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1 SABERES ANCESTRAIS E CURA INTEGRATIVA: Diálogos decoloniais (Orgs.) Alexandre Franca Barreto Djailton Pereira da Cunha Luzibênia Leal de Oliveira Maria Valquíria Nogueira do Nascimento Maristela de Melo Moraes Ricardo Luiz Narciso Moebus Saulo Rios Mariz 1 SABERES ANCESTRAIS E CURA INTEGRATIVA: Diálogos decoloniais (Orgs.) Alexandre Franca Barreto Djailton Pereira da Cunha Luzibênia Leal de Oliveira Maria Valquíria Nogueira do Nascimento Maristela de Melo Moraes Ricardo Luiz Narciso Moebus Saulo Rios Mariz RECIFE FIOCRUZ PE 2023 Recife ObservaPICS 2023 Catalogação na fonte: Biblioteca Luciana Borges Abrantes dos Santos Instituto Aggeu Magalhães / Fundação Oswaldo Cruz S215 Saberes ancestrais e cura integrativa: diálogos decoloniais / (Orgs.) Alexandre Franca Barreto, Djailton Pereira da Cunha, Luzibênia Leal de Oliveira, Valquíria Nogueira do Nascimento, Maristela de Melo Moraes, Ricardo Luiz Narciso Moebus, Saulo Rios Mariz. — Recife: ObservaPICS, 2023. 1 recurso online (344 p.) : PDF. ISBN 978-65-996091-6-9 (online). 1. Medicina Tradicional. 2. Índios Sul- Americanos. 3. População Negra. 4. Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde. 5. Brasil - etnologia. I. Barreto, Alexandre Franca (org.). II. Cunha, Djailton Pereira da. III. Oliveira, Luzibênia Leal de. IV. Nascimento, Valquíria Nogueira do (org.). V. Moraes, Maristela de Melo (org.). VI. Moebus, Ricardo Luiz Narciso (org.). VII. Mariz, Saulo Rios (org.). CDU 316.77 Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz Presidente Mario dos Santos Moreira Chefe de Gabinete Zélia Profeta Assessoria de Relações Institucionais Valber Frutuoso Coordenação Geral Juliano de Carvalho Lima Coordenação de Gestão Administrativa de Projetos Adriana Nascimento de Oliveira Análise de Projetos Fernanda Gomes Nascimento Reinoso Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) Hermano Albuquerque de Castro Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares em Saúde (ObservaPICS) Av. Professor Moraes Rego, s/n – Campus Recife, Cidade Universitária – Recife/PE. CEP: 50.740-465 Telefone: (81) 2101-2580 Instituto Aggeu Magalhães / Fundação Oswaldo Cruz Pernambuco NESC, 4º andar, Sala 8 Site: www.observapics.fiocruz.br Coordenação Executiva Islândia Maria Carvalho de Sousa Secretaria Executiva Jaqueline de Cássia do Nascimento Velloso Divulgação e Comunicação Bruno Flávio Espíndola Leite Fabíola Tavares de Oliveira Veronica de Almeida Silva Apoio Técnico Camila Tenório Ferreira Carine Bianca Ferreira Nied Gisléa Kândida Ferreira da Silva Inês Nascimento de Carvalho Reis Mirna Barros Teixeira Revisão Textual/Ortográfica Clenir de Souza Louceiro Editoração Camila Tenório Ferreira Revisão Camila Tenório Ferreira Fabíola Tavares de Oliveira Gisléa Kândida Ferreira da Silva Veronica de Almeida Silva Capa, Projeto Gráfico e Produção Artística Diana Lins Mesquita Pinturas e Desenhos Ailton Krenak Fonte de Fomento Projeto Formação, Pesquisa e Incorpo- ração de Tecnologias Sociais no SUS: Estratégia de Ação para a Capacitação sobre Expansão e Consolidação das Prá- ticas Integrativas e Complementares na Estratégia da Saúde da Família. Termo de Execução Descentralizada 188/2017. http://www.observapics.fiocruz.br Autoria AILTON KRENAK - Minas Gerais Liderança indígena Krenak (Minas Gerais) e nacional, com participação decisiva nos debates da Constituição Cidadã de 1988, organizador da União das Nações Indígenas (UNI), escritor consa- grado de livros como A vida não é útil, Ideias para adiar o fim do mundo, O amanhã não está à venda. VIVIAN CAMACHO - Bolívia Parteira da etnia Quéchua do Planalto Boliviano, médica ginecologista, coordenadora do proje- to Salud de los Pueblos na Bolívia, diretora geral de Medicina Tradicional e Intercultural do Minis- tério da Saúde da Bolívia. ÁLVARO TUKANO - Amazonas/Brasília Liderança indígena Yepamansã (Amazonas) e nacional, organizador da UNI, um dos idealizado- res do projeto Séculos Indígenas no Brasil, ex-coordenador do Memorial dos Povos Indígenas. JOÃO PAULO LIMA BARRETO - YUPURI TUKANO - Amazonas Doutor em Antropologia pela Universidade Federal da Amazonas (UFAM) e organizador do Cen- tro de Medicina Indígena Bahserikowi (Manaus). CRISTINE TAKUÁ - São Paulo Diretora do Instituto Maracá (São Paulo), educadora, graduada em filosofia, vem trabalhando a ideia das epistemologias indígenas, tanto nos campos epistemológicos quanto nas línguas e nas artes. CARLOS PAPÁ - São Paulo Referência como o primeiro cineasta Guarani-Mbyá, no estado de São Paulo. É também uma li- derança espiritual em sua comunidade, na aldeia Rio Silveira, e coordenador no Litoral Norte de São Paulo da Comissão Guarani Yvyrupa. AYANI HUNI KUIN - Acre Cineasta e produtora cultural do povo Huni Kuin do Rio Jordão (Acre), filha do grande pajé Agos- tinho Huni Kuin (Acre). ISAKÁ HUNI KUIN - Acre Produtor cultural, coordenador do projeto Casa das Essências Huni Kuin, filho do pajé Agostinho Huni Kuin. UBIRACI PATAXÓ - Bahia Graduado em ciências da natureza e matemática, educador e terapeuta indígena do Sul da Bahia. É um jovem mestre do saber, palestrante, instrutor de cursos, massoterapeuta, técnico em resgate da autoestima e aprendiz de pajé. BINO TURKÁ - Pernambuco Filho de Adalgisa Turká, parteira indígena e importante liderança espiritual Turká, é professor de artes indígenas, rezador e raizeiro, preservando muitos dos ensinamentos de sua tradição étnica compartilhados por sua mãe. MARIA JOSÉ TURKÁ - Pernambuco Filha de Adalgisa Turká, parteira indígena e importante liderança espiritual Turká, é rezadora e raizeira que preserva muitos ensinamentos de sua tradição étnica compartilhados por sua mãe. MARIA INÁCIA DA SILVA - UNÁWÁ - Pernambuco Agente Indígena de Saúde e jovem liderança espiritual da Aldeia do Malhador, no território indí- gena Kapinawá (Pernambuco). JOSÉ ROSENILDO DA SILVA SIQUEIRA - NYWÁ - Pernambuco Agente de Saneamento Indígena e jovem liderança espiritual da Aldeia do Malhador, no territó- rio indígena Kapinawá (Pernambuco). AUDALIO DINIZ DE SIQUEIRA - YHAKY - Pernambuco Agricultor, raizeiro e rezador indígena Kapinawá (Pernambuco). SANDERLINE RIBEIRO - Paraíba Mulher, indígena, pajé, graduada em pedagogia pela Universidade Aberta Vida (Unavida), li- cenciada em letras-língua portuguesa, especialista em educação do campo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestranda em ciências das religiões (UFPB) e professora da educação básica. ELISA URBANO RAMOS - Pernambuco Professora indígena do território Pankararu (Pernambuco), com licenciatura em letras, mestre em antropologia pela UFPE. Coordena o Departamento de Mulheres Indígenas da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). BABA KING - Nigéria/São Paulo Filho de uma importante linhagem real, nasceu na cidade de Abéòkúta, na Nigéria. Sacerdote iorubá há décadas, tem o título de Bàbá Egbé da Sociedade dos Babalaôs de Abéòkúta. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. No Brasil fundou o Centro Cultural Oduduwa. CAROLINA MAÍRA MORAIS - Rio de Janeiro Historiadora e diretora da Casa Herança de Oduduwa (São Paulo). MÃE EDINEUSA - Ya Idjemim - Bahia Ialorixá responsável pelo Abassá da Deusa Òsùn de Idjemim, Paulo Afonso (Bahia). PAI ALEX GOMES DA SILVA - Alagoas Sacerdote candomblecista, mestre de cultura popular, mestre juremeiro, tocador de pífano, só- cio-fundador e líder da organização não governamental Casa de Caridade de Candomblé Ilê Axé Odagara Xangô Agodô (Alagoas). É protagonista do documentário O juremeiro de Xangô. ALEXANDRE FRANCA BARRETO - Pernambuco Psicólogo, psicoterapeuta corporal (analista bioenergético), constelador sistêmico, mestre em antropologia, doutor em educação, professorda Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). DJAILTON PEREIRA DA CUNHA - Pernambuco Engenheiro elétrico, psicólogo, mestre em gestão empresarial, doutor em educação, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e coordenador do Núcleo de Cartografias da Subjetivi- dade (Nucas). LUZIBÊNIA LEAL DE OLIVEIRA - Paraíba Enfermeira, mestre e doutora em recursos naturais pela Universidade Federal de Campina Gran- de (UFCG). Professora da UFCG, membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Saúde Coletiva (Nupesc). MARIA VALQUÍRIA NOGUEIRA DO NASCIMENTO - Paraíba Graduada em psicologia pela Universidade Estadual da Paraíba, com mestrado e doutorado em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora adjunta III da UFCG, coordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária e da Saúde (Nucs). MARISTELA DE MELO MORAES - Paraíba Graduada em psicologia pela UFPE, mestre em saúde coletiva pela Fiocruz Pernambuco, doutora em psicologia pela Universidade Autônoma de Barcelona. Professora da UFCG, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Drogas (NUD/UFCG). RICARDO LUIZ NARCISO MOEBUS - Minas Gerais Médico, psiquiatra, psiquiatra da infância e juventude, mestre e doutor pela Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutorado em racionalidades da saúde pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisador das medicinas ancestrais indígenas. SAULO RIOS MARIZ - Paraíba Farmacêutico-bioquímico, mestre em toxicologia e análises toxicológicas e doutor em produtos naturais e sintéticos bioativos. Professor de farmacologia para enfermagem e medicina da UFCG. JOSÉFRAN ZUMBA DE OLIVEIRA - Paraíba Graduando em psicologia pela UFCG. Integrante do Núcleo de Psicologia Comunitária e da Saú- de (Nucs/UFCG). LIA SANTOS DE SOUSA - Paraíba Graduanda em psicologia pela UFCG. Integrante do NUD/UFCG. MARIA LUÍZA SOUSA DE ALBUQUERQUE - Paraíba Graduanda em psicologia pela UFCG. Integrante do NUD/UFCG e do Núcleo de Saúde Mental, Justiça e Produção de Subjetividades (Samjus/UFCG). GABRIEL FARIAS DINIZ - Paraíba Graduando em psicologia pela UFCG. Integrante do NUD/UFCG. FABÍOLA PÂMELLA BATISTA DA SILVA - Paraíba Graduanda em psicologia pela UFCG. Integrante do Nucs/UFCG. Graduanda em psicologia pela UFCG. Integrante do Nucs/UFCG. Agradecimentos Primeiramente aos nossos ancestrais, que, como tais, pisaram neste chão antes de nós, abri- ram caminhos e a própria possibilidade da existência para os que vieram depois. A todos os seres do encantado, que velam e operam na transmissão e atuação dos saberes ancestrais de práticas de cura. Aos(às) nossos(as) professores e professoras de ancestralidade indígena e negra, que com muito respeito, honra e sabedoria ensinaram lições sagradas de suas tradições. A todas as etnias e coletivos representados nesta obra pelos professores dos saberes ances- trais, pela generosidade com que cultivaram saberes desde tempos imemoriais, pela generosi- dade com que permitiram o compartilhamento e a divulgação desses saberes. A todas as universidades públicas envolvidas neste trabalho (Univasf, UFCG, UPE e UFOP) que, através de docentes e estudantes, permitem resistir e insistir em uma educação pública, gratuita, de qualidade, universitária, com seu compromisso social, ético-estético, político, cien- tífico, pedagógico e humano. Ao Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares em Saúde (ObservaPICS/Fiocruz) pelo convite e parceria para que pudéssemos concretizar esta obra, com ensinamentos gerados no curso de extensão. Epígrafe Saberes ancestrais e cura integrativa Você já ouviu falar De chá, garrafada, defumação e rezo Foi dito pra você que são coisas que não prestam ou não têm sentido? Ou ainda, é infantilidade, coisa de quem não tem juízo! Charlatanismo! Se foi assim que estas coisas te foram apresentadas Cuidado!!! Você foi colonizado! Se repete, também já é colonizador! E como descolonizar? Se permita viver a experiência Se abra e se entregue à sua ancestralidade Não faça isto de olhos fechados ou sem crítica Faça isto com seu coração e seu intelecto afiado Para ver a verdade do que não te foi revelado Para reflorescer em seu ser outra noção de cuidado Aí sim, você será transformado! O saber ancestral no cuidado Não olha fragmentado Tudo é unificado Relacional, integrado Você verá doutores com grande saber Com profunda humildade Suas aulas são dadas na floresta ou através dos sonhos Preservando a prática e a oralidade Celebrando a alegria na fruição Entre corpos e mundos Afetos e fricção Em uma dança cósmica Conectados com os ciclos da natureza O som, o rezo, o aroma, a química A atenção, o toque, a mistura O encontro, o amor! Cura. Alexandre Barreto Sumário Prefácio..................................................................................................................................... 14 1. Saberes ancestrais e práticas de cura: experiências na extensão universitária Alexandre Franca Barreto, Djailton Pereira da Cunha, Luzibênia Leal de Oliveira, Maria Valquíria Nogueira do Nascimento, Maristela de Melo Moraes, Ricardo Moebus, Saulo Rios Mariz ........... 18 2. Por trás das cortinas virtuais, o caminhar da monitoria no curso Joséfran Zumba de Oliveira, Lia Santos de Sousa, Maria Luíza Sousa de Albuquerque, Gabriel Farias Diniz, Fabíola Pâmella Batista da Silva ............................................................................ 27 3. Práticas indígenas de cuidado Ailton Krenak ............................................................................................................................. 32 4. Saúde e interculturalidade Vivian Camacho ..........................................................................................................................48 5. Medicina ancestral indígena Yepamahsã Álvaro Tukano............................................................................................................................. 71 6. Medicina ancestral indígena Yepamahsã e o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi João Paulo Lima Barreto (João Paulo Tukano)......................................................................................92 7. Medicina ancestral indígena de Nhe’ery Cristine Takuá e Carlos Papá ..........................................................................................................112 8. Cuidado indígena: a força comunitária na prática de cura de cada indivíduo Ubiraci Pataxó .......................................................................................................................... 136 9. Medicina ancestral indígena Huni Kuin Ayani Huni Kuin e Isaká Huni Kuin ..................................................................................................... 162 10. História, ciência e raízes do povo Turká Bino Turká e Maria José Turká ........................................................................................................... 182 11. Cura pela força espiritual na tradição Kapinawá Unáwá - Maria Inácia da Silva, Nywá - José Rosenildo da Silva Siqueira, Yhaky - Audalio Diniz de Siqueira ........... 199 12. Experiências de cura em tempos de pandemia Sanderline Ribeiro Amanacy Potiguara.............................................................................................................................. 213 13. Práticas de cura do povo Pankararu Elisa Urbano Ramos .......................................................................................................................247 14. Ervas e saúde: o tesouro ancestral Iorubá Carolina Morais ............................................................................................................................262 15. Ancestralidade africana e cura, a perspectiva Iorubá Baba King ....................................................................................................................................27016. Cura e ensinamentos da Cabocla Jurema Ya Idjemim - Mãe Edineusa ...............................................................................................................297 17. A medicina da Jurema Pai Alex Gomes da Silva .................................................................................................................. 318 14 Prefácio Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português Será? Esse poema, Erro de Português, de Oswald de Andrade, dá uma dimensão do encontro, há 522 anos eivado de desencontros, entre os povos indígenas e os colonizadores brancos. O por- tuguês só poderia chegar “debaixo de uma bruta chuva”, não seria possível para ele, do lugar de onde vinha, imerso no caldo cultural onde foi cozido, ver nessa chegada “uma manhã de sol”. Tra- zia, este europeu, a certeza de que o mundo lhe pertencia. Seguia para Calicute, na Índia, apenas esbarrou com esse enorme continente no caminho. Terras que não tinha a intenção de visitar, nem o desejo de nelas se estabelecer. Que destino teriam tido essas terras se os portugueses tivessem passado ao largo? Se um vento os houvesse afastado dessa costa paradisíaca? Se Pedro Álvares Cabral, em um arroubo de profeta, tivesse sugerido deixar as coisas aqui como estavam e rumasse rapidamente para a Índia? Que outros futuros poderiam ter sido possíveis para os povos deste continente, além do fim do mundo? As ruínas que esse mundo nos revela, onde temos que viver, são as consequências revividas, a cada dia, desse encontro. Para além do genocídio contínuo, vivemos o etnocídio, no sentido que Pierre Clastres imprimiu ao termo - a destruição de modos de vida e pensamentos – e, con- sequentemente, epistemicídios em ondas sucessivas. Em nenhum momento a sociedade que se estabeleceu neste país, como resultado da colonização, deixou de estar de costas para esse imenso território, sonhando sempre com as terras do colonizador e desprezando povos e conhe- cimentos locais. Em nenhum momento sequer considerou valorizar e respeitar o gigantesco ca- bedal de saberes dos povos indígenas e das comunidades locais que se formaram no convívio com os povos originários, talhadas pela vida cotidiana nas paisagens dos diversos biomas brasi- leiros. Só poderia haver chuva, como diz o poema de Oswald de Andrade. Uma chuva sem fim, que segue chovendo, impossibilitando a colonização de chegar ao fim, bloqueando o término do ra- cismo e atravancando as possibilidades que um verdadeiro encontro poderia prover. 15 Uma chuva que nos impede de ver que os conhecimentos dos povos originários são gerados por meio de paradigmas e práticas distintas daqueles da nossa ciência e que assim podem se converter em inovações para essa mesma ciência, trazendo novas abordagens e novas pergun- tas. Algo que aconteceu quando as mulheres chegaram às universidades: trouxeram questões diferentes das que vinham sendo analisadas pelos homens há tempos e outras respostas para as indagações de sempre. Tanta água dessa chuva contínua também nos confunde e acabamos por não perceber ou tal- vez nos obrigamos a não reconhecer, que o conhecimento dos povos indígenas e das comunida- des locais é um reflexo de outros modos de viver, diferente dos nossos, que nos mostram outras possibilidades, funcionando como janelas que nos levam para fora da hegemonia totalizante da nossa forma de viver. Ver através dessas janelas pode se revelar bastante subversivo, fazendo emergir questões sobre quem somos nós e como vivemos nossas vidas. O sistema capitalista, que só tolera questionamentos e pensamentos externos a seu arcabouço se puder cooptá-los imediatamente, desestimula essa visão de outro mundo possível, através dessas janelas, apres- sando-se em nos convencer que povos indígenas são atrasados e seus conhecimentos, arcaicos. Para tanto, usam a régua da tecnologia, mas apenas essa régua: avançados são os que pro- duzem telefones celulares e não os que preservam a comunicação com os outros seres do plane- ta; modernos são aqueles que vivem em arranha-céus e não os que impedem o céu de desabar sobre nossas cabeças; civilizados são os que convertem florestas em monoculturas e não os que compartilham sua existência com uma profusão de plantas e animais; adiantados são os que poluem rios e mares e não aqueles que respeitam as águas e a vida. Talvez, numa trégua de tanta chuva, pudéssemos imaginar uma outra régua: felicidade? Bem-estar? Saúde mental? Talvez com uma nova régua nas mãos, pudéssemos reconsiderar quem são os atrasados e primitivos... O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse, em mais de uma ocasião, que os índios são aqueles que podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior, o que possivelmente é ver- dade, apesar de nossa incapacidade de admitir essa possibilidade. Vale lembrar que os povos indígenas já viveram uma espécie de fim do mundo; a invasão europeia nas Américas foi isso, o fim de um mundo. Assim, esses povos podem nos ensinar a viver em um mundo destruído, sa- queado, envenenado, devastado por nós mesmos, mas onde ainda temos que viver. Eles podem nos ajudar a repensar as nossas relações com o mundo material, fundamentado no consumo, como forma de estar no mundo, e nas diversas estratégias para fomentar esse consumo e conse- quentemente produzir mais lixo. Podem nos mostrar caminhos de reconexão com a Terra, uma vez que vivemos aqui como se fôssemos extraterrestres, prontos para esgotar este planeta e ru- mar para um próximo. Só que não temos outro… 16 Há também uma eterna relutância em admitir que em muitos casos os conhecimentos dos povos indígenas são mais eficientes do que os da nossa ciência. Essa relutância acomete mesmo os temas mais óbvios, onde o conhecimento desses povos é visivelmente mais sofisticado e mais preciso do que os nossos, como a conservação da biodiversidade, o manejo das paisagens e as práticas ligadas à agrobiodiversidade. Casos como o do estabelecimento de áreas protegidas na África mostram a incompreensão e o desprezo dos europeus pelos conhecimentos locais. Em meados do século XX, os poderes co- loniais criaram parques e reservas no Serengueti, uma planície enorme que abarca parte do Quê- nia e da Tanzânia, por onde passam milhares de mamíferos migrando para outros locais e onde há grandes predadores, como leões e guepardos. Ali, havia muitas comunidades Masai, um povo que habita essa região e que tradicionalmente fazia um manejo de fogo. Os europeus estavam convencidos de que o fogo estava prejudicando a vegetação e os animais, então resolveram que os Masai não poderiam morar nas áreas que viraram parques e reservas. O resultado foi que, sem o manejo de fogo, os grandes carnívoros, tão desejados pelos turistas, desapareceram. Isso se deu, pois, os leões e os outros carnívoros se alimentam de outros animais - zebras e gazelas, por exemplo – herbívoros. Quando os Masai colocavam fogo nas planícies, a vegetação rebrotava e atraia esses animais herbívoros e eles, por sua vez, atraíam os leões e outros carnívoros. Sem o fogo, a vegetação se adensou, os herbívoros eram menos numerosos e os carnívoros foram caçar em outros lugares. Por fim, os gestores das áreas protegidas tiveram que reconhecer que os Ma- sai sabiam melhor que eles como manejar aqueles territórios e em alguns casos fizeram acordos com as comunidades e em outros, passaram a imitar o manejo de fogo dos Masai. Os conhecimentos médicos padecem de preconceitos ainda maiores, relacionados não ape- nas com o racismo epistêmico, mas também com a incompreensão do que poderia ser outra for- ma de estar no mundo e suas consequências sobre as maneiras de perceber o que é saúde e o que seriam eventuais enfermidades e curas. Aqui, neste volume, resultado de um curso que almejou promover um encontro entre concepções de saúde e doença, é possível vislumbrar a pluralidade de possibilidades e o desperdício que é deixar deconsiderar tal diversidade. O gigantesco conhecimento dos povos indígenas e das comunidades locais acerca do que nós chamamos natureza, deveria nos ajudar a perceber que as concepções de saúde e os proces- sos de cura desses povos possuem sólida base, e que a nossa ciência teria muito a se beneficiar com um verdadeiro encontro desses saberes. Este livro é um guarda-chuva. Permite-nos, em alguns momentos sem chuva, vislumbrar possibilidades. Faz parte de um longo processo, capitaneado pelos povos indígenas e pelas co- munidades locais, de fomento à valorização e ao respeito pelo outro e de reconhecimento dos 17 saberes desses povos como um corpo autônomo de conhecimento, não subalterno à ciência, mas equitativo, pronto a fornecer novas respostas e novas perguntas para a humanidade. Resta desejar que o barulho da chuva não abafe tudo... Nurit Bensusan - Pesquisadora do Instituto Socioambiental 18 Saberes ancestrais e práticas de cura: experiências na extensão universitária Alexandre Franca Barreto Djailton Pereira da Cunha Luzibênia Leal de Oliveira Maria Valquíria Nogueira do Nascimento Maristela de Melo Moraes Ricardo Moebus Saulo Rios Mariz 19 Vivemos um momento de profunda crise na saúde e bem sabemos que essa crise é sis- têmica (ética, política, epistêmica, econômica e ecológica), muito mais ampla do que o próprio campo da saúde, tornando necessário o enfrentamento do diálogo sobre o tema não de forma isolada, mas trazendo à cena vários participantes que possam ajudar a construir outras possibilidades de cuidado. Parece que quanto mais crescem as informações e a tecnologia no campo da saúde alopá- tica, mais a população do planeta se mostra adoecida. Dores de cabeça, insônia, depressão e ansiedade fazem parte do cotidiano de vida de milhões de pessoas ao redor do globo. O câncer e os problemas cardíacos avançam como principais causas de morte em nosso país e no mundo. No mundo, até 2020, mais de 70% das mortes foram ocasionadas pelas doenças crônicas não transmissíveis. No Brasil, esse percentual chega a 74%, com destaque para doenças cardio- vasculares e neoplasias - principais causas de morte (BRASIL, 2020). Estamos vivendo mais anos, porém com mais incapacidade, dizia o informe da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2020. O corpo dói, a alma acinzenta-se, os sentidos de existir estão frágeis, isso tudo vem aconte- cendo mesmo antes da presença desta avassaladora pandemia da Covid-19, que desde meados de 2019 nos colocou diante da enorme crise que se alastra em nosso país e no mundo, intensifi- cando todos os desafios acima colocados. Nos últimos 30 anos, a Classificação Internacional das Doenças (CID) deu um salto de 14.400 códigos de doenças, lesões e causas de morte para mais de 55 mil (ALMEIDA et al, 2020). Cabe- -nos perguntar: o que estamos produzindo na saúde? Até onde nossas bases epistemológicas, técnicas e terapêuticas, que interferem diretamente em nossa interpretação sobre saúde-adoe- cimento e cuidado, têm ajudado a melhorar o mundo que compartilhamos para amparar as pes- soas diante do sofrimento em seus corpos e nas relações? Ailton Krenak, em sua obra A vida não é útil nos diz que “estamos sendo desafiados por uma espécie de erosão da vida” (KRENAK, 2020, p. 52) - atravessados pela modernidade, ciência e novas tecnologias somos também consumidos por elas – nossas marcas estão cada vez mais pro- fundas nesta terra. Como trabalhadores/as da saúde, pesquisadores/as, descendentes de indígenas, pessoas negras e brancas, deveríamos nos indagar: já não passou da hora de reconhecer e aprender com outras visões de mundo que coexistem em nosso território e em nosso próprio corpo? Já não passou da hora de borrar as fronteiras aprisionantes entre as várias profissões da saúde que frag- mentam o corpo e o cuidado, que distanciam humanos de outros seres vivos e enfraquecem a vida em sua potência? 20 Os seres que escolheram pisar leve para que suas marcas não sejam percebidas – sendo con- fundidas com a própria paisagem de vida abundante que cerca as suas moradas – estes seres com os saberes da floresta, possivelmente podem nos ensinar como olhar e sentir a vida em fruição e assim impactar profundamente nossa forma de ser e estar no mundo e responder às demandas no chamado “campo da saúde” (KRENAK, 2020). O conhecimento ancestral preservado ao longo de uma jornada além do tempo, apesar de ausente ou pouco presente nas escolas e na academia - aborda o âmago das virtudes e sabe- dorias necessárias ao bem-viver - tensiona os impactos dos saberes colonizadores sobre nossa relação com o mundo, e encoraja a construção compartilhada de conhecimento. Este outro modo de construir conhecimento, hegemonicamente negligenciado pela acade- mia, promotora de um certo epistemicídio (GROSFOGUEL, 2016), é um conhecimento decoloni- zador que sugere rotas de liberdade, brechas, fissuras que possam nos libertar do colonialismo em nós mesmos e em relações predatórias com a vida. Acreditamos que o saber ancestral múltiplo, singular e integral dos diversos povos e tradi- ções de nosso território – seja daqueles que o habitam desde o início dos tempos, seja daqueles que migraram em diáspora e passaram a compartilhar de uma terra comum, muitas vezes em conflito – são saberes que podem nos ensinar o exercício criativo, diverso e singular do cuidado e da cura. A propósito, escolhemos marcar a palavra cura, pelo valor político que ela enseja. A cura pa- rece ser possível apenas em uma sociedade que sonha, vive os encantos da existência, canta, dança, celebra numa perspectiva e senso de comunidade-coletivo, e, quando se cansa – descan- sa. É nesta sociedade, que parece bem diferente da nossa atualmente, onde a cura existe de um modo integrativo dos viventes da terra, que podemos nos encantar, inspirar, esperançar. Assim, por ousadia, por sonhar, por acreditar nos encantados - que seguimos desejantes de nos curar e auxiliar, de alguma maneira, a construção de outras compreensões sobre cura. O saber notável e profundo sobre a vida em suas múltiplas manifestações, a potência das medicinas da floresta e dos terreiros - sua sonoridade, dança, ação neuroquímica, encantamen- to, sensibilidade - parecem ser uma forma de desconstrução de um controle biopolítico que des- perta cada vez mais pessoas no Brasil e no mundo, de diferentes origens. Buscamos as histórias, as rezas, as defumações, os cantos, os rituais, os torés, o rapé, o kam- bô, as ervas, a ayahuasca, a jurema e tantos outros modos de cura para as enfermidades físicas, existenciais, identitárias e de alma. Este pulsar de vitalidade que trouxe um número enorme de 21 pessoas para partilhar dos processos formativos que propusemos, é também a manifestação de um encantamento, da fruição da vida, do interesse renovado pela ancestralidade. Se por um lado a morte nos avizinha com a pandemia e inúmeras tragédias econômicas, políticas e ambientais de profunda dor e compaixão pelo sofrimento e partida de tantas vidas e amores, por outro lado, a morte também sinaliza o fim de ciclos, de paradigmas, de epistemo- logias que não servem ao presente e futuro. Nosso medo de morrer e viver a morte está sendo requisitado neste momento. Estamos em uma travessia da morte do planeta agonizante... que faz findar e iniciar algo. Este livro, portanto, é fruto do curso de extensão Saberes Ancestrais e Práticas de Cura1 que realizamos de março a agosto de 2021, com mais de 31.800 pessoas inscritas. Tivemos ainda mais de 200 mil visualizações em nossas videoaulas disponibilizadas na internet, chegamos a ter mais de oito mil pessoas ao vivo (de forma sincrônica) em nossas aulas quinzenais. Podemos arriscar dizer que muitas pessoas aceitaram o convite para iniciar algo que ainda não sabemos onde nos levará, para uma jornada em multidão, um deslocamento do lugar comum que o campo da saú- de/cura hegemônico foi nos colocando. Mais de 2.400 pessoas participantes do curso foram respondentes de um formulárioque dis- ponibilizamos para sondagem de mais informações sobre o grupo de discentes. Por meio deles, pudemos compreender o perfil de nossos(as) participantes: 74% tinham entre 19-49 anos; 81,8% eram mulheres; 51,3% se autodeclararam pessoas brancas; 27% pardos(as); 15% negros(as), e; 4% indígenas; 97,6% eram brasileiros(as). Tivemos a presença de pessoas de outras nacionalidades e também brasileiros(as) residen- tes em diversos países: Colômbia, Argentina, Uruguai, Peru, Chile, Equador, Bolívia, México, Ve- nezuela, Nicarágua, Estados Unidos, Portugal, Itália, França, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Rússia e Austrália. A maioria (55,3%) era residente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia – o restante do percentual se divide entre os outros estados e no Distrito Federal do país, bem como residentes de outros países já citados. Noventa por cento dos cursistas já buscam cui- dados nas medicinas ancestrais e 31% são cuidadores que usam as medicinas ancestrais em seu trabalho. Noventa e dois por cento tinham formação universitária (graduação e/ou também pós- graduação Stricto ou Lato sensu) e 42,4% eram profissionais de saúde em diversas profissões. 1 O curso pode ser encontrado na íntegra, no canal do Youtube do Núcleo de Psicologia Comunitária e da Saúde (NUCS) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), através do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=- FEnc2arDpJg 22 O livro está envolvendo, diretamente, 15 lideranças indígenas de diferentes etnias (Krenak, Quéchua, Tukano, Mbya Guarani, Huni Kuin, Pataxó, Turká, Potiguara e Pankararu) e quatro lideranças negras, duas delas vinculadas à tradição iorubá nigeriana e outras duas ligadas ao candomblé com sincretismos afro-brasileiros. Eles(as) foram nossos(as) professores(as) e são os(as) principais autores(as) dos capítulos do livro que discorre sobre temas e conteúdos liga- dos às práticas de suas ancestralidades relacionadas ao cuidado e à cura. Além disso, somos sete docentes de quatro universidades públicas (Univasf, UPE, UFCG e UFOP), de diferentes áreas de saúde (psicologia, enfermagem, farmácia e medicina), e 11 estudantes de graduação. Trabalha- mos conjuntamente com nossos(as) autores(as) para adequação do material na publicação em formato de texto, a partir das aulas. Além desta equipe diretamente envolvida, tivemos o impor- tante apoio do ObservaPICS/Fiocruz em etapas relacionadas à finalização do material e para a concretização deste livro. Nesse sentido, este livro traz os saberes ancestrais e as práticas de curas a partir das transcri- ções das falas dos(as) palestrantes e mediadores(as) e dos afetos produzidos em cada encontro on-line, contando ainda com algumas perguntas enviadas por participantes que acompanhavam as aulas. São textos que privilegiam o protagonismo das vozes silenciadas e apagadas face ao academicismo-cientificista hegemônico. Isso implica em ser fiel à linguagem conectada ao sen- tir-pensar, corazonar, assegurando uma estilística poÉTICA do escrever, e porque não dizer do existir. A organização deste livro, da forma como está apresentada, solicita de cada leitor um mergulho nas “ondas de saberes, afetos e encontros” que os textos carregam. Rompe com uma lógica estruturada de texto literário e/ou técnico-científico. Apoiamo-nos na linguagem e no sa- ber ancestral do amor, enquanto ética do cuidar transpassada na palavra-ação de cada autor(a) deste livro. Até porque, como nos dizem Deleuze e Guattari, no volume 1 da obra Mil Platôs: Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito. Um livro tam- pouco tem objeto. [...] Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou signifi- cante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.11). Nesse contexto, o objetivo principal desta produção foi sistematizar e fortalecer a profundi- dade do conhecimento produzido ao longo das aulas do curso, contribuindo para maior visibili- dade dos saberes ancestrais de matrizes indígena e africana, no tocante ao campo da saúde e do cuidado com a vida. A proximidade com a oralidade na estética do texto, honra e converge com a forma destes povos ancestrais de produção e transmissão de seus saberes. 23 Cabe destacar que o processo de produção de cada capítulo envolveu diferentes etapas. Em um primeiro momento foi feita a transcrição da videoaula. Em seguida, este material foi repas- sado aos(às) autores(as). Nesta fase, em muitos casos foram feitos encontros por videochamada, ou conversas telefônicas, entre os(as) organizadores(as) do livro e os(as) autores(as) de cada ca- pítulo, realizando leitura conjunta quando necessário e fazendo ajustes ao documento. A partir de então, demos início a um trabalho de adequação da transcrição em formato de diálogo (o mais fidedigno possível) ao vivido no curso de saberes ancestrais, e, em alguns casos, optou-se pela estruturação em um texto contínuo que preservasse as principais contribuições expostas no curso. Com base no tempo, disponibilidade e interesse de cada autor(a) em realizar as adequações no material, fomos finalizando cada capítulo em um mutirão, envolvendo toda a equipe. Este processo durou cerca de um ano, entre idas, vindas e encontros on-line para a finali- zação do texto que está disponível agora para vocês. Desejamos que esta obra seja uma contribuição ao amplo debate de decolonização com foco no campo da saúde e processos de formação e cuidado humano. Foram desenvolvidos diversos temas nos diferentes capítulos da obra: a medicina ancestral indígena; interculturalidade e saúde; raízes e ervas nas práticas de cura de matriz indígena e afri- cana; a força comunitária na prática do cuidado ancestral, espiritualidade nos processos de cura; medicina da jurema; experiências de cuidado e cura durante a pandemia de Covid-19. A singularidade das experiências e culturas trazidas ao longo dos capítulos produzem uma profusão de reflexões para se pensar uma política cósmica. Neste locus da política cósmica, po- demos questionar nossas bases colonialistas para pensar a saúde e os processos de cura, bem como, despontar para reflexões criativas e diversas sobre a necessidade de mudanças que preci- samos buscar. No Iorubá diz-se que o futuro é ancestral, portanto, ouvir a voz da ancestralidade por estes(as) representantes, com os quais aprendemos ao longo do curso e aqui no livro, suscita pensar que precisamos nos envolver mais profundamente com a natureza em sua polissemia cósmica. Do lugar de organização deste livro consideramos o caráter inovador (não apenas tecnológico, mas especialmente ancestral) e decolonial deste trabalho. Ailton Krenak fala de um reflorescimento dos saberes ancestrais e nos lembra oportuna- mente a necessidade de reconhecimento de que fazemos parte de um movimento maior e nosso desejo é de que a busca por estes saberes possa continuar em rede, em teia, cultivando e disse- minando a preciosidade deste movimento. 24 Sentimos-nos esperançosos(as) e convictos(as) de que estamos ajudando a construir o que virá. Outras vidas, outros possíveis, outra universidade… Nesse sentido, o curso de extensão universitária que levamos a cabo na experiência que re- sultou este livro, se enquadra perfeitamente no que vem sendo denominado de “ecologia de sa- beres” por Boaventura de Sousa Santos: É algo que implica uma revolução epistemológica no seio da universidade e, como tal, não pode ser decretada por lei. A reforma deve apenas criar espaços institucionais que facilitem e incentivem a sua ocorrência. A ecologia de saberes é, por assim dizer, uma forma de extensão ao contrário, de fora da universidade para dentro da universidade. Consiste na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico,que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental etc.) que circulam na sociedade (SOUSA SANTOS, 2011, p.75). Pretendemos ainda que este curso e este livro possam semear a ideia da construção de um coletivo de pesquisadores(as), usuários(as) de serviços de saúde e de outras políticas públicas, praticantes de saberes ancestrais no Brasil, constituindo a ideia de uma rede, de uma aldeia, de uma Teia de Saberes Ancestrais e Cura Integrativa, que nomeamos de Teia Saci. Mais do que uma rede, constituir uma aldeia, uma teia, é construir laços de reciprocidade, de corresponsabilidade, proteção e cuidado mútuo, compartilhando territórios subjetivos de pertencimento, como toda aldeia, pluralizando apostas e caminhos que possam romper com o epistemicídio e a monocultura de subjetividades, diversificando as plantações e cultivos de sa- beres, bioepistemediversidades que possam ir além de um saber hegemônico que se pretende globalitário, totalizante, universal. Que todas as formas de existir, todos os modos ancestrais de existência, todos os saberes, sentires e viveres tradicionais estejam justificados pela continuidade da pluralidade e da multi- plicidade da vida, modos que a própria vida constrói, busca e experimenta em seus caminhos e descaminhos de continuidade. Para que a vida continue plural e sempre. Permitindo as mais múltiplas e variadas vocalizações. Amplificando tonitruantes vozes e falas silenciadas, amordaçadas, apagadas. 25 Das falas sem lugar para os lugares de fala. Da voz sem vez para a vez das avós. Temos a alegria de neste momento estarmos juntos(as) nesta travessia e desejamos que se sintam em casa, que sejamos agentes necessários(as) em nossa casa comum e que possamos agora refletir, aprender e agir com nossos(as) sábios(as) sobre nossa ancestralidade e seu poder de cura. REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. S. C. et al. International Classification of Diseases – 11th revision: from design to implementation. Revista de Saúde Pública [on-line], São Paulo, v. 54 , n. 104, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rsp/article/view/179928. Epub 09 nov. 2020. ISSN 1518-8787. Acesso em: 15 fev. 2022. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019 [recurso eletrônico] – Brasília: Ministério da Saúde, 2020. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. 94 p. (Coleção TRANS). GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/ sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 25-49, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102- 69922016000100003> Acesso em: 15 fev. 2022. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003 https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003 26 KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. SOUSA SANTOS, B. A Universidade no século XXI: por uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2011. p. 75-76. 27 Por trás das cortinas virtuais, o caminhar da monitoria no curso Joséfran Zumba de Oliveira Lia Santos de Sousa Maria Luíza Sousa de Albuquerque Gabriel Farias Diniz Fabíola Pâmella Batista da Silva 28 Isolados geograficamente devido à pandemia de Covid-19, mas não totalmente afastados graças à tecnologia, surge um convite-proposta de nos juntarmos a um grupo de professo- res de distintas universidades (UFCG, Univasf, UPE e UFOP), como monitores do curso de extensão Saberes Ancestrais e Práticas de Cura, encarregados da parte técnico-burocrática. Com mais de 20 mil inscritos espalhados por todo o Brasil e diversos outros países, em março de 2021, nos vimos frente a um desafio instigante: compartilhar saberes ancestrais através da internet, conectar pessoas e estarmos juntos, mesmo distantes. Cada encontro, propiciado pela colabora- ção institucional e também pelos vínculos interinstitucionais, fortaleceu redes e ampliou nosso alcance. A constante comunicação entre o grupo de monitores e o de professores, revezando-nos em funções, compartilhando sugestões e elucidando as dúvidas que iam surgindo ao longo do percurso foi essencial. Foi uma jornada construída a muitas mãos. Fazer parte dessa construção coletiva de interculturalidade, de tantas discussões e reflexões acerca da cura e ancestralidade muito reverberou em nossa formação. Como aponta Grosfoguel (2012), o cânone do saber nas universidades ocidentalizadas é baseado no conhecimento pro- duzido sócio-historicamente por homens brancos ocidentais, oriundos principalmente da Itália, França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, de modo que as epistemologias Norte-cêntricas com seu pretenso caráter universal monopolizam a autoridade do saber no mundo. No caso do Brasil e demais países ladino-amefricanos, esse privilégio epistêmico só foi pos- sível a partir do genocídio de povos originários durante a colonização das Américas, da África e posterior escravização das populações africanas na América ao longo do século XVI, que culmi- nou na destruição de conhecimentos ligada à eliminação de seres humanos. Ou seja, um episte- micídio, com a tentativa de aniquilação de culturas, histórias e saberes por meio do assassinato de seus povos, espoliação de seus territórios e da conversão forçada dos sobreviventes à sua reli- gião, línguas e modo de vida. Como fruto desse processo, hoje, na estrutura do pensamento pro- duzido nas universidades ocidentalizadas, ainda hoje há o racismo epistêmico, isto é, os saberes acumulados por milhares de anos pelos diversos povos originários do Sul global enfrentam uma inferiorização epistêmica, havendo assim uma enorme lacuna quanto a eles (GROSFOGUEL, 2016). Dessa forma, a aproximação de cosmovisões oriundas de epistemologias ladino-amefrica- nas2 foi uma experiência atravessadora, de se sentir estrangeiro em sua própria terra, e, ao mes- mo tempo, se reconhecer na figura estranha à nossa realidade tão colonizada e ocidentalizada. Foi um processo de desterritorialização para reterritorializar, pôr os pés no chão e encontrar ca- 2 Para conhecer mais sobre o tema, visitar a obra de Lélia Gonzalez. 29 minhos outros, transpassados por lógicas diferentes das que nos deparamos na academia, que seguem outras racionalidades e, por que não, outras afetividades. Em vários momentos ao longo do curso, sentimos que todas e todos foram acolhidos pelos convidados e convidadas os quais cuidavam de nós a partir de um sorriso, uma bênção, nos respondendo com atenção e carinho, nos enviando fumaça sagrada através do ar que saía de seus pulmões em nossas direções, mes- mo que entre telas. Aqui, conhecemos a medicina das florestas e dos terreiros; buscamos descolonizar nossos saberes enraizados em práticas, muitas vezes, distantes desses povos; descobrimos raízes em sua literalidade, que curam, que abrem caminhos para o conhecimento, para o cuidado, para o respeito às práticas milenares que falam também sobre um movimento de construção de vín- culos, afetos e laços comunitários que ampliam e se somam às práticas de promoção de saúde. Nessa perspectiva, transpassar os muros da academia com práticas e saberes ancestrais indi- ca uma tentativa de ressignificação do propósito da universalidade, que alicerça nossas institui- ções públicas de educação superior e o nosso Sistema Único de Saúde (SUS) como princípio fun- damental, mobilizando para uma subversãodessa visão que historicamente coloca o homem branco como ser universal. É pensar, então, em algo que faça mais sentido ao tentar abarcar tanta diversidade e amplitude de concepções de mundo e de saberes, isto é, a pluriversalidade como um caminho possível. Falar da necessidade de descolonizar o pensamento nas universidades é, portanto, ampliar o olhar para conhecimentos oriundos de outras epistemologias e inserir nas nossas formações diferentes propostas de cuidado e saúde, em contraposição ao um saber hegemônico. Assim, de monitores passamos também a alunos ávidos por acompanhar o conhecimento apresentado em cada aula, conscientes de que não podemos mais aceitar o epistemicídio diário que acontece nas práticas acadêmicas e de profissionais de saúde quando incorporam e transpõem visões coloni- zadoras de vida, de mundo e de corpos. Nessa direção, a grande adesão ao curso sinaliza para nós a falta de acesso a esses conhecimentos e, ao mesmo tempo, o interesse por eles, trazendo fôlego perante um momento tão difícil, cenário de diversos desmontes relacionados às políticas sociais e demais conquistas coletivas - fruto de lutas históricas, além da política de morte inten- sificada no país. Sabemos que as estruturas de controle dos corpos, isto é, o biopoder, em termos foucaultia- nos, sob corpos não-brancos, se atualizam e o Estado segue utilizando seus tentáculos racistas para materializar esse controle, legitimando a morte dessas populações. Mbembe (2016) aponta para essa problemática denominando-a necropolítica. Os corpos negros que ocupam lugares pe- riféricos são vulnerabilizados e marginalizados, se deparando constantemente com a ameaça da 30 morte. Os corpos indígenas veem sua cultura e qualidade de vida vilipendiadas constantemente em nome de poder, lucro e exploração. Esse contexto, portanto, tem evidenciado ainda mais a negligência do Estado e, diferente- mente de outros cenários em que se faz morrer, a exemplo do extermínio da população negra através da violência policial ou da população indígena por conflitos decorrentes da apropriação de terras que a ela pertence, no caso da Covid-19, deixa-se morrer, dá-se condições para que a morte aconteça, principalmente através da precarização da saúde pública e da falta de suporte financeiro e proteção social. Nesse sentido, a aposta na construção de um saber coletivo e an- cestral em toda sua força, se apresenta como potência de vida frente a tais políticas de morte. Principalmente no interior de campos tão enrijecidos e hierarquizados, como, por vezes, é o caso da academia, é um passo importante em direção a um fortalecimento dos povos e das políticas sociais, bem como a uma promoção de saúde que não seja simplesmente um fim em si mesma, uma série de atos pontuais e desarticulados, mas um processo constante que tem nos laços so- ciais e na potência dos encontros o alicerce de sua força. Os saberes transmitidos ao longo desse curso, hoje ganham eco nas linhas deste livro, nos direcionam para o papel incontornável da comunidade na construção do cuidado, é o mais con- tundente apontamento de que o cuidado de si e o cuidado do outro são faces da mesma moeda. Em tempos neoliberais, de culto ao individualismo e à competitividade, resgatar a força dos en- contros e a potencialidade dos vínculos comunitários não constitui apenas uma outra via para se (re)pensar as inquietações de nossa época, mas constitui, sobretudo, um ato de resistência ativa contra a barbárie. A caminhada até aqui muito agregou à nossa formação ético-estético-política, por isso so- mos extremamente gratos pela oportunidade de sermos aprendizes por um dia de tantos mes- tres, professores, sábios e sábias oriundos de diversas etnias, territórios, povos e culturas. Debru- çar-nos sobre este curso e destrinchar cada palavra para transcrever este livro proporcionou - e proporciona - movimentos internos que nos levaram - e seguem nos levando - a lugares inima- gináveis: ruminar, sentir e ser afetado por cada tom de indignação, tristeza, alegria, força, cora- gem, saudade, respeito e amor na fala dos convidados. Poder aprender a escutar e ouvi-los nos orienta à diversidade que as dimensões da cura, da doença, da saúde e, sobretudo, da vida carregam em si e, ainda, como essas mesmas dimensões estão conectadas com a nossa ancestralidade e o modo que escolhemos diariamente gerir nos- sas vidas. É de grande importância compreender como é possível dialogar, no dia a dia de nossas futuras práticas profissionais, no âmbito dos dispositivos e serviços de saúde; como respeitar e 31 valorizar esses saberes nas comunidades às quais estamos inseridos; e como as pessoas e as re- lações que as constroem são dotadas de tamanha pluralidade. Dito tanto, e ainda tão pouco diante da riqueza dessa experiência e dessas aulas, é um de- sejo comum entre nós que as palavras contidas neste livro possam curar o que puder ser curado com elas, fazendo pulsar questionamentos perante a vida cotidiana (e nos arriscamos acreditar que há muito a ser repensado) e que possam encantar e tocar de alguma forma cada um, guian- do todas e todos em busca de um cuidar coletivo, compreendendo a rede complexa de relações em que se inserem e que constitui cada um e cada uma de nós. REFERÊNCIAS GONZALEZ, L. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: RIOS, F.; LIMA, M. (org.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 127-138. GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/ sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 25-49, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102- 69922016000100003. Acesso em: 15 fev. 2022. ______. The dilemmas of ethnic studies in the United States: between liberal multiculturalism, identity politics, disciplinary colonization, and decolonial epistemologies. Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge, v. X, n. 1, p. 81-90, 2012. MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, nº 32, p. 123-151, 2016. Disponível em: https://www. procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf . Acesso em: fev. 2022. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003 https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003 https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf 32 Práticas indígenas de cuidado Ailton Krenak 33 Nesta primeira aula 3 do curso de extensão Saberes Ancestrais e Práticas de Cura, a histó- rica liderança indígena Ailton Krenak, fundador da União das Nações Indígenas (UNI) e da Rede Povos da Floresta, pensador e autor consagrado de livros como Ideias para adiar o fim do mundo, convidou para abrir os trabalhos seu amigo de longa data do movimento indígena brasileiro, Álvaro Doétiro Tukano, que realizou alguns cânticos sagrados, rezas e defu- mação, da tradição Yepamahsã. AILTON KRENAK Gratidão, Álvaro, por estar aqui trazendo esse canto, que introduz um ritual que poderia se estender até a noite e virar o amanhecer, como nós já tivemos a oportunidade de realizar juntos com os nossos parentes, com os nossos amigos, no Memorial dos Povos Indígenas, quando fize- mos a série de encontros que nós chamamos de moitará, uma experiência de aproximação e de promoção da troca intercultural. Foi um presente que você nos deu, a todos e todas. Eu quero agradecer ao nosso querido Ricardo Moebus, que está coordenando nossa atividade ao inaugu- rar o que está configurado como a oferta de um curso em extensão e que as universidades que se constituíram em rede para criar essa oportunidade, abrir esse espaço, a nossa gratidão a todos. Aos nossos queridos que nos antecederam na fala, abrindo esse cerimonial e a cada um de vocês que estão agora em modo remoto, como nós já fomos noticiados, nós temos algumas cen- tenas, milhares de pessoasque se inscreveram para este programa que vai se estender ao longo das próximas semanas, com a oportunidade de encontros que incluem a passagem por aqui do nosso querido Doétiro, que fez esse canto de consagração da nossa rede de pessoas afetadas por esse sentimento de cura, de autocura, de cuidado de si e cuidado do outro, que nos dá a oportu- nidade de pensar como será também a presença do nosso querido João Paulo Tukano aqui, tra- zendo a sua experiência do Centro de Medicina Indígena, que atua a partir de Manaus, naquele território conflagrado, naquele território com sobreposição de crises políticas, sanitárias e tam- bém sociais, por que não dizer? Porque tem se incidido sobre aquele território da Amazônia um verdadeiro derrame de desastres, então, espero que aquele povo, nossos irmãos da Amazônia recebam nosso abraço, nosso afeto, nosso carinho. A todos aqueles que estão passando pelo sofrimento mental também, e alguns que foram afetados pelo contágio direto da Covid-19, estão sofrendo as consequências econômicas, sociais e políticas dessa crise que nós estamos todos imersos há mais de um ano. Nosso carinho e nossa solidariedade, e como o nosso querido Álvaro Tukano já concedeu esse sopro de alento que 3 Link do vídeo aula: https://www.youtube.com/watch?v=FEnc2arDpJg https://www.youtube.com/watch?v=FEnc2arDpJg 34 invoca a floresta, e que invoca, de dentro da floresta, a força da ancestralidade, os saberes, as práticas, que vão ser matéria para estes nossos encontros que se abrem com essa oportunidade e que me honra muito fazer essa fala. Eu quero convidar a todos para que a gente se predisponha a um exercício de busca da plu- ralidade epistemológica do mundo, no dizer do Boaventura de Sousa Santos, que é o gesto de nos descolarmos de uma ontologia cravada por uma ideia de que o mundo é limitado, de que o mundo está refém de crises e de danos e essa sociologia do desastre, que foi se configurando ao longo da nossa história comum, dos povos de vários continentes e que ainda se configuram nes- te momento que nós estamos confrontando, ele pode ser também uma grande oportunidade para que nós façamos o movimento de nos abrir para outras epistemologias, que nós possamos ser capazes de desejar, de verdade, um movimento de confluências; voltando à visão do nosso querido pensador quilombola Nêgo Bispo. O Nêgo Bispo invoca a ideia de confluências quando a gente experimenta a complexidade, quando experimentamos uma situação que, se nós não tivermos sabedoria, paciência e disposi- ção para transformar essa experiência em confluências, nós vamos viver um estado de desalen- to, de confrontação e de negação, essa mesma experiência de negação que está causando tanta dor, tanto sofrimento a pessoas, não só no continente americano, mas no mundo inteiro. Vivemos em um mundo abismado com sua própria jornada. Isso pode ser uma oportunida- de para nós nos abrirmos para outros mundos, como é a ideia de pluralidade epistemológica do mundo que possibilita, por exemplo, a gente invocar outros saberes, invocar outras cosmovisões, onde a ideia da vida pode ser a afirmação de uma experiência tão maravilhosa que aquela con- tagem, ou aquela estatística que o Alexandre nos apresentou, a qual mostra a perspectiva de uma humanidade assolada por novas doenças, e doenças crônicas, e por novas pandemias, fica parecendo o único cenário futuro possível, quando na verdade, nós podemos, no presente, no agora, invocar a experiência de uma vida que pode ser afirmada como uma vida produtora de vida, com uma capacidade universal de cada pessoa produzir, de dentro de si, essa explosão de vida, onde a ideia da doença, e a ideia dos estados de morbidade que são percebidos como uma segunda capa da nossa experiência da vida, ela pode ser confrontada com as luzes que surgem de um desejo profundo da vida. Eu fiz um ensaio que ganhou o título de A vida é selvagem. Esse texto afirma que a experiência da vida pode ser uma fruição sem o medo constante que a cultura da enfermidade, da hiper-hi- gienização, a cultura medicamentosa que nós fomos gradualmente integrando na nossa própria visão de mundo, e na nossa própria ideia de que somos vulneráveis e que estamos diante de uma espécie de caos cósmico, onde tudo que pode ser danoso, também é possível ser diagnosticado, 35 ser identificado com algum título de enfermidade, com algum diagnóstico, quando na verdade, para aqueles que têm memória, que conseguiram de alguma maneira trazer consigo as referên- cias de seus ancestrais, e que vivem uma experiência permanente de troca com outros seres não- -humanos, se firmam na confiança de que os Encantados têm a potência de mediar essa relação de mundos e nos potencializar para a experiência do cuidado ou da cura como uma capacidade intrínseca de cada pessoa. É como se nós estivéssemos pondo em questão a ideia de que esses maravilhosos seres humanos que constituem hoje, em vários lugares do planeta, aqueles que põem os seus corpos entre o vírus, a nossa vida e o nosso corpo, esses profissionais da saúde que nós valorizamos muito, eles não precisavam ser apenas uma legião de anjos tentando combater um mundo doente, mas eles poderiam ser uma imensa constelação de pessoas não especializadas, no sentido de que a saúde não é uma experiência que alguém gerencia, não é exatamente produto de uma engenharia, mas é sim o fluxo da própria experiência de viver na Terra, de conhecer a Terra como fonte de vida, no sentido de nos proporcionar o ar, a água que tanto serve à nossa saúde, mas muitos de nós aceitam a sua customização e apropriação como uma commodity, como uma coi- sa que pode ser vendida, que pode ser negociada, da mesma maneira que a água vem sendo apropriada e transformada em mercadoria, nós somos alertados pelo nosso querido xamã Davi Kopenawa Yanomami, de que essa sociedade contemporânea se constitui em uma sociedade da mercadoria, “povo da mercadoria”, no falar do Davi Kopenawa. Será que a saúde, a ideia da saúde não foi também embolsada por essa perspectiva mercan- til de que ela é alguma coisa que pode ser gerenciada, que pode ser administrada e que pode ser contabilizada pelos humanos? Isso não seria um sequestro de algo que é um bem natural, um bem comum de todos os seres, inclusive os humanos? Ter a vida em abundância, a experiência da vida potente, a vida como produção de vida, onde a possibilidade de alguém adoecer acon- tece em outros campos, acontece inclusive nos campos da subjetividade, não exatamente nes- se aprisionamento de corpos que a visão moderna, contemporânea, nos encaixa desde criança, desde a mais tenra idade alguém tem a sua experiência da vida gestionada por um sistema que é movido por um conjunto de práticas que constituem uma engenharia da vida, e que edifica uma certa ideia sobre a vida fora da terra, da água, do vento, fora daqueles elementos que constituem tudo o que nós sabemos que é potência de vida. O afastamento dos humanos dos outros seres não-humanos é uma das razões primárias da- quilo que nós chamamos de adoecimento. O nosso estado natural é saudável. Todo ser humano nasce saudável, mesmo aqueles que podem ser observados no campo das relações culturais, so- ciais, como portador de alguma necessidade especial, a vida que ele contém é aquela que uma 36 semente saudável chega ao planeta para florescer, para explodir em vida, para expressar vida, toda a vida do planeta tem esse maravilhamento, e nós podemos experimentar esse maravilha- mento. Quando nós falamos de práticas de cuidado, saberes de cuidado e cura, nos referindo aos an- cestrais, nós estamos evocando uma relação onde os humanos e todos os outros seres existentes, vegetais e minerais, estão inter-relacionados, estão vivendo a experiência da interdependência. A minha saúde não é alguma coisa externa ao meu ser. O meu bem-estar é produzido dentro dessa experiência radical de um ser que tem a consciência de estar vivo e que quer compartilhar a vida com todos os outrosseres. O antropocentrismo pode ser combatido dentro da nossa própria experiência da vida, quan- do nós nos afetamos com tudo que está ao nosso redor. A Terra é o remédio mais potente. Esse organismo maravilhoso da Terra é a produção de vida, e nesse organismo nós só podemos pro- duzir vida, não é possível eu produzir algo que não seja a potência da vida, se nós estivermos no fluxo dessa produção de vida que Gaia, esse organismo maravilhoso que foi de alguma forma silenciado, invisibilizado, separado da nossa experiência cotidiana, muitas vezes desde a mais tenra idade. Nós temos cerca de 70% a 80% das pessoas vivendo no planeta inteiro, amontoadas em grandes cidades ou em reprodução dessa experiência das metrópoles em cidades que mesmo sendo menores, com população de cem, 200 mil pessoas, reproduzem cotidianos estéreis e se- parados da vida na Terra. As crianças são instruídas a não se sujar na terra, essa hiper-higienização da vida pode estar na base de muito incômodo, daqueles incômodos que alguns de nós considera adoecimento do corpo e do espírito. Pensar nas práticas ancestrais de cura e de cuidado implica se abrir para outras epistemolo- gias no sentido de invocar também outras potências curativas, para além daquelas práticas que seriam manipuladas exclusivamente pelos humanos, nós invocamos a potência das plantas me- dicinais, invocamos a potência de todos os seres que nós não convivemos na nossa rotina diária, mas que nas práticas comunitárias, nas práticas de cuidado que as comunidades experimentam, desde manter um jardim no quintal, onde as plantas que usam para fazer chá, unguentos, ben- zeções e remédios estão ao alcance da vida doméstica, no jardim de cada casa, longe daquela ideia de uma farmácia e de um repertório medicamentoso, onde as pessoas precisam ficar em linha direta com uma estrutura que administra a ideia de bem-estar e de saúde. É uma produção de mundo onde o nosso fluxo vital fica plugado a um complexo tecnológico, a um aparato pro- 37 fundamente controlado por sistemas alheios ao nosso cotidiano e à simplicidade da vida, que muitas comunidades perseveram. As comunidades indígenas, as comunidades de terreiro, os quilombolas, os ribeirinhos, os povos da floresta pensam e veem na Mãe Terra o seu grande acervo de recursos que podem ser mobilizados em favor do bem-estar, em favor do bem-viver, como uma experiência fluente, não como algo estanque, mas que se atualiza o tempo inteiro, de acordo com as topologias que nós somos capazes de experimentar em cada contexto, em cada lugar onde nós vivemos. A vida é selvagem, no sentido de que toda tentativa de domesticação da vida só pode ex- pandir o campo dos diagnósticos e das categorias de enfermidade. Porque a vida escapa mara- vilhosamente a qualquer designação, a qualquer adjetivação. A vida é um dom. Nós precisamos experimentar a vida nessa perspectiva, e em um tempo em que somos desafiados por novas pandemias e por novas situações de adoecimento que nem sabemos diagnosticar. Seria muito bom pensar a confluência entre os saberes dos nossos ancestrais e aquelas práticas cotidianas que nós ainda guardamos nos seios de diferentes culturas dessas comunidades consideradas clientela do sistema ocidental de saúde, do cuidado médico, hospitalar. Espero que a gente possa ouvir, abrir a nossa escuta a todas as potências das diferentes capa- cidades que os humanos, associados aos Encantados, com a potências dos nossos pajés, dos nos- sos curadores, dos nossos mestres dos saberes, que de dentro das suas culturas, que são culturas ancestrais, sejam capazes de invocar a partir de outros curadores, para além daqueles que nós somos capazes de reconhecer, sem criar uma acomodação no campo da tradução, da interpre- tação, e achar que essas práticas só servem para eles porque estão vivendo na floresta, em uma pequena comunidade. Assim, a experiência de superação de um problema que pode ser, desde um envenenamento até um acidente que pode causar um braço quebrado, uma perna ou causar uma hemorragia, eles conseguiram dar conta porque naquele contexto específico, eles puderam recorrer a algu- mas práticas que incluem a fé, que incluem a crença naqueles processos, e houve ali um evento que une a capacidade imaginativa daquelas pessoas, a crença delas e o auxílio de uma planta, do conhecimento de uma erva ou de um inseto que pode servir para compor uma terapêutica que teve resultado suficiente para aquela situação. Nós vivemos em um mundo complexo e essas práticas não dão mais conta da complexidade da vida e dos riscos que nós vivemos ou dos riscos sanitários onde vivemos. Por isso, nós invoca- mos aqui a potência de uma superestrutura, a Organização Mundial da Saúde vai dar as diretri- zes, as orientações, os protocolos, para que a gente possa se enquadrar na comunidade global, 38 assolada por danos, e que possa ser assistida por um complexo de engenharia da medicina ou de um aparato que sempre vai exigir mais atualização, ao ponto de muitas das atividades que antes eram ofertadas pelo atendimento de um médico de família, hoje são feitos diagnósticos à distância ou simplesmente atendimentos feitos por meio de aparatos tecnológicos, dispositi- vos de inteligência artificial. Hoje, muitos diagnósticos, isso que nós chamamos de medicina, da medicina ocidental, são feitos por robôs. Então, nós estamos renunciando à nossa herança ancestral, à nossa capacidade de nos curar, de autocura, para que um mundo dependente de tecnologias e dominado por uma mentalidade extremamente capitalista, no sentido mercantil mesmo, da vida e da saúde, nos oferte novas alternativas, novas perspectivas sobre a vida, a saúde, sobre como vamos seguir a partir deste momento que é o presente, que é esta maravilha de sabermos que nem o passado nem o futuro pode nos assegurar nada, mas que a experiência do presente pode ser a plataforma para nós pensarmos outros mundos e pensarmos o que nós descartamos de saberes que nos permitiram chegar ao século XXI com uma sociedade tão plural, tão complexa, e que agora está diante de um enigma. Como vamos dar conta de alimentos saudáveis para as pessoas, para que esse ali- mento seja também remédio? Alguns de vocês já devem ter visto pequenos livros que mostram plantas que são remédio e alimento, ou alimentos que são remédios. E nós vivemos em um mundo onde o que as pessoas menos observam é o que comem. Existe uma campanha que nos alerta dizendo que o veneno está à mesa, mas nós achamos que essa modernidade, e que essa capacidade infinita de atuali- zação tecnológica, de novas vacinas, de novas descobertas, é um mundo em expansão e que nós devemos atualizar-nos em relação a ele. Eu queria convidar vocês, ao longo desses encontros nas próximas semanas, a considerar a possibilidade de imaginarmos uma cartografia daquelas práticas de cuidado, de cura, das me- dicinas que, por falta de outra palavra, é a que invocamos aqui, das medicinas que podem nos ajudar a fazer a transição de um mundo dependente das drogas, no sentido de laboratórios e novas pesquisas, para um abraço sincero e amoroso com a vida no planeta Terra, onde a floresta produz chuva, alimento, vida. Os oceanos precisam ser percebidos como mananciais de vida e não depósitos de lixo. As florestas devem ser percebidas, cada vez mais, como produtoras de vida para os humanos, e a experiência de reflorescimento das práticas de cuidado dos povos ancestrais devem ser recep- cionadas, pelo menos, com boa vontade. 39 Eu fico feliz de termos tanta gente nos acompanhando na abertura deste curso. O nosso que- rido Ricardo Moebus se referiu a ele também como um seminário, pela natureza deste encontro, que convoca pessoas que não são profissionais do campo da saúde, no sentido de especialistas, mas que são pessoas que vivem a experiência do cuidado de si, do cuidado de outros, a partir de um entendimento que os sujeitos coletivos, todos, pensam sob uma perspectiva coletiva. A saúde e os cuidados coletivoscom a vida. Gratidão pela audiência, gratidão ao querido Álvaro Tukano que abençoou a abertura do nosso encontro. Bom encontro a todos! Ererré! RICARDO MOEBUS Ererré! Gratidão novamente ao nosso querido convidado Ailton Krenak, ao nosso convidado Álvaro Tukano. A gente está aqui, Ailton, com uma série de perguntas que foram sendo feitas no chat durante a sua fala, eu quero já de antemão me desculpar com as pessoas que fizeram essas perguntas, certamente a gente vai selecionar aleatoriamente algumas poucas e nem de perto vamos conseguir abranger as centenas de perguntas que foram feitas, mas vamos citar algumas delas, que são também disparadores para a gente dar continuidade a este debate. Como o Ailton Krenak acabou de apresentar aí na sua vastidão, na sua complexidade, na sua visão sistêmica de que, ao contrário do que alguns poderiam imaginar, quando a gente está falando desses saberes ancestrais conectados às práticas de cura, de produção de cuidado e de vida, não podemos falar disso como uma técnica específica ou como um assunto restrito, mas a gente vai se referindo ao conjunto de uma visão, de uma cosmovisão, de uma cosmogonia que se refere a outros modos de ser e de estar no mundo, e algumas perguntas vão nessa direção: “Bom, mas como é essa conexão entre a saúde individual e a saúde global? Você acha que o adoeci- mento humano está relacionado ao adoecimento do planeta? Está relacionado ao adoecimento climático, da natureza? Mas, como a gente poderia começar a reverter essa situação? Quais são os primeiros passos? De onde a gente começa? Como mudar ou reinventar essa nossa relação com o mundo? E se dirigem especificamente à universidade, perguntam como fazer com que essa universidade tão a serviço do Capital se transforme em uma universidade pluriepistêmica e que reconheça a complexidade da vida e a ecologia dos saberes. 40 AILTON KRENAK Obrigado! Eu fico comovido pela resposta a essas provocações, porque é claro que o que me motiva é exatamente o desejo de pôr em questão o que podemos fazer. Podemos fazer muita coisa, podemos fazer tudo, na verdade. É como se nós chegássemos em uma terra arrasada e a gente olhasse para um lado e para o outro e dissesse: bom, por onde vamos começar? Porque de cara nós sabemos que vamos ter que fazer tudo. Pensando em uma questão que pode ser muito melhor respondida pelos nossos colegas que estão aqui representando diferen- tes instituições, as universidades que estão juntas nessa iniciativa, a gente já podia fazer uma menção ao fato de que nossas universidades, em um momento grave, de crise, foram convocadas a assumir o lugar imprevisível de estabelecer um diálogo com a comunidade extramuros, fora da universidade, fora da academia, e tem feito isso através de um grande número de profissionais da saúde que se habilitaram a chegar diante de uma comunidade muitas vezes negacionista e dizer para ela: Use máscara! Tome a vacina! Evite aglomeração! Essas afirmações, como nós vivemos em uma sociedade hierarquizada, só podem ser feitas por alguém que é reconhecido pelo seu lugar de fala, no caso da universidade, para que ela possa dizer para uma população estúpida, que quer manter o comércio aberto e se aglomerar em cam- pos de futebol e praia: “Olha, isso que vocês estão fazendo é errado. Vocês vão adoecer por causa disso.” Então, esse lugar da universidade está sendo assumido como um risco, porque em uma comunidade do tipo coercitiva que nós estamos vivendo hoje, os profissionais da saúde podiam simplesmente se fingir de estátua e deixar o pau quebrar, mas estão transpondo esse lugar e as- sumindo o risco de confrontar politicamente o negacionismo, a negação da ciência e a negação desse lugar de produção de conhecimento que a universidade se constitui, e a gente não precisa derrubar essas fronteiras para nos chamarmos à confluência, que seria chamar os outros sabe- res, para além daqueles instituídos, para que dialoguem, para que experimentem a cooperação. Este evento que nós estamos fazendo agora, pelo número de pessoas que acolheram a cha- mada, significa que isso está sendo feito, que nós estamos caminhando no sentido de as uni- versidades, as escolas, se abrirem a um diálogo epistemológico, plural, para que a gente possa imaginar pluriversos e com o tempo que temos disponível, nós vamos atuar naquilo que eu men- cionei, que é fazer uma cartografia dos saberes extraciência, no sentido acadêmico, em que nós possamos convocar os saberes dos terreiros, das florestas, dos muitos povos que eu não consigo nem relacionar todos aqui, às vezes, usamos uma expressão que generaliza, mas que maravilha que ela é tão plural que a gente teria que estender uma grande lista para falar desses saberes 41 plurais, dessa competência de memória, de práticas de cura, e afirmar que elas estão presentes, têm potência, e nós podemos contar com isso como uma trilha a ser seguida, e vejo isso, sobre- tudo, como uma esperança. Ela nos anima a conjugar o verbo esperançar. Ao invés de a gente ficar chapado com uma realidade mórbida ao nosso redor, a gente esperança. Não é uma fala só de ânimo, não é só uma fala de quem fala à noite no acampamento, convocando os companheiros à batalha, mas é uma fala de quem tem a esperança firmada em um lugar seguro, na prática. Eu não teria tempo, agora, para contar a vocês uma breve experiência compartilhada com três pessoas que estão neste encontro, o Ricardo, o Álvaro, nosso querido Álvaro Tukano, que abriu o nosso encontro com a cerimônia, e eu mesmo, estávamos em uma aldeia, na floresta, quando tivemos, logo na nossa chegada, um acidente em que uma serpente, com muita leta- lidade, picou o braço de um rapaz, e quando ele foi socorrido e levado até o lugar onde nós es- távamos, ele já estava com uma hemorragia grave e em estado de delírio, daí a ideia era: “Bom, aqui no meio da floresta esse cara vai morrer. Se levar ele para um hospital, eles vão amputar o braço dele, uma parte do corpo dele.”, então o saber das pessoas que estavam naquela floresta, sem sair dali, deram conta de, em 24 horas, pôr o ferido a salvo de uma situação que só podia ir a óbito, com uma perda gradual de sentido e uma necrose comendo seu corpo. Isso foi feito com as plantas que estavam à beira do rio, que o Álvaro tinha observado quando a gente subia de canoa, e que ao ver o risco que estava se passando ali naquele momento, ele recorreu àquelas plantas, preparou o uso delas e invocou a sabedoria que um mestre como ele tem, com os cantos, o sopro, a aplicação direta desses recursos terapêuticos, e ele salvou uma vida, uma vida que tinha sofrido um grave dano e que podia ter morrido. Por isso, quando eu falo da vida como produção de vida, estou me referindo a experiências cotidianas de pessoas que são capazes de produzir a experiência do cuidado em situações-limi- te, e ser capaz de superar. Então, a esperança é um lugar seguro, apoiado na prática, na experiên- cia. Eu creio que respondi de uma maneira muito parabólica a questão apresentada. Fiquem à vontade com a nossa conversa. RICARDO MOEBUS “Ailton, mas se a gente traz esses saberes ancestrais para o ambiente urbano, será que conti- nua tendo a mesma conexão? Continua tendo o mesmo resultado? Como seria essa transcrição, a tradução desses saberes, do ambiente onde eles nascem pro ambiente urbano?”. Essa pergunta 42 me parece que vai ao encontro de uma questão que já foi colocada em outras ocasiões, a questão de quando a gente fala no reflorescimento das medicinas ancestrais indígenas, a gente não está se referindo apenas ao reflorescimento para os povos que se reconhecem como indígenas, mas um reflorescimento que abarca e abrange todo mundo, os indígenas e os não-indígenas. AILTON KRENAK Ricardo fez uma síntese do que a gente poderia desdobrar em comentários. Nós temos uma realidade social envolvendo a relação dessas comunidades tradicionais com as universidades, com os centros de pesquisa e a difusão do conhecimento sobre