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Preocupado em entender o mundo humano e sua impressionante capacidade de produzir o mal, Saramago tem usado tanto Portugal quanto o cristianismo como metáforas da natureza humana e de sua forma de organização social, as quais, apesar de discursos e instituições que pregam a paz, o amor e a beleza, parecem estar destinadas a reproduzir a miséria e a opressão. É nesse sentido que o romancista português retoma a vida de Jesus Cristo (e, sem dúvida, o estímulo eciano de A relíquia) para fazer um acerto de contas com os fundamentos de uma das tradições formadoras do Ocidente, a doutrina cristã, escrevendo O evangelho segundo Jesus Cristo. Se em A relíquia, Eça de Queirós desconstrói o mito fundador do cristianismo, propondo que a verdade histórica foi falseada, em seu romance publicado em 1991, Saramago humaniza por completo a figura de Jesus e cobra dele, e dos homens que ele idealmente representa a responsabilidade e a decisão de assumir seu próprio destino e mudar positivamente o nosso mundo. O Jesus saramaguiano nasce e cresce sob o signo de um crime, do qual ele não foi o autor, mas foi o motivador: a matança dos inocentes. Só que nesse novo evangelho o grande culpado não é Herodes e sim José, pai do menino Jesus, conforme o julgamento do anjo que fala com Maria pouco depois do massacre e com Jesus já em segurança: INOCENTES O evangelho de Mateus relata que o rei Herodes, avisado pelos magos do oriente que em Belém havia nascido o rei dos judeus, manda matar todos os meninos com menos de dois anos que fossem encontrados naquela cidade, a fim de que seu reino não viesse a ser usurpado (Mateus 2:13-18). Disse o anjo, [...] Faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. [...] Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito. Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem. [...] Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais 73