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Figuras 4 e 5 – À esquerda, Naismith segura a cesta utilizada para os primeiros jogos de basquete. À direita, é possível conferir o quanto o design facilitou o andamento do jogo Fonte: Wikimedia Commons e iStock/Getty Images Se você comparar o projeto inicial do basquete ao modelo atual, notará como a prática tornou o jogo mais fluido e coerente, capaz de oferecer uma experiência estimulante tanto para quem joga quanto para quem assiste às disputas. Jogos como Monopoly, War e Detetive são marcas patenteadas por grandes empresas de brinquedos e adotam versões projetadas pelos seus profissionais, que também passam por atualizações e adequações de marketing ao longo do tempo. Nos projetos de Jogos Digitais, veremos mais à frente o quanto é importante testar aspectos de coerência narrativa e jogabilidade antes de lançar um produto no mercado. Importante! Que algumas competições de jogos digitais, os chamados e-sports, podem ser incorpo- radas às Olimpíadas em breve? O Comitê Olímpico Internacional (COI) já introduziu em 2018 disputas de StarCraft2 na programação prévia dos Jogos de Inverno, realizados na Coreia do Sul. Você Sabia? Os primeiros jogos eletrônicos Algumas das primeiras experiências com jogos eletrônicos datam da década de 50 do século XX, no período da Guerra Fria entre EUA e URSS. É dessa época, por exemplo, o Tennis for Two, projetado por William Higinbotham para ser jogado em um protótipo de computador analógico, no Brookhaven National Laboratory. O jogo incluía botões, com duas barras verticais representando as raquetes e um ponto piscando no meio da tela representando a bola de tênis. 12 13 Brookhaven National Laboratory: https://goo.gl/w7S35B Ex pl or No entanto, somente com a chegada do Atari, em 1977, a era dos Jogos Digitais irá, de fato, começar a valer, com 8 milhões de unidades vendidas até o início da década de 80. Figura 6 – Console do Atari 2600, uma febre dos anos 80 que marca o início da “era moderna” dos Jogos Digitais Fonte: iStock/Getty Images A partir de sua disseminação em massa, os games passam a ser classificados de acordo com o suporte utilizado, que interfere na jogabilidade e proporciona experiência específica de interação: • jogos para consoles, que possuem um controle acoplado ao monitor de uma TV, como o pioneiro Atari; • jogos para computador, que ocorrem no monitor de um PC a partir de seu próprio hardware; • jogos para arcades, que alguns chamam de ‘fliperama’, são grandes máquinas que integram console e um monitor, expostas em lugares públicos, como sho- ppings centers e outros; • jogos online definem todos aqueles que necessitam de uma conexão à internet. Com suportes cada vez menores e mais mobilidade, essa classificação pode ser ampliada, ainda, pelo uso de celulares e tablets, além das especificidades propor- cionadas pelos games compartilhados nas redes sociais. Importante! A popularização do videogame, que deixa de ser visto como um brinquedo e é aceito como um produto cultural, exige dos estudiosos uma defi nição mais específi ca, capaz de dar conta das pesquisas que surgiram sobre a relação entre games, TV, cinema, HQ e toda a cultura pop. As narrativas são incorporadas a esse debate, pois os games gan- ham linhas condutoras cada vez mais complexas, mas que devem atender às exigên- cias da jogabilidade. Importante! 13 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Assim, são retomadas as discussões que colocam em perspectiva as características essenciais do Jogo, como você pode conferir na tabela a seguir. Tabela 1 – Conheça algumas das diferentes definições de Jogo apresentadas por vários autores nesta tabela Fonte Definição Johan Huizinga “... (o jogo é) uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não-séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com a tendência a rodearem-se de segredos e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.” Roger Caillois “(o jogo) é uma atividade que é essencialmente: livre (voluntária), separada (no tempo e espaço), incerta, improdutiva, governada por regras, fictícia (faz-de-conta).” Bernard Suits “Jogar um jogo é se engajar em uma atividade dirigida para causar um estado específico de ocorrências, usando somente meios permitidos por regras, onde as regras proíbem meios mais eficientes em favor de meios menos eficientes, e onde tais regras são aceitas apenas porque elas tornam possível tal atividade.” Avedon & Sutton-Smith “No seu nível mais elementar, podemos definir jogo como um exercício de sistemas de controle voluntário, nos quais há uma posição entre forças confinada por um procedimento e regras, a fim de produzir um resultado não estável.” Chris Crawford “Eu percebo quatro fatores comuns: representação (um sistema formal fechado, que subjetivamenterepresenta um recorte da realidade), interação, conflito e segurança (o resultado do jogo é sempre menos severo do que as situações que o jogo modela).” David Kelley “Um jogo é uma forma de recreação constituída por um conjunto de regras que especificam um objeto (objetivo) a ser almejado e os meios permissíveis de consegui-lo.” Salen & Zimmerman “Um jogo é um sistema no qual jogadores engajam-se em um conflito artificial, definido por regras, que resultam em um resultado quantificável.” Fonte: LEMES, 2009 Entre as características destacadas pelos estudiosos citados na tabela, quais são aquelas verdadeiramente essenciais a um Jogo Digital? Como seria a sua definição?Ex pl or O Conceito de Roteiro de Ficção A partir da compreensão dos conceitos introdutórios da ideia de Jogos, passa- mos agora a explorar o conceito de Roteiro. Já conversamos anteriormente sobre a similaridade entre a escrita de um roteiro e o desenho de um mapa. Nos dois casos, precisamos deixar claro não apenas o direcionamento a ser tomado, mas também o sentido da trajetória que escolhemos e o destino ao qual nos lançamos. O roteiro pode ser definido, ainda, como o produto final de uma narrativa, seja ela adaptada ou criada exclusivamente, cujo objetivo é guiar a criação de um de- terminado produto audiovisual. O formato é baseado na linguagem verbal escrita e serve para conduzir a história, a produção e o gerenciamento de qualquer espetá- 14 15 culo audiovisual. Deve conter, sempre, a descrição objetiva das cenas, sequências, diálogos e indicações técnicas do filme, vídeo, programa ou jogo. O Roteiro de Ficção parte de uma história não-verídica e pode ser direcionado a diferentes mídias de audiovisual, cada uma com suas particularidades de linguagem. Na língua inglesa, a palavra que o define é Script e veremos essa grafia em muitos manuais e textos sobre roteirização. Para o escritor, dramaturgo e professor Doc Comparato, o roteiro é uma com- binação de três aspectos fundamentais, que ele empresta da definição de Retórica, em Aristóteles, filósofo grego do período Clássico: Logos, Pathos e Ethos. Logos: termo de origem grega, signifi ca a Palavra ou o Verbo. Na Filosofi a, passa a ser identifi cado com a Razão. Na tradição cristã, há uma associação entre Jesus e o Logos: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra é Deus”. João 1:1 Pathos: termo de origem grega, normalmente associado à ideia de paixão e desejo, mas que inclui ainda a noção de passagem lenta e dolorosa por algo, travessia. Também pode signifi car emoção ou drama. Ethos: termo de origem grega que remete à ideia de um conjunto de hábitos e costumes compartilhados por um determinado grupo ou comunidade e que serve como parâmetro de boa conduta. A palavra ética é derivada de Ethos. Ex pl or O elemento que dá forma e estrutura ao roteiro, segundo Comparato, é o Logos, que representa a Palavra, a organização verbal. Pathos é o drama, ou seja, a história que ativa a ação. O Ethos, por fim, é a moral, o significado por trás do desenrolar dos fatos, e está sempre presente, queiramos ou não (COMPARATO, 2009). A combinação desses três elementos gera a alquimia capaz de criar uma obra a partir de um roteiro. Para concluir esta etapa, é importante ressaltar que o Roteiro de Ficção não é uma obra literária. Ele não é projetado para ser lido – a não ser pelos membros da equipe de produção do audiovisual. Sua elaboração tem como finalidade específica a indicação do caminho para a criação do filme, do programa, seriado ou, no nosso caso, do Jogo Digital. Esse entendimento é necessário para evitar erros clássicos na construção de um roteiro, como excesso de textos não-dialogados que nada acrescentam à en- cenação. Dito isso, lembre-se que a leitura de roteiros clássicos é parte essencial da formação de um bom roteirista e, por essa razão, vamos indicar vários deles ao longo de nosso curso. A origem da palavra Roteiro remete ao verbete “rota” (caminho), cujo original em latim é “rupta”, caminho aberto à força. Podemos concluir que a ideia de Roteiro nasce da necessidade de abrir um caminho onde antes não havia nenhum. Ele indica a trajetória a ser seguida por toda a equipe de produção de uma obra audiovisual. 15 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Introdução aos Elementos Básicos e Regras do Roteiro Alguns elementos oferecem o ponto de partida para a elaboração de um roteiro, embora cada roteirista encontre caminhos muito particulares para colocá-los em prática. A ordem em que se apresentam, o modo como são desenvolvidos e os resultados esperados podem variar de acordo com os processos de criação de cada autor. Ao lançar-se à tarefa de escrever um roteiro, assim como qualquer outra obra de cunho artístico, as regras acabam sendo reinventadas e devem sempre estar a serviço da criação e não acima dela. A ideia Toda criação parte de uma ideia inicial. Mas não se engane: ela não emerge do nada e nunca é fruto de pura genialidade. Na maior parte das vezes, as grandes ideias surgem da recombinação de elementos que já existem e fazem parte do seu repertório mais próximo. Para chegar até elas, é preciso juntar as partes, associar obras já conhecidas, complementar as linguagens. “A originalidade não é senão uma imitação prudente”, já dizia Voltaire, ou François Marie Arouet, poeta, filósofo, dramaturgo e historiador francês, expoente das ideias iluministas do século XVIII. Alguns hábitos, portanto, podem auxiliar no processo de elencar ideias para buscar aquelas que poderiam se tornar bons roteiros: • Leitura: bons conhecimentos literários facilitam o processo de escrita e cons- trução de projetos • Repertório: assistir a filmes, jogar vários tipos de games, ouvir diferentes es- tilos musicais e acumular referências culturais diversificadas multiplica seu po- tencial criativo • Conhecimento: buscar aprofundar o que sabe sobre as obras que despontam para você como modelos criativos é etapa importante do processo • Persistência: insistir no processo criativo, não desistir diante das primeiras dificuldades e pensar em diferentes alternativas criativas são atitudes capazes de garantir a continuidade de um projeto Sinopse A sinopse é um resumo do argumento de uma obra, seja ela um livro, um filme ou um jogo. Deve ser redigida de modo a deixar claro o enredo da história, mostrar os principais personagens, cenário e recorte temporal. É uma breve ideia geral, normalmente não ultrapassando de cinco a sete linhas - ou de uma a duas páginas, de acordo com o tempo de duração da obra. 16 17 Confira, a seguir, um exemplo de Sinopse do filme Batman, de Tim Burton (1989): “No seu 200ª aniversário, Gothan City assiste Batman, ou Bruce Wayne, enfrentar o Coringa, ex-executivo e gangster da corporação Axis Chemical. Numa Gothan City de estilo dark, quase gótico, há uma sociedade bur- guesa degradada pela corrupção policial, abusos ambientais, excessos corporativos, ganância e imprensa sensacionalista e manipulada. Batman, o homem-morcego, é a proteção da sociedade civil diante da inoperân- cia policial. Em face da crise social e do Estado, apela-se para o extraor- dinário: o herói Batman.” Fonte: Projeto Tela Crítica. Disponível em http://www.telacritica.org/letraB.htm#alex2. Acessado em 15 de janeiro de 2018. Figura 7 – Roteiro original do fi lme “Batman” (1989), de Tim Burton, exibido no London Museum Film Fonte: Wikimedia Commons Argumento O Argumento é um desdobramento da Sinopse, cuja função é descrever deta- lhadamente a história do filme, programa ou jogo, elencando ao máximo todos os seus elementos. Deve ser mais longa que a Sinopse e é um meio caminho para o desenvolvimento do Roteiro. É na redação do Argumento que as ações são colo- cadas na sequência exata em que serão apresentadas no audiovisual, apresentando o enredo. Geralmente, a função do Argumento é apresentar a história aos produtores, ou seja, tentar “vender” o roteiro. Nos EUA,costumam ser mais extensos, mas no Brasil vários roteiristas adotam a média de uma página de Argumento para cada 10 páginas de Roteiro. Como sempre, o bom senso e as características específicas de criação vão determinar essas escolhas. Além disso, o Roteiro e o Argumento de um Jogo Digital envolvem etapas e bifurcações que o Roteiro e o Argumento de cinema nem sempre precisam prever. 17 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Aqui, você pode conferir (em inglês) o argumento do filme Mr. & Mrs. Smith (Jan/2001). https://goo.gl/AtguWsEx pl or Características Técnicas do Roteiro Muitas dúvidas povoam o imaginário sobre o formato que o Roteiro deve as- sumir em sua versão final. Vamos introduzir, aqui, os elementos técnicos e sua apresentação formal no Roteiro, ressaltando que o mais importante é a clareza no apontamento das condições prévias para a organização de gravações ou, no caso de Jogos Digitais, instruções específicas para modelagem, construção de persona- gens e cenários. Um dos aplicativos que indicamos para a construção formal do Roteiro é o Celtx, um programa de uso free, multiplataforma, capaz de auxiliá-lo na construção do formato da sua história. “Preparado você não está”, diz Yoda para Luke Skywalker ao iniciar os treinos do futuro jedi em Star Wars. Essa frase é usada pelos roteiristas Leandro Saraiva e Newton Cannito em seu Manual de Roteiro (SARAIVA e CANNITO, 2004) para tranquilizar e inspirar o início do processo de criação, que sempre envolve tentativa e erro. A partir desse ponto de vista, o resultado só surge com o reconhecimento inicial de que temos um longo caminho pela frente e de que a jornada será especialmente proveitosa se corrermos o risco da imperfeição. O que é o Cabeçalho? O Cabeçalho da Cena, como o nome indica, deve estar na abertura de cada cena do Roteiro. Será ele que vai indicar onde e quando a cena vai acontecer. Inicialmente, é preciso mostrar se a gravação será no ambiente Interno (INT.) ou Externo (EXT.). Também é necessário indicar o Tempo, ou seja o momento do dia (manhã/ tarde/noite) ou a hora exata do acontecimento quando necessário. Se a descrição visual do momento exato da cena for importante para o enredo, é possível criar indicações como “relógio marcando 12 horas” na etapa de Descrição Visual. A numeração das cenas pode ser feita apenas na etapa final, uma vez que a redação do Roteiro deverá sofrer muitas alterações ao longo do processo. Alguns roteiristas optam por dar títulos a cada cena. 18 19 Veja o exemplo: CENA 1: INT. APARTAMENTO DE IRENE. SALA. DIA. FINAL DE TARDE A cada mudança de ambiente e/ou tempo, deve ser inserido um novo cabeça- lho, com novas indicações, sinalizando uma mudança de CENA. A exceção é quan- do a personagem se desloca dentro do mesmo ambiente/tempo (por exemplo: Irene sai da SALA e vai para a COZINHA). Entende-se que as demais indicações permanecem as mesmas. Outro exemplo: CENA 2: EXT. CENTRO DE SÃO PAULO - AVENIDA PAULISTA – NOITE Ação e descrição visual A ação ou descrição visual deve indicar no Roteiro aquilo que o público verá na tela. Isso inclui o que os personagens estão fazendo, detalhes do cenário e, se necessário, indicações de sons. Uma falha comum nos roteiros é indicar aquilo que não se passa na tela. Na descrição da cena, não deve haver exagero nos adjetivos e nos detalhes, pois concisão e clareza são fundamentais. Mais uma vez, devemos lembrar que o Roteiro não é um produto literário, seu público não vai ler o texto, mas sim assistir ao resultado final do audiovisual. Alguns gêneros de filmes, programas e, principalmente, games exigem uma descrição mais detalhada, pois os cenários dependem de criação artística, como no caso de ficção científica. Para Jogos Digitais, há todo um cuidado na construção de um “universo” capaz de dar veracidade à história e proporcionar imersão ao jogador. Veja o exemplo abaixo. CENA 3: INT. SALA DE ESTAR – NOITE Escuridão. Pouco pode ser visto dessa ampla e luxuosa sala de estar. SOM de um portão metálico sendo aberto lentamente e depois fechando. OUVIMOS passos oriundos do lado de fora da residência. UMA SOMBRA passa pela janela, do lado de fora da casa, depois mais outras duas. A janela é aberta pelo lado de fora. Três pessoas pulam, silenciosamente, para o interior da sala através da janela. Os três estão com roupas negras, luvas de couro e com máscaras de esqui. O 1º Mascarado usa uma máscara com apenas uma fenda para os olhos. O 2º Mascarado e o 3º Mascarado usam máscaras com uma fenda para cada olho. Eles adentram no recinto em passos lentos. 19 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Repare: na descrição da cena, a roupa do primeiro Mascarado é diferente dos demais e isso é ressaltado no roteiro. O roteirista só deve fazer isso se for necessário para a história, se em algum momento isso vai ser importante para a compreensão da cena. Caso contrário, é dispensável. Diálogos A etapa de construção dos diálogos é uma das mais delicadas e deve ser pre- parada com todo rigor, sempre conectada à descrição visual/ação e ao enredo do filme. Encontrar o tom certo para um diálogo coerente, dentro de determinada trama e construção de personagens é uma tarefa que exige habilidade e persis- tência. Muitos diálogos aparentemente displicentes e banais são fruto de muita dedicação criativa. Observe estes diálogos extraídos do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles: EXT. RUA PRÓXIMA - DIA 2 BUSCA-PÉ, o narrador da história, tem nas mãos uma câmera fotográfica profissional. É negro e tem aproximadamente 18 anos. Ao lado dele o amigo BARBANTINHO. Eles caminham por uma rua do conjunto. BARBANTINHO Aí, Busca-Pé... Tu acha mesmo que os cara vão te dar emprego no jornal se tu conseguir tirar essa foto? BUSCA-PÉ Eu tenho que arriscar. BARBANTINHO Porra! Tu tá arriscando é a vida. Por causa de uma foto, mermão! Dá um tempo! Observe que os erros de concordância, as gírias e as expressões escolhidas já dão, por si só, o ritmo ao diálogo, cuja estrutura ajuda a montar o perfil das personagens e o clima da trama. Como detalhe técnico, o diálogo é sempre escrito no centro da folha, com as margens mais estreitas e o nome do personagem em letras MAIÚSCULAS. 20 21 Leia, aqui, o roteiro completo do fi lme Cidade de Deus, de Bráulio Mantovani, disponibiliza- do pelo site Roteiro de Cinema, mantido pela Associação de Roteiristas e Autores de Cinema. Veja com especial atenção a Cena 1, conhecida como “a fuga da galinha”, que abre o fi lme e é considerada antológica: https://goo.gl/28nMJf Ex pl or Finalizando esta primeira Unidade, é importante ressaltar que o Roteiro deve ser sempre claro, dinâmico e objetivo. Ele não é a única condição para o bom planeja- mento de uma produção audiovisual, mas certamente é uma das mais importantes. A marcação visual é um dos elementos que facilitam a compreensão das diferentes etapas do Roteiro, por isso todas as CENAS e mudanças devem ser rigorosamente indicadas. O conteúdo visual precisa ser cuidadosamente descrito, de modo que fique fácil para diferentes membros da equipe realizarem a leitura e identificarem providências a serem tomadas. Por fim, lembre-se que, mais do que em qualquer outro projeto artístico, a linguagem verbal usada no Roteiro deve ser a matéria prima para a construção de uma IMAGEM. Se a sua descrição de cena, diálogos e locações for capaz de traduzir com o máximo de precisão as imagens que definirão o produto audiovisual, sem dúvida seu trabalho como roteirista terá sido bem feito. Para refl etir sobre as questões da dramaturgia fi ccional e da construção do roteiro, agora é hora de buscar uma leitura. Comece pelo Capítulo 1 (pp. 13-26) da obra de Doc Comparato, Da criação ao roteiro. Teoria e Prática, que faz parte da nossa bibliografi a. Disponível na Biblioteca Virtual Pearson: https://goo.gl/VJjqf9 Ex pl or 21 UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização Material Complementar Indicaçõespara saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites Celtx https://www.celtx.com/index.html Brookhaven National Laboratory Site do Brookhaven National Laboratory detalhando a experiência do Tennis For Two. https://goo.gl/w7S35B The Internet Movie Script Database (IMSDb) Leia (em inglês) alguns dos melhores roteiros de cinema já escritos, eleitos pelo Sindicato dos Roteiristas (Writers Guild of America). https://goo.gl/k7EXfC Vídeos O que tem dentro de um Atari ft. Marcelo Tas O jornalista e apresentador Marcelo Tas é o convidado do Manual do Mundo para desvendar os segredos do Atari. https://youtu.be/1ZMDs-FLQb8 Leonardo Torres Quevedo Chess Automaton Cybernetics Conference in Paris Assista ao vídeo que registra experimento realizado por Leonardo Torres Quevedo, de automação de um jogo de xadrez, realizado em Paris, em 1914. https://youtu.be/HbjdNSy2kIA Leitura Museu Nacional de Arqueologia O Museu Nacional de Arqueologia oferece mais dados sobre as regras e os artefatos associados ao Jogo Real de UR. https://goo.gl/8BQv4H Basquetebol. Aspectos históricos e funcionais Aqui, é possível conferir os aspectos de desenvolvimento do basquetebol como jogo coletivo. https://goo.gl/2CvqH8 22 23 Referências COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. São Paulo: Summus, 2009. Disponível na Biblioteca Virtual Pearson: <http://sites.cruzeirodosulvirtual. com.br/biblioteca>. LEMES, David de Oliveira. Games Independentes: fundamentos metodológicos para criação, planejamento e desenvolvimento de jogos digitais. São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.dolemes.org/material/Ebooks/Ebook_Games_ Independentes_Dolemes.pdf>. SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo, Paulus, 2007. SANTAELLA, Lucia. Comunicação Ubíqua: repercussões na cultura e na educa- ção. São Paulo: Paulus, 2013. SARAIVA, Leandro e CANNITO, Newton. Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. 23