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LLPT_TopicosdeLiteraturaPortuguesa_impresso-77


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depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, 
mais depressa se perdoará a um traidor que a um 
renegado. (Saramago 1999:115-6.)
O anjo de Saramago não perdoa a omissão e a covardia do homem 
comum, o tal “homem bom”. E Jesus, durante sua juventude e maturidade, 
também não se perdoará por ter sido a causa dessas mortes e, 
principalmente, porque a sua única morte teria poupado a vida de todos os 
demais meninos. Sua missão evangélica será em parte motivada pela 
tentativa de reparar tamanho crime. E a culpa de Jesus será 
instrumentalizada por um Deus brutal que se servirá do sacrifício daquele 
homem para expandir sua adoração até os confins da terra. Respondendo a 
Jesus, que perguntará se Ele não estaria satisfeito com a adoração dos 
judeus. Deus responde:
Estou e não estou, ou melhor, estaria se não fosse 
este inquieto coração meu que todos os dias me diz 
Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de 
quatro mil anos de trabalho e preocupações, que os 
sacrifícios nos altares, por muito abundantes e 
variados que sejam, jamais pagarão, continuas a ser o 
deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte 
diminuta do mundo que criaste com tudo o que tem 
em cima, diz-me tu, meu filho, se eu posso viver 
satisfeito tendo esta, por assim dizer, vexatória 
evidência todos os dias diante dos olhos, Não criei 
nenhum mundo, não posso avaliar, disse Jesus, Pois 
é, não podes avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a quê, 
A alargar a minha influência, a ser deus de muito mais 
gente, Não percebo, Se cumprires bem o teu papel, 
isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou 
certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de 
séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas 
contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus 
dos que chamaremos católicos, à grega, E qual foi o 
papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, 
meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para 
fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé. (Ib., p. 
369-70.)
Uma vaidade muito humana e cruel é o que leva a Deus a sacrificar 
aquele a quem diz ser seu próprio filho. Mas o pior ainda estava por vir, a fim 
de realizar a tal expansão dessa religião, milhares de outros homens 
seguidores do Cristo martirizado serão torturados e mortos por seus 
opositores, ou se martirizarão por suas próprias mãos, acreditando estar 
fazendo a vontade divina, ou ainda torturarão e matarão outros milhares 
pelo mesmo motivo (cf. ib., p. 377-89). Assim, o jovem judeu, torturado pela 
culpa de dezenas de crianças mortas por ele não haver dado sua vida em 
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