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Explorando o labirinto Ensaios críticos sobre o pensamento de Karl Marx Ricardo Luis Chaves Feijó Amazon. Ricardo Luis Chaves Feijó Explorando o labirinto Ensaios críticos sobre o pensamento de Karl Marx SÃO PAULO (BR) / ORLANDO (FL – USA) Amazon– 2023 © 2023 by Amazon. ISBN 9798396258907 Capa e composição: Ricardo Luis Chaves Feijó Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Feijó, Ricardo Luis Chaves Explorando o labirinto : ensaios críticos sobre o pensamento de Karl Marx -- São Paulo / Orlando (USA) : Amazon, 2023. ISBN 9798396258907 Índices para catálogo sistemático: 1. Economia : História 330.09 2. Pensamento econômico : História 330.09 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei no 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Impresso nos Estados Unidos da América / Printed in United States Ao brilhante professor e pesquisador Fabio Barbieri Assim que você tiver feito um pensamento, ria dele. Lao Zi (século IV a.C.) Apresentação Quando comecei a enveredar pelo árduo e prazeroso cami- nho de pesquisador acadêmico em filosofia e economia, meu primeiro desafio, como mestrando na Universidade de São Paulo, foi escolher o tema da minha dissertação e a orientação de um dos docentes do programa de mestrado. Foi então que tive a feliz ideia de tornar-me orientando do doutor Eleutério Prado. Este docen- te, que tinha acumulado um bom número de “discípulos”, aceitou a tarefa e ainda sugeriu que eu pesquisasse um autor austríaco de nome Hayek, prêmio Nobel de economia em 1974 e expoente do pensamento liberal contemporâneo. Na ocasião, muito jovem e imaturo, tinha minhas predileções pela escola marxista, contudo, aceitei a tarefa como um grande desafio. Iria enriquecer a minha cultura em economia e meu conhecimento técnico na área investigando o polêmico autor liberal. Curiosamente Prado tem uma queda por Karl Marx e todo o seu legado, mas ele tencionava investigar autores liberais fazendo uma espécie de crítica marxista a esse pensamento. Foi nesse contexto que ele sugeriu o que seria a minha linha de investigação. Abracei com afinco e entusiasmo a causa. Mergulhei na magnífica biblioteca da FEA-USP, percorrendo a vasta obra de Hayek. Comecei lendo a obra A Ordem Sensorial, depois o Individualismo e Ordem Econômica, segui por diversos livros do austríaco. Percorri também uma extensa lista de referências da chamada literatura secundária, incluindo comentadores de as- pectos da obra de Hayek, biógrafos, críticos e estudiosos defen- sores de seu legado. Com isso, enveredei por temas não apenas econômicos, mas metodológicos e filosóficos. Como fruto desse esforço, elaborei minha dissertação e também a tese de doutorado que resultou no livro publicado pela editora Nobel Economia e Filosofia na Escola Austríaca. Também escrevi alguns poucos artigos no tema que foram aceitos em boas revistas científicas nacionais. Se Hayek e alguns autores da escola austríaca de economia foram-me apresentados pelo excelente acervo das bibliotecas, com Marx e seu legado a aproximação deu-se por influência das livrarias. Assim é que comecei a percorrer as obras de Marx lendo cuidadosamente os seus livros traduzidos pela Boitempo, pela Civilização Brasileira e outras boas editoras. Também encontrei nas librarias excelentes estudos sobre Marx oferecidos por autores como Aron, Attali, Bensaïd, Desai e Harvey. Calvez foi-me apresentado por Aron e já se encontrava na biblioteca da família (herança de meu pai). Ruy Fausto foi uma descoberta um pouco tardia, influência remota de meu orientador (e de colegas) e descoberto na biblioteca. Hagemann, Kosik, Losurdo, Roberts e Teixeira foram apresentados pelos pareceristas anônimos das revistas a que submeti meus trabalhos. Das livrarias, ainda trouxe para casa as biografias de Marx, como as de Gabriel, Heinrich, Jones, Mehring, Netto, Sperber e Wheen. Não apenas relatos da vida de Marx e de pessoas de seu círculo, mas penetrantes análises de suas ideias com base em material novo agora dispo- nível aos especialistas. O biógrafo difamador Pilgrim era uma antiga aquisição de minha biblioteca particular. O estudo aprofundado sobre Marx despertou interesse por suas raízes filosóficas. Mergulhei em Hegel e outros filósofos alemães. De Hegel, li superficialmente a Ciência da Lógica e a Enciclopédia das Ciências Filosóficas, contudo, mesmo não sendo um filósofo profissional pude aprofundar os estudos desse gênio do pensamento alemão por meio de uma imersão séria e profun- da no extenso tratado de Charles Taylor (Hegel: Sistema, Método e Estrutura). Considero bem sucedida minha aventura acadêmica por Marx e seu legado. O mais importante para a carreira universi- tária foi que criei a disciplina de graduação “Economia Política Clássica” (especializada em Marx), no curso de bacharelado em ciências econômicas da FEA-RP. Tal disciplina vem sendo lecio- nada por mim há muitos anos, com boa aceitação dos alunos. Não poderia deixar de mencionar que em algumas poucas ocasiões a mesma disciplina foi ensinada pelos colegas Márcio e Júlio, aos quais agradeço a honra da parceria no ensino. Aproveito para desculpar-me por ter sido um tanto “fominha” por lecioná-la anos seguidos. Outro agradável retorno de meu esforço de pesquisa foram os ensaios aceitos e publicados por importantes revistas cientí- ficas nacionais como Revista de Economia Política, Política & Sociedade, Revista Economia da ANPEC e MISES: Revista Interdis- ciplinar de Filosofia, Direito e Economia. Tais ensaios estão repro- duzidos neste livro, mas não se trata necessariamente da mesma versão apresentada nas revistas. Optei por disponibilizar ao leitor a pesquisa completa, tudo o que escrevi antes dos recortes e acomodações feitas a fim de caber no formato das revistas. Naturalmente que as sugestões dos parecerista foram incorpo- radas nas versões ampliadas aqui disponibilizadas. Dois ensaios do Explorando o Labirinto são inéditos: o Práxis e contemplação, e o Problemas na reconstrução do mate- rialismo histórico. Tais artigos, diga-se de passagem, foram submetidos a mais de uma revista especializada e receberam a contribuição das sugestões de diversos pareceristas. Sinto-me realizado em disponibilizar a um público mais amplo o resultado de minhas investigações. O leitor terá assim oportunidade de julgar, por conta própria, a qualidade de minhas reflexões com base na leitura do material. Gosto muito dele e mal consigo disfarçar certo entusiasmo. De certa forma a orientação de Eleutério Prado de fazer uma crítica de Hayek com base em Marx se tornou uma crítica a Marx com base na escola austríaca. Mas não apenas nela. Daí o subtítulo: “ensaios críticos”. Por fim, agradeço o carinho e o apoio da minha companheira de vida, a também acadêmica professora Vera Lucia Lanchote. O apoio afetivo dos meus filhos Carina e Pedro é sempre impor- tante. Também gostaria de mencionar o colega e parceiro intelec- tual no campo da metodologia e do pensamento econômico, o professor Fabio Barbieri a quem dedico esta obra. Boa leitura! Do autor. 1 Ensaios 1 As origens do anticapitalismo no jovem Marx 5 Introdução 5 Infância de Marx 9 Marx na faculdade 17 Marx jornalista liberal 28 Marx comunista e antissemita 40 Considerações finais 69 Referências 88 2 Práxis e contemplação: uma investigação biográfico- filosófica das ideias do jovem Marx de 1844 a 1848 91 Introdução91 A crítica à práxis 94 Práxis, poiésis e as concepções sobre a natureza humana no jovem Marx 103 O papel da teoria e da contemplação examinados em duas obras do jovem Marx 115 Conclusão 120 Referências 123 3 Problemas na reconstrução do materialismo histórico 125 Introdução 125 A construção do materialismo histórico no jovem Marx 126 O materialismo histórico na nova versão de Habermas 142 Considerações críticas na perspectiva do pensamento liberal 153 Conclusão 160 Referências 164 2 4 A ideia de ciência em Karl Marx 169 Introdução 169 Influência da tradição de Smith e Ricardo e da metodologia de Mill 175 A relação de Marx com o pensamento econômico alemão do século XIX 182 Modelo de ciência na obra Dialética da Natureza 184 A metafísica de Marx e suas implicações para sua visão de ciência 186 O paradigma de ciência adotado por Marx 191 Os ditames da ciência pura confrontando-se com crenças políticas 195 A obra de Marx como arte literária 198 Clareza de exposição em Marx 200 Testabilidade empírica e ausência de falseacionismo na ciência marxiana 201 Considerações finais: síntese da ideia de ciência em Marx 209 Referências 210 5 Teorias essencialistas e o problema da transformação de valor em preços: os casos de Marx e Menger 213 Introdução 213 A visão do processo econômico: Marx versus Menger 215 Teoria do Valor em Marx e Menger: uma comparação 235 O problema da transformação em teorias essencialistas 244 Conclusão 249 Referências 250 3 6 Hayek × Marx: uma comparação extemporânea – 1º ensaio 255 Introdução 255 Epistemologia e visão da economia em Marx 258 Epistemologia e visão da economia em Hayek 278 Referências 304 7 Hayek × Marx: uma comparação extemporânea – 2º ensaio 307 Introdução 307 Comparação sistemática entre Hayek e Marx 307 Conclusão 318 Referências 325 Bibliografia geral da obra 327 4 Figura 1 – Primeira página do artigo “The origins of anti-capitalism in the young Marx”, publicado na Revista de Economia Política da Fundação Getúlio Vargas, em 2019. 5 1 As origens do anticapitalismo no jovem Marx INTRODUÇÃO A última biografia lançada de Karl Marx é do ano de 2018. Trata-se do volume I da obra Karl Marx e o nascimento da socie- dade moderna, de Michael Heinrich. Seu ator afirma logo no início da obra: “O que não falta são biografias de Marx, desde os primeiros trabalhos de Spargo e Mehring já foram publicadas quase trinta grandes biografias de Marx.”1 Há muitas excelentes biografias de Marx, algumas delas verda- deiros romances que mais parecem um thriller de ficção. Embora todas elas muito bem documentadas, o problema, que se coloca para o historiador das ideias é o de separar a verdade factual do que pode ser mera conjectura do autor. Escreve o biógrafo do livro mais recente: “... muitos biógrafos tentem a considerar como fatos as hipóteses que lhes parecem especialmente plausíveis, apresen- tando-as até mesmo como tais...”2 Alguns historiadores das ideias, e escritores biógrafos, como Pilgrim, oferecem especulações enri- quecidas com um pouco de psicologia vulgar, que muitas vezes ultrapassam o limite entre a biografia e a ficção científica.3 Sperber propõe-se a estudar a vida de Marx numa perspectiva do século XIX: 1 Heinrich (2018, p. 25). 2 Heinrich (2018, p. 25). 3 Pilgrim (1992). 6 “[...] uma figura vinculada a um passado histórico, cada vez mais distante de nossa época: a idade da Revolução Francesa, da filosofia de Hegel, dos anos iniciais da industrialização inglesa e da economia política daí decorrente”.4 É evidente que todo biografado deve ser estudado no contexto da época e dos locais em que viveu, mas Sperber alerta contra autores que forçam a barra no sentido de interpretar Marx como um visionário, um autor que do século XIX poderia já ter pensado o século XX. Obviamente trata-se de uma proposição absurda. A pesquisa sobre a vida de Marx ainda é um campo em aberto, em que pesem tantas biografias a respeito, entre outras razões porque o conjunto de manuscritos, publicados ou não, e de cartas, anotações avulsas etc. desse autor, e de todos que o cercam, ainda não está todo ele disponível para os especialistas. A cada ano surge novo material. O arquivo MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe) desde 1920 pretendera disponibilizar aos estudiosos tudo o que foi publicado por Marx, Engels e as pessoas que com eles se relacio- naram. Iniciado na União Soviética, a MEGA conseguiu publicar quase todas as obras de Marx. Infelizmente o esforço foi desconti- nuado quando seu editor, Rjazanov, foi morto por Stalin. O esforço de concentrar as obras de Marx e Engels num grande arquivo retomou em 1975 em pareceria com os alemães (com parte dos arquivos se transferindo para Berlim Oriental). Depois da queda do muro de Berlim, cada vez mais a Academia de Ciência de Berlim- Brandemburgo, ligada à Fundação Internacional Marx-Engels “[...] visa publicar tudo o que Marx e Engels escreveram ao longo da vida. Incluindo anotações rabiscadas nas costas de envelopes...”, tais detalhes não são apenas preciosismo ou mania de colecionar, pois “salientam pequenos detalhes que modificam de forma sutil a imagem que fazemos deles.”5 4 Sperber (2014). 5 Sperber (2014, p. 12). 7 É evidente que todo biógrafo busca pelos principais fatos, acontecimentos e dados históricos que possam influenciar a pes- quisa da vida, da formação intelectual e da obra do biografado. No caso de Marx, interessam as influências do legado da Revolução Francesa de 1789, o papel da religião na interpretação do mundo, o nacionalismo e a vida familiar, dentre outros aspectos. Cabe ao historiador regatar o contexto intelectual e confrontá-lo com o arcabouço mais amplo da vida do personagem investigado. Marx era não acadêmico, mas “manteve muitos dos hábitos e das práticas características dos literatos alemães do século XIX”.6 O objetivo deste estudo é demonstrar, com base em novas fon- tes primárias, em correspondências de Marx recentemente trazidas a público e exploradas em biografias há pouco lançadas, especial- mente as de Sperber, Heinrich e Jones, que o ensaio Sobre a Questão Judaica revela um elemento de antissemitismo que teve um papel fundamental na conversão de Marx ao comunismo. A crítica ao judeu serviu para embasar a tese marxiana de que o capitalismo, identificado com judaísmo, é mau. A tese de que esse ensaio se reveste de um antissemitismo radical não é nova. Aparece, por exemplo, em Raymond Aron, Simon Doubnov e Isaiah Berlin.7 O geógrafo e marxólogo Bensaïd, o biógrafo Wheen e muito outros refutam a tese de um jovem Marx antissemita em 1844 e de que esse antissemitismo teria algum papel na conversão ao comunismo por ele. Bensaïd considera a acusação de antissemitismo um con- 6 Sperber (2014, p. 15). 7 Bensaïd (2010-b, p. 75): “Raymond Aron considerava também Sobre a questão judaica ‘o texto mais antissemita de Marx’ [...] Na literatura histórica sobre a obra, tal interpretação tornou-se uma ideia reconhecida. Simon Doubnov imputa a Marx ‘uma antipatia de renegado pelo campo desertado’ e uma incompreensão teimosa em relação a ‘uma nação cuja história toda constitui uma refutação de sua doutrina estreita’. Isaiah Berlin vê em Sobre a questão judaica simplesmente uma série de ‘clichês antissemitas’ em reação contra uma origem e uma aparecia física (de Marx) estigmatizadas.” 8 trassenso em relação a Marx.8 Mas todos concordam que o ensaio em questão representa um elo indispensável no entendimento da construção intelectual do jovem Marx.9 Não obstante isso, os que refutam a tese do antissemitismo marxiano não conseguem sustentar a posição, e as novas fontes têm reforçado a suspeita, que se transforma em convicção científica, de que não apenas tem-se neste momento de 1843-44 um elemento de antissemitismonos escritos de Marx, mas a demonstração de que tal sentimento ocupou um papel essencial na conversão dele ao comunismo. É isso o que este ensaio procura provar. Para tanto, ele estrutura-se em quatro partes. Na primeira investiga-se a infância de Marx, o drama familiar e as origens de suas convicções filosó- ficas e políticas. A segunda seção explora a formação intelectual de um Marx na faculdade, os anos como estudante em Bonn e Berlim. A outra seção examina cuidadosamente a trajetória de Marx jorna- lista e adepto de um “liberalismo renano”. Essas duas seções irão demonstrar que ele, até então, não apenas deixou de aderir ao comunismo, em suas várias versões, como repudiou-o enquanto alternativa política superficial e inconsequente, carente de funda- mento teórico e filosófico. A quarta seção investiga a conversão do jovem Marx ao comunismo e liga esse processo aos arroubos antis- semitas do manuscrito em questão. Uma última seção de conside- rações finais respalda e fortalece a tese que se retende defender neste ensaio. 8 Bensaïd (2010-b, p. 75): “Isolado do movimento de pensamento em que se encontra, o artigo Sobre a Questão judaica alimentou muitas interpretações e controvérsias. As acusações de antissemitismo e de tendências totalitárias são as mais propagadas pelos procuradores desse processo. De Roman Rosdolsky a Enzo Traverso, leituras mais sérias examinam, no campo da problemática marxista, as ambiguidades e as lacunas que deram sustentação a tais contrassensos.” 9 Bensaïd (2010-b, p. 83-84): “Muitos leitores vigilantes, de Georg Lukács a Stathis Kouvélakis, passando por Auguste Cornu, Georges Labica e Pierre Macherey, mostraram que o artigo de 1844, longe de constituir um objeto teórico à parte, insere-se plenamente na formação do pensamento crítico de Marx.” 9 Não se pretende sustentar a tese de que o antissemitismo tenha ocupado um papel primordial em todo o sistema teórico e filosófico de Marx, tal qual viria a desenvolver ao longo da vida nos anos que se seguiram a 1844. O antissemitismo de Marx era ciclotímico, ora demonstrava apego à tese, ora se retraia. No entanto, diversas declarações dele, desferidas ao longo da vida, deixam a impressão de uma repulsa preconceituosa ao povo de sua base familiar.10 INFÂNCIA DE MARX Karl Marx nasceu em Tréveris, pequena e histórica cidade da Renânia que se tornara bispado desde o século III, localizada em uma religião onde o catolicismo encontra-se profundamente enrai- zado. Antes da chegada das forças revolucionárias francesas era uma sociedade de ordens, na qual o judeu pertencia a um grupo específico dela. Sua posição legal era determinada por suas particu- laridades religiosas. Estavam “[...] obrigados a pagar tributos e obrigações especiais a seus senhores pela prerrogativa de residir no interior de terri- tórios pertencentes a tais senhores...”, E restritos a exercer ocupações profissionais em empresas comerciais ou financeiras. Pode-se falar em discriminação? Talvez não, em se tratando de uma sociedade em que membros de grupos 10 A Carta a Ruge, escrita por Marx em março de 1843, é usado por Bensaïd e outros apologistas de Marx como uma prova de que este engajou-se pessoalmente em favor da igualdade cívica dos judeus e, portanto, não é contra seu povo, pelo contrário, queria emancipá-lo. Veremos, mais adiante, o contexto em que Marx defende a emancipação dos judeus, na verdade uma estratégia para a implementação do comunismo. No entanto, mesmo nesta Carta ele escreve “por maior que seja minha repugnância pela religião israelita, ...”, apud Bensaïd (2010- b, p. 76). Ou seja, além de contrário ao comportamento prático dos judeus, que será criticado no ensaio Sobre a questão judaica, nessa passagem Marx diz com todas as letras ser contra a própria religião hebraica. 10 diferentes possuíam direitos e privilégios diferentes. O regulamen- to dos judeus delimitava ocupações, a taxa de juros que eles podiam cobrar, e regulamentava as transações financeiras por eles realiza- das. Marx é “descendente de longa linhagem de rabinos de Tréve- ris”. Do lado da mãe, aparecem Aaron Lwow (século XVII) e seu filho Joshua Heschel (começo do XVIII) – ambos rabinos de Tréve- ris. O neto também foi rabino da cidade (Moses Lwow). A filha de Moses, Chaje, foi avó de Marx. O marido dela, Mardechai Lewy, veio da Boêmia na República Tcheca. O avô paterno foi o primeiro da família a adotar o nome alemão antigo Marx (Marcos), que depois virou sobrenome. Muitos judeus não tinham sobrenome e foram obrigados a adotar algum. Marx Lewy também foi rabino em Tréveris e um de seus filhos abandonou o judaísmo (Heirinch – pai de Marx). As tropas da república francesa revolucionária ocupam Tréveris, que até então pertencera ao Sacro Império Romano- germânico, não apenas pelas vantagens estratégicas, mas pelas transformações socioeconômicas, para implantar os ideais da revo- lução. “Privilégio das sociedades de ordens, garantidos por decreto, foram substituídos por um governo no qual todos os cidadãos tinham os mesmos direitos perante a lei, e as bases da soberania passavam a ser os desejos da nação e não mais as propriedades hereditárias de um monarca.”11 A elite intelectual da cidade teve forte influência do Iluminis- mo, fortalecida com a chegada dos franceses. Ela se reunia no clube de leitura de Tréveris, no qual um dos membros foi Johann Wytten- bach, diretor do colégio onde estudaria o jovem Karl e que certa- 11 Sperber (2014, p. 25). 11 mente iria influenciá-lo. Sobre a influência desses acontecimentos na formação intelectual do pai de Karl, escreve Wheen: “... durante os anos da dominação napoleônica, impregnara- se das ideais libertárias francesas sobre política, religião, vida e arte, tornando-se ‘um verdadeiro ‘francês’ setecentista, que conhecia Voltaire e Rousseau de cor’”.12 A situação dos judeus de Tréveris, em duas décadas de governo revolucionário e napoleônico, melhorou consideravelmente. Os judeus imaginaram que agora viriam a ter uma nova posição no Estado e na sociedade. A abolição da sociedade de ordens, a imposição de um regime de cidadãos livres e iguais, tudo isso pare- cia favorecê-los. A expectativa da comunidade era a de que a filiação religiosa não teria mais relevância do ponto de vista políti- co. Para infelicidade deles, no entanto, tal expectativa nunca seria concretizada. Pela ação dos funcionários do Estado francês na localidade, os judeus continuaram pagando impostos especiais e tolhidos no exercício de profissões, quanto ao local de residência, na relação com os cristãos etc. Mas, de qualquer maneira, os judeus não poderiam mais ser tidos como um coletivo autônomo dentro da sociedade de ordens. Por pressão de Napoleão, os judeus deveriam se submeter às normas culturais da sociedade laica. Nesse sentido, aboliram-se as leis judaicas de pureza ritual nas forças armadas. Os judeus foram obrigados a adotar nomes de família (surge o sobrenome de família Marx (Marcos) com base no primeiro nome de Marx Lewy). Adotou-se compulsoriamente um sistema de consistórios baseado nas paróquias dos protestantes. Com o chamado “decreto infame” de Napoleão, de 1808, aperta-se o controle dos judeus. Agora estavam obrigados a obter um “certificado de moralidade” para atuarem no comércio. Como saída, muitas famílias judias educam 12 Wheen (2001, p. 18). 12 seus filhos para ocupações mais “profícuas” e “produtivas” do que emprestar dinheiro ou atuar como intermediário. A aversão ao judeu não se alterou, “... basta ser denominado judeu para que se encontre rejeição em toda parte.”13 Ocorrera, inclusive, um pogrom em 1809 contra os judeus em Tréveris (que estavam decorando a Sinagoga para celebrar o aniversário de Napoleão). Os cristãos estavam revoltados com o alistamento mili- tar obrigatório. Em 1811, a família Marx se muda para Osnabrück, no norte da Vestefália.Em busca de melhor salário, Heinrich, o pai, tenta se estabelecer somente como tradutor da corte, pois foi proibido de atuar como notário na redação de contratos e de testamentos. Com a chegada dos revolucionários franceses, Heinrich queria se libertar das limitadas condições sociais e políticas. Deixaria de ser um membro da comunidade judaica para se transformar num cidadão francês, seguidor da religião judaica. Queria ser um “cidadão produtivo”, exercer uma profissão legalizada anterior- mente proibida. Não queria ser um agiota. Após a derrota de Napoleão, o Congresso de Viena (1814-15) reorganiza a Europa. Tréveris agora é parte da Prússia, o poder em Berlim. Antigos funcionários do governo de Napoleão são admiti- dos no serviço prussiano, especialmente presente também no judiciário. Em 1814, Heinrich se estabelece como advogado em Tréveris. Atua na corte de apelação. A situação dos judeus na Prússia, antes da derrota de Napoleão era a seguinte: em 1812, o chanceler Von Hardenberg publica um decreto de emancipação dos judeus. Mas não concede permissão aos judeus de trabalharem como funcionário público. Desde 1810, os judeus não podiam exercer essa profissão (que incluía a de advogado). Heinrich tenta conseguir uma autorização em caráter excepcional, mas não obtém sucesso. Decide mudar de religião, 13 Sperber (2014, p. 30). 13 entre o final da década de 1810 e início de 1820, mais provavel- mente no final de 1819 ele se converte ao protestantismo. Judeus convertidos eram aceitos na esfera pública. Por exem- plo, o líder parlamentar e teórico constitucional Julius Stahl era um judeu convertido. Nas biografias, viceja um curioso e importante debate sobre os efeitos dessa conversão. Três questões são aborda- das nesse debate: a conversão dos pais foi importante na formação do caráter de Karl? Ele desprezava o pai por considerá-lo um traidor sem princípios? Isso foi importante no futuro radicalismo do filho? Voltaremos a esse ponto mais adiante. No momento cabe assinalar que: “A conversão era uma opção costumeira para os judeus da Europa central, interessados em tomar parte da vida pública”14 Na própria Tréveris, a maioria dos membros das mais destacadas famílias da comunidade judaica do século XVIII havia se convertido ao cristianismo nos anos 1830. Os judeus convertidos o faziam principalmente com medo de retornar às condições do velho regime. Por que Heinrich se tornou protestante e não católico? Tréve- ris era católica, assim ele trocou uma minoria por outra. As opiniões dos biógrafos variam. Uns argumentam que o protestantismo era a religião oficial do estado prussiano e a conversão nela poderia facilitar a coisas para Heinrich. Pesaram as conexões entre a Igreja Protestante e o Estado prussiano. Outras interpretações destacam a visão de mundo de Heinrich, que teria maiores afinidades com o protestantismo. O pai de Karl era um convicto defensor do Ilumi- nismo. Segundo a filha de Marx, Eleanor, o avô costumava ler para o pai dela, em voz alta, os trabalhos de Voltaire (defensor do livre mercado). Na biblioteca de Heinrich, havia a obra Os direitos de homem, de Thomas Paine. Heinrich aproxima-se das convicções deístas de Leibniz, Locke e Newton. As ideias racionalistas dos iluministas se acomodavam melhor no protestantismo (o pietismo, no entanto, era contra o Iluminismo). Entre os intelectuais protes- 14 Sperber (2014, p. 34). 14 tantes de classe média, havia o desejo de conciliar o racionalismo e o empirismo com os dogmas da religião protestante (protestan- tismo iluminado e liberal, mas ainda vinculado ao deísmo). Em 1814, Heinrich se casa com uma moça nova, Henriette Presburg, de família judia estabelecida na Holanda, que atuava no comércio. A irmã mais nova de Henriette, Sophie, casou-se com o empresário Philips (avô dos fundadores da famosa empresa com esse nome). Este cuidou da herança da família de Heinrich depois da morte dele. Os Philips tornaram-se, depois, amigos do casal Marx e Jenny. Heinrich ficou em boa condição financeira, entre os 3% das famílias mais ricas da cidade, diferentemente do filho que viveria na insegurança financeira. Heinrich consegui contornar as limita- ções da vida pública e social dos judeus em Tréveris. Tinha muito amigos, era querido na alta sociedade, morou numa das melhores casas, que hoje é um museu. A esposa só se convertera ao protes- tantismo em 1825, depois de batizar os filhos um ano antes. Karl foi o terceiro filho, o primeiro tinha nome judeu (Mauritz Davi), o segundo era uma menina (Sophie). Os demais filhos, a partir de Karl, tinham nomes alemães. Há uma certa confusão sobre o nome de Marx: Carl Heinrich Marx ou Carl Marx ou Karl Marx. O correto é simplesmente este último, como ele é conhecido. Investiga-se a relação de Karl com seu núcleo familiar próspe- ro e numeroso. A irmã dele, casar-se-ia com um holandês proprie- tário de uma editora na Cidade do Cabo. Décadas depois, mostra-se incomodada de ser irmã de um revolucionário comunista. Diz vir de “uma respeitada e querida família de advogados de Tréveris”. Era exatamente isso! Marx não construíra sólida relação emocional com a mãe. Que vivia grávida. Com a morte do pai, travaram discu- tas pelo espólio, pelas propriedades deixadas. Karl não frequentou a escola primaria. Teve aulas particulares. Em 1830, começa os estudos no ginásio de Tréveris, escola secun- 15 dária famosa até hoje (“joia da coroa em termos de educação na Alemanha”15). Estudou clássicos, grego e latim. Os escritos de Marx, ao longo da vida, carregados de frases ou expressões em grego e latim, e com frequente alusão aos clássicos, à mitologia grega etc., demostram a qualidade do ensino nessa escola.16 Na classe, havia sete protestantes (deveria ter uns 32 alunos).17 Os católicos, muitos voltados à carreira na igreja, foram tidos como tolos por Marx. Os protestantes queriam ser funcionários do governo, militares e outras profissões de prestígio. Marx foi um bom aluno, não chega a ser brilhante, boas notas em alemão e latim, e mal em matemática.18 Depois do grego e do latim, escolheu o francês como terceira língua estrangeira (e não o hebraico). O pai já imaginava o filho na carreira jurídica, como ele. A língua e a cultura francesas sempre foram um importante acessório no mundo intelectual de Karl. O ginásio provavelmente seria a pri- meira escola subversiva na vida do jovem. Diversos desses pro- fessores defendiam causas subversivas: um único Estado-nação alemão, governo democrático e republicano etc. Diversos gradua- dos do Gymnasium assumiram ideias subversivas de orientação esquerdista: Karl; o filho do diretor Wyttenbach, filho que foi preso em uma fortaleza devido a suas ideias radicais e suas atividades; Ludwig Simon, filho de um professor, um dos líderes da Revolução de 1848 – eminente membro da estrema esquerda na assembleia nacional alemã. Outro aluno, Victor Valdenaire, também foi ativista. Sem dúvida, um Karl de esquerda começa a nascer do ensino médio. O pai, Heinrich, frequentava clubes de leitura com os burgue- ses mais estimados e abastados de Tréveris. O mais destacado foi o 15 Sperber (2014, p. 41). 16 Jones (2017, p. 59). 17 Cf. Jones (2017, p.57). 18 Jones (2017, p.59): “No geral, seu desempenho era equiparável ao de outros estudantes profissionais protestantes: bom, mas não excepcional. Dos 32 alunos que prestaram o exame final naquele ano, ele terminou em oitavo.” 16 clube Casino. Em 1834, seus membros foram acusados de cantarem hinos revolucionários franceses, inclusive a Marseillaise, e fazerem a defesa da revolução de 1830 na França. Karl, que tinha 15 anos à época, deve ter-se encantado com o evento. Uma revelação para ele, tanto no que diz respeito ao governo prussiano como em relação a seu pai. Heinrich conseguiu se safar da justiça. Alegou ter saído do Cassino antes da “bagunça”.19 Os primeiros escritos de Marx, dos que foram preservados,foram redigidos para as disciplinas de religião e de alemão. Há neles uma versão iluminista do cristianismo. A divindade como luz moral no lugar de um deus pessoal. Notam-se influências kantianas passadas pelo diretor Wyttenbach. Há também influência do barão Johann von Westphalen, pai da futura esposa Jenny, que era conselheiro da administração distrital prussiana e amigo da família Marx. O tema de trabalho para a disciplina de alemão intitula-se Observações de um jovem a respeito da escolha da profissão.20 Dois aspectos dessa redação chamam muito a atenção: a oposição entre a obediência ao que dita o coração e “nossos relacionamentos com a sociedade”, e o outro seria a natureza da função escolhida. A profissão ideal deve ser a que: “... Seja alicerçada em ideias de cuja verdade estejamos convencidos; ... que ofereça o campo mais amplo no qual atuar, visando à humanidade,” e que permita “... nos aproximar do objetivo universal, da completude e da perfeição.” O último ponto viabiliza-se na interseção entre a satisfação pessoal, as aptidões individuais e o aperfeiçoamento da condição humana. A redação faz emprego excessivo de metáforas, e revela certas influências do diretor e as ideias kantianas dele. Marx cita, como exemplos de profissão ideal, o trabalho acadêmico e as atividades 19 Jones (2017, p. 49) afirma que o pai de Karl Marx não era um radical: “Apesar do incidente de 1834, as opiniões de Heinrich não eram as de um revolucionário, e, como escreveu para o filho, ele era ‘qualquer coisa, menos um fanático’ ”. 20 Traduzido em Heinrich (2018). 17 do sábio e do poeta. Nenhum exemplo nas profissões mais cobiça- das pela classe média: militar, administrador, homem de negócios ou advogado. Falaremos algo mais deste ensaio juvenil mais adian- te. A família de Marx tenta se libertar do ambiente restrito e confi- nado da “nação” judaica em troca de uma vida fundamentada nas doutrinas do Iluminismo: abordagem racionalista do mundo, religião deísta, crença na igualdade humana e nos direitos funda- mentais, ideal da comunidade de cidadãos “produtivos”. Tal visão estava parcialmente em conflito com os valores prussianos. O legado deixado pela família, e especialmente pelo pai, e que se reflete na redação do jovem, é que a vida intelectual deve funcio- nar como um meio de melhoria da condição humana. Karl, nessa época, não era um radical, aproximadamente pensava como o pai (e o futuro sogro): liberal e racionalista. O colega de Karl, Ludwig Simon era, sem dúvida, mais extrema- do que ele e o demonstra, na redação como exame na mesma disci- plina, com suas teses radicais: somente a Alemanha (terra dos Deutsche) poderia ser sua terra natal e nunca apenas a Prússia. Revela também repúdio à monarquia prussiana, dentre outros argumentos subversivos. Qual o tipo de revolucionário típico da época, como este Simon? Participou da Revolução de 1848 lutando nas ruas (Karl atuava no jornalismo na época dessa revolução). Defendia ideias revolucionárias que refletem as aspirações dos jacobinos (Robespierre) da Revolução Francesa de 1789 (Karl nunca fora um “neojacobino”). Ideias de um republicano com inclinação a reformas sociais, sem forte oposição ao capitalismo. Marx, quando revolucionário, iria demandar por mudanças na estrutura econômica e nas relações de propriedade. 18 MARX NA FACULDADE Em 1835, Marx inicia seus estudos universitários. De início, na Universidade de Bonn. Viaja para lá na passagem do cometa Halley no céu. Karl toma parte da liga dos poetas (incluía outros futuros líderes revolucionários). Discutiam temas literários e de arte. Escreviam poesias. Fortalece a amizade com o barão, futuro sogro: mesmas ideias políticas liberais, monarquistas constitucionais, se- guiam a doutrina religiosa protestante e eram iluministas. Nos novos ares, a nobreza prussiana reagia, tentando recupe- rar antigos privilégio e direitos, contra as mudanças que ameaçam sua posição. No entanto, a filha do barão, futura esposa de Marx, e o cunhado Edgar, irmão mais novo de Jenny, “eram religiosos racionalistas e aderentes às correntes políticas de esquerda.”21 Von Westphalen apresentou a Karl as obras de Shakespeare, que se tornaram uma paixão duradora do jovem.22 O pedido de casamento foi o primeiro ato revolucionário de Marx: “Muito antes de formular suas teorias comunistas ou absorver o ideário radical e ateu dos Jovens Hegelianos, o pedido de casamento feito por Karl Marx foi sua primeira rebelião contra a sociedade burguesa do século XIX”.23 Segundo o sogro: “um excelente, nobre e extraordinário rapaz”.24 A origem judaica de Marx não deve ter atrapalhado. Evangélicos conservadores não se opunham a judeus convertidos. Em 1836, Marx se transfere para a Universidade de Berlim (atual Universidade Humboldt). Nos primeiros meses, dedica-se a 21 Sperber (2014, p. 59). 22 Wheen (2001, p. 26): “Marx passou a conhecer grande parte de Shakespeare de cor – e fez bom proveito disso, salgando e apimentando seus escritos da vida adulta com citações e analogias oportunas extraídas das peças teatrais.” 23 Sperber (2014, p. 62). 24 Sperber (2014, p. 63). 19 escrever poesias. O amor por Jenny influencia a visão de mundo de Karl, e isso se reflete em suas poesias românticas. Frequentando a faculdade de direito, assiste às aulas de jurisprudência ministradas pelo professor Friedrich Karl von Savigny, “um reacionário magro e severo que, embora não fosse hegeliano, concordava em que o desenvolvimento das leis e do governo de um país era um processo orgânico, que refletia o caráter e a tradição de seu povo.” Também conheceu uma visão alternativa a respeito desses temas, disseminada por Eduard Gans, de quem falaremos mais adiante, “[...] um hegeliano radical que acreditava que as instituições deviam ser submetidas à crítica racional, e não à veneração mística”.25 Durante seu primeiro ano em Berlim, Karl não prioriza a filoso- fia, preocupado que estava em se aprofundar no estudo do direito. Após alguns experimentos literários frustrados, ocorre o encontro com as ideias de Hegel: “tão intoxicantes quanto a cerveja que Marx consumia”,26 tão estimulantes quanto o amor por Jenny.27 A filoso- fia hegeliana atua como um ramo imperialista do conhecimento: incorpora todos os outros, seus métodos e conclusões são repro- duzidos nessas outras formas de conhecimento que também os confirmam. Trata-se de um sistema filosófico que se considera autocomprovável. A fórmula básica desse pensamento vislumbra que 25 Wheen (2001, p. 30). 26 Sperber (2014, p. 64). 27 Dentre os experimentos literários do jovem Marx, Wheen (2001, p. 32) cita a pequena novela humorística Escorpião e Félix, “uma torrente disparatada de humor esdrúxulo e chacota, obviamente redigida sob a influência do Tristam Shandy, de Sterne”, e o drama poético Oulanem. 20 “[...] a consciência de um sujeito em relação aos objetos exteriores a ele acabaria por se transformar em versão ampliada da autoconsciência.”28 As ideias filosóficas de Hegel se transformam numa espécie de culto religioso. A conversão produz um êxtase entusiástico ao se com- preender, o aluno, como espírito finito que é parte do espírito absoluto. Não se sabe o que levou Marx, nesses dias, a abraçar o sistema filosófico de Hegel. Antes, Karl rejeitara o canto de sereia de Hegel, “cuja melodia grotesca e áspera não me atraía”, dizia ele.29 Um biógrafo afirma que, nessa ocasião, Marx parece ter ficado “ligeira- mente desequilibrado” para então descobrir afinidades entre seus experimentos literários e filosóficos e o sistema hegeliano.30 Teses hegelianas são expostas por Marx em carta ao pai de 1837: a história do mundo deve ser entendida e interpretada como a obra do espírito absoluto. Na história, o espírito absoluto adquire consciência de si mesmo. Já no primeiro ano em Berlim, Karl abandona o projeto de escrever uma filosofia do direitofundamen- tada nas ideias de Kant. Vejamos alguns insights hegelianos na cabeça do jovem Marx (tal como expressos por ele em carta ao pai): a percepção e a análise também dependem do objeto: “quando o sujeito circunda o objeto [...] criando categorias arbitrárias [...] a razão da coisa, em si mesma, deve fazer um movimento autocontraditório à frente e descobrir em si própria a unidade”.31 Marx quase enlouquece com essa conversão: 28 Sperber (2014, p. 66). 29 Apud Wheen (2001, p. 33). 30 Vide Wheen (2001, p. 33). 31 Sperber (2014, p. 68). 21 “[...] vaguei como um louco pelo jardim, nas águas imundas do Spree [...] corri para Berlim e desejei abraçar todos os trabalhadores sem qualificação [mendigos?] que se postavam, nas esquinas.”32 Edgar, o radical, futuro cunhado, era o companheiro de Marx em Berlim.33 Em 1838, Marx encontra-se adoentado (tuberculose?) quando ocorre o falecimento do pai. Johann Schlink (advogado de Tréveris) torna-se seu tutor. Conhece dificuldades financeiras com a morte do pai, mas mantem a mesma “vida desorganizada e des- cuidada.”34 Contrai dívidas que não seriam pagas. Começam as histórias do Marx caloteiro, fugindo dos credores. Marx se exercita na arte de mendigar apoio aos familiares e entre os amigos (que mantém por toda a vida). Briga com a mãe pela herança.35 Abandona as palestras na universidade, aos poucos vai per- dendo o entusiasmo por uma carreira no direito. Pensa na carreira acadêmica e começa a trabalhar na preparação de uma tese de doutorado (mestrado?). Aplica os métodos de Hegel no estudo da filosofia da antiguidade. Marx não conheceu Hegel pessoalmente. O filósofo morrera em 1831. Hegel arrebanhara um grupo de discípu- 32 Apud. Sperber (2014, p. 68). 33 Jones (2017, p. 75): “Edgar e Karl também foram contemporâneos em 1837 em Berlim, ambos ostensivamente estudando jurisprudência, assim como o melhor amigo de Edgar, Werner von Veltheim, sobrinho da primeira mulher de Ludwig. Tanto Edgar como Werner sonhavam em ir para os Estados Unidos e viver em uma comunidade comunista.” Wheen (2001, p. 24): “O único amigo de escola dos tempos de Trier [Tréveris] com quem Marx manteve alguma ligação na vida adulta foi Edgar von Westphalen, um companheiro amável e um diletante de inclinações revolucionárias.” 34 Sperber (2014, p. 72). Antes da morte do pai, Karl já demonstra problema em administrar dinheiro, mesmo com uma boa mesada. Escreve Jones (2017, p. 61): “Heinrich estava preocupado também com a atitude do filho em relação a dinheiro. Em janeiro de 1836, queixou-se de que as contas do filho eram ‘desconexas e questionáveis’ ”. 35 Jones (2017, p. 107): “Nos cinco anos seguintes à morte do pai, as relações de Karl com a família, especialmente com a mãe, pioraram muito.” 22 los particularmente numeroso em Berlim, mas grande também em outras cidades alemãs. Marx recebe influências de Eduard Gans, professor de história jurídica.36 Gans era amigo de Alex de Tocqueville, o liberal que estudara os Estados Unidos da América. Marx iria estudar Tocque- ville em 1843, como veremos adiante. Gans também conhecia e ensinava Saint-Simon. Foi... “um dos primeiros alemães a observar com atenção os são- simonianos, primitivos socialistas [comunistas!] franceses que desenvolveram a ideia de propriedade coletiva, em vez de privada, e do planejamento industrial e econômico, em lugar do livre-mercado.”37 Mas não era comunista. Defendia o cooperativismo na produção. “Inúmeras passagens do [futuro] Manifesto Comunista [de Marx e Engels] foram retiradas, quase literalmente, do trabalho de Gans”.38 A principal influência intelectual em Marx na época foram os Jovens Hegelianos. Também proporcionaram as principais cone- xões pessoais e profissionais. Ofereciam uma especulação intelec- tual cuidadosa e mantinham um estilo de vida ruidoso e boêmio. Muito jovem e sem a orientação do pai, agora falecido, Karl foi se tornando um radical em política. Karl também tinha sido influen- ciado por poetas politicamente radicais. Em especial, por Heinrich Heine, cuja poesias faziam críticas à sociedade. O imperialismo de Hegel, que era aplicado a todas as Wissen- schaft, fora direcionado agora à teologia protestante. Formalmente Karl era um protestante. 36 Jones (2017, p. 87): “Parece provável também que, nos primeiros anos de Karl em Berlim, Eduard Gans, um dos mais destacados membros do clube [Clube dos Doutores, em Berlim], o tenha ajudado a definir suas ideias sobre direito. Há registros de Karl assistindo a suas palestras em 1837 e em 1838.” 37 Sperber (2014, p. 74). 38 Sperber (2014, p. 74). 23 “O estágio do desenvolvimento no que o espírito percebe o objeto como o seu outro pode ser relacionado ao Deus do Velho Testamento [...] o espírito que percebe seu objeto como uma forma de autoconsciência, e se perde como parte do Espirito absoluto, corresponde à ideia cristã da Santíssima Trindade.”39 Hegel oferecia a ideia de um deus que não é nada sem a sua criação em oposição ao deus pessoal do protestantismo. David Friedrich Strauss, notabiliza-se por sua obra A Vida de Jesus analisada à luz da teologia, de 1835. Era pastor protestante, professor na Universidade de Tübingen, e é considerado um dos primeiros jovens hegelianos.40 Bruno Bauer, professor de teologia na Universidade de Berlim, desenvolve com mais profundidade e contesta alguns aspectos da contribuição de Strauss. Segundo Bauer, este pensador ignorava a importância da autoconsciência religiosa. “Bauer estaca ficando famoso por sua radical crítica bíblica e sua interpretação intransigentemente secular da filosofia de Hegel”.41 A Essência do Cristianismo de Feuerbach é, de longe, a obra mais genial desse movimento. Generaliza os insights de Strauss e de Bauer, e aplica de modo magistral a filosofia hegeliana na crítica à religião. O projeto a ser desenvolvido por Marx, de uma crítica de cunho hegeliano à economia política dos ingleses, sem dúvida, tem forte inspiração no trabalho de Feuerbach, mesmo que este tenha outro objeto como centro da crítica. Na crítica à religião cristã de Feuerbach, o crente atribui a uma divindade transcendente, ser mítico e supremo, os melhores atri- 39 Sperber (2014, p. 75). 40 Jones (2017, p. 145): “Os jovens hegelianos tinham surgido da batalha de ideias que se seguiu à publicação de A vida de Jesus de David Strauss em 1835.” 41 Jones (2017, p. 113). 24 butos da humanidade enquanto espécie. Ocorre uma alienação reli- giosa, em que o homem se afasta de sua essência ao atribuir tudo o que lhe é bom a um ser exterior. Marx compra essa ideia, que viria a moldar seu pensamento e suas ações. Agora, ele é um ateu, que pretensamente entende e contesta o mecanismo de sua outrora religião protestante, na qual fora batizado. “Esse ateísmo, contudo, possuía certos traços de religião, já que envolvia a transferência do sentido de transcendência de Deus para a humanidade.” 42 Outro idealizador dos Jovens Hegelianos é Arnold Ruge, da Universidade de Halle, editor do Halle Yearbooks. Faz a conexão entre protestantismo, racionalismo religioso e Iluminismo hegelia- no. Por influência de Karl von Altenstein, o hegelianismo torna-se quase a filosofia oficial do estado prussiano. Influência já em declínio nos anos 1830 e que quase se extingue com sua morte em 1840. Com o movimento Despertar de Frederico Guilherme IV, a política educacional e cultural do governo prussiano se volta contra o ideário hegeliano e contra seus proponentes. Em reação a isso, os Jovens Hegelianos se tornam mais radicais, no sentido de mais à esquerda, contudo, esquerda enten- dida no sentido liberal e republicano, não no sentido comunista. Passam a colaborar com a oposição liberal na Prússia e a defender, com grande determinação, ideais democráticos e republicanos. Ateus e democratas se unem ao isolamento imposto a eles pela política oficial. Dos dois, Karl era do grupodos ateus. Tinha Feuer- bach como modelo de intelectual, mas ambos nunca se encontra- ram, nunca trabalharam juntos em um projeto intelectual. Feuer- bach rejeitou Marx. Dos principais Jovens Hegelianos, foi Bruno Bauer que mais se aproximou do jovem Karl. Era tanto um ateu assumido como um defensor de ideias republicanas. 42 Sperber (2014, p. 77). 25 “Autoconsciência era o termo central na intepretação baueriana de Hegel. Não se referia a uma consciência imediata ou particular, mas ao que Bauer chamava de ‘singularidade’, ou processo pelo qual o particular se elevava ao universal. Dessa maneira, o eu tornava-se portador de razão ou da união dialé- tica entre o universal e o particular. O individual, possuidor de singularidade, tinha adquirido os atributos que Hegel conferia ao ‘Espírito Absoluto’ [...] Deus era encontrado exclusivamente na consciência humana. Deus era nada mais do que a autocons- ciência conhecendo-se ativamente a si mesma.”43 Maldoso, arrogante e egocêntrico,44 é possível que Bauer tenha inoculado certo antissemitismo em Karl. Mais de uma década depois, Bauer ficaria conhecido como um conservador e ardoroso antissemita.45 Karl conhecera Bruno no verão de 1937, quando entrou para o Clube dos Doutores em Berlim, liderado por este (embora ainda não fosse doutor).46 Marx é um protegido de Bauer, que tinha planos de inseri-lo no quadro docente da Universidade de Bonn. Incentivou-o a concluir sua tese. Antes de tentar a sorte em Bonn, Marx concluiu sua tese de doutorado (mestrado). Trata de comparar as teorias da natureza encontradas nos filósofos Demócrito e Epicuro. “Marx se propôs a demonstrar que o atomismo de Epicuro não apenas era original, como também mais importante e profundo do que o trabalho original de Demócrito”.47 43 Jones (2017, p. 115). 44 Cf. Sperber (2014, p. 79). 45 Cf. Sperber (2014, p. 80). 46 Wheen (2001, p. 33): “Através de um amigo da universidade, [Marx] foi apresentado ao Clube dos Doutores, um grupo de Jovens Hegelianos que se reunia com regularidade no café Hippel, em Berlim, para noitadas de ruidosa controvér- sia, regada a bebida.” 47 Sperber (2014, p. 81). 26 A escolha de Epicuro como objeto de seus estudos tem relação com o abandono de Marx de influências românticas, pois “Epicuro era o filósofo mais odiado pelos românticos, como antecessor do materialismo francês do século XVIII e de uma nova visão mecanicista do mundo”.48 A tese fazia uma defesa do idealismo como filosofia contra o “determinismo ‘dogmático’ com base na natureza, de Demócrito.”49 Em Epicuro, mas não em Demócrito, “[...] o átomo continha alguma coisa dentro dele que lhe permitia revidar e resistir à determinação de outro ser, e isso, de acordo com Karl, era o começo de uma teoria da autocons- ciência.”50 De modo hegeliano, Karl argumentava que o ideário de Epicuro representava um avanço no processo de desenvolvimento intelec- tual da humanidade, e da autoconsciência do homem (a linguagem obscura e estranha também é hegeliana). “Karl apresentou Epicuro como precursor da filosofia da autoconsciência”.51 Com efeito, as ideias de Epicuro eram um estágio mais elevado de pensamento, já que se encontravam mais próximas da opinião de Hegel a respeito do movimento dialético da autoconsciência, opinião esta que se opunha às concepções não dialéticas de Demócrito, segundo as quais os conceitos relativos ao sujeito que pensa e percebe eram empregados para categorizar o objeto de suas percepções, mas não apresentavam conexões intrínsecas com ele. A influência de Bauer 48 Jones (2017, p. 101). 49 Jones (2017, p. 102). Wheen (2001, p. 38) escreve: “Apesar do tema aparentemente árido, o estudo comparativo que Marx fez de Demócrito e Epicuro foi, na verdade, um trabalho ousado e original, no qual ele se dispõe a mostrar que a teologia devia curvar-se ao saber superior da filosofia, e que o ceticismo triunfa- ria sobre o dogma”. 50 Jones (2017, p. 103). 51 Jones (2017, p. 102). 27 em Marx convenceu este de que o que evolui não é o espírito absoluto, mas a autoconsciência humana. A tese fazia parte de um projeto maior de estudo dos filósofos da autoconsciência, que também incluía os estoicos e os céticos. Foi dedicada ao futuro sogro, o barão. No Prefácio, buscando analogia entre o filósofo e Prometeu, da lenda grega, diz odiar todas as religiões.52 É definitivamente um Marx ateu. A única divindade admitida seria a autoconsciência humana. Pergunta-se então se o ódio às religiões, além de se aplicar ao cristianismo, também se aplicaria ao judaísmo. Seria Marx um antijudaico nesta época? Teria essa postura alguma conexão com o antissemitismo revelado no ensaio de 1843, Sobre a Questão Judai- ca? Voltaremos a essas questões mais adiante Marx tinha sido jubilado na Universidade de Berlim, após quatro anos. Já era um doutor. A tese foi aceita e aprovado em Jena. A data de aprovação é 15 de abril de 1841. Foi um doutorado à distância, não presencial. A Universidade de Jena era a única que não exigia um período de residência e uma defesa formal diante de uma banca. Mas não se trata de um simples diploma obtido pelo correio. Jena era rigorosa e a tese, de fato, um trabalho de conside- rável erudição e conhecimento, escrito por alguém bastante apto à carreira acadêmica. 52 Jones (2017, p. 104): “O prefácio declarava, em palavras atribuídas a Prometeu, que a filosofia se opunha ‘a todos os deuses celestes e terrestres que não reconhecem a autoconsciência humana como a mais alta divindade’. Por essa razão, Epicuro teria sido “o maior representante do Iluminismo grego”. 28 MARX JORNALISTA LIBERAL Após a conclusão do doutorado em filosofia, ocorre uma reviravolta na pretensão de Marx. Ele fica impossibilitado de seguir a carreira acadêmica e passa a se dedicar ao jornalismo contesta- dor. Marx não teria nenhuma chance de ser aceito na carreira professoral em Bonn após a demissão de seu “tutor”, Bauer, em março de 1842. Marx encontra-se agora com 23 anos e desempre- gado. Porém já com o título de doutor. Ele encontra uma nova perspectiva profissional atuando como jornalista crítico e contesta- dor em órgãos de imprensa que faziam oposição subversiva ao Estado prussiano. Por essa época, Karl esperava se beneficiar do espólio do fale- cido pai, mas a mãe descontou a parte que Marx teria de receber da volumosa quantia que lhe tinha sido adiantada nos últimos anos. Ficou “exposto às mais miseráveis condições”.53 Deteriora-se a relação dele com a família de origem. A mãe de Marx era mais presa ao judaísmo que o falecido pai. Foi a última a ser batizada no cristianismo, sob a pressão do marido e certo constrangimento com os familiares na Holanda. Ainda era judia num sentido religioso. O conflito com a mãe e os irmãos talvez tenha reforçado nele o antijudaísmo, como crítica ao sistema de crença da religião, e talvez o tenha aproximado do antissemitismo, atribuindo a aparente avareza da mãe, e a insistência dela em fazer contas, a um traço judeu estereotipado (adoradora do dinheiro, usurária etc.). A mãe, contudo, continuou ajudando-o financeiramente no ano seguinte, na expectativa de que o filho finalmente consiga uma atividade remunerada. Após uma tentativa frustrada de estabelecer-se em Colônia, Marx passa o ano de 1842 na Universidade de Bonn, desenvolvendo um trabalho voltado à carreira acadêmica, preparando sua habilita- ção, uma tese de pós-doutorado, pré-requisito para a aceitação no 53 Sperber (2014, p. 86). 29 quadro docente.54 Estrutura uma palestra sobre lógica. Enquanto isso, seu amigo Bauer faz algum sucesso com o lançamento do panfleto satírico A trombeta [O clamor das trombetas do julga- mento final contra Hegel, o ateísta e anticristo], que fazia muitas referências aos jacobinos.55 Marx não trabalhara nesse panfleto, mas em uma continuação dele, que nunca foi publicada, a respeito das artes hegelianae cristã, atacando o romantismo alemão, com seu anacrônico resquício medieval. Bauer não cedeu à pressão do novo e reacionário ministro de assuntos educacionais e religiosos, Johann Eichhorn, para que contemporize em atuar em disciplinas e linhas de pesquisa menos polêmicas, e acabou sendo expulso da universidade.56 Marx era visto por todos como um colaborador, igualmente subversivo, de Bauer. O desligamento deste, portanto, lhe fechou as portas do meio universitário. Sem um trabalho, não poderia se casar com Jenny. A pressão nesse sentido era grande, pois secretamente seria possível que, após anos de noivado, ambos já teriam tido algum contato mais íntimo. A única saída que ele foi capaz de vislumbrar era atuando 54 Marx acabaria por se firmar como jornalista em Colônia, trabalhando no periódico Gazeta Renânia. Mas em 1841 adia provisoriamente o plano de se estabelecer nessa cidade. Alega as razões: “Abandonei meu projeto de me estabelecer em Colônia, já que a vida de lá é muito tumultuada para mim e a profusão de bons amigos não contribui para a boa filosofia (...) Assim, Bonn continua a ser minha residência, por enquanto; afinal, seria uma pena não ficar ninguém aqui com quem os santos homens possam se zangar.” Colônia era a cida- de maior e mais rica da Renânia, que funcionava “como um polo de atração para pensadores heréticos e para os insatisfeitos da Boêmia, que ofereciam sua profusão de conhecimentos em troca do conhecimento que os magnatas tinham da riqueza”. Wheen (2001, p. 40). 55 Jones (2017, p. 123) escreve que, na Trombeta, “Hegel tornou-se um apologista de Robespierre: ‘Sua teoria é práxis. [...] É a própria revolução’ ”. 56 Jones (2017, p. 117): “A perda de qualquer perspectiva realista de um emprego acadêmico ajuda a explicar o radicalismo crescente da crítica religiosa de Bauer depois de 1839.” 30 como escritor independente, em oposição ao Estado prussiano. Utilizando o trabalho já desenvolvido com Bauer nos seis meses anteriores, e escritos adicionais, propôs diversos artigo a Arnold Ruge que, tendo fechado o Halle Yearbooks, por imposição das autoridades, lançara em Dresden, na Saxônia, fora do alcance das autoridades de Berlim, o German Yearbooks. Ruge, por já considerá-lo um escritor notável, esperou pacien- temente o envio por Marx de algum manuscrito ao jornal. Soma-se ao padrão de conduta de atrasar-se sempre, o fato de que Karl estivera envolvido simultaneamente na colaboração em um jornal na Renânia, o Rhineland News. Não há dúvida de que o envolvi- mento com este jornal foi decisivo no desenvolvimento intelectual de Marx. Porque ele pôde exercer um ativismo político escrevendo para esse veículo. Segundo Jonathan Sperber, “isso o colocou em contato com o ideário do comunismo e estabeleceu os alicerces de sua autodesignação como comunista”.57 Contudo, Sperber não de- monstra essa tese. Marx atua nesse jornal de outubro de 1842 até meados de fevereiro de 1843. Intelectuais radicais de toda a Europa passam a vê-lo não como um pupilo de Bruno Bauer, mas como um autor de mérito próprio, um grande polemista. Ao mesmo tempo, as autori- dades prussianas começam a enxergar nele um agitador subversivo e perigoso. Marx é reconhecido como um escritor notável pela burguesia endinheirada de Colônia. Mas também conquista a admiração de outros seguimentos da sociedade. De comerciantes e banqueiros a membros da câmara de comércio; de republicanos radicais a liberais moderados; de marginalizados intelectuais boêmios a intelectuais de tendências comunistas, todos passaram a admirar as publicações de Karl. Marx se viu finalmente recompensado pelos 57 Sperber (2014, p. 92). 31 esforços de estudante, e passou a nutrir em si séria pretensão no jornalismo de engajamento político. O que Marx publicou nesse periódico e o que atraiu a admira- ção do público? Primeiramente, fez sucesso o artigo sobre liberda- de e imprensa, depois aparece um artigo (publicado no MEGA e não lançado em português), formulado em tom defensivo e tratando do ateísmo dos jovens hegelianos. E procurando “serenar a sensibili- dade religiosa dos católicos da Renânia”. O fato de os dois artigos de Marx terem sido elogiados por amplas camadas da população letrada já induz que, de fato, o conteúdo deles era não radical, mas essencialmente democrático, humanitário e apaziguador de conflitos. Não há nada do Marx radical e comunista que se notabilizaria nos anos seguintes. A conversão ao comunismo não começa aí; mas ao longo do ano de 1843, nos meses em que ele já não atuava mais nesse periódico. O Gazeta Renana surgiu para quebrar o monopólio do único jornal de grande circulação na Renânia, o Cologne News (Colônia é a maior cidade desta região). Dois jovens intelectuais radicais, e bastante ricos, assumiram a missão de implementar o jornal: Robert Jung e Moses Hess. O jornal era subvencionado pela venda de participação em ações, e tinha amplo apoio na comunidade local. Hess era crítico aos Jovens Hegelianos e provavelmente influenciou Marx a se afastar de Bruno Bauer, que nos anos seguintes se tornaria de tutor a grande adversário intelectual. Hess reforça em Marx as ideias dos comunistas Henri de Saint-Simon e Charles Fourier, as quais, com quase toda certeza, ele já conhecia desde o ginásio em Tréveris. Mas não houve nenhum tipo de conversão a esse ideário comunista por Marx. Contudo, ali estava a ideia de que deveria existir uma sociedade na qual a propriedade privada fosse abolida. Tal comunismo de matiz francesa não se coadunava com o ideário do jovem Marx, ainda republicano, liberal, de forte apelo humanitário e essencialmente ateu. O comunismo da época era 32 permeado de uma aura religiosa, semelhante ao comunismo da igreja católica na América Latina das últimas décadas do século XX.58 Estava muito próximo da doutrina cristã; o próprio Hess se aproximou dele após rejeitar o judaísmo ortodoxo de seu pai.59 A maioria dos comunistas da época se envolviam em corporações, eram empresários (como o inglês Robert Owen) que se ariscavam em empreendimentos empresariais com participação dos empre- gados nos lucros e uma forma de corresponsabilidade no sucesso do negócio. Uma forma de tender ao coletivismo por contágio e exemplo bem-sucedido. Marx via essas ideias e esperanças com certo desdém. Ainda não era comunista em 1842; embora um dos fundadores do jornal, Hess, o fosse. O outro fundador, Jung, e a maioria dos que apoiavam o Gazeta Renana, eram liberais, atuando politicamente para des- truir o autoritarismo e os entraves burocráticos do governo prus- siano. Foram os capitalistas, apoiadores do jornal, que impediram Hess de assumir a editoria dele. Tais capitalistas naturalmente não tinham o menor interesse em promover o ideário de Hess de abolição da propriedade privada. A posição de editor acabou ficando com um jornalista versado em economia, Gustav Höfken. É possível que tenha sido ele o primeiro a apresentar a Marx as ideias dos economistas ingleses. Höfken se mostrou um editor inepto e em pouco tempo foi substituído por Adolf Rutenberg, um Jovem Hegeliano de Berlim, cunhado de Bruno Bauer. A essa altura parecia que o jornal iria se abrir para o ateísmo militante de Bauer. Também Arnold Huge e diversos membros do Clube dos Doutores, 58 Jones (2017, p. 170): “Como seria de esperar, os autores franceses, quase sem exceção, relutavam em associar-se ao ‘ateísmo alemão’. [...] O socialismo que surgiu na França a partir mais ou menos do final dos anos 1820 baseava-se, portanto, não apenas na visão iluminista do progresso cientifico e social, mas também na crítica teocrática do jacobinismo e da Revolução”. 59 Jones (2017, p. 128): “Moses Hess, nascido em Bonn numa modesta família de comerciantes judeus [...]” 33 já frequentado por Marx, passaram a colaborar para o Gazeta Renana. Importa destacar os dois longos ensaios escritos por Marx e publicados nessejornal em 1842. Nos ensaios, nota-se a influência da educação clássica do ginásio de Tréveris, e a argumentação hegeliana que aprendera em Berlim. Percebe-se agora um estilo mais inflamado, sarcástico e polêmico, que iria caracterizar os escritos dele daí em diante. “Marx agregou ao estilo dos Jovens Hegelianos sua idiossincrasia, caracterizada pelo emprego de analogias mal- dosamente cômicas e de uma opinião prática, anti-idealista e quase cínica sobre política [...]”60 No primeiro tratado publicado, Marx revela um estilo afirma- tivo, tecendo um elogio à liberdade de imprensa como parte de um louvor mais amplo à liberdade. Parece mais um liberal libertário do que um comunista. A metáfora do fantasma, que depois seria apli- cada no Manifesto Comunista, aparece aqui, mas para atacar o governo prussiano, que, segundo Marx, pressentia fantasmas. A defesa da liberdade é feita na linha do ideário iluminista e dos revolucionários franceses de 1789, como sendo um dos direitos fundamentais do homem. Marx parece um revolucionário empu- nhando ideias do iluminismo e atacando a velha sociedade de ordens. “A argumentação descrevia a imprensa livre, em estilo hegeliano, como a corporificação do espírito do povo – não uma corporificação alienada do espírito, mas uma que se reco- nhecia como tal.”61 Fazia também um elogio à democracia. 60 Sperber (2014, p. 96). Jones (2017, p. 130): “Em suma, a melhor maneira de avaliar os artigos de Karl é considerá-los exercícios de filosofia aplicada.” 61 Sperber (2014, p. 100). 34 O Gazeta Renana foi acusado de tentar substituir o cristia- nismo pela filosofia contemporânea. Foi acusado de ateísta e em 1842 uma ordem foi emitida pelo governo prussiano no sentido de fechá-lo. Mas o jornal já era um sucesso de público, conseguindo fazer alguma sombra ao Cologne News. O próprio governador pro- vincial da Renânia se posicionou a favor do jornal e contra a medida drástica de acabá-lo. Adolf Rutenberg, que diziam se tratar de um alcoólatra, foi responsabilizado pelo radicalismo crescente do Gazeta Renana e afastado da editoria. Os fundadores do jornal, Hess e Jung, apoiam a indicação de Marx como editor. Hess conhecera Marx no ano anterior, quando do retorno desta a Renânia, e ficara bastante bem impressionado com o rapaz: “[...] meu ídolo [...] ele combina a mais profunda seriedade filosófica, com a mais aguda sagacidade, imaginem Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel unidos em uma pessoa [...] então vocês têm o dr. Marx.”62 Em outubro de 1842, Marx assume o posto de editor assisten- te, Rutenberg ainda era o editor oficial, mas perdera influência. O mais importante para Marx é que pela primeira vez em sua vida ele assinara um contrato de emprego. Com essa posição ele poderia finalmente consumar o casamento com sua Jenny. Como editor auxiliar, Marx aproximou-se dos membros libe- rais da burguesia. Oferece o jornal para a publicação de um artigo do presidente da câmara de comércio. Além disso, abre espaço para colaboradores com inclinações políticas mais moderadas, como o antigo estudante radical, Karl Heinrich Brüggemann. Em colabora- ção com Marx, aquele escreveu diversos trabalhos que defendem enfaticamente o livre-comércio e denunciam o protecionismo. Cla- 62 Apud Sperber (2014, p. 103). 35 ramente agora o Gazeta Renana tinha se transformado num jornal liberal.63 Ao mesmo tempo em que se aproximava do ideário liberal, Marx foi se afastando dos Jovens Hegelianos. Sob influência de Hess e de Ruge, Marx rompe com Bruno Bauer e passa a atacar aqueles jovens. Marx percebera que a crítica à ortodoxia religiosa não era o ponto; melhor estratégia seria a de atacar as circunstâncias sociais e políticas que estimulam e reforçam essa ortodoxia. Um plano geral que iria caracterizara a obra de Marx daí em diante já se descortina: estender a crítica à religião em direção a crítica à socie- dade, ao Estado, à política e à economia. O liberalismo da Gazeta Renana, em sua nova fase, também não agradou o governo prussiano, que era intervencionista em muitos aspectos. A resistência do governo “fomentou em Marx sua propensão a não se conter”.64 Escreveria então dois artigos a respeito dos debates sobre as leis contra o roubo de madeira realizados na assembleia provincial. Tais artigos foram tão hostis à assembleia que o governador provincial exigiu a demissão do editor do jornal. Na condição de editor oficial, Rutenberg, que não tinha nada a ver com os artigos de Karl, é que foi demitido. A tese central dos artigos não é comunista. Utilizando-se de sua formação em direito, especialmente sob efeito dos ensinamentos do professor Gans em Berlim, Marx via o roubo de madeira como resultado das transformações na natureza jurídica da propriedade. O jovem Marx estava defendendo uma visão liberal do direito consuetudinário, e que ao coletar madeira no campo os aldeões 63 Jones (2017, p. 134): “Embora o Rheinische Zeitung se apresentasse como um jornal liberal, o ‘Estado Racional’ invocado por Karl era bem distinto do Estado do liberalismo constitucional. Na verdade, era uma atualização da polis grega, que ele e Bruno Bauer tinham louvado n’A Trombeta.” 64 Sperber (2014, p. 106). 36 estavam apenas obedecendo a uma tradição estabelecida.65 Do ponto de vista das vendas, a política pró-liberalismo de Marx foi bem-sucedida. No final de 1843 o jornal alcançara 3300 assinantes, quantia capaz de sustentá-lo com folga. O próprio Marx testemunhou que foi o período como editor do Gazeta Renana que o aproximou da questão social, do debate sobre a condição das classes menos favorecidas. É provável que a gênese das ideias comunistas esteja ligada a essa preocupação. Mas há algo mais envolvido na conversão de Marx, conforme iremos explorar mais adiante. E acreditamos que esse algo foi ainda mais importan- te na formação das ideias anticapitalistas de Marx que a preocu- pação com os pobres. Afinal, o livre mercado, inclusive no mercado de filantropia, é a maneira mais efetiva de se eliminar a miséria humana. Isso estava na cartilha liberal e o jovem Marx, a essa época, embora já com suas propensões ao radicalismo de esquerda, apro- ximava-se do ideário liberal. Marx já tinha sido apresentado às teorias de Saint-Simon, em sua tenra juventude em Tréveris, pelo barão Von Westphalen, e depois pelo professor Gans em Berlim. Sperber aponta os últimos meses de 1842 como o período em que Karl inicia seus primeiros estudos sistemáticos sobre o comunismo. Mas o próprio Sperber reconhece que “[...] a tentativa de traçar uma ligação direta entre as investigações e os escritos iniciais e a posterior teoria comunista de Marx pode levar a conclusões bastante capcio- sas”66 65 Marx protesta contra o número crescente de condenados por furto de madeira, especialmente de mulheres e crianças. Sem ser comunista, o jovem Marx defende a revisão do direito de propriedade agrária de modo a acomodar-se à agricultura de subsistência dos camponeses. No entanto, além do direito de coletar madeira em propriedades particulares os camponeses queriam liberdade para participa- rem do mercado de madeira. Ver comentários a respeito em Jones (2017, p. 45). 66 Sperber (2014, p. 108). 37 Certamente os debates sobre livre comércio e protecionismo aproximaram Marx da economia política e não do comunismo. O ensaio aponta a culpa pela pobreza às políticas do governo prussiano, não aos capitalistas e à economia de mercado. Marx, em 1842, era anticomunista: “[...] os pronunciamentos públicos iniciais que ele fez sobre o tema do comunismo estavam longe de ser favoráveis; na verdade, foram notadamente anticomunistas”.67 Mesmo na fase comunista, a partir de 1843, Marx continuaria a se opor a muitos aspectos do comunismo que aprendera no ano anterior. Na fase de coeditor do Gazeta Renana, Marx participa de um grupo de discussão, um círculo semanal de debate e um grupode leituras, envolvendo liberais e esquerdistas, sobre questões sociais e o próprio comunismo. Não se conhece a exata discussão destas reuniões, porém é aprovável que alguns comunistas (socialistas) franceses tenham sido debatidos, como Victor Considérant, Pierre Leroux e Proudhon. As ideias comunistas causaram uma impressão negativa no jovem Marx de 1842. Ele associou tal ideário aos Jovens Hegelianos de Berlim, com um radicalismo e um estilo de vida típico que agora Marx rejeitava. Karl ironiza os artigos da autoria deste grupo publicados em seu jornal: 67 Sperber (2014, p. 108). Jones (2014, p. 164): “Naquele estágio, sua atitude [de Marx] para com os escritos explicitamente comunistas e socialistas ainda era de cautela. Em outubro de 1842, em resposta a acusações de simpatias comunistas feitas pelo Augsburg Allgemeina Zeitung, ele disse, em nome do Rheinische Zeitung, que não achava que ideias comunistas ‘em sua forma atual tenham sequer realidade teórica’. Declarou que escritos como os de Leroux, Considérant e acima de tudo ‘a obra afiada de Proudhon’ não poderiam ser rechaçados sem ‘longo e profundo estudo’.” Cf. Wheen (2001, p. 48). 38 “[...] espuma de cerveja impregnada por revolta global, contudo, negligentemente vazia de ideais e permeada por alguma dose de ateísmo e comunismo (os quais os cavalheiros nunca estudaram).”68 Como editor, passou a rejeitar os artigos desses Jovens Hege- lianos.69 Escreve Marx num texto publicado na Gazeta Renana: “[...] exigi [deles] um debate completamente diferente, e mais profundo, a respeito do comunismo, se há necessidade de uma discussão.”70 Marx estava se referindo e criticando a dois artigos publicados na revista em defesa do comunismo, do fim da propriedade privada. Em vez de aderir a essa bandeira, Marx oferecia um arsenal de críticas liberais às condições vigentes na Alemanha, culpava a intervenção do Estado e a burocracia pela situação. Um dos argu- mentos contra o comunismo, lançado em sua réplica, é bastante conhecido. Dizia que o jornal não reconhece no comunismo qual- quer realidade teórica, menos ainda qualquer esforço no sentido de uma realização prática. A implementação intelectual do comunis- mo seria um perigo, pois isso poderia “derrotar nossa inteligência, dominar nossos sentimentos”.71 Para enfrentar esse perigo, propu- nha um estudo cuidadoso dos trabalhos de comunistas proeminen- tes, estudo que ele mesmo ainda não havia feito.72 68 Sperber (2014, p. 109). 69 Wheen (2001, p. 48): “[...] a assunção da responsabilidade editorial havia exercido um maravilhoso poder de concentração em sua mente [de Marx]: as caçoadas juvenis já não eram aceitáveis [...] o novo editor deixou claro que não mais permitiria que eles acharcassem o jornal numa torrente verborrágica”. 70 Sperber (2014, p. 109). 71 Sperber (2014, p. 111). 72 Em carta a Arnold Ruge, de maio de 1843, Marx escreve: “Sendo assim, não sou favorável a que finquemos uma bandeira dogmática; ao contrário. Devemos procurar ajudar os dogmáticos a obter clareza quanto às suas proposições. Assim, sobretudo o comunismo é uma abstração dogmática, e não tenho em mente algum 39 Marx pensava as questões sociais segundo o modelo de um liberalismo do século XIX, pró-capital e pró-livre-mercado, talvez mais preocupado com os pobres do que outros liberais. Ao exercer o cargo de editor do jornal, revelou suas aptidões jornalísticas, seu talento polemico, “que inspirava os amigos e enfurecia os inimi- gos.”73 Apesar do sucesso alcançado por suas publicações, e de elogios à sua atuação como editor do jornal, ele se cansou de todo os seus esforços para apaziguar as autoridades, para evitar as críticas e os cortes do censor. Mesmo ideias moderadas eram censuradas. Frus- trado, escreve a Ruge: “É difícil levar adiante os deveres de um servo, mesmo pela causa da liberdade, e lutar com uma mão atada às costas. Eu me cansei da hipocrisia, da estupidez de autoridades rudes e de nossa predisposição em se curvar, adular, virar as costas e procurar as palavras certas”.74 comunismo imaginário ou possível, mas o comunismo realmente existente, como ensinado por Cabet, Dézamy, Weitling etc.” Apud Bensaïd (2015-a, p. 11). Wheen (2001, p. 49) observa que “a possibilidade de o próprio Marx [à época] discutir o comunismo era prejudicada pelo fato de ele não saber coisa alguma a esse respeito. Seus anos de estudos acadêmicos haviam-lhe ensinado toda a filosofia, teologia e direito de que um dia poderia precisar, mas na política e na economia, ele ainda era novato.” Para Wheen, o artigo sobre o furto de madeira em florestas particulares foi a primeira incursão de Marx no território inexplorado da política e da economia. “Esse roubo legalizado obrigou Marx, pela primeira vez, a pensar nas questões da classe, da propriedade provada e do Estado.” 73 Sperber (2014, p. 117). Wheen (2001, p. 52): “O importante era que, aos vinte e quatro anos de idade, ele já manejava uma pena capaz de aterrorizar as cabeças coroadas da Europa.” 74 Apud Sperber (2014, p. 119). Ver também a carta que Marx escreve a Ruge, comunicando seu afastamento da Gazeta Renana, que de qualquer maneira tinha sido fechado pelo governo: “É muito ruim ter que fazer trabalhos subalternos mesmo em nome da liberdade; de lutar com alfinetadas, e não com porretes. Estou cansado de hipocrisia, de estupidez, de flagrantes arbitrariedades, e das nossas 40 MARX COMUNISTA E ANTISSEMITA Marx queria expressar suas ideias democráticas e republi- canas, e mesmo ideias radicais. Em contato com Ruge, lhe é ofereci- da a editoria de um jornal publicado no exterior, livre das garras do censor prussiano. Pensou-se inicialmente em publicar a revista em Zurique, com distribuição por toda a Alemanha. Por fim, acertaram que o novo jornal seria publicado na França, os Anais Franco- alemães. E que Marx deveria se mudar para Paris. Marx receberia um bom salário de 550 Táleres anuais, quase a metade da renda de seu falecido pai. Acrescido ainda de honorários para cada artigo publicado. O apoio financeiro a uma vida burguesa estava resolvi- do. Feito o contrato de emprego, Marx viaja com sua noiva, acompanhado de um pequeno séquito, à cidade balneária de Kreuz- nach, a fim de se casarem. Em 19 de junho de 1843, ocorre uma primeira cerimônia, como exigido pelo código napoleônico, ainda vigente, seguido por uma solenidade religiosa na igreja protestante da localidade. Após a lua-de-mel, permanecem em Kreuznach até meados de outubro, antes de partirem para Paris. Nesses meses, dividem a casa com a mãe de Jenny e o cunhado Edgar, um obtuso comunista no estilo francês. Nesses primeiros meses de casado, Marx teve tempo livre para se dedicar ao trabalho intelectual e escrever uma análise crítica ao livro de Hegel Filosofia do Direito. Não confundir com a Introdução escrita no ano seguinte e publicada nos Anais Franco-alemães. Na cidade balneária, Karl pôde contar com a excelente biblioteca que havia por lá. Além de escrever o livro, ele fez extensas anotações, muito mais do que o exigido para a obra em si. Confeccionou amplos testos sobre a história dos Estados Unidos e dos principais países europeus. Na ocasião, mesmo sem escrever sobre isso, mesuras e vênias, de nossas negaças e sofismas sobre o uso de palavras. Consequentemente, o governo me devolveu a liberdade.” Jones (2017, p. 143). 41 estudou clássicos da teoria política, incluindo-se trabalhos de Mon- tesquieu, Maquiavel e Rousseau. O manuscrito sobre a teoria do direito de Hegel, mesmo inacabado, como tantas das empreitadas intelectuais de Marx, foi sua primeira incursão no campo da teoria. A Crítica da filosofia do direito de Hegel, além de apresentar as reflexões hegelianas a respeito do Direito, trata de questões políticas, já trabalhadas enquanto editor do Gazeta Renana no ano anterior, agora sob forte influência do ideário de Ludwig Feuer- bach. O ponto de