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EDUCAÇÃO E TRABALHO AULA 6 Prof. Rui Valese CONVERSA INICIAL Nesta aula, vamos aprofundar um pouco mais as nossas reflexões. Começamos apresentando alguns conceitos fundamentais que orientariam as nossas reflexões. Em seguida, faremos um tour por vários períodos da história humana e de várias sociedades, abordando como nestas se deram as relações entre educação e trabalho. Afora, buscando uma síntese dialética, retomaremos alguns conceitos e apresentaremos outros. Inicialmente, trataremos do sentido humano do trabalho e da educação. Segundo Kant, o ser humano é o único animal que precisa ser educado. Assim, tanto o trabalho como a educação são criações e necessidades especificamente humanas. Em seguida, trataremos dos sentidos objetivo e subjetivo do trabalho e da educação. Para finalizarmos, abordaremos a dignidade do trabalho e da educação e alguns princípios fundamentais para que tanto o trabalho como o fazer pedagógico sejam dignos. Nos últimos anos, tem crescido a negação de conhecimentos humanos fundamentais e que fizeram a diferença no progresso e na qualidade de vida de nós, seres humanos. Um exemplo é o crescimento dos seguidores do “terraplanismo” e os antivacinas. A ignorância tem sido defendida como se fosse benéfica para a existência humana. Cada vez mais precisamos retomar o projeto de esclarecimento que identificamos começando com os pré-socráticos, passando pelos iluministas e se reafirmando com os frankfurtianos. Como nos diz Agnes Heller, é hora de fazer profissão de fé. TEMA 1 – SENTIDO HUMANO DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO Segundo Kant (1999, p. 11), “o ser humano é a única criatura que precisa ser educada”. Começaremos esse tópico tratando do sentido humano do trabalho e da educação. Até onde o nosso conhecimento já chegou, podemos afirmar que o ser humano é o único que tem consciência de sua existência. Parece obvio para nós, porém, essa condição, que foi sendo adquirida ao longo do nosso desenvolvimento, possibilitou nos libertarmos da natureza e produzirmos as condições da nossa própria existência. É essa a definição inicial que apresentamos de trabalho: produção da própria existência. Apesar de alguns pensadores como Hobbes e Locke apresentarem os seres humanos como 3 individualistas e competitivos, compreendemos os seres humanos, assim como muitos outros seres vivos, como seres gregários e colaborativos por natureza. O fato de afirmamos esse espírito gregário como fazendo parte da essência humana não significa que ignoremos que alguns indivíduos tenham comportamentos individualistas e competitivos. Vejamos agora algumas concepções de ser humano e como estas são importantes para as reflexões que viemos fazendo até aqui. Segundo Aristóteles (1991, p. 4), o ser humano1 é um zoo politikon: “o homem é um animal cívico [político], mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos”. Ao afirmar essa condição – animal político – Aristóteles está, por analogia à sua definição de polis (cidade), afirmando que o ser humano se organiza em cidades para, assim como estas, “não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar”. Ora, a cidade, para Aristóteles, é união de várias aldeias, cujo objetivo é o “viver bem”. Esse viver bem somente é possível graças a essa união de famílias (que são constituídas por pessoas) e aldeias em uma cidade, isto é, viver na polis, na cidade. Já para Descartes, a definição de ser humano pode ser derivada de sua máxima “Cogito, ergo sum”, isto é, a existência é definida por meio do pensar, da razão. Nessa linha de raciocínio, podemos pôr em dúvida o que quisermos. Porém, ao realizarmos essa operação – duvidar – nos vem uma primeira certeza: nós pensamos. Derivada dessa primeira certeza, uma segunda: para pensarmos, precisamos existir. Essa é uma diferença fundamental entre nós e os demais seres vivos: o ato de pensar. Somos seres pensantes. Entretanto, como afirma Gramsci (citado por Aranha, 1992, p. 31) sobre o ser humano, ao pensarmos sobre o que somos, “queremos saber [...], o que somos e em que coisa nos podemos tomar [...]. E isto queremos sabê-lo ‘hoje’, nas condições dadas hoje, pela vida ‘hodierna’ e não por uma vida qualquer e de qualquer homem”. Dessa forma, quando afirmamos que aquilo que nos diferencia dos demais seres vivos é o ato de pensar, não estamos falando de um pensar abstrato, mas concreto, objetivo, determinado e sob determinadas condições. 1 Embora Aristóteles não use a expressão “ser humano”, mas “homem”, pois está se referindo ao sujeito do sexo masculino, nos apropriaremos do sentido – animal político – e ao aplicaremos a todos os seres humanos. 4 Pois, como afirma Marx (2001, p.10), os seres humanos se distinguem “dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse passo à frente é a própria consequência de sua organização corporal”. Assim, é essa dupla forma – pensar e trabalhar – que nos caracteriza e nos diferencia dos demais seres vivos. Passemos, agora, a refletir sobre esse segundo aspecto da existência humana, que anunciamos com Marx: o trabalho. Por trabalho entendemos uma ação exclusivamente humana, visto que, diferentemente dos outros seres vivos que agem sobre a natureza, a ação humana é intencional e consciente. Essa ação objetiva produzir aqueles bens materiais e imateriais necessários à produção e reprodução também da sua existência material e imaterial. No entanto, o trabalho não é uma ação unidirecional, mas bidirecional. Isto é, o trabalho é uma ação dialética com a natureza, pois, na medida em que transformamos a natureza para garantir a nossa existência, também somos modificados por ela. Nesse sentido, o trabalho é uma ação dignificante, visto que é por meio dele que nos construímos. Essa construção é tanto física quanto intelectual e moral. É uma construção física, pois, para trabalharmos, dispendemos energia física. E, para repor a energia física dispendida enquanto trabalhamos, precisamos nos alimentar, fornecer os nutrientes necessários para a renovação dessa energia. Aqui, uma vez mais, está a nossa relação dialética com a natureza: esses nutrientes são fornecidos pelos alimentos que produzimos e/ou extraímos da natureza. A construção/transformação é, também, intelectual. Isso porque, para agirmos sobre a natureza, ou seja, trabalharmos, não o fazemos de maneira mecânica, automática, mas sim pensada, intencional, planejada, raciocinada. Mesmo quando éramos apenas coletores, caçadores e pescadores, precisávamos planejar tais ações: quando e como caçar, pescar e coletar; quanto o grupo precisava para se alimentar etc. Quando o ser humano criou a agricultura, aumentou ainda mais sua capacidade intelectual. Pensemos em todas as tarefas necessárias para garantir que a colheita fosse boa o suficiente para alimentar a família e/ou grupo: que sementes escolher e como, quando e onde plantar? Que cuidados deveriam ser tomados até chegar o momento da colheita? Por isso é que muitos povos, ao final da colheita, costumavam realizar cerimônias para agradecer e celebrar os frutos colhidos. Isso porque, mesmo dominando técnicas de plantio, cultivo e 5 colheita, sabemos que os resultados também dependem de diversos fatores, por exemplo, as condições climáticas. Por fim, essa construção/transformação é também moral na medida em que descobrimos que o trabalho não é uma atividade isolada, individual, mas sim algo que pede a colaboração de outros seres humanos e, também, de outros seres vivos. Da mesma forma, a relação que precisamos estabelecer com a natureza não pode ser predatória, mas de integração, visto que também fazemos parte da natureza. Quando a agredimos, também estamos nos agredindo; quando a exploramos, também estamos nos explorando. Finalizemos essetópico refletindo sobre a educação. O que falamos até aqui sobre o trabalho também se aplica a essa área, até porque a educação é um trabalho, como também uma ação exclusivamente humana. Somente nós, seres humanos, construímos conhecimentos e precisamos transmitir o que sabemos a nossos descendentes. A construção desses conhecimentos é histórica e social, e o fazemos de maneira também dialética na medida em que, por meio das nossas vivências, produzimos pensamentos que os experimentamos em novas ações. Contudo, por vezes, essa produção é em sentido contrário: primeiramente imaginamos algo, tentamos colocar em prática, realizamos ajustes e refletimos sobre todo o processo desde o início. TEMA 2 – SENTIDO OBJETIVO DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO Antes de tratarmos do sentido objetivo do trabalho e da educação, cabe, primeiramente, esclarecermos o que entendemos por objetivo. Essa palavra tem pelos menos dois sentidos: um primeiro, como meta ou algo a ser alcançado; e um segundo, significando algo concreto, específico, direto. É nesse segundo sentido que trataremos aqui. Da mesma forma, para melhor poder compreendê- lo, o tomemos como oposto de subjetivo, o qual abordaremos no tópico seguinte. Ou seja, falamos de trabalho e educação como algo objetivo, estamos pensando essas ações de maneira concreta, direta, sem as interferências subjetivas que podem sofrer. Obviamente, conseguimos realizar essa separação por estarmos racionalizando esses sentidos. No concreto pensado, parafraseando Karel Kosik, essa separação é impossível. Objetivamente, por meio do trabalho, consciente e intencionalmente transformamos a natureza para retirar dela os bens materiais e imateriais necessários para a produção e reprodução da nossa existência. Por meio do 6 trabalho tomamos consciência de que somos capazes de pensar, sentir e perceber o mundo ao nosso redor. Ao mesmo tempo que nos percebemos fazendo parte do mundo, da natureza, também nos percebemos como distintos dela, isto é, não estamos presos às nossas determinações. Ao trabalharmos, percebemos o trabalho como um paradoxo. De um lado, ele é necessário para a produção e reprodução da nossa existência; porém, de outro, por meio dele nos reificamos. Por intermédio das relações que estabelecemos ao trabalhar – o que acaba por tornar o trabalho uma ação aviltante – nos transformamos em coisa e/ou transformamos outros seres humanos em coisa, mercadoria. Coisificamos nossas relações com outros iguais a nós, como também coisificamos a própria natureza. Para fazermos uma reflexão sobre o sentido objetivo do trabalho e da educação, tomemos de empréstimo a teoria das quatro causas de Aristóteles. Na obra Metafísica, Aristóteles fala sobre a teoria das quatro causas: formal (a forma que um abjeto assume), material (o de que algo é feito), eficiente (o que age sobre a matéria e lhe dá a forma objetivada) e final (a finalidade para a qual o objeto serve). Apliquemos agora essas quatro causas tanto para o trabalho quanto para a educação. Para refletirmos sobre a causa material relacionada à educação e ao trabalho, precisamos responder à seguinte pergunta: de que é feito o trabalho e a educação? Basicamente podemos dizer que são feitos de corpo, mente, espírito e tempo, ou seja, são as matérias de que são feitas a educação e o trabalho. Enquanto os recursos materiais são necessários, mas não imprescindíveis para que o trabalho e a educação existam, esses quatro elementos são imprescindíveis, uma vez que os recursos materiais por si só não são suficientes para que haja educação e trabalho. Da mesma forma, estamos falando de corpo, mente, espírito e tempo de dois sujeitos: o que ensina (que também pode aprender) e o que aprende (que também pode ensinar). Já a causa formal é a forma que a educação e o trabalho adquirem após as transformações pelas quais passam o corpo, a mente, o espírito e o tempo dos sujeitos envolvidos nesses processos. Tomando como exemplo a educação, nem quem ensina nem quem aprende, após sofrerem a ação da causa eficiente, continuarão os mesmos, pelo contrário. Para que a nova forma se estabeleça, a ação é tanto manual quanto intelectual. 7 Já a causa eficiente da educação e do trabalho é o ser humano, visto que ele age sobre seu corpo, mente, espírito e tempo para transformar a si mesmo e superar a sua condição anterior, mesmo conservando algo que, nesse processo, esteve em modo stand by, em Aufhebung, para depois ser retomado. Após a ação da causa eficiente, temos um sujeito que é novo, mas que traz elementos da condição anterior. Por fim, temos a causa final, isto é, a finalidade pela qual a causa eficiente agiu sobre a material – corpo, mente, espírito e tempo. Em síntese, podemos dizer que a finalidade de tal ação é a produção e reprodução da existência material e imaterial. Quando estudamos e trabalhamos, queremos garantir a produção e reprodução da existência material e imaterial. TEMA 3 – SENTIDO SUBJETIVO DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO Antes de apresentarmos o sentido subjetivo do trabalho e da educação, é necessário esclarecer o que entendemos por subjetivo. Inicialmente, por subjetivo costuma-se entender o sentido que um indivíduo dá a algo, sua interpretação individual. Porém, entendemos que esse conceito é restritivo e particularizado. Por subjetividade entendemos a compreensão que é relativa ao sujeito, e não ao indivíduo. Há uma diferenciação entre sujeito e indivíduo que precisamos fazer aqui para que a compreensão de subjetividade, na forma como a estamos tomando, seja melhor compreendida. Por subjetividade e sujeito estamos entendendo o que é relativo ao ser humano. Já por indivíduo, entendemos o sujeito particular, determinado: Paulo, Maria, José, Catarina, Rosa etc. Essa diferenciação é importante, pois, por exemplo, quando falamos da importância da educação para o ser humano – sujeito – isso não significa que todos os seres humanos consideram a educação como sendo importante. Pode ser que, para Paulo, é mais importante que seu filho trabalhe do que vá à escola. Isso porque, com base nas condições em que ele vive, o trabalho de seu filho é mais significativo por gerar renda e contribuição para a subsistência da sua família. Embora o trabalho tenha um sentido objetivo, como vimos no tópico anterior, ele também tem o sentido subjetivo. Isso ocorre quando simbolizamos e significamos o trabalho por meio da nossa subjetividade. Isto é, olhamos o trabalho para além do dispêndio de energia física e intelectual, que é o seu sentido concreto, objetivo. Consideramos o trabalho como o meio pelo qual nos 8 libertamos da natureza. Antes de agirmos de maneira intencional e autônoma em relação à natureza, éramos completamente dependentes do que ela oferecia. Porém, mesmo quando ainda éramos povos coletores, caçadores e pescadores, essa dependência começou a ser rompida e iniciou-se a autonomia do ser humano em relação à natureza. Esse sentido de autonomia é subjetivo: continuamos precisando da natureza para garantir nossa subsistência. No entanto, agimos sobre ela de maneira autônoma, e quando fazemos isso, isto é, ao trabalharmos, vamos nos modificando. É nesse estágio que assumimos a nossa condição de sujeitos, de Ser; enquanto sujeitos, estabelecemos relações com o trabalho de variadas dimensões. Vejamos algumas delas. Uma dessas dimensões que estabelecemos é a ontológica. Por dimensão ontológica estamos falando da constituição da nossa natureza, da nossa essência, daquilo que nos torna únicos, completamente diferentes de todos os demais seres vivos. Somos os únicos seres que agimos sobre a natureza de maneira intencional e planejada e extraímos dela os bens materiais e imateriais necessários à nossa existência. E, ao fazermos isso, não somente modificamos a natureza, mas também nos modificamos. Uma segunda dimensãoé a antropológica. Por meio do trabalho – e da educação –, nós nos humanizamos. Isto é, vamos “expulsando” o animal e nos transformando em seres humanos. Em sentido ingênuo, pensamos que a humanidade é algo natural em nós, que é da nossa essência. Porém, quando entramos em contato com alguns relatos da literatura científica percebemos que não é bem assim, e os casos são até bem numerosos. Talvez o mais conhecido seja o das indianas Amala e Kamala, criadas por lobos, que foram resgatadas quando tinham 18 meses e 8 anos, respectivamente. Na obra As Crianças Selvagens (1967), Lucien Malson afirma: “será preciso admitir que os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o rosto das crianças isoladas”. Malson está se referindo ao fato dos inúmeros casos de crianças que viveram e foram criadas por animais, principalmente lobos e chimpanzés que, ao serem resgatadas, demonstravam comportamentos não humanos, mas da espécie animal que os havia criado. Relembremos aqui o que já afirmamos com Kant (1999, p. 15): “o homem é a única criatura que precisa ser educada”, e, ao mesmo tempo, “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela 9 educação, ele é aquilo que a educação faz dele”. Porém, “ele só pode receber tal educação de outros homens”. Trabalho e educação também têm uma dimensão econômica, que diz respeito à reprodução da nossa existência biológica. Por meio da educação e do trabalho, conseguimos produzir aqueles bens materiais que nos possibilitam a produção e reprodução das nossas necessidades mais básicas: alimentar-se, descansar e reproduzir-se. Já a dimensão política diz respeito às relações de cooperação e poder que estabelecemos por meio das e nas relações econômicas. Como vimos anteriormente, os seres humanos desenvolveram diferentes formas de trabalhar ao longo da história e das diferentes sociedades. As diferentes formas de organização do trabalho são caracterizadas também por diferentes relações e coeficientes de poder. Isto é, nessa divisão social, cada um tem uma parcela de poder diferente. Isso não significa que uns tenham poderes e outros não. Pelo contrário. Mesmo em uma relação de escravidão ou servidão, do ponto de vista econômico, escravos e servos são os que não têm poder em relação aos seus senhores. Porém, no grupo familiar e/ou nas relações de gênero, o pai/homem tem mais poder que os filhos(as)/mulher. Por fim, existe ainda a dimensão ética da educação e do trabalho. Quanto a uma primeira característica da dimensão ética da educação está o fato de que o conhecimento é compartilhado por quem sabe com quem tem pouco ou nenhum conhecimento. Mesmo que esse compartilhamento de conhecimento seja feito de maneira remunerada, ainda assim há o comprometimento ético com o conhecimento que é compartilhado. Outra característica da dimensão ética da educação e do trabalho é a interação com o meio, consigo mesmo e com o Outro. Não produzimos conhecimento do nada, mas, observando o mundo, o meio em que vivemos. Da mesma forma, nenhum ser humano produz conhecimento do zero, nem sem nenhuma interação direta e ou indiretamente com outros seres humanos. Em uma carta escrita para Roberto Hooke, em 5 de fevereiro de 1676, assim Isaac Newton se refere ao conhecimento que conseguira produzir em sua vida até então: “Se pude enxergar a tão grande distância, foi subindo nos ombros de gigantes”. 10 TEMA 4 – DIGNIDADE DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO Desde o aparecimento da propriedade privada e da divisão social do trabalho, passamos a conviver com a divisão entre o trabalho manual – desvalorizado – e o trabalho intelectual – valorizado. O trabalho manual era exercido por quem estava em condição subalterna, de submissão e inferior na sociedade, enquanto o trabalho intelectual era exercido por quem tinha tempo livre, direito ao ócio, isto é, por quem estava em posição de comando, de poder. Assim, uma forma de trabalho era considerada digna e superior – o intelectual – enquanto a outra forma – o manual – era considerada indigna e inferior, degradante. No entanto, todo trabalho, manual e/ou intelectual, é digno, nobre. Como já vimos anteriormente, nenhum trabalho é somente manual ou intelectual. No desempenho da atividade manual, há necessidade de atividade intelectual e vice-versa. Da mesma forma, ambos não necessários para garantir a produção e reprodução da existência humana. Dessa forma, negar trabalho a alguém é negar-lhe dignidade, é negar-lhe o direito de produzir e reproduzir a sua existência, a sua sobrevivência. O mesmo se aplica à educação. Ao longo da história, nem todos os sujeitos tiveram acesso à educação. Ao ter negado o direito ao conhecimento, a tais pessoas lhes foi negada uma parte considerável de sua dignidade. Por meio do conhecimento, parafraseando o filósofo Merleau-Ponty, reaprendemos a ver o mundo. Enquanto não nos apropriamos do conhecimento produzido, acumulado e sistematizado histórica e socialmente, nossa compreensão do mundo é limitada. Por isso, por exemplo, em vários momentos da história da humanidade e diferentes sociedades, o conhecimento foi tido e havido como de posse exclusiva de determinados grupos, como também, em contrapartida, foi tido e havido como perigoso e, portanto, proibido. É esse o sentido que podemos atribuir a essa afirmação de Francis Bacon: “O conhecimento é poder”. Não era por acaso que das sociedades antigas até praticamente o aparecimento da imprensa na Europa, no século XIV, ler e escrever era uma habilidade restrita a poucas pessoas nas mais diferentes sociedades. Da mesma forma, em alguns momentos da história, determinadas obras foram proibidas de circular entre as pessoas, pelo suposto perigo que estas representavam. Basta lembrarmos, por exemplo, do Index Liborum Prohibitorum – lista de livros feita pela Igreja Católica durante a Idade Média que eram considerados pela 11 autoridade religiosa como perigosos, da queima de livros considerados nocivos para a sociedade de acordo com a ideologia nazista realizada em 1933, na Alemanha – a Bücherverbrennung – ou mesmo algumas obras de autores marxistas que eram considerados subversivos no Brasil durante a ditadura civil- militar. Trabalhar exige conhecimento, sabedoria e esforço físico e intelectual. Esse conhecimento pode ou não ser sistematizado. Com o surgimento da sociedade capitalista, o conhecimento passa a ser expropriado do artesão, daquele que realiza o trabalho manual e é repassado/apropriado por quem realiza o trabalho intelectual. Por meio do trabalho, conseguimos satisfazer os cinco níveis das necessidades segundo Maslow: o fisiológico, de segurança, sociais, estima e de autorrealização. Tradicionalmente, vemos o trabalho apenas como a ação que garante a produção e reprodução da nossa dimensão fisio-biológica: alimentar- se, descansar e reproduzir-se. Porém, por meio do trabalho também garantimos um nível mais elevado das nossas necessidades que é o de segurança como saúde, emprego, moradia. Além disso, buscamos a segurança social, que é aquela garantida por meio do reconhecimento e pertencimento a um determinado grupo social, família, amigos etc. Da mesma forma, quando trabalhamos e/ou estudamos, queremos certo reconhecimento social por aquilo que fazemos: o professor pela formação dos alunos, o gari pela limpeza da cidade, o artista pelo divertimento de seu público e, por fim, chegamos ao quinto nível: o da autorrealização. Nesse nível, fazemos o que fazemos, para além da satisfação das necessidades anteriores, mas por propósito e missão. É o momento da autorrealização e do autorreconhecimento. Dessa forma, precisamos ressignificar o trabalho como virtude e caminho para a felicidade. Se as condições nas quais trabalhamos são aviltantes e degradamo ser humano, precisamos resgatar o sentido humanizador do trabalho e da educação. E o trabalho como um valor é uma aprendizagem que deve começar na família e continuar na escola. O fato de trabalharmos sob condições degradantes não significa que precisamos reforçar esse aspecto, mas resgatar o sentido dignificante, inclusive para que passemos a exigir melhores condições de trabalho. Fazendo isso, estaremos promovendo a inversão da lógica atual e passaremos a trabalhar para viver e não viver para trabalhar. 12 TEMA 5 – TRABALHO E O FAZER PEDAGÓGICO Agora vamos nos deter um pouco mais sobre o fazer pedagógico, principalmente o realizado no âmbito das escolas. Primeiramente, é necessário afirmar que todas as nossas ações são pedagógicas. O político, na forma como ele desempenha as suas funções, como também na forma como ele se relaciona com seus eleitores, também está educando. O pai/mãe, seja nas relações entre si, seja nas relações com seus filhos/as, também está educando. Entretanto, pensemos mais especificamente no campo educacional. A educação é um trabalho ao mesmo tempo intelectual e manual. O docente, assim como o educando, tanto dispende energia física quanto intelectual. Mais uma vez, retomemos Kant: o ser humano é o único animal que precisa ser educado. Por meio da educação, nos humanizamos. Não temos uma essência que se manifesta espontaneamente, mas precisamos que essa humanização vá se realizando aos poucos. Para que isso aconteça, duas coisas, pelo menos, são fundamentais: o trabalho, em seu sentido extenso, e a educação. Por meio do trabalho, vamos nos produzindo e reproduzindo; por meio da educação, sistematizamos, acumulamos e transmitimos os saberes acumulados. Assim, trabalho e educação têm um sentido pedagógico, isto é, nos ensinam como nos humanizamos. Em que medida o trabalho é pedagógico? Por meio do trabalho, o ser humano humaniza-se. Essa é uma primeira lição que o trabalho nos dá. Da mesma forma, uma segunda lição que aprendemos por meio do trabalho é que ele é uma ação intelectual e física, simultaneamente. Ao pensarmos o trabalho dessa forma, rompemos com a lógica da separação entre trabalho manual e trabalho intelectual em que este é valorizado e aquele é inferiorizado. Ao longo do nosso estudo, compreendemos que aprendemos a trabalhar observando alguém realizar determinada tarefa, imitando e repetindo a ação. Por exemplo, um/a filho/a observa a/o mãe/pai realizar alguma tarefa doméstica qualquer, por exemplo, fazer uma determinada comida. Em um segundo momento, passa da condição de observador/a e passa a imitar, ainda que em um primeiro momento como brincadeira para, no terceiro momento, começar a participar da preparação da referida comida, realizando pequenas tarefas que esteja em condições já de realizar para, em um momento mais avançado, 13 realizar a tarefa sozinho/a. Ou seja, realizamos em uma simples e corriqueira tarefa – cozinhar – os quatro momentos de uma aprendizagem: observação, imitação, repetição e ação. Por fim, por meio do trabalho vamos nos aperfeiçoando, isso porque, por meio do trabalho, como já vimos anteriormente, ao mesmo tempo que transformamos o mundo, também transformamos a nós mesmos e essa transformação é no sentido de nos elevarmos, de nos melhorarmos. Dessa forma, por meio do trabalho podemos demonstrar a dignidade de trabalhar. Para finalizarmos, retomemos a ideia do sentido pedagógico da educação. Esta, nas mais diferentes sociedades, ocorre de maneira formal, não formal e informal. A educação formal é aquela organizada pelos sistemas e mantenedoras de ensino, sejam públicas, sejam privadas. Há um currículo a ser cumprido e toda uma organização e gestão do processo ensino-aprendizagem com locais, tempos e divisões, entre outros elementos, que precisam ser respeitados para que ela seja reconhecida e os resultados sejam certificados. Já a educação não formal é aquela realizada por ONGs, movimentos políticos e sociais, empresas etc., que também pressupõem certa organização, mas que não seguem uma política estatal, bem como um conjunto de normas rígidas para que seja certificada. Por fim, temos a educação informal, que é aquela que ocorre sempre que nos relacionamos e interagimos socialmente. É por meio dessa educação, por exemplo, que são repassados os valores e crenças de uma família, de uma religião, da cultura, dos costumes etc. É por meio da educação informal que uma geração repassa a outra os costumes, as crenças e os costumes que caracterizam uma determinada sociedade. Da mesma forma que no trabalho, também na educação aprendemos por meio da observação, da imitação, da repetição e, por fim, do aperfeiçoamento, quando não nos contentamos em mais apenas repetir como se fazia, para começarmos a inovar, a fazermos diferente de como se fazia antes uma determinada atividade. Tomemos, por exemplo, o aprendizado de um determinado conteúdo de uma determinada disciplina: aprendermos as quatro operações básicas da matemática. Tradicionalmente, aprendíamos as quatro operações básicas aprendendo a ler os números e realizando algumas delas diretamente com os números. Porém, com o passar do tempo, outras formas de aprender as mesmas operações foram sendo criadas, por exemplo, por meio da 14 utilização de materiais que representavam os números, para torná-los mais concretos e não mais tão abstratos. Para finalizar, parafraseemos uma vez mais nosso patrono e mestre Paulo Freire: ao ensinarmos, demonstramos como se aprende e, ao aprendermos, demonstramos como se deve ensinar. NA PRÁTICA Temos a tendência de acreditar que, somente na escola ou em outros espaços formais, aprendemos. Porém, os espaços e momentos de aprendizagem são múltiplos e diversos. Na aprendizagem humana, tanto agem cronos, quanto kairós. Procure alguém que tenha pouca ou nenhuma escolaridade, mas muita sabedoria, e estabeleça um diálogo de aprendizagem de algo que esta faça com maestria. Em seguida, registre essa conversa e identifique que saberes escolarizados ela dominava, mesmo que não soubesse. FINALIZANDO Nesta aula, fizemos um trabalho um pouco mais reflexivo, de sistematização e fechamento. Para tanto, retomamos o sentido humano do trabalho e da educação, e como nos humanizamos por meio dessas duas ações. Tratamos também do sentido objetivo e subjetivo do trabalho e da educação. Com base nesses dois sentidos, propomos resgatar a dignidade do trabalho e da educação, finalizando com uma breve reflexão sobre o trabalho e o fazer pedagógico tanto da educação quanto do trabalho. 15 REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. de A. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 1992. ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 1991. KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Unimep, 1999. MARX, K. A Ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.