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LLPT_TopicosdeLiteraturaPortuguesa_impresso-76


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Preocupado em entender o mundo humano e sua impressionante 
capacidade de produzir o mal, Saramago tem usado tanto Portugal quanto 
o cristianismo como metáforas da natureza humana e de sua forma de 
organização social, as quais, apesar de discursos e instituições que pregam 
a paz, o amor e a beleza, parecem estar destinadas a reproduzir a miséria e 
a opressão. 
É nesse sentido que o romancista português retoma a vida de Jesus 
Cristo (e, sem dúvida, o estímulo eciano de A relíquia) para fazer um acerto 
de contas com os fundamentos de uma das tradições formadoras do 
Ocidente, a doutrina cristã, escrevendo O evangelho segundo Jesus Cristo. Se 
em A relíquia, Eça de Queirós desconstrói o mito fundador do cristianismo, 
propondo que a verdade histórica foi falseada, em seu romance publicado em 
1991, Saramago humaniza por completo a figura de Jesus e cobra dele, e dos 
homens que ele idealmente representa a responsabilidade e a decisão de 
assumir seu próprio destino e mudar positivamente o nosso mundo.
O Jesus saramaguiano nasce e cresce sob o signo de um crime, do qual 
ele não foi o autor, mas foi o motivador: a matança dos inocentes. Só que 
nesse novo evangelho o grande culpado não é Herodes e sim José, pai do 
menino Jesus, conforme o julgamento do anjo que fala com Maria pouco 
depois do massacre e com Jesus já em segurança:
INOCENTES
O evangelho de Mateus relata que o rei Herodes, avisado pelos 
magos do oriente que em Belém havia nascido o rei dos judeus, manda 
matar todos os meninos com menos de dois anos que fossem 
encontrados naquela cidade, a fim de que seu reino não viesse a ser 
usurpado (Mateus 2:13-18). 
Disse o anjo, [...] Faltavam estas mortes, faltava, 
antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de 
José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um 
homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que 
cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele 
os cometeram também, é que os crimes dos homens 
bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, 
são os únicos que não podem ser perdoados. Disse 
Maria, Que crime cometeu meu marido. [...] Disse o 
anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez 
desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e 
cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos 
das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito. Disse 
o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o 
carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que 
vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda 
havia tempo para que os pais delas as levassem e 
fugissem. [...] Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, 
Já te disse que não há perdão para este crime, mais 
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