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DESIGN, CULTURA E SOCIEDADE AULA 4 Prof.ª Cristiana Miranda 2 CONVERSA INICIAL Olá! Seja bem-vindo(a). O objetivo desta aula é estudar as relações entre os aspectos culturais do indivíduo, do grupo social e da nação com o design. Os temas abordados serão: • Design, identidade do usuário e perfil do público-alvo; • Design e herança cultural; • Design e transculturação; • Design e inclusão de minorias físico-cognitivas; • Design e identidade nacional. CONTEXTUALIZANDO Com tantas informações novas se integrando aula a aula, acreditamos ser necessário comentar alguns conceitos para facilitar o entendimento e a comunicação entre nós, professor e aluno. Veja: • Genótipo e fenótipo: genótipo é a constituição genética do indivíduo, determinada na fecundação. Fenótipo é o conjunto de atributos morfológicos, fisiológicos e comportamentais de uma pessoa. As características fenotípicas são o resultado das interações entre o genótipo e o ambiente físico e cultural (Genótipo…, 2019); • Grupo étnico: conjunto de indivíduos com características fenotípicas e contextos culturais (tradições, linguagem, religião, arte, música e outros) associados e distintos. Por exemplo, pessoas de etnia alemã ou polonesa normalmente têm pele branca e cabelos claros, mas contextos culturais diferentes. Segundo a biologia, não existem “raças” humanas, ou seja, a raça humana é composta por várias etnias (Machado; Bezerra, 2019); • Minoria: o significado de minoria depende do contexto, podendo significar: a) um grupo de pessoas em número (quantidade) menor em relação a outro grupo; b) um grupo de pessoas em desvantagem social (mesmo que maior numericamente), sofrendo discriminação e preconceito por outro grupo social classificado como “dominante”. Os motivos que geram a discriminação podem ser étnicos, religiosos, de gênero, de 3 sexualidade, linguísticos, físicos, cognitivos e culturais (Enriconi, 2017). Esse é o principal uso da palavra “minoria” em nossos estudos; • Minorias físico-cognitivas: são as pessoas ou grupos de pessoas com características físicas e cognitivas fora da “média-padrão”, como pessoas com características genéticas e fenotípicas diferentes da maioria da população, pessoas com deficiência física ou cognitiva, idosos, crianças, doentes etc.; • Grupo cultural: conjunto de pessoas que produzem e/ou consomem manifestações culturais com características semelhantes; • Grupo social: conjunto de indivíduos que compartilham muitas ou algumas características sociais semelhantes, como normas de comportamento, valores e expectativas; • Grupo econômico: conjunto de pessoas com características econômicas (renda, poder de compra, hábitos de consumo1) semelhantes; • Classe social: classificação hierárquica (alta, média, baixa) de pessoas com características econômicas e sociais associadas. Com base nesses conceitos, é possível criar várias classificações, como grupo sociocultural (que integra caraterísticas sociais e culturais), socioeconômico (que integra caraterísticas sociais e econômicas) etc. TEMA 1 – DESIGN, IDENTIDADE DO USUÁRIO E PERFIL DO PÚBLICO-ALVO Segundo o dicionário Michaelis (2017), identidade é uma “série de características próprias de uma pessoa ou coisa por meio das quais podemos distingui-las”. Em design, costumamos associar a palavra “identidade” com “marca” comercial (algo como “o designer gráfico criou a identidade visual da marca X”). Poucas vezes usamos o termo “identidade” para se referir ao conjunto de características do público-alvo do produto do design. Normalmente empregamos o termo “perfil”. Ao longo dos séculos, surgiram vários conceitos sobre a construção da identidade numa pessoa, que podem ser resumidos em três tipos de sujeito: 1 Hábitos de consumo: quando, por que, como e onde a pessoa decide ou não comprar e/ou consumir um produto. 4 1. Sujeito do iluminismo: a identidade é o núcleo central da personalidade, que nasce com o indivíduo e se desenvolve com base em características cognitivas, emocionais e socioculturais pouco mutáveis; 2. Sujeito sociológico: a identidade do indivíduo é o resultado das interações sociais com o núcleo central da personalidade. Nesse pensamento, sujeito e coletividade se conectam, formando uma identidade comum; 3. Sujeito pós-industrial: o indivíduo tem sua identidade em constante transformação, com sua personalidade fortemente influenciada pelas interações sociais, independentemente da sua herança sociocultural. Se imaginarmos uma pessoa crescendo e vivendo numa comunidade que mantém suas manifestações culturais de maneira constante, sem receber nenhuma influência externa, é possível considerar que a identidade de uma pessoa seja predeterminada (nasceu com a pessoa) ou resultado da socialização, sofrendo poucas variações ao longo do tempo. Afinal, não existe outra “forma de ser” além do que a pessoa conhece e experiencia. Agora, se pensarmos na globalização econômica – que “abriu” Estados- nação – e na evolução dos meios de comunicação, divulgando culturas até então desconhecidas e, com isso, influenciando pessoas, é natural entendermos que a identidade de um indivíduo na sociedade pós-industrial seja mutável, não se limitando às heranças socioculturais. Entendemos identidade como as características próprias de uma pessoa, tudo que ela é (corpo, mente, sentimentos, interações sociais), em determinado momento da sua vida. Isso significa que o indivíduo é a soma das suas particularidades fisiológicas, cognitivas, emocionais e socioeconômico- culturais. Enquanto alguns atributos tendem a apresentar pouca mudança durante toda a vida, como tom de pele e cor dos olhos, outros mudam drasticamente, como percepção e memória. E há quem oscile, a depender do contexto individual e fatores externos, por exemplo condições de saúde e sentimentos, como alegria ou tristeza. Assim como a identidade da pessoa a torna única, ao mesmo tempo orienta seu sentimento (e necessidade) de pertencer a um grupo social, com os mesmos interesses culturais. Chamamos de identidade cultural a afirmação 5 pessoal/coletiva das semelhanças e diferenças culturais incorporadas à sua vida. Nas sociedades passadas, um indivíduo que nascesse numa determinada cultura, ou a escolhesse na vida adulta, era obrigado (por normas ou para evitar preconceito e exclusão social) a se manifestar culturalmente2 em “quase todos” os traços do contexto cultural (como já vimos). Nas sociedades pós-industriais, principalmente as ocidentais, essa “obrigação” deixa de existir (claro, ainda há exceções), e o indivíduo pode se manifestar culturalmente sem sofrer opressão, ou seja, com liberdade cultural. Ele pode, se assim desejar, produzir e consumir elementos culturais de várias culturas e, dessa forma, respeitar e valorizar a diversidade cultural (termo que indica a variedade de culturas numa sociedade). Identidade, liberdade e diversidade cultural são, hoje, elementos importantes para o design, pois configuram novas necessidades e hábitos de consumo no usuário/público-alvo, e influenciam as funções simbólicas, de uso e técnicas dos produtos do design. Com exceção dos produtos do design de edição única (exclusivo ou personalizado3), todos os outros ofertados no mercado são desenvolvidos para atender determinado público-alvo (grupos de pessoas com características específicas em comum). Normalmente, os principais critérios para delimitar o perfil do público-alvo são fatores socioeconômicos, localização geográfica, características físico-cognitivas e identidade cultural. Os critérios socioeconômicos, a localização geográfica (onde o público- alvo mora, trabalha, estuda ou se diverte) e a identidade cultural são informações importantes, que indicam hábitos de consumo do público-alvo e ajudam, em grande parte, adeterminar as funções simbólicas dos produtos. As características físicas (como sexo, peso, altura, idade e habilidades motoras e sensoriais4) e cognitivas (como percepção5, memória, inteligência) do público- 2 O indivíduo se manifesta culturalmente quando gosta, usa, defende e divulga traços culturais. 3 Produto exclusivo: só um exemplar foi fabricado, e só uma pessoa o possui. Produto personalizado: foi produzido conforme as necessidades da pessoa. 4 Habilidades motoras: condições de sentar, engatinhar, andar, correr, saltar, destreza manual grossa e fina. Habilidades sensoriais: possibilidade de sentir pelo tato, olfato, visão, audição e paladar. 5 Percepção: capacidade de traduzir as sensações em informações. Por exemplo: sensação é quando ouvimos o som de um animal, percepção é quando traduzimos esse som na informação: “um cão está latindo”. 6 alvo contribuem para configurar as funções de uso dos produtos, e a integração das funções simbólicas e de uso forma as funções técnicas. A relação histórica do design com a produção industrial geralmente faz o designer: • Considerar critérios socioeconômicos e a localização geográfica como principais fatores do perfil do público-alvo; • Delimitar identidade cultural e características físico-cognitivas pela “média estatística” do público-alvo determinado. Por exemplo (dados fictícios): determinado produto será desenvolvido considerando como público-alvo homens e mulheres das classes sociais B e C, com idade entre 20 e 60 anos, com curso superior completo, que moram em cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes. Estima-se que 90% desse público-alvo tem habilidades motoras finas6, e 75% se identifica com a cultura afro-brasileira. Portanto, indivíduos do público-alvo fora desses critérios não serão contemplados em questões ergonômicas (função de uso: não apresentam habilidade motora fina) e/ou não se identificarão culturalmente com o produto do design (função simbólica: não fazem parte da cultura afro-brasileira). Nesse exemplo, o design exclui minorias físico-cognitivas e a homogeneização cultural. A sociedade pós-industrial espera soluções de design diferentes do exemplo que criamos. A atual sociedade deseja que o design valorize a diversidade cultural em todos os aspectos, como vida material, linguagem, religião, visão estética e inclusão de minorias físico-cognitivas. Nos Temas 2, 3 e 4, vamos detalhar como o design pode promover e valorizar a diversidade cultural (e, consequentemente, a liberdade e identidade cultural) por meio de: herança cultural, transculturação e inclusão de minorias físico-cognitivas. TEMA 2 – DESIGN E HERANÇA CULTURAL Herança cultural é a cultura dos nossos pais, avós e/ou antepassados, que chega até nós sem grandes alterações na estrutura (traços e contexto cultural) em relação a suas características originais étnico-históricas. 6 Habilidade motor fina: capacidade de usar mãos e dedos para alcançar, agarrar e manipular objetos. Essas habilidades incluem precisão, força, coordenação olho-mão, destreza, coordenação motora bilateral e uso de ferramentas (Franco, 2013). 7 Para nossos estudos, vamos dividir herança cultural em: • Histórica: são as manifestações culturais em desuso e chegam até nós por livros, museus, conservação, achados arqueológicos e outros. Incluímos nessa categoria a cultura de comunidades e civilizações extintas; • Tradicional: são as manifestações culturais em uso, que chegam até nós pelas relações interpessoais no grupo social primário (família, escola, religião). Em geral, nas sociedades ocidentais, a herança cultural tradicional refere-se à cultura criada antes da sociedade industrial, que passou por mínimas transformações estruturais (lembrando que cada Estado-nação adentrou a sociedade industrial em épocas diferentes). Incluímos nessa categoria a cultura de comunidades isoladas e/ou que não receberam influência externa relativa à sociedade industrial. Esses conceitos são contextuais: o que hoje um grupo sociocultural determina como “histórico”, há 30 anos atrás poderia ser considerado “tradicional”. O designer pode utilizar elementos da herança cultural para configurar, nos produtos, funções simbólicas e/ou de uso relevante ao público-alvo. Quando faz isso, o design valoriza uma cultura específica e, ao mesmo tempo, a diversidade cultural. Mas antes, precisa considerar as seguintes questões: • O público-alvo é “herdeiro” ou “solidário” à cultura que se deseja valorizar? Público-alvo “solidário” à cultura é aquele que deseja ou já se identifica, cria e consome partes ou a totalidade de uma cultura que não a sua, pela herança social; • O público-alvo “herdeiro” deseja consumir produtos com referência à sua herança cultural? • A herança cultural atrai (ou pode atrair) um público-alvo “solidário”? • As estratégias empresariais do cliente e o tema herança cultural estão em sintonia? Dependendo do resultado desses questionamentos – e outros que poderão surgir conforme cada caso –, o designer pode utilizar elementos da herança cultural como inspiração estética e simbólica (cores, formas e signos culturais). “Inspiração” não significa cópia, mas uma releitura: o designer analisa 8 a informação original e “cria” elementos e configurações com a mesma linguagem estética. Como fonte de inspiração, temos manifestações culturais históricas: os diversos produtos culturais chegaram imutáveis até nós, congelados no tempo, como construções arquitetônicas, comunicação visual gráfica, objetos, peças de vestuário e outros. Elementos que fazem parte da história são identificados e aceitos com mais facilidade (principalmente se a história for motivo de admiração social). Saiba mais Veja um caso da influência da cultura do Egito Antigo no design de joias: <https://historiaprimeiroanoblasallesp.wordpress.com/2015/04/28/a-moda- egipcia-na-atualidade-isabella-giannobile/>. Nesse exemplo, o público-alvo é solidário a uma cultura já extinta. Acesso em: 18 set. 2020. Também temos manifestações culturais tradicionais, e trazemos dois exemplos. O primeiro é a cultura isolada: os produtos culturais que servirão de inspiração encontram-se em uso, na atualidade, sem receber influência de outras culturas. Saiba mais As reportagens a seguir da Revista Use e da Oito Sete são exemplos do uso de grafismo indígena na estética de produtos comerciais; nesses casos, o público-alvo é solidário à cultura. • “Cultura indígena inspira lançamento da Decortiles” (2020). Disponível em: <http://www.revistause.com.br/cultura-indigena-inspira-lancamento-da- decortiles/>. Acesso em: 18 set. 2020; • “Coleção Yacamim Índios” (2019): <https://www.oitosete.com/coleo-yacamim- indios>. Acesso em: 18 set. 2020. Também temos o caso da cultura tradicional: os elementos tradicionais da cultura – seja pela cultura “erudita” ou “popular” – servem de inspiração para criar produtos do design. No caso do artesanato (cultura popular), o inverso também acontece: o designer ajuda os artesãos, promovendo benefícios sociais. 9 Saiba mais Veja alguns exemplos de cultura tradicional nos links a seguir: • “Coleção jalapa, o catálogo” (2010). Disponível em: <https://rosenbaumdesign.wordpress.com/tag/heloisa-crocco/>. Acesso em: 18 set. 2020; • “Espedito Seleiro: o estilo nordestino do couro” (2015). Disponível em: <https://www.ecofriendlycotton.com/2015/07/espedito-seleiro-o-estilo- nordestino-do-couro/?lang=pt-br>. Acesso em: 18 set. 2020. Nesses exemplos, o público-alvo pode ser herdeiro ou solidário à cultura. A herança cultural também pode ser usada para divulgação, afirmação, influência e/ou resgate de comportamentos sociais, conhecimentos e práticas. Vejamos cada quesito em detalhes: • Divulgação: o objetivo do designer é divulgar (tornar conhecida) a tradição cultural. Podemos citar o jogo Mulaka(Prata, 2018), baseado nas lendas Tarahumaras, povo que habita o norte do México. Aqui o público- alvo pode ser herdeiro e solidário à cultura; • Afirmação: um dos principais objetivos do produto é (re)afirmar a identidade cultural. O usuário pensa, com orgulho: “faço parte disso”. Um exemplo é a série animada Icamiabas na Amazônia de pedra (2016), apresentada apenas na programação local do Pará, com várias referências locais para o público-alvo da região. Nesse exemplo, o público-alvo é herdeiro da cultura apresentada na animação; • Influência: além de divulgar, o designer deseja influenciar o usuário, seja herdeiro ou solidário à cultura. Como exemplo, temos o desenho animado Tainá e os guardiões da Amazônia, criado para influenciar positivamente pequenos consumidores do mundo inteiro; • Resgate: o objetivo é resgatar manifestações culturais em desuso ou com dificuldade em se manter “vivas”. No artigo “Comunidade tupi-guarani cria game indígena para reavivar língua Nhandeva” (2019), por exemplo, essa prática de ensino pela gamificação objetiva resgatar o idioma indígena Nhandeva. Os exemplos citados são poucos dentre tantos produtos que usam a herança cultural como conceito, referência e/ou inspiração na prática do design. 10 TEMA 3 – DESIGN E TRANSCULTURAÇÃO Transculturação é um processo social em que as manifestações culturais não se baseiam na herança cultural (histórica ou tradicional), mas nas interconexões culturais contemporâneas, na apropriação de elementos externos à cultura para o contexto local, sua conveniência e realidade. Não podemos falar de design e transculturação sem antes falar de design e globalização. O início da globalização, na década 1980, foi um processo unidirecional, dos países industriais e economicamente desenvolvidos (da Europa e América do Norte) para os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Por isso, a cultura material industrializada (objetos, carros, vestuário, eletrodomésticos e outros) europeia e norte-americana foi a primeira a ser mundializada, e refletia os conceitos do design moderno (ou pós-moderno) desses países. Na época, o design moderno fornecia produtos baseados na Bauhaus (2017) e no funcionalismo (2010): valorização da função de uso dos bens duráveis; geometrização; uso de cores básicas ou esteticamente neutras; linhas retas; ausência de elementos decorativos, facilidade e economia de recursos durante a produção. E o design pós-moderno criava artefatos com cores e formas lúdicas, releitura de produtos clássicos, referências à pop art e valorização das funções simbólicas e estéticas dos produtos; ou seja, qualquer proposta em oposição à frieza emocional do funcionalismo (O novo…, 2010). Quando os produtos físicos europeus e norte-americanos adentravam uma região (comunidade, cidade, país) para consumo interno, produziam “choques” culturais. Se os grupos socioculturais locais já estivessem familiarizados com o design moderno e pós-moderno ocidental, o “choque” cultural era pequeno; mas se não estivesse, o design ocidental representava uma ofensa às tradições culturais. Na sequência, seguiram-se outras manifestações culturais ocidentais, como linguagem, alimentação, lazer, esporte, interações e comportamentos sociais. Passados alguns anos da globalização cultural, as empresas e os governos perceberam que não existe a aceitação passiva de influências externas em um grupo cultural; ou há resistência, ou integração mediante alterações locais, ambas em diversos níveis, conforme a cultura local. Além disso, há a 11 reação de volta, quando a cultura local influencia e modifica a cultura externa, em interações de mão dupla. Chamamos de transculturação as interações de mão dupla e a integração da cultura externa mediante alterações locais. Ela não acontece apenas entre nações, mas também entre grupos socioculturais dentro do mesmo Estado- nação, principalmente em países multiculturais, como o Brasil. Pela transculturação, o designer pode incentivar a diversidade cultural com base na abordagem reativa e ativa: • Abordagem reativa: o designer pesquisa e analisa as manifestações culturais decorrentes da transculturação, e então desenvolve produtos. Normalmente, manifestações culturais “recém-criadas” tendem a ser experiências culturais empíricas, na base da “tentativa-erro”, com pouco valor sociocultural. Nesse caso, o designer cria produtos para tornar a experiência cultural, promovida pela transculturação, mais dinâmica, sustentável e socialmente valorizada; • Abordagem ativa: o designer pesquisa e analisa as manifestações culturais que serão “importadas pela globalização” e os grupos socioculturais envolvidos para construir cenários referentes a possíveis processos de transculturação. Com base nesses cenários, o designer cria produtos antes das manifestações culturais empíricas. A reportagem “13 marcas gringas que tiveram que adaptar seus produtos ao Brasil” (Noronha, 2018) traz uma boa seleção de casos de produtos que precisaram ser adaptados à cultura brasileira ou à nossa condição climática. Gostaríamos de fazer alguns comentários a respeito: • O caso dos postos de gasolina e do chocolate são exemplos de quando o produto “globalizado” é rejeitado no país (há resistência ao consumo) por questões culturais. As empresas tiveram prejuízo até “aceitarem” a diversidade cultural local e fazer mudanças; • O caso do hambúrger é um exemplo de design reativo. Existe o produto global, a venda no local, verificam-se as particularidades culturais, e a mudança é feita. Não é impossível que, antes de lançar o sanduiche, várias pessoas no Brasil já tivessem grelhado seus hambúrgueres em casa; 12 • O caso do absorvente também é design reativo. Várias consumidoras adaptaram sozinhas seus produtos para atender a necessidade destacada na reportagem; • O caso do protetor/bronzeador solar é um exemplo de transculturação de mão dupla; • O caso da loja de café é um exemplo de design ativo, pois as mudanças no produto para atender a cultura brasileira foram feitas antes do lançamento. Talvez você estranhe o fato de a palavra “design” se associar a alimentos, cosméticos ou serviços (como posto de gasolina); lembre-se que, hoje, um dos papéis sociais do design é “resolver problemas”. O designer não precisa criar a composição química ou teor de açúcar, mas empregar os métodos do design para determinar as melhores características desses produtos ao público-alvo. TEMA 4 – DESIGN E INCLUSÃO DE MINORIAS FÍSICO-COGNITIVAS Até pouco tempo atrás, entendia-se como elementos da identidade e diversidade cultural aqueles relacionados à arte (arquitetura, pintura, música, dança, literatura, linguagem, visão estética), religião, folclore, conhecimentos e práticas populares, fatores econômicos, normas de comportamento e interações sociais. Hoje percebe-se movimentos acadêmicos e sociais que consideram a diversidade físico-cognitiva da raça humana – pela perspectiva de habilidades e incapacidades – como fundamentais à identidade cultural (do indivíduo e do grupo) e à diversidade cultural. Se agora nós (população em geral) compreendemos a importância social, cultural e econômica em incluir minorias sociais – como pessoas em cadeira de rodas e com síndrome de Down –, isso se deve a um longo processo, iniciado após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Inicialmente, o design abordava o tema inclusão pelo viés da adaptação: o ambiente sem barreiras, o “barriers-free design” (design sem barreiras), para garantir a circulação de pessoas em cadeira de rodas. Nos anos 1970, com o “accessible design” (design acessível), houve uma mudança de ênfase nos projetos, com soluções especiais adaptadas aos indivíduos para normatizar ambientes públicos e comerciais. 13 Na década seguinte, o arquiteto norte-americano Ronald Mace empregouo termo “universal design” (“design” ou “desenho universal”) para designar a abordagem do design centrado em “critérios universais”, normatizados e garantidos por lei, para criar ambientes e produtos. Uma das principais contribuições de Mace foi a relação de que os sete princípios do design universal podem ser aplicados em ambientes e produtos (físicos e digitais), sendo descritos como: 1. Uso equitativo: pessoas com diferentes capacidades têm possibilidades iguais de uso e resultado; 2. Uso flexível: o design antecipa habilidades ou preferências do usuário, permitindo escolher a melhor opção; 3. Uso simples e intuitivo: quando o usuário cumpre a tarefa corretamente, independente de experiência anterior ou nível de concentração; 4. Informação perceptível: é o fácil entendimento da informação de uso, nos níveis cognitivos (por exemplo, interpretação) e sensoriais (por exemplo, contraste fundo/signo) e físicos (braille); 5. Tolerância ao erro: quando as características de design e uso minimizam ações incorretas, evitando acidentes; 6. Mínimo esforço físico: demanda mínima das capacidades físicas do usuário para cumprir a tarefa; 7. Espaços e dimensões adequadas de aproximação e uso: abranger todas as possibilidades da estrutura do corpo humano, de postura ou mobilidade. Em 1994, o inglês Roger Coleman empregou pela primeira vez o termo “inclusive design” (design inclusivo) para nomear a abordagem do design centrada na inclusão de minorias físico-cognitivas, com base em critérios econômicos. Por exemplo, se dado produto custar 15% a mais do que foi previsto, mas ampliar o público-alvo em 30% (com a participação de pessoas idosas ou com deficiência leve ou moderada), isso se torna uma estratégia econômica viável. Além do argumento econômico, o design inclusivo se fundamenta no: • Argumento moral: todos têm direito de participar da vida em comunidade; 14 • Argumento em relação à sustentabilidade ambiental: ambientes físicos inclusivos promovem a plena ocupação do espaço urbano, preferencialmente próximo ao local de moradia. Dessa forma não há abandono nem regiões desabitadas propensas a vandalismo, comércio local inexpressivo ou inexistente, ou ainda deslocamento para outras regiões; • Argumento legal: legislação, obrigatoriedade e inspeção no cumprimento de condições mínimas de acessibilidade e inclusão estão presentes na sociedade atual. As abordagens do design universal e do design inclusivo são bastante próximas, normalmente atuando juntas nos projetos de design que visam uma inclusão físico-cognitiva. Ambas as abordagens destacam o compromisso em projetar produtos que contemplem amplos grupos de usuários, sem a necessidade de adaptações posteriores à execução. No final do século XX, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a indicar a abordagem biopsicossocial como ideal para compreendermos a deficiência, seja causada por fatores genéticos, ambientais, acidentes e/ou de idade (OMS, 2003). Nessa concepção, a deficiência (ou restrição) integra um sistema denominado funcionalidade e incapacidade do indivíduo. A funcionalidade relaciona-se aos aspectos positivos da interação entre os estados de saúde (doenças, perturbações, traumas) com fatores contextuais7, e a incapacidade se relaciona aos aspectos negativos dessas interações. Ou seja, assim como outras profissões, o design também é responsável pela incapacidade do indivíduo se o meio externo (produtos e ambientes) não favorecer sua atuação funcional e cognitiva. Saiba mais No artigo “Design inclusivo”, de Ana Santos (2014), podemos ver alguns exemplos de produtos inclusivos e perceber que as funções de uso são privilegiadas, mas isso não limita a criatividade em formas diferenciadas. E no artigo “Design universal aplicado no mundo digital – faz sentido?”, de Helena 7 Os fatores contextuais dividem-se em ambientais e pessoais. Os ambientais representam o ambiente construído e as relações sociais, externas ao indivíduo. Os fatores pessoais são o “histórico particular da vida e do estilo de vida de um indivíduo”. Isso inclui gênero, idade, raça, hábitos etc. (Miranda, 2013, p. 18). 15 Duppre (2019), podemos ler algumas considerações sobre o design universal no ambiente digital. • “Design inclusivo”, disponível em: <https://bit.ly/2ZSMnbQ>. Acesso em: 18 set. 2020; • “Design universal aplicado no mundo digital – faz sentido?”, disponível em: <https://brasil.uxdesign.cc/design-universal-aplicado-no-mundo-digital-faz- sentido-5637bafa39cc>. Acesso em: 18 set. 2020. TEMA 5 – DESIGN E IDENTIDADE NACIONAL Em 2002, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) proclamou a Declaração universal sobre a diversidade cultural, cujo art. 1º, “A diversidade cultural”, declara: Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras. Mas a diversidade cultural nem sempre foi compreendida como patrimônio comum da humanidade; ao contrário, por séculos, em vários Estados- nação multiculturalistas, o governo e a classe social dominante incentivaram a homogeneização cultural em seus territórios, bem antes da globalização. E digamos a verdade: a globalização colaborou com os diversos grupos culturais minoritários, que passaram a ter a oportunidade de se expor, de valorizar e reafirmar sua própria identidade cultural. Uma forma de reconhecer a homogeneização cultural promovida pelo Estado-nação e pela classe social dominante é criar e “legitimar” a ideia de identidade nacional, que parte da mesma ideia de identidade cultural, ou seja, afirmar a nação (toda a população) sobre as semelhanças e diferenças culturais que a distinguem das outras nações. A proposta de identidade nacional pressupõe que a nação seja formada por uma única cultura/etnia (ou então várias, bem alinhadas, com poucas variações), que se mantém constante ao longo do tempo. Porém, algumas situações precisam ser apontadas: 16 • Historicamente, foram poucas as comunidades e sociedades que não passaram por processos de migração e de guerra, invadindo ou sendo invadidas por outras culturas; • A criação de vários Estados-nação contemporâneos (formados após 1789) também foi marcada pela invasão de territórios e subjugação ou incorporação de minorias culturais, tornando-os multiculturalistas. Vale lembrar que alguns desses Estados-nação eram formados à força, sem ética nem apoio popular, e foram “desmanchados” nos últimos 50 anos; • As manifestações culturais dentro da mesma cultura são processos dinâmicos e evoluem com o tempo. Um Estado-nação multiculturalista, principalmente nas primeiras décadas de formação, precisa criar unificação nacional para garantir a própria soberania. Pela propaganda, promove sentimentos de pertencimento do povo em geral, com base na ideia do patriotismo e do etnocentrismo, garantindo soldados e apoio interno (econômico, político, social) em caso de disputas internacionais e invasões. Organizada a defesa nacional, o Estado-nação redirecionava os conceitos de identidade nacional, patriotismo e etnocentrismo para diferenciar produtos no mercado internacional e crescimento econômico. Devemos lembrar que a importação e a exportação de produtos são tão antigas quanto o próprio comércio. No Estado-nação multiculturalista, a criação de uma identidade nacional pressupõe a escolha intencional de elementos culturais para a compor. Os critérios podem se basear na herança cultural, folclore, fauna e flora, tecnologia e outros. Também é possível criar uma identidade “falsa”, construída para “gringo ver”, sem relação com a situação real. A proposta de identidadenacional é uma relação de poder dentro do país, pois privilegia alguns grupos culturais e discrimina outros. Se não há uma cultura nacional pura, também não há uma identidade nacional pura. Assim, o termo mais adequado seria “identidades nacionais”, para valorizar a diversidade cultural com ações que incentivem a interculturalidade (assunto já abordado) e a transculturação. Para finalizar este tema, vamos ver o caso da sandália Havaianas, considerada o produto de identidade brasileira que melhor adentrou o mercado internacional. O primeiro modelo da sandália, de 1962, tinha como referência 17 estética (forma, uso) os chinelos japoneses zori (de palha ou lasca de madeira); o nome indica que é do “Havaí”, pois na época era o principal destino de férias de norte-americanos, com Sol e praia, o que fazia parte do imaginário popular devido aos filmes do Elvis Presley, um ícone pop (Medeiros; Queiroz, 2008). Agora pense: a sandália Havaianas representa a cultura brasileira ou é uma imagem “nacional” construída? TROCANDO IDEIAS Pesquise produtos do design que incluam minorias físico-cognitivas – imagens e reportagens. Depois compartilhe com seus colegas no fórum. NA PRÁTICA Reflita sobre a herança cultural que você recebeu, separando as manifestações culturais históricas das tradicionais. Depois monte uma tabela com suas anotações e procure na internet imagens de dez produtos do design que tenham alguma relação com essas heranças. FINALIZANDO Nesta aula conversamos sobre identidade cultural do usuário/perfil do público-alvo, reconhecendo que o sujeito pós-industrial tem sua identidade em constante mudança e tem liberdade de escolha, não sendo “obrigado” a manter as tradições culturais. Depois detalhamos como o design pode promover a diversidade cultural pela herança cultural, transculturação e inclusão de minorias físico-cognitivas. Por fim, analisamos a questão da identidade nacional e como esse conceito promove a homogeneização cultural. 18 REFERÊNCIAS 13 MARCAS gringas que tiveram que adaptar seus produtos ao Brasil. Super Interessante, São Paulo, 11 jul. 2018. Disponível em: <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/13-marcas-gringas-que-tiveram- que-adaptar-seus-produtos-ao-brasil/>. Acesso em: 19 set. 2020. AMAZÔNIA é animada por mãos gaúchas na versão em desenho de "Tainá". GaúchaZH, [S.l.], 4 jan. 2019. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/tv/noticia/2019/01/amazonia-e- animada-por-maos-gauchas-na-versao-em-desenho-de-taina- cjqfq8sug0p1701pio3ug68f5.html>. Acesso em: 19 set. 2020. BAUHAUS. Enciclópedia Itaú Cultural, [S.l.], 23 fev. 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo368/bauhaus>. Acesso em: 19 set. 2020. COMUNIDADE tupi-guarani cria game indígena para reavivar língua Nhandeva. Funai, Brasília, DF, 4 set. 2019. Disponível em: <http://funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/5620-comunidade-tupi- guarani-cria-game-indigena-para-reavivar-lingua-nhandeva>. Acesso em: 19 set. 2020. ENRICONI, L. O que são minorias? Politize!, [S.l.], 2017. Disponível em: <https://www.politize.com.br/o-que-sao-minorias/>. Acesso em: 19 set. 2020. FRANCO, J. C. M. O que são habilidades motoras finas? Terapia Ocupacional Infantil, [S.l.]. 26 jun. 2013. 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