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GESTALT AULA 1 Prof.ª Luiza Sionek 2 CONVERSA INICIAL Olá, estimado aluno! Devido a psicanálise ser também uma abordagem da ciência psicológica, e manter com esta afinidades e diferenças, é importante que conheçamos um pouco sobre algumas importantes correntes teóricas e metodológicas desta ciência, suas influências. A Psicologia é marcada por diversos fundamentos teóricos e epistemológicos, a depender da Abordagem Psicológica que está em questão. Dessas abordagens se desenvolvem práticas de tratamento como, por exemplo a Gestalt-Terapia, que além da própria psicologia da Gestalt, tem como influências as filosofias Fenomenológicas, do Existencialismo e do movimento do Humanismo. Para começarmos falando sobre Gestalt-terapia, primeiro abordaremos sobre o estudo do ser humano e da dinâmica de suas relações sob o enfoque existencial fenomenológico. Isto porque o movimento que despertou a elaboração desta nova abordagem surgiu de uma mudança de curso perante as correntes psicológicas tidas como forças da época: a teoria psicanalítica e o behaviorismo. O que começava a ganhar vigor, então, era o movimento humanista na Psicologia. Neste percurso, estudaremos alguns temas que ajudaram a dar forma ao movimento humanista. Primeiramente, falaremos do surgimento da terceira onda em Psicologia, pautada em princípios filosóficos que também ganhavam potência em meados do século XX. Entre estas filosofias, investigaremos a Fenomenologia, o Existencialismo e o Humanismo como fundamentos para o estudo do ser humano e suas relações. Por fim, conheceremos como tais filosofias constituem elementos epistemológicos da Gestalt-terapia. TEMA 1 – SURGIMENTO DA TERCEIRA ONDA EM PSICOLOGIA Pode ser que você já tenha ouvido falar que a terceira força ou onda da Psicologia é constituída pela Fenomenologia-Existencial. De acordo com Evangelista (2020), este é um equívoco comum na literatura brasileira. Segundo o autor, o movimento da terceira onda, advindo de psicólogos humanistas americanos, como Carl Rogers, é composto também por tentativas de “legitimar científico-naturalmente suas investigações, mas, para isso, recorreram ao método científico-natural estatístico e generalizante” (p. 211). Não queremos 3 aqui julgar o que há de errado e certo nesses esforços, até porque, como falamos anteriormente, há influência do Humanismo, da Fenomenologia e do Existencialismo na construção da Gestalt-terapia. O que almejamos aqui é separar cada teoria e, ao fim desta aula, esclarecer como elas embasam a Gestalt-terapia. Sendo assim, independentemente de como foi feito, o movimento humanista tentava dar conta daquilo que os autores consideravam faltante na psicanálise e no behaviorismo. E aqui perguntamos: o que teria de humanista nessa nova onda que não tinha nas outras forças da Psicologia na época? Segundo Evangelista (2015, p. 59-60), A vertente americana da psicoterapia existencial é influenciada pelo Humanismo Individual que, quando aparece na Psicologia, configura- se como um retorno ao estudo da experiência consciente. Torna-se a “Terceira Força da Psicologia”, que se opõe à objetividade do behaviorismo e ao reducionismo psicanalítico do comportamento à dinâmica pulsional e ocorre concomitantemente às transformações do pós-guerra da sociedade americana, que acentuam a tolerância, a permissividade, a auto-expressão e o centramento no sujeito. Enxergamos, assim, que a tentativa inicial da terceira força era se contrapor aos ideais psicológicos mais fortes da época, como forma de dar mais poder à pessoa. Visava-se, então, ultrapassar a condição animalesca do ser humano, na qual ele estaria sob influência dos supostos “instintos”, ou pulsões (psicanálise), ou a previsibilidade do seu comportamento (behaviorismo). Tendo a pessoa como centro e reconhecendo-a como responsável por seu próprio espaço no mundo, o trabalho psicológico daria mais autonomia às escolhas e ações da pessoa na sua relação com o mundo. Diante disso, escolas filosóficas foram ganhando espaço no cenário da Psicologia, dando lugar a ideias que valorizavam a experiência imediata humana como única e relacional. Nesse caminho, as influências da Fenomenologia, do Existencialismo e do Humanismo passaram a fazer parte da Psicologia como um todo. Um novo olhar sobre o ser humano estava surgindo, ampliando o conhecimento sobre o fenômeno humano de maneira atualizada em relação ao que havia antes. TEMA 2 – O QUE É HUMANISMO? Para entendermos a origem do pensamento humanista na filosofia, é importante compreendermos a premissa humanista. A ideia primordial do 4 humanismo e de qualquer abordagem humanística é que a pessoa é o centro, isto é, criadora do mundo e de si mesma (Arendt, 1994, citado por Evangelista, 2015). Nesse sentido, datamos o início do humanismo naquele conhecido filósofo, Sócrates, o qual inaugurou o olhar para nós humanos como detentores da verdade, a qual só será despertada a partir do método dialético. A partir disso, o homem se torna a medida de todas as coisas e deve buscar em si o sentido para sua vida. O Humanismo traz a ideia de que a pessoa é livre e responsável por si mesma, centro de suas próprias decisões e de seu lugar no mundo. Em algum grau, isto se assemelha ao pensamento individualista meritocrático que existe no mundo atual, em que há a ideia de que conseguiremos chegar aonde quisermos dependendo do nosso esforço. No entanto, estamos apenas no começo da aula e no começo do trabalho sobre Humanismo. Falamos sobre o Humanismo Individual como um dos componentes da terceira onda, mas lembremos que há mais de uma forma de humanismo. Segundo Evangelista (2015), apesar de surgir em um esforço de ir além do behaviorismo e da psicanálise, a Psicologia Humanista também fala de um momento de revolução nos Estados Unidos. O autor explica que os valores da sociedade americana estavam pautados em materialismo, além de vitória e domínio sobre outros – países e pessoas – a qualquer custo, o que também se demonstrava nas guerras da Coreia e do Vietnã. Diante disso, críticas começam a surgir nos movimentos hippie, antirracistas e no uso experimental de drogas (Evangelista, 2015). Maslow (1908-1970) aparece então como fundador da Psicologia Humanista e impulsionador da Terceira Força, com alguns traços em comum com o Existencialismo, que também ganhava vigor no pós-Guerra, predominantemente na sociedade europeia (Evangelista, 2015). Com fundamentação teórica (mas insatisfação) no behaviorismo, o psicólogo americano começa seus trabalhos com empenho em comprovar suas ideias com o método científico-natural (Evangelista, 2015). Destacamos, por fim, o que Evangelista (2015, p. 60) considerou alguns pontos em comum com o Existencialismo, filosofia que trabalharemos mais à frente: reconhecimento de que o homem é realidade e potencialidade, natureza e divindade; a importância de uma “antropologia filosófica” que diferencie radicalmente o homem; a ênfase no caráter auto- realizador, projetivo de si; as variáveis humanas escolha, decisão, 5 vontade, autonomia e responsabilidade; o papel fundamental do futuro no desenvolvimento. O movimento humanista surgiu como uma energia a favor de ultrapassar o que havia como força da época. Vimos, até agora, o que ele teve de diferente e até de similar às psicologias da época. Dando significado à onda que ajudou na elaboração da Gestalt-terapia, esta foi apenas uma das correntes filosóficas que dão sentido à nossa abordagem. TEMA 3 – O QUE É FENOMENOLOGIA? Para falarmos sobre Fenomenologia, vamos começar destrinchando a palavra em si. Para logia, temos o significado de “estudo, explicação”, o que resulta em estudo do fenômeno. E o que quer dizer fenômeno? Esta é uma palavra que vem do verbo grego phainesthai,o qual pode ser traduzido como “aquilo que se manifesta, que se mostra”. Diante disso, temos a Fenomenologia como o estudo daquilo que se manifesta. Para Dartigues (1992), a Fenomenologia nasceu propondo uma terceira via entre a filosofia especulativa da metafísica e a ciência positivista. “O pensamento positivista vai sendo questionado pela impossibilidade de haver um sujeito inteiramente livre de sua subjetividade. A pura subjetividade passa então a ser considerada uma ilusão” (Lima, 2008). A mudança de paradigma passa então a buscar mais do que o indivíduo como centro, mas como uma parte do fenômeno que está sendo observado. Isto é, qualquer evento que se manifesta, quando se manifesta, está coberto de conhecimentos apriorísticos para ser analisado. Compreender o fenômeno, logo, também é compreender os pré-conceitos da pessoa que está observando o fenômeno. Segundo Forghieri (1993), “a reflexão fenomenológica vai em direção ao ‘mundo da vida’, ao mundo da vivência cotidiana imediata, no qual todos nós vivemos, temos aspirações e agimos” (p. 18). Sendo assim, a fenomenologia propõe-se a ser uma ciência descritiva das essências das vivências. “Ao invés de fatos, temos fenômenos. Fatos somente são obtidos por abstração. Fenômenos são vividos” (Holanda, 2003, p. 46). A fundação da Fenomenologia surgiu como uma das bases para o movimento da Terceira Força da Psicologia. A ruptura com as teorias psicológicas vigentes da época buscou ultrapassar as perspectivas deterministas e generalizantes das ciências da época por meio do olhar para a 6 experiência da pessoa como singular. Feijoo (2014) explicita dois aspectos essenciais para o início da Fenomenologia: a criação de método e a compreensão de intencionalidade. 3.1 Método fenomenológico Precursor da Fenomenologia, o filósofo alemão Edmond Husserl (1859- 1938) defendia que o estudo experimental revelaria a essência de maneira velada, cabendo à psicologia desvendá-la e compreendê-la, o que só seria possível havendo uma superação dos preconceitos naturalistas que embasam o experimentalismo (Raffaelli, 2004). A atitude natural, nesse sentido, diz respeito aos “juízos de realidade ou valor que espontaneamente somos levados a fazer” Amatuzzi, 2009, p. 95). Estes preconceitos também têm a ver com genuínos caminhos que fazemos em generalizar e tornar o comportamento humano estatística. Como vimos anteriormente, isso também foi uma tentativa da própria terceira onda, como forma de se afirmar como Força da Psicologia. E como superar esses preconceitos e transcender a atitude natural? Para Husserl, isto só seria possível por meio da redução fenomenológica, ou epoché. Fazermos a redução fenomenológica implica em abrir mão das opiniões preconcebidas sobre o fenômeno de maneira a olhá-lo sem o transporte espontâneo de nossas realidades em direção a ele (Amatuzzi, 2009). O método fenomenológico, logo, objetiva se aproximar do fenômeno por meio da descrição dele tal como aparece no momento. Esta descrição só se faz possível justamente com a suspensão dos valores e preconceitos que compõem o fenômeno. Com ela, transcende-se a atitude natural e os caminhos de acesso à verdade do fenômeno são traçados. 3.2 Intencionalidade da consciência Compreendemos um pouco sobre o método fenomenológico, um método para se vislumbrar o fenômeno que consiste na descrição daquilo que se manifesta, de forma a contemplar o fenômeno tal como aparece. A partir disso, surge a questão da intencionalidade. No caminho de se aproximar do fenômeno da consciência, Husserl encontrou que a essência dele está na intencionalidade da consciência (Feijoo, 2014). E o que significa isso? O princípio da intencionalidade da consciência fala sobre como a consciência sempre é intencional, é sempre “consciência de” algo. Sobre isso, 7 Feijoo (2014, p. 443) explica que: Estruturas intencionais dizem sempre do caráter de cooriginariedade sujeito e objeto, ou seja, quando um dos pólos aparece, o outro imediatamente acontece, sem nenhum intervalo espaço-temporal entre eles. Elimina-se, assim, a ideia de intervalo espaço-temporal e, consequentemente, de qualquer estrutura de causalidade. A consciência é, para este filósofo, transcendente, nunca se retém em si mesma, mas se vê projetada por seus próprios atos para o campo dos objetos correlatos. Na medida em que a consciência se realiza através de seus atos, ela sempre transcende o campo de realização desses atos. Com isso, o que temos é uma consciência transcendental, não uma consciência em si. A consciência é sempre com relação a algo, mas não numa relação sujeito-objeto, e sim como coexistência. A transcendência vem justamente no sentido de não ser finita em si ou em um objeto, mas coincidente a ele em determinado tempo e espaço. Curiosamente, se falamos de Sócrates como primeiro humanista na história da Filosofia, aqui iremos no sentido contrário do que este propunha. Enquanto que para ele a razão determinaria as causas para os comportamentos humanos, a Fenomenologia elimina qualquer estrutura de causalidade com seus fundamentos. Não há relação causa e efeito à medida que o objeto não se encontra antes ou antes do sujeito, mas concomitante a ele no espaço-temporal. TEMA 4 – O QUE É EXISTENCIALISMO? Começaremos o tema 4 com uma citação de Lima (2008, p. 31): Para Husserl, a consciência era pura e a redução fenomenológica totalmente possível; no entanto, para a Fenomenologia existencial, já não é possível suspender e abstrair-se de valores e preconceitos, pois, como afirmou Merleau-Ponty, a consciência é constituída de interferências constantes do mundo, numa correlação intersubjetiva em constante ambigüidade [sic]. 3É a existência precedendo a essência. O homem passa a se constituir a partir do momento em que ele existe, vive, cogita e estabelece suas crenças. Os valores que vão sendo formulados passam a fazer parte de suas escolhas e da sua relação com o mundo. Se na Fenomenologia de Husserl o fenômeno da consciência era repleto de pré-conceitos que poderiam ser suspendidos na atitude fenomenológica, o que surge com o Existencialismo vem para complementar uma visão talvez utópica. A ideia principal do Existencialismo consiste no entendimento de que a existência precede a essência. Não há uma essência pré-construída que dá forma à existência antes que ela aconteça. Isto contraria qualquer determinismo ou ideia de que há algo anterior à vivência que a defina. O que dá caráter à 8 existência é ela própria na medida em que é vivida. Esta nova perspectiva filosófica passa a compreender a pessoa como um ser-no-mundo (Lima, 2008). Advindo de Heidegger (1889-1976) em Ser e Tempo, o termo ser-aí-no-mundo (ou Dasein) se constrói com a ideia de que a condição da pessoa é estar jogado “em contextos históricos significativos sedimentados (mundos) e, a partir deles, se retirar os modos de entender a si mesmo, outros e coisas” (Evangelista, 2015). Nossa existência é retratada justamente na relação com o mundo, nunca somos seres puramente isolados do que está à nossa volta. “Que significa dizer que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiro existe, se encontra, surge no mundo, e que se define depois” (Sartre, 2009, p. 619). Nesse processo de contínua interação pessoa-mundo, os pensadores existencialistas nos forneceram alguns temas que ajudam nosso olhar sobre a existência. 4.1 Liberdade e responsabilidade Para começarmos o estudo sobre a existência, investigaremos a questão da liberdade e da responsabilidade. Como não há determinismo, não há essência prévia à nossa existência, somos liberdade (Sartre, 2009). À medida que somos liberdade, podemos escolher qualquer caminho em qualquer situação. Se a existência é liberdade, como explicar a constatação óbvia que muitas pessoas fazem de sua própriarealidade, em que não se sentem livres em suas escolhas quer seja na vida pessoal, seja na vida profissiona? Como seres-no-mundo, nossa liberdade não é pura e radical. Tudo que fazemos afeta o mundo, assim como tudo que outros fazem nos afeta. A liberdade, assim, é condição primordial do comportamento humano, mas é realizada em um mundo repleto de outras existências. Aqui, respondemos apenas em parte à pergunta colocada acima. Nossa liberdade como seres-no-mundo não caminha sozinha. Sempre que aplicamos nossa liberdade em escolhas e ações, temos um papel no campo interacional pessoa-mundo. Este papel é conhecido como responsabilidade. Isto é, conforme nos colocamos no mundo com liberdade, temos responsabilidade por nós e pelo mundo (Sartre, 2009). Não é uma questão de controle sobre nós e o mundo, mas de reconhecimento do lugar que assumimos quando agimos no mundo. 9 Escolhemos diante de outros e os outros escolhem diante de nós. Nosso lugar no mundo é livre, mas com a condição de sermos responsáveis por este lugar. Nossa escolha diz respeito à nossa posição no mundo e como chegamos no mundo. Ser-no-mundo implica em estarmos num mundo que é anterior a nós, mas também em constante transformação nesse processo incessantemente interativo. Estando no mundo, podemos assumir escolhas baseados no que achamos que esperam de nós. De certa forma, aqui, estamos escolhendo sem responsabilidade e agindo, como Sartre (2009) afirma, de má-fé. “Como definimos a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem apoio, todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo é um homem de má-fé” (Sartre, 2009, p. 635). Má-fé não quer dizer agir de modo mau, ruim ou errado, mas agir sem responsabilidade, sem reconhecimento da sua liberdade como ser-no-mundo. Além disso, agir de má-fé não necessariamente exige uma escolha ou decisão. Na verdade, escolher não agir ou não se movimentar também representa uma ação e, se feita sem consciência da responsabilidade, pode ser considerada má-fé. Sobre isso, Sartre (2009, p. 633) complementa: “a escolha é possível em um sentido, mas o que não é possível é não escolher. Posso sempre escolher, mas devo saber que se eu não escolher, eu escolho ainda”. 4.2 Angústia No tópico passado, entendemos que liberdade acompanha responsabilidade, certo? Pois bem, se somos sempre livres e responsáveis por nós e pelo mundo, isto deve gerar algum peso. Segundo Sartre (2009), somos condenados à liberdade. Para o autor (2009, p. 621), o homem que se engaja e que se dá conta de que ele é não apenas aquele que ele escolheu ser, mas ainda um legislador que escolhe, ao mesmo tempo que ele mesmo, toda a humanidade, não poderia escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. Nesse sentido, encontramo-nos com a angústia da existência. A experiência da angústia se localiza (não de modo espaço-temporal) justamente no contato com a responsabilidade que temos ao reconhecer nossa liberdade. Exemplifiquemos: quando aceleramos o carro em um sinal amarelo quase indo para o vermelho, podemos causar um acidente, não é mesmo? Podemos também tomar uma multa, caso algum fiscal de trânsito testemunhe nosso ato. 10 Sabemos de todos esses riscos que fazem parte da nossa escolha, mas não exatamente lidaremos com isso ao agirmos. Isso pode ser um exemplo simples, pois fala de um momento rápido em que talvez não percebamos a angústia tão intensamente. No entanto, a angústia se manifesta neste não saber o que pode acontecer e, mesmo assim, demanda responsabilidade pela liberdade de escolha. Se estamos em uma situação de escolha que afeta diretamente o outro, pode ser até mais evidente o sentimento de angústia, mas ele está presente sempre que nos deparamos com a responsabilidade que temos sobre nossa existência no mundo. Estamos livres, mas à mercê das responsabilidades que teremos com nossas ações e isso gera angústia. 4.3 Finitude Temos aqui um tema existencial que indica um sentido para as experiências do ser-no-mundo: a finitude. A existência é, implacavelmente, para a morte. O fato existencial de toda vida é que ela acaba na morte. Somos e agimos no mundo para a morte, só há vida com morte e vice-versa. Para todas as relações há fim. Retirando a morbidez que é falar sobre morte, entenderemos agora qual o sentido existencial de se falar da finitude. Não se pode falar fenomenologicamente da morte, mas apenas do morrer como aquela possibilidade singular e própria que define a existência humana. Existir é ser-para-a-morte, é ser-mortal. Vida e morte se copertencem. Ao singularizar-me, minha finitude revela que cada momento de minha vida é único e irrecuperável. Embora todos os seres da natureza acabem, somente a existência pode morrer; só o humano se relaciona com o morrer, refere-se à morte, fazendo com que ela “exista”. (Dastur, 2002, citado por Evangelista, 2015, p. 91) Com base nisso, podemos perceber que nossa existência fala também da morte, fala de sermos-para-a-morte. Não nos referenciamos aqui somente à morte física, mas simbólica de todas as relações. A questão da finitude está na existência para dar-lhe sentido. O movimento que fazemos para significar nossa existência também diz respeito a um movimento para a morte. A conjunção “para”, no que contamos sobre a morte, não se trata de objetivo intencional, mas da direção inevitável da vida. Ao tocarmos na direção, tocamos no sentido, no caminho a ser traçado. Existência, como um processo contínuo de interações, tem fim. No reconhecimento da finitude das relações existenciais, podemos, também, encontrar sentido. 11 As ideias de Sartre, ao falar sobre morte, retratavam a consciência de morte como essencial para que cada indivíduo busque suas vivências, faça suas escolhas e se permita viver intensamente, de acordo com o que almeja. O reconhecimento de sua finitude faz com que crie propósitos para o seu existir, pois a morte é uma experiência sobre a qual os vivos não têm informações concretas. Cada pessoa tem sua crença diante deste assunto, mas somente quem morre é que a experiencia, e ninguém pode passar pelo processo de morrer no lugar de um outro alguém. (Tuy, 2009, citado por Siman; Rauch, 2017) TEMA 5 – AS INFLUÊNCIAS DESTES SOBRE A GESTALT-TERAPIA Entendemos que com a perspectiva fenomenológica, torna-se possível aproximar-se da complexidade do que é ser humano sem preconcepções. Utilizar o método fenomenológico nos auxilia no acesso aos fenômenos humanos tais como eles são, singulares em determinado espaço e tempo. Paralelamente, o Existencialismo alicerça a atuação com pessoas à medida que não institui uma essência prévia para o comportamento humano. A essência de cada um é construída a partir da existência. É processo inacabado, em constante formação. O enfoque fenomenológico existencial nos traz a possibilidade de abertura para o outro como ele é enquanto constrói sua existência. Essa prática é fundamentada na postura do profissional que, ao atender as pessoas, jamais deve se ater a classificações naturalistas que as ciências estatísticas colocam no olhar para o humano, da mesma forma que não deve adotar uma postura separatista sobre as relações de sujeito-objeto, mente e corpo, que a perspectiva cartesiana nos traz. A Gestalt-terapia emprega este enfoque para o trabalho com pessoas. Os gestalt-terapeutas não fecham seus olhares nos princípios que regem a teoria no momento em que estão efetivamente com a pessoa ou grupo atendido. A ideia é que o trabalho se construa baseado no evento como ele se manifesta no aqui e agora. Objetiva-se a aquisição dos conhecimentos teóricos e filosóficos quando do encontro com o outro, mas este só se faz possível na experiência imediata com a pessoa, em sua existência singular. Assumir uma posturasem pré-juízos e preocupada com o momento presente diante do que se mostra nos atendimentos e encontros que a Psicologia nos traz é o que faz com que a Gestalt-terapia possa ser considerada uma abordagem fenomenológica existencial. 12 Teorias que serão estudadas mais profundamente na próxima aula e fundamentam a Gestalt-terapia se conectam também com o que foi trazido pelo olhar existencial fenomenológico. A Teoria do Campo, fundamental para a compreensão da relação pessoa-mundo em nossa corrente psicológica, fala do campo como conceito deste processo interacional também trazido pela questão do ser-no-mundo. O método holístico organísmico, em paralelo, é voltado ao que entendemos como processo de existência. Nossa existência como um todo e não como parte do mundo, com propósito singular de autorregulação e satisfação de nossas necessidades. E é nossa existência que transforma a essência do que temos na relação pessoa-mundo. NA PRÁTICA Considerando o objetivo da aula, gostaríamos de perguntar: o que pode ser utilizado dessas escolas filosóficas para se trabalhar com o ser humano? A abordagem fenomenológica nada mais é do que uma postura, um olhar a ser considerado quando cuidamos de pessoas. E não é só a Gestalt-terapia que emprega esta atitude como base de trabalho. Áreas da Psicologia, como a organizacional, a psicopatologia e a escolar, também podem se fundamentar na Fenomenologia como postura para o trabalho com pessoas. Temas como liberdade, angústia, responsabilidade e finitude ditam a existência do ser humano e nos ajudam a compreender os caminhos traçados pelas pessoas das quais cuidamos. Nosso trabalho não se restringe ao cuidado pelo outro, muito pelo contrário, volta-se para nós como pessoas. Para atender ao outro, devemos também estar capacitados a olhar estas questões em nós, com zelo e abertura. Em que contextos você se percebe livre? Quando se sente preso? Que tipo de liberdade você busca? Suas responsabilidades condicionam sua liberdade? O que te angustia? Como você se relaciona com relações que terminam? Estas são algumas perguntas que retomam um pouco dos temas existenciais que trabalhamos. Quando estamos diante de alguém e nossas questões se assemelham às vivências do outro, pode ser difícil suspender nossos pensamentos e juízos sobre o que está sendo trazido naquele momento. Não precisamos nos distanciar de nós quando estamos atendendo. O que a atitude 13 fenomenológica nos pede é que estejamos em contato com o fenômeno como ele aparece. E isto nos envolve também. Se olharmos para nós ou para outrem, sabemos que a existência imediata é particular, composta por sua história vivida, seus projetos e suas possibilidades no presente. Diante disso, faz-se impossível encaixá-la em teorias rotulantes repletas de juízos de realidade. A pessoa é, em um mundo, única em seus limites e potencialidades. É um ser relacional, existindo no espaço e no tempo com outros e no mundo. Sua individualidade, portanto, não é solitária, mas conectada com todo o mundo em que vive. Deixamos nossas próprias vivências em parênteses como forma de estarmos inteiros ao que é trazido pela pessoa atendida. Se isso não está de acordo com seus valores ou mesmo com o que é colocado pela sociedade, não misturaremos com o que está sendo colocado pela experiência do outro. É um movimento ativo de reconhecimento dos próprios pré-conceitos para estar aberto à vivência do outro. Nessa atitude, não adentramos o mundo do outro como ele, mas como nós mesmos, como se estivéssemos emprestando seus óculos para enxergar. Estamos inteiros, com valores e teorias suspensos para, no encontro com o outro, possibilitarmos apropriação e re-tomada de responsabilidade do indivíduo sobre si. FINALIZANDO O que trabalhamos nesta aula foi um pouco da terceira onda da Psicologia, uma transformação dos olhares acerca da pessoa e do mundo da época que contribuiu para o desenvolvimento da Gestalt-terapia. O enfoque existencial auxilia na fundamentação teórico-filosófica da G-t e compõe sua concepção de ser humano como ser relacional, livre e responsável por si e pelo mundo. A postura fenomenológica acompanha o Gestalt-terapeuta em seu trabalho e é base do olhar para a relação pessoa e mundo. Não objetivamos, aqui, encaixar pessoas em rótulos ou estatísticas, mas apoiar a atuação na abertura ao fenômeno tal qual ele se manifesta. Essa abertura não é fim, é descoberta e movimento, amparo para atuação e angústia criadora diante da liberdade de escolha. E é ela que sustenta a compreensão da pessoa como ela consegue ser no momento presente. 14 REFERÊNCIAS AMATUZZI, M. M. Psicologia fenomenológica: uma aproximação teórica humanista. Estudos de Psicologia. Campinas, v. 26, n. 1, p. 93-100, mar. 2009. DARTIGUES, A. Um positivismo superior. In: DARTIGUES, A. (Org.). O que é fenomenologia?. São Paulo: Moraes, 1992. p. 7-28. EVANGELISTA, P. E. R. A. O que pode um psicólogo fenomenológico- existencial: questionamentos e reflexões acerca de possibilidades da prática do psicólogo fundamentadas na ontologia heideggeriana. 255 f. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. . A fundamentação metafísica da psicologia humanista à luz da fenomenologia existencial. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 26, n. 2, p. 208-219, ago. 2020. FEIJOO, A. M. L. C.; MATTAR, C. M. A fenomenologia como método de investigação nas filosofias da existência e na psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília , v. 30, n. 4, p. 441-447, dec. 2014. FORGHIERI, Y. C. Psicologia fenomenológica – fundamentos, método e pesquisas. São Paulo: Pioneira, 1993. HOLANDA, A. F. Pesquisa fenomenológica e psicologia eidética: elementos para um entendimento metodológico. In: BRUNS, M. A. T. de.; HOLANDA, A. F. (Orgs.). Psicologia e fenomenologia: reflexões e perspectivas. 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