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W BA 13 14 _V 1. 0 ESCRITA CRIATIVA 2 Carla Patricia Fregni São Paulo Platos Soluções Educacionais S.A 2023 ESCRITA CRIATIVA 1ª edição 3 2023 Platos Soluções Educacionais S.A Alameda Santos, n° 960 – Cerqueira César CEP: 01418-002— São Paulo — SP Homepage: https://www.platosedu.com.br/ Head de Platos Soluções Educacionais S.A Silvia Rodrigues Cima Bizatto Conselho Acadêmico Alessandra Cristina Fahl Ana Carolina Gulelmo Staut Camila Braga de Oliveira Higa Camila Turchetti Bacan Gabiatti Giani Vendramel de Oliveira Gislaine Denisale Ferreira Henrique Salustiano Silva Mariana Gerardi Mello Nirse Ruscheinsky Breternitz Priscila Pereira Silva Coordenador Ana Carolina Gulelmo Staut Revisor Marcelo Vianna Batista Editorial Beatriz Meloni Montefusco Carolina Yaly Márcia Regina Silva Paola Andressa Machado Leal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)_____________________________________________________________________________ Fregni, Carla Patricia Escrita criativa/ Carla Patricia Fregni, – São Paulo: Platos Soluções Educacionais S.A. 2023. 32 p. ISBN 978-65-5356-453-4 1. A criação e a criatividade 2. Gêneros e tipos literários 3. Narrativas de ficção 4. Empreendedorismo criativo. CDD 374.0124 _____________________________________________________________________________ Raquel Torres – CRB 8/10534 F858e © 2023 por Platos Soluções Educacionais S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Platos Soluções Educacionais S.A. https://www.platosedu.com.br/ 4 SUMÁRIO Apresentação da disciplina __________________________________ 05 A criação e a criatividade ____________________________________ 06 Gêneros e tipos literários ____________________________________ 17 Narrativas de ficção _________________________________________ 29 Empreendedorismo criativo _________________________________ 41 ESCRITA CRIATIVA 5 Apresentação da disciplina Olá, estudante! Seja bem-vindo(a) à disciplina Escrita criativa! Nosso objetivo é que você conheça as bases para se transformar em um escritor que domina os recursos construtivos de uma escrita coesa, coerente e criativa. E, mais do que isso: esperamos que você se torne um empreendedor criativo e torne suas criações literárias em algo lucrativo! Preparamos conteúdos primorosamente escolhidos e desenvolvidos especialmente para você em sua jornada de aprendizado. Você aprenderá os conceitos de criação e criatividade, além de práticas criativas em suas diferentes manifestações. Conhecerá os principais gêneros e tipos literários por meio de conceituações e exemplificações. Entenderá quais são os elementos de uma narrativa literária de ficção, verá como se desenvolvem personagens e espaços ficcionais e saberá quais são os caminhos para a escrita de narrativas ficcionais. Aprenderá muito sobre empreendedorismo criativo e verá como suas criações literárias podem se transformar em um empreendimento muito atrativo. Está pronto para viajarmos juntos por essa disciplina tão fascinante? Não perca nem mais um minuto! Eu te encontro em nosso primeiro conteúdo. Até lá! 6 A criação e a criatividade Autoria: Carla Patricia Fregni Leitura crítica: Marcelo Vianna Batista Objetivos • Apresentar conceitos de criação e criatividade. • Indicar práticas criativas em suas diferentes manifestações. • Propor exercícios interdisciplinares de desbloqueio criativo. 7 1. Para começar Você já reparou como a palavra criatividade aparece no seu dia a dia? Em que circunstâncias? Em casa? No trabalho? Entre amigos? A que esse termo remete? Arte? Inovação? Disrupção? Criação? Ineditismo? Originalidade? Competitividade? É por esse campo que viajaremos explorando esse assunto, sem esgotá- lo, trazendo reflexões e compreendendo as manifestações que estão por trás dele. E mais do que isso: aprenderemos alguns exercícios que ajudam a fomentar nosso potencial criativo. 2. Criatividade e criação 2.1 Conceitos e significados Quando tentamos chegar a um conceito único de criatividade e criação, percebemos que não se trata de uma tarefa simples. A verdade é que especialistas no assunto não chegam a um consenso. Isso acontece porque os significados dos termos podem variar conforme contextos e áreas do conhecimento. De qualquer forma, podemos partir da definição encontrada em qualquer dicionário. Tomemos, por exemplo, o Dicionário Michaelis (2007): Criatividade é a habilidade de criar. E o que podemos dizer a respeito dos significados de criar? 8 Quadro 1 – Significados do termo criar Significados Exemplos Tirar do nada O universo foi criado pelo Big Bang. Gerar O medo cria angústia. Inventar algo novo, original Thomas Edison criou a lâmpada. Fundar, estabelecer Bill Gates criou a Microsoft. Vir a ter, adquirir Meu filho criou bigodinhos muito cedo. Dar origem a algo, formar Bactérias e arqueias teriam criado a vida na terra. Alimentar, sustentar Criei esperanças diante daquela promessa. A mãe viúva criou seus enteados sozinha. Cultivar plantas, plantar, semear Eu criava lindas jabuticabeiras naquela época. Crescer em determinado local Eu fui criado no interior de São Paulo. Fonte: elaborado pela autora. Agora, reflita: se você considerar que a criatividade é a capacidade de criar, vai querer perguntar: criar o quê? A vida? Bigodinhos? O Universo? Seriam criativas as bactérias e as arqueias? Seria criativo o Big Bang? E quanto ao garotinho de 12 anos com seus bigodinhos? Você percebe que o uso que fazemos da língua pode mexer bastante nos sentidos das palavras? Não é para menos que as línguas que já não são mais faladas chamam-se línguas mortas. Lembremos que não foi o dicionário que chegou antes dos significados das palavras. Ele registra exatamente como se tem aplicado a língua corrente, ou seja, uma mesma palavra pode adotar vestimentas diferentes conforme o local, a cultura, a época, a circunstância etc. Tendo isso claro em nossas mentes, podemos continuar explorando as possibilidades de uso da palavra criatividade, certo? Para isso, lançaremos mão da ajuda de alguns pensadores. 9 Fayga Ostrower era uma artista plástica. Em sua obra Criatividade e processos de criação (1997), ela defende a ideia de que a criatividade é algo natural ao ser humano e inerente à vida. Neste sentido, a criatividade está presente em quaisquer ações humanas e não se limita à visão artística; está na visão política, histórica e filosófica, entre outras. Podemos elencar algumas das proposições de Ostrower (1997), conforme segue: • A atividade criativa, no ser humano, não envolve apenas sua sensibilidade mas também sua consciência e sua vivência cultural. • Consciência e inconsciência são interligadas por emoções, sensações e pensamentos. Percepção e intuição atuariam nesse limiar. • No processo criativo, a intuição e a percepção estão presentes na reformulação de informações do mundo externo e interno, buscando ordenar significados. • Parte da sensibilidade está associada ao inconsciente e corresponde às reações involuntárias, e a outra parte está vinculada ao consciente, sendo articulada e ordenada. A partir das proposições da autora, entendemos que a criatividade é resultado da justaposição entre as percepções com as intuições humanas. Percepção refere-se àquilo que o indivíduo vivencia e processa em seu consciente, enquanto a intuição surge do inconsciente e chega ao consciente sem os elos intermediários do raciocínio (BAZARIAN, 1973 apud KUHN, 2015). Na tese de Doutorado de Moroni (2003), encontramos algumas reflexões instigantes sobre a criatividade. O autor propõe questionamentos, como: 10 • Toda ideia nova é criativa só por ser nova? • É possível compararmosduas ideias novas e dizermos qual é a mais criativa? • A criatividade pode ser julgada? Sob quais critérios? • A originalidade em um processo criativo é igual no mundo das artes e no mundo das ciências? Temos de admitir que esses questionamentos são bem pertinentes. Como você responderia a cada pergunta? Moroni (2003) baseia-se em Csikszentmihalyi (1996) para explicar o que está no bojo do conceito de criatividade: para se chegar a uma ideia criativa, há três elementos fundamentais: 1. Uma cultura com regras simbólicas. 2. Alguém, inserido nessa cultura, que traga novidades dentro do domínio simbólico. 3. Um júri composto por especialistas que admitem e validam a proposta como inovadora. Continuando, Csikszentmihalyi (1996 apud MORONI, 2003, p. 13) explica que “[...] a criatividade surge da interação dos pensamentos de uma pessoa com um contexto sociocultural. É um fenômeno sistêmico ao invés de um fenômeno individual”. Mesmo dependendo da percepção e da intuição de alguém, a criatividade só é reconhecida quando a criação surge conforme o domínio simbólico cultural vigente e, além disso, é validada por especialistas da área em que tal criação é configurada. 11 A partir dessas reflexões, propomos entender o sistema de três elementos fundamentais de Moroni (2003) na prática, no nosso dia a dia. Analise a descrição a seguir: 1. As regras simbólicas de nossa realidade são ditadas por uma cultura de consumo em uma sociedade capitalista. Assim, o domínio simbólico está intimamente ligado à mercantilização de quase tudo, ao imediatismo, à superficialidade, à aceleração constante, às tecnologias de ponta etc. 2. Se quisermos ser reconhecidos como pessoas criativas nessa sociedade, precisamos criar propostas dentro desse domínio simbólico. 3. O júri será composto por especialistas, ligados ao domínio simbólico atuante nas diversas áreas de conhecimento. No contexto empresarial contemporâneo, o incentivo à criatividade dos colaboradores toma força desde o início dos anos 2000. Impulsionado por empresas de tecnologia e pelos avanços dos estudos entre áreas de gestão e design, um novo olhar para a criatividade começa a surgir. Não mais como algo que pertencia a poucos indivíduos isolados em departamentos criativos, a criatividade nas empresas associa-se a processos. Tomada como processo, e não mais como resultado em um produto ou serviço, a criatividade passa a ser entendida como algo presente e economicamente útil em todas as áreas das empresas. Por exemplo, a vantagem competitiva de uma empresa pode surgir do departamento de RH com uma ideia inovadora de integração de colaboradores que aumenta o engajamento e, consequentemente, melhora a qualidade das entregas, otimizando tempo e recursos materiais. Estas soluções inéditas ou superiores frente ao mercado são conhecidas como inovações disruptivas. Mesmo com o domínio simbólico 12 atrelado ao mercantilismo, podemos contar com muitas iniciativas não consumistas, como a criação artística que prima pela fruição da alma do artista e os trabalhos criativos de muitas ONGS que lutam para que as necessidades das minorias sejam incluídas. Se a sua cabeça está fervilhando após ler o que apresentamos até aqui, é bom sinal! As possibilidades de reflexões e discussões a respeito do tema criatividade são infindas e nos levam a costurar os mais diversos assuntos. 2.2 Práticas criativas e desbloqueio criativo Você se considera uma pessoa criativa? Você já nasceu assim ou faz algo para despertar isso internamente? Especialistas afirmam que a criatividade não é uma característica inata do ser humano, e sim um processo, como vimos no exemplo anterior. Paniza (2004) explica o processo de criação em quatro etapas, como você verá a seguir: 1ª etapa: Delimitação do Problema Você deve iniciar seu pensamento de forma dirigida, ou seja, o problema que você quer resolver (objetivo da criação) deve estar claro, caso contrário, o resultado poderá ser incompleto ou até equivocado. 2ª etapa: Acúmulo de Dados Nesta etapa, você deve colher dados para a elaboração da solução adequada ao problema delineado na 1ª etapa. O acúmulo de dados não pode ser exagerado nem insuficiente, ou seja, dados escassos não darão consistência à elaboração da solução desejada, assim como dados excessivos podem te confundir e acabar escondendo informações realmente pertinentes. 13 3ª etapa: Incubação e Ideação (ou Iluminação) Uma vez delimitado o resultado a que se quer chegar, é importante que você se dê um tempo para que sua mente possa cruzar os dados obtidos e o repertório de informações que você já tem acumuladas. São produzidas novas conexões mentais inconscientes, as quais culminam no surgimento de soluções proveitosas detectadas pelo seu consciente. Alguns autores gostam de comparar esse momento à garimpagem de pedras preciosas, ou seja, é papel de sua mente consciente (de sua cognição) selecionar a ideia mais adequada e lapidá-la até torná-la a solução ideal para o problema detectado. 4ª etapa: Verificação Eis o momento de você checar a grande ideia que teve. Você pode perceber que a solução à que chegou precisa só de algumas melhorias, ou pode concluir que a tal grande ideia é inviável (por alguma falha nas etapas anteriores) e você terá de descartá-la. Se isso acontecer, revise todas as etapas e conserte as falhas encontradas. Para concluirmos a apresentação desse modelo de processo criativo, apresentamos a fala de Paniza (2004, p. 184-185): [...] o mito de uma ideia brilhante, que chega inesperadamente e é resposta de um problema ou uma novidade fabulosa, ainda que largamente difundido, não passa disso mesmo, um mito. Da mais insignificante à mais estupenda ideia que apareceu aparentemente ‘do nada’, todas passaram por, pelo menos, todas as fases iniciais até a fase de ideação ou iluminação, ainda que inconscientemente. O que você pensa a respeito dessa citação? Será mesmo que a criatividade é sempre resultado de um processo? Será que até mesmo artistas renomados criavam por efeito de um processo inconsciente? 14 Guedes (2018) aponta estudos que sugerem haver traços de personalidade que podem facilitar o processo de criatividade e há outros que podem dificultá-lo. Por exemplo, pessoas extrovertidas, que gostam de experimentar novas experiências pessoais, tendem a ser mais criativas do que outras que preferem não se arriscar. O autor afirma que a criatividade está associada à autoconfiança, à flexibilidade e à sensibilidade. Pessoas introvertidas, geralmente, têm facilidade em se concentrar e em ter foco. Essas características podem facilitar o processo de criação. Por outro lado, se essa introversão for acompanhada de timidez, a pessoa terá dificuldade para vender sua ideia. Muitas vezes, quando não conseguimos sair do terceiro passo do processo criativo, chamamos de bloqueio criativo. É como aquela ampulheta da tela do computador, sabe? Fica girando, girando e nada acontece! Dependendo do estado em que está nossa mente, ou como dito anteriormente, do estado dos bastidores de nosso cérebro, pode ser que a Iluminação, no quarto passo do processo criativo, realmente não apareça e o tão esperado insight não aconteça. Cansaço, perfeccionismo, procrastinação e falta de domínio do assunto podem ser ingredientes para o bloqueio criativo. Diversos autores propõem caminhos para superar o bloqueio criativo. Paniza (2004) apresenta as seguintes técnicas: • Estudar trabalhos realizados por pessoas reconhecidas na área. • Descrever objetos e situações a partir da própria memória. • Fazer associações originais entre situações e objetos. • Descrever como alguma coisa poderia ser melhorada. 15 • Transformar, mentalmente, algumas coisas usando verbos, como: agregar, ampliar, diminuir, omitir, relacionar. A autora afirma que nossa criatividade é requisitada e testada todos os dias. Muitas vezes, sem percebermos a pressão ou a cobrança, o processo criativo acontece espontaneamente,trazendo-nos resultados muito consistentes. Tendo isso em vista, Paniza (2004) apresenta os elementos que proporcionam o êxito ao final dos processos criativos: • Receptividade a novas ideias. • Imersão no assunto em que o problema está contido. • Dedicação à procura de respostas e, ao mesmo tempo, desprendimentos delas para que novas ideias surjam. • Equilíbrio entre imaginação e julgamento, para que a produção de ideias seja razoável. • Percepção investigadora, procurando sempre novos caminhos. • Uso de erros como caminho para novos resultados. • Submissão à obra de criação, deixando-a determinar parte do próprio caminho. 3. Últimas reflexões Chegamos ao final de nossa jornada e lembramos que estamos longe de esgotar o assunto. Se você me acompanhou até aqui, entendeu perfeitamente o quanto é vasto esse tema. Sei que você ainda tem perguntas a respeito do tema, e isso é ótimo! Para incentivar você a continuar suas pesquisas sobre criatividade, 16 contribuímos com mais algumas reflexões: será que, para sermos criativos, precisamos apresentar ideias totalmente novas? O que são ideias realmente novas, uma vez que usamos associações de informações mentais para criar novas ideias? Vale a pena criarmos ideias novas que não poderão ser vendidas? Pense nisso! Bons estudos! Referências BAZARIAN, J. Intuição Heurística. São Paulo, SP: Alfa-Ômega, 1986. CSIKSZENTMIHALYI, M. Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention. New York: HarperPerennial, 1996. GUEDES, L. Criatividade, modelos mentais e inovações. São Paulo, SP: Senac, 2018. KUHN, C. C. Intuição Heurística: uma aproximação preliminar. Revista Alamedas, v. 3, n. 1, p. 1-12, 2015. MICHAELIS. Criatividade. Michaelis, 2023. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/ moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/criatividade/. Acesso em: 10 fev. 2023. MICHAELIS. Criar. Michaelis, 2023. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno- portugues/busca/portugues-brasileiro/criar/. Acesso em: 10 fev. 2023. MORONI, A. M. F. S. ArTEbitrariedade: uma reflexão sobre a natureza da criatividade e sua possível realização em ambientes computacionais. 2003. 300 f. Tese (Doutorado em Engenharia Elétrica) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. PANIZA, J. F. Metodologia e processo criativo em projetos de comunicação visual. 2004. 254 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/criatividade/ https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/criatividade/ https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/criar/ https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/criar/ 17 Gêneros e tipos literários Autoria: Carla Patricia Fregni Leitura crítica: Marcelo Vianna Batista Objetivos • Abordar os principais gêneros e tipos literários. • Apresentar os conceitos fundamentais. • Expor exemplos de textos literários. 18 1. Por onde começar Os estudos sobre gêneros literários surgiram com Platão e Aristóteles na Antiga Grécia. De lá para cá, a diversidade de abordagens tornou-se gigantesca e enriquecedora. Novas perspectivas não param de surgir. E não tem como ser diferente, pois se trata de um tema interdisciplinar que se apoia na linguagem e nas atividades culturais e sociais. Tendo em vista a amplitude do assunto, trazemos alguns recortes conceituais que nos ofereçam base para a prática de uma escrita criativa. 2. Conceitos e exemplos O texto é uma manifestação comunicativa em que as pessoas expõem seus conhecimentos e suas vivências e aplicam ferramentas linguísticas, como coesão e coerência, para interagirem umas com as outras em determinadas circunstâncias. Sendo um ato de comunicação, o texto se manifesta pela oralidade (quando é falado) e pela escrita. O texto verbal é aquele que se apoia nas palavras, o texto não verbal lança mão apenas de imagens, e o texto misto se utiliza de palavras e imagens. Os textos podem ser considerados também como literários ou não literários. • Um texto literário é expressivo, tem caráter artístico, pode oferecer múltiplas interpretações e provoca emoções no leitor. Pode ser baseado em realidade ou pode ser pura ficção. Exemplos: poemas, contos, novelas, fábulas, crônicas, peças de teatro etc. • Um texto não literário é considerado utilitário, adotando linguagem objetiva, clara e concisa. É importante que a interpretação seja única a todos os leitores. Exemplos: apostilas de 19 estudos, receitas culinárias, receitas médicas, ordens de serviço, contratos legais etc. Pela riqueza de possibilidades comunicativas, torna-se necessária uma organização conceitual, uma categorização dos textos. Como a criatividade depende não só de inspiração mas também de muito trabalho, as classificações textuais nos orientam para nossa escrita criativa. Os tipos textuais separam os textos conforme sua organização interna, sua composição linguística, como o uso de tempos verbais, estilo, relações lógicas, aspectos sintáticos, aspectos lexicais, entre outros. Tipos textuais são chamados também de sequências textuais (MEDEIROS, 2017). A respeito de cada tipo textual, podemos descrever: • Narrativo: conta-se uma história com narrador, personagens, tempo e espaço em que os fatos ocorrem. Exemplo: trechos de uma carta pessoal. • Descritivo: descreve-se algo, podendo ser pessoas, objetos, ocorrências etc. Exemplo: em desfiles de moda, a descrição da roupa em destaque. • Dissertativo: apresenta-se um tema, aprofundando-se nele e isentando-se de opiniões pessoais. Exemplo: trabalhos de conclusão de cursos. • Argumentativo: defende-se e justifica-se com determinado ponto de vista sobre determinado assunto. Exemplo: a fala de defesa durante audiências. • Injuntivo: instrui-se o leitor com recomendações; impõe- se com instruções imperativas. Exemplo: manuais de uso de eletrodomésticos. 20 É importante ressaltar que, em um mesmo texto, podemos encontrar várias sequências textuais ou tipos de textos diferentes. Imagine a carta pessoal como um gênero textual. Ao lermos cada trecho, podemos relacioná-lo a um tipo textual. Quadro 1 – Exemplo de sequência textual em uma carta pessoal Sequências tipológicas Gênero textual: carta pessoal Descritiva Rio, 11/08/1991 Injuntiva Amiga, A.P. Oi! Descritiva Para ser mais preciso, estou no meu quarto, escrevendo na minha escrivaninha, com um Micro System ligado à minha frente (bem alto, por sinal). Expositiva Está ligado na Manchete FM – ou rádio dos funks. Eu adoro funk, principalmente com passos marcados. Aqui no Rio é o ritmo do momento. Também, gosto de discotecas. Sempre vou à K.J. Narrativa Ontem mesmo (sexta-feira) eu fui e cheguei quase quatro horas da madrugada. Injuntiva Conte-me: de quais rádios e ritmos você gosta? Fonte: adaptado de Marchuschi (2008, p. 156-157). Quanto aos gêneros textuais, podemos entendê-los como uma classificação que se baseia na materialização de situações comunicativas que estão naturalmente imersas em aspectos socioculturais, históricos, institucionais, pessoais, entre outros. As manifestações comunicativas abarcam as necessidades individuais do ser humano, seus valores pessoais, suas expectativas, sua vontade de interagir, de persuadir e de dominar. Por isso, cada texto carrega em si uma ideologia (forma específica de se conceber a realidade), que é projetada sobre o leitor. Veja alguns exemplos de gêneros textuais: 21 [...] telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia, jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instruções de uso, inquérito policial, resenha, editalde concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante. (MARCHUSCHI, 2008, p. 155) Os textos literários estão incluídos nessas categorizações. Podemos mencionar: sonetos, fábulas, romances, comédias, tragédias, autos, óperas, entre outros. Essas classificações são conhecidas também como tipos ou subgêneros literários. Das abordagens dos gêneros literários, propostas pelos filósofos da Antiguidade, até nossa contemporaneidade, as mudanças socioculturais acontecem incessantemente. É natural que as formas de classificarmos os gêneros textuais acompanhem essas mudanças. Tome, por exemplo, o Soneto de Fidelidade, de Vinícius de Moraes (2004). A partir das abordagens atuais, ele é classificado como um gênero literário, devido ao seu caráter artístico, e como um texto lírico, devido à sua subjetividade. Outro exemplo: os poemas épicos que foram criados na Grécia antiga, sendo muito raros hoje em dia, são vistos como narrativas literárias, pois contam histórias de forma artística. O romance surge no século XVI e é considerado como uma narrativa até hoje. Textos literários de gênero dramático são os que têm características teatrais, como as peças de Shakespeare (1591-1595). Atualmente, há muitos outros gêneros com elementos dramáticos, como cinema, novela, séries etc. A seguir, apresentamos a abordagem de gêneros e subgêneros (tipos literários) proposta por filósofos da Grécia Antiga. 22 Quadro 2 – Gêneros e tipos literários Gêneros literários Subgêneros (ou tipos literários) Texto lírico: apresenta grande subjetividade e pluralidade de sentidos. Sonetos (estrutura específica em suas estrofes); odes (poemas de exaltação para serem declamados); hinos (poema de veneração) etc. Texto narrativo (ou épico): conta histórias com personagens em tempo e espaço definidos. Romances (narrativas longas); fábulas (narrativas curtas e fantasiosas); crônicas (narrativas breves com foco no cotidiano) etc. Texto dramático: criado para ser encenado. Tragédias (textos teatrais com tensão permanente); comédia (texto teatral que satiriza, com humor, circunstâncias da vida cotidiana); auto (textos teatrais com abordagens voltadas, geralmente, para a moralidade e para a religião) etc. Fonte: elaborado pela autora. Para ilustrarmos os conceitos apresentados, tomemos alguns textos para que você experencie a leitura. Texto I: Soneto de fidelidade (1939), de Vinícius de Moraes (1913-1980): De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. (MORAES, 2004, [s. p]) 23 Esse soneto de Vinícius de Moraes demonstra os sentimentos do escritor que fala de seu amor. Por sua subjetividade, podemos afirmar que se trata do gênero lírico. Por ser escrito em versos, trata-se de um poema. E mais do que isso: é um poema em soneto, porque é construído, especificamente, por duas estrofes com quatro versos (quartetos) e duas estrofes com três versos (tercetos) com rimas. Texto II: Lendas dos Campos, de Cruz e Souza (1945): Por uma doirada tarde azul, em que os rios, após as chuvas torrenciais, sonorizam cristalinamente os bosques, os camponeses de uma vila risonha, numa unção bíblica, conduziam ao tranquilo cemitério florido o loiro cadáver branco de uma virgem noiva, morta de amor, tão bela e tão nova, umedecida no féretro, como se tivesse acabado de nascer da rosada luz da manhã. Infantil ainda, viera outrora da Alemanha através de castelos feudais, de montanhas alpestres, de árvores velhas e enevoadas... [...] Você deve ter notado que, por sua subjetividade e multiplicidade de sentidos, trata-se de um gênero textual lírico, como o soneto de Vinícius de Moraes. No entanto, ele não está escrito em versos. Por isso, trata-se de uma prosa. Texto III: O Sapo e o Boi, fábula de Esopo: - Ó Pai – disse o pequeno Sapo ao grande Sapo sentado à margem da lagoa -, vi um monstro terrível! Tão grande quanto uma montanha, com chifres na cabeça, e uma longa cauda, e cascos divididos em dois. - Bobagem, meu pequeno, bobagem – disse o velho Sapo. – Era apenas o Boi do Senhor Fazendeiro. Nem é tão grande. Pode ser maior que eu, mas eu poderia facilmente me alargar tanto ou mais, veja só. 24 Assim, inchou, inchou e inchou. - Era o Boi grande assim? – perguntou. - Ah, muito maior – disse o jovem Sapo. Então, novamente, o velho Sapo encheu-se de ar e questionou o mais jovem se o Boi chegava a tal tamanho. - Maior, pai, maior – foi a resposta. Então o Sapo tomou um fôlego profundo e inchou-se, e inchou-se e inchou-se, e cresceu, cresceu e cresceu. E depois disse: - Estou certo de que o Boi não é tão grande quanto isso. Mas naquele momento ele estourou. Moral da história: A prepotência pode levar à destruição. (MOREIRA JR., 2021, [s. p.]) O texto III conta uma curta história fantasiosa que se passa durante um tempo, em um lugar, tendo, como personagens, bichos falantes. Tal história carrega um caráter ético/moral. O gênero é narrativo e trata-se de uma fábula. A obra Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908), também é um gênero narrativo, mas, por se tratar de uma longa história, é um romance. Texto IV: Trecho de Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1564-1626): Ato II Cena II (Romeu avança) Romeu Zomba da dor quem nunca foi ferido. (Julieta aparece ao alto) Que luz surge lá no alto, na janela? Ali é o leste, e Julieta é o Sol. 25 Levante, Sol, faça morrer a Lua Ciumenta, que já sofre e empalidece Porque você, sua serva, é mais formosa. [...] Julieta Ai de mim! Romeu Ela fala! Fale, anjo, outra vez, pois você brilha Na glória desta noite, sobre a terra, Como o celeste mensageiro alado [...] Julieta Romeu, Romeu, por que há de ser Romeu? Negue o seu pai, recuse-se esse nome; Ou se não quer, jure só que me ama E eu não serei mais dos Capuletos. (SHAKESPEARE, 2015, p. 41-42) No texto IV, notamos que há instruções para encenação; o texto é escrito em versos e sabemos que se trata de uma história permeada por tensões e mortes até o final. Daí, depreendemos que se trata de um texto dramático (ou teatral) do tipo tragédia, escrito em poema. Quando saboreamos o texto em um livro e não em um teatro, chamamos de texto lírico, pois é repleto de subjetividade. Há também textos dramáticos que são escritos em prosa. Bakhtin (2006 apud MEDEIROS, 2017) propõe o estudo dos gêneros sob o viés Discursivo-Interacionista. Tal abordagem é conhecida também como sociodialógica ou sociodiscursiva. Para o autor, o processo de comunicação envolve indivíduos que dominam o gênero, controlam uma determinada situação social, assim como também as vozes explícitas ou implícitas que compõem o discurso. O que se deve compreender é que nossos atos comunicativos (nossos discursos) abarcam os aspectos linguísticos (coesão e coerência dos textos) e a interação social, que é rodeada de intenções. 26 De um editorial, por exemplo, espera-se que manifeste o ponto de vista dos donos e responsáveis pela empresa jornalística; que aborde questões atuais e de interesse da sociedade; que tenha determinada extensão; que nomeie com precisão o assunto de que trata, e assim por diante. Deve manifestar pertencimento a um domínio discursivo (o jornalístico), que proporciona o aparecimento de discursos específicos. Esse conjunto de noções caracterizadoras chamamos de gênero. (MEDEIROS, 2017, p. 3) Há também autores que destacam a intergenericidade, ou seja, a mistura entre gêneros e, com isso, até mesmo a mudança de gênero. Brandão (2004apud MEDEIROS, 2017) explica que os gêneros podem dialogar um com o outro ou até mesmo um gênero pode incorporar outro por transferência de função e formas originais. Segue exemplo em trecho do livro Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado: Me deixem em paz com meu luto e minha solidão. Não me falem dessas coisas, respeitem meu estado de viúva. Vamos ao fogão: prato de capricho e esmero é o vatapá de peixe (ou de galinha), o mais famoso de toda a culinária da Bahia. Não me digam que sou jovem, sou viúva: morta estou para essas coisas. Vatapá para servir a dez pessoas (e para sobrar como é devido). [...] Se o vatapá, forte de gengibre, pimenta, amendoim, não age sobre a gente dando calor aos sons, devassos condimentos? Que sei eu de tais necessidades? Jamais necessitei de gengibre e amendoim; eram a mão, a língua, a palavra, o lábio, seu perfil, sua graça, era ele quem me despia do lençol e do pudor para a louca astronomia de seu beijo, para me acender em estrelas, em seu mel noturno. [...] (AMADO, 2001, p. 231-232) Sabemos que a função dessa obra de Jorge Amado não é a mesma de uma receita culinária. Nesse trecho que apresentamos, há uma receita, mas o texto não tem essa função. Na verdade, o autor lança mão de um jogo 27 semântico, brincando com trocas de sentidos entremeando os ingredientes da receita, o modo de preparo e o fogo erótico de Dona Flor. Esperamos que você tenha percebido que os estudos sobre gêneros e tipos literários podem nos levar pelas mais diversas abordagens que se combinam, que se complementam e enriquecem os conhecimentos sobre tal tema. 3. Considerações finais Nosso conteúdo fica por aqui, mas você sabe que não esgotamos o assunto, não é mesmo? Permeamos os principais conceitos sobre gêneros e tipos literários para que você tenha um chão firme e continue caminhando rumo a novas pesquisas e encontre outras tantas abordagens do tema. Bons estudos! Referências AMADO, J. Dona Flor e seus dois maridos. 51. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. ASSIS, M. de. Dom Casmurro. 3. edição. Jandira, SP: Ciranda Cultural, 2019. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. 7. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998. MARCHUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2008. MEDEIROS, J. B. Como Escrever Textos: gêneros e sequências textuais. São Paulo, SP: Atlas, 2017. MORAES, V. de. Poesia completa e prosa. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2004. 28 MOREIRA JR., O. H. Fábulas de Esopo. Jandira, SP: Principis, 2021. SHAKESPEARE, W. Romeu e Julieta. Trad. Anna A. de Q.C. de Mendonça e Barbara Heliodoro. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2015. SUASSUNA, A. Auto da Compadecida. 40. Ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2018. 29 Narrativas de ficção Autoria: Carla Patricia Fregni Leitura crítica: Marcelo Vianna Batista Objetivos • Conceituar elementos da narrativa literária de ficção. • Abordar o desenvolvimento de personagens e espaços ficcionais. • Destacar caminhos para a escrita de narrativas ficcionais. 30 1. Para começar A narrativa literária ficcional promove a contação de histórias de forma artística e plurissignificativa, abarcando elementos imaginários e fantasiosos. A narrativa literária está livre de rigores, como veracidade, clareza ou objetividade, como aqueles que precedem a criação de narrativas jornalísticas, por exemplo. Portanto, a contação de histórias literárias ficcionais pode lançar mão da imaginação, da subjetividade e da fantasia, permitindo, aos leitores, experimentarem os mais diversos significados daquilo que estão lendo a partir de seu próprio olhar, ou seja, a obra ficcional propicia a pluralidade de significado, a plurissignificação. Podemos encontrar narrativas ficcionais em muitos gêneros, como fábulas, lendas, suspenses, contos, romances, ficção científica, entre outros. Em todos eles, há elementos básicos, como personagens, tempo, espaço, enredo e, claro, narrador. Em Hoff (2017), há uma breve conceituação de alguns dos elementos da narrativa literária: • O enredo garante a fundamentação e o desenvolvimento das ações da narrativa. • As ações são executadas pelos personagens, que se dividem em protagonistas, coadjuvantes e antagonistas. • Para a classificação do tipo de narrador, parte-se da perspectiva pela qual os fatos são narrados. Basicamente, ou o narrador é mero espectador da história, contando-a em 3ª pessoa, ou ele é participante, contando-a em 1ª pessoa. • Quanto ao tempo, trata-se do elemento que demarca o momento ou a época em que os fatos se desenrolam. Pode ser linear (cronológico) ou não linear (psicológico). 31 • O espaço é o local ou o cenário onde cada evento da história acontece. O domínio desses elementos pode propiciar a criação de histórias ficcionais inesquecíveis, como Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis; O Primo Basílio (1878), de Eça de Queiroz; Lucíola (1862), de José de Alencar; Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos; Vestido de Noiva (1943), de Nelson Rodrigues. Esses são apenas poucos exemplos dentre uma miríade de obras renomadas até hoje. 2. Narrativas literárias ficcionais A compreensão do que seja a verossimilhança é essencial para os estudos de narrativas literárias ficcionais. Metaforicamente, trata-se de um chão firme a partir do qual podemos dar um impulso e nos lançarmos ao imaginário. Uma organização coesa e coerente da história a ser contada deve ser encontrada também em textos ficcionais, caso contrário, o leitor encontrará um caos tão absurdo que vai impedi-lo de continuar em frente e entregar-se, mesmo que conscientemente, à história fictícia como se fosse verídica. Daí, o papel do que é verossímil, do que é plausível, do que é a própria verossimilhança. Por exemplo, a história de Harry Potter nos fornece vários elementos verossímeis, como a convivência entre colegas de escola, dramas familiares, sentimentos de inveja, amizade, admiração. Reconhecemos tudo isso como experiências comuns em nossa realidade. No entanto, a partir daí, entram os elementos da ficção, como os poderes mágicos das crianças, professores que ensinam bruxarias, convivência de todos com seres sobrenaturais. Segundo Hoff (2017, p. 42), “a ficção permite que sejam criados elos especiais entre a percepção da realidade – a percepção do autor ou do 32 narrador – e a própria realidade factual”. Para a autora, ao adentrar pela narrativa ficcional, o leitor aceita sua multiplicidade interpretativa, própria de uma obra artística. Ele sabe que se trata de uma história imaginária e que o autor não está contando mentiras. Eis o pacto ficcional, que o leitor aceita para embarcar na história fictícia. Por exemplo, quando lemos alguns romances, sabemos que se trata de histórias fictícias. Mesmo assim, queremos que o vilão seja destruído e torcemos para o final feliz do casal protagonista da história. Aceitamos que o autor não está querendo nos enganar e deixamos nos levar pela história que está sendo contada. Uma narrativa conta uma história ao leitor por meio de um narrador. O texto pode conter não apenas narrações mas também descrições, diálogos e dissertações. Pode, inclusive, ocorrer mais de uma dessas sequências textuais em uma mesma narrativa. Textos dramáticos são gêneros que também contam histórias. Nesse caso, não há a mediação de um narrador, pois são contadas diretamente pelos diálogos dos personagens. São mais familiares, atualmente, os textos teatrais ou as obras cinematográficas e televisivas. As narrativas em prosa, como o romance e o conto, diferem entre si por uma ser mais longa do que a outra, respectivamente, além da quantidade de personagens. Nos contos, duas personagens podem ser o suficiente, pois eles se limitam a pequenas unidades de ação, tempo e lugar. Em vez de crescerem no decurso da narrativa, como as personagensde romance, oferecem uma faceta de seu caráter, no geral a mais relevante, como que à luz do microscópio: o conto lembra uma tela em que se representasse o apogeu de uma situação dramática. O convívio com as personagens dum conto dura o tempo da narrativa: terminada esta, e contato se desfaz, visto que a ‘vida’ dos protagonistas está encerrada no episódio que constituía a matriz do conto. (MOISÉS, 2006, p. 51) 33 O desfecho de um conto chega muito rapidamente após o início da narrativa. Assim, a existência das personagens não encontra continuidade na imaginação do leitor, suspendendo-se o decurso da história, que já perde sua função. Por envolver longas histórias, o romance mostra-se mais flexível quanto ao número de personagens presentes. De uma obra à outra, a quantidade de personagens pode variar livremente. O que importa é que haja um número suficiente para se fomentarem os conflitos que desencadearão as ações. Dentre as várias personagens de um romance, devemos encontrar as protagonistas, as coadjuvantes e as antagonistas. Os dramas e conflitos individuais não se limitam aos personagens principais, podendo ser atrelados também aos não protagonistas. Ficará claro ao leitor quem é realmente o protagonista da história, principalmente pela força da personalidade a esse vinculada. Moisés (2006) conceitua personagens planas, personagens redondas e personagens mistas (desenvolvidas pela alternância dos tipos anteriores). As primeiras podem caracterizadas pelo exagero de determinada tendência, transformando-se em verdadeiras caricaturas. Podemos nos lembrar do sedutor, do debochado, da romântica, do ranzinza, da vizinha fofoqueira, entre tantos outros. Personagens planas permanecem do jeito que são apresentadas pela narrativa até o final; é como se não fossem afetadas pelo desencadear das ações. Mantêm-se uniformes durante todo o romance. Quanto às personagens redondas, são profundas, diferenciadas, seguem sua força interior. Mostram-se superiores às coerções sociais. Ao mesmo tempo, esse tipo é imprevisível, dotado de complexa personalidade. 34 Moisés (2006) toma a personagem Capitu, da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis (1878), e a personagem Luísa, da obra O Primo Basílio, de Eça de Queiroz (1878), para as seguintes reflexões: Em Capitu, o humano engrandece-se e adquire a força de símbolo, tenha havido ou não adultério (de resto, problema secundário e insolúvel); em Luísa, o humano empequenece-se, não porque a personagem ‘errou’ ingenuamente, arrastada pela luxúria. Capitu é redonda, é símbolo; Luísa é plana, quase-tipo ou quase-caricatura. (MOISÉS, 2006, p. 231) Na citação apresentada, o autor associa a personagem Luísa a uma personalidade frágil, de pouca atitude. Ela é uma quase-caricatura da mocinha ingênua e enganada pelo caricato aproveitador. Quanto à Capitu, por sua astúcia e ousadia, é considerada um símbolo de mulher à frente de seu tempo. Essas duas obras mencionadas tratam do tema traição, no entanto, Luísa, personagem tipicamente plana, e Capitu, personagem tipicamente redonda, mostram-se como personalidades opostas. Quanto às narrativas, o narrador de Dom Casmurro é o protagonista Bentinho, cujo apelido é Dom Casmurro; o narrador de O Primo Basílio, por sua vez, aparece em terceira pessoa. O primeiro conta a história a partir de sua participação, e o segundo, a partir de sua observação. A conceituação dicotômica narrador como personagem e narrador como observador foi proposta por Greimas (1973) e Moisés (2006). A partir daí, Martins (2022) propõe as seguintes bifurcações: Narrador em 1ª pessoa a. Narrador-protagonista: a personagem principal conta sua história. b. Narrador-testemunha: uma personagem coadjuvante comenta os eventos que testemunhou, vividos pela personagem protagonista. 35 Narrador em 3ª pessoa a. Narrador-onisciente: conta a história da posição de quem sabe tudo sobre os eventos, incluindo até mesmo os pensamentos dos personagens. b. Narrador-observador: conta a história estando na posição de um observador que, embora interessado pelos eventos que viu, consegue comunicar apenas o que está ao seu alcance. A sucessão de eventos vivenciados pelos personagens e contados pelo narrador é o que se chama de enredo e “[...] existe para situar o leitor acerca dos acontecimentos. É o enredo que organiza os fatos da história em uma sequência com início, meio e fim [...]” (MARTINS, 2022, p. 59). Gancho (2002) destaca que o conflito – seja entre dois personagens ou entre o personagem e o ambiente – permite que o leitor crie expectativas frente aos eventos do enredo. Os conflitos podem envolver questões religiosas, morais e psicológicas (essas, consideradas como crises emocionais vividas pela personagem). A autora ainda propõe que é o conflito que estrutura o enredo por meio das seguintes etapas: 1. Exposição: momento em que a narrativa situa o leitor diante da história que será contada. 2. Complicação: ocasião do enredo em que surge o conflito (ou conflitos, pois pode haver mais de um na mesma narrativa). 3. Clímax: parte do enredo em que se encontra o ponto máximo do conflito. Trata-se do ponto de referência para todos os outros momentos do enredo. 36 4. Desfecho: quando surge a solução para o(s) conflito(s). O desfecho pode assumir diversas formas: trágicas, cômicas, surpreendentes, felizes etc. Enredos psicológicos baseiam-se em movimentos internos – como pensamentos, emoções –, e não em ações palpáveis das personagens. Isso não quer dizer que não se deva contar com a presença de conflitos, tão importantes nas narrativas, assim como as partes do roteiro. Em Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, o fator psicológico está fortemente presente durante a narrativa, a qual é feita pelo personagem Bentinho. A fase da exposição da narrativa é ilustrada desde o nascimento do protagonista. Complicações em sua vida começam desde a promessa de sua mãe de que ele seria padre. Seu maior conflito é a suspeita que sua esposa o tenha traído e que seu filho é, na verdade, filho de outro homem. O clímax se faz quando Dom Casmurro pensa em matar Ezequiel, pois acredita que não seja seu filho, e sim fruto da traição de Capitu. O desfecho é aberto, deixando que o leitor se decida pela verdade final: Bentinho foi traído ou não? O tempo, dentro da narrativa da obra mencionada, é o que chamamos de cronológico. Ele é linear e começaria no ano de 1857, quando a mãe de Bentinho é pressionada para enviá-lo ao seminário. Ele acaba indo no ano seguinte. Em 1865, Bentinho casa-se com Capitu. Em 1872, eles separam-se. Quanto ao tempo psicológico, trata-se daquele que passa pela imaginação do narrador ou dos personagens, podendo, assim, alterar a ordem cronológica dos acontecimentos. Podemos encontrar, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), de Machado de Assis, o tempo psicológico. A narrativa se dá pelo protagonista que se diz morto. Assim, a história começa com o narrador contando como foi seu enterro, depois conta sua morte e só depois fala 37 de sua infância e juventude. Ou seja: o tempo é totalmente descolado da linearidade do tempo cronológico. Gancho (2002) destaca o flashback como uma técnica utilizada em narrativas a serviço do tempo psicológico para voltar no tempo. Na obra mencionada anteriormente, o tempo presente, para o narrador/protagonista, é sua própria condição de falecido, a partir da qual ele volta ao passado mais recente, ou seja, a ocorrência de sua morte e ao passado mais remoto: sua infância e sua juventude. O recurso utilizado foi exatamente o flashback. Segundo Moisés (2006, p. 182), o romancista se apossa de poderes demiúrgicos para criar o tempo, “[...] que é tudo na obra, ou é nada, impalpável como um ‘dado imediato da consciência’”. Em outras palavras, o autor da história tem, como se fossem poderes divinos, quando cria não só o tempo, mas o enredo, as personagens e o local. A função fundamental do local (ou espaço) em narrativasé posicionar as ações das personagens e instituir com elas uma interação que pode influenciar suas emoções, seus pensamentos e seus comportamentos. Há também a possibilidade de as personagens provocarem eventuais transformações. Para Gancho (2002), o conceito de espaço se limita ao lugar físico onde acontecem os eventos na narrativa. A autora propõe o termo ambiente para definir um local psicológico, social, econômico etc. É o espaço carregado de características socioeconômicas, morais, psicológicas, em que vivem os personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescido de um clima. (GANCHO, 2002, p. 23) Para a autora, o clima nada mais é do que a conjunção de condições socioeconômicas, morais, religiosas, psicológicas, entre outras. Quanto ao ambiente, é seu papel aproximar tempo e espaço – é nessa integração que as personagens se situam e vivem seus conflitos. 38 O ambiente pode se caracterizar por aspectos, como as características físicas do local, a época em que se passa a história, os aspectos socioeconômicos, psicológicos, morais, religiosos etc. 2.1 Para complementar Neste conteúdo didático, exploramos os principais elementos da narrativa abordados por grande parte de analistas literários. Para finalizarmos, apresentamos a proposta de Gancho (2002) quanto a incluirmos também mais três elementos: • O tema é a ideia ao redor da qual a história é desenvolvida. Ele pode ser identificado por uma expressão substantiva abstrata. • O assunto é o tema desenvolvido no enredo. Ele concretiza o tema. Podemos identificá-lo por uma expressão substantiva concreta. • A mensagem é uma conclusão ou um pensamento que podemos ter ao ler a narrativa. Ela pode ser configurada por uma frase. A autora alerta para que não se caia no erro de confundir esse conceito com as mensagens de moral da história encontradas nas fábulas. Isso porque os textos narrativos podem carregar em seu bojo conclusões nem sempre morais. A seguir, lançamos mão de um enredo que a autora toma para ilustrar os conceitos dos três elementos apresentados. […] imaginemos uma história que tenha o seguinte enredo: a moça (Aurélia) gosta do rapaz (Fernando) e ele dela, mas ele é ambicioso e troca o amor de uma mulher pobre pelo de uma mulher rica. Não nos esqueçamos de que esta história se passa no Rio de Janeiro do século XIX, quando moça que não tem dote pode ficar para ‘tia’. Mas o surpreendente acontece: Aurélia recebe uma herança e, então rica, pode comprar Fernando, oferecendo-lhe um dote maior do que a outra moça. Uma vez casados, Aurélia decide punir Fernando, negando-se a dormir com ele; em 39 outras palavras, a consumar o casamento. Então Fernando, magoado em seu orgulho, junta o dinheiro do dote e o devolve a Aurélia, com intenção de partir. Neste momento, Aurélia, arrependida, atira-se aos pés do marido. Final feliz. ‘As cortinas cerram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal’. (GANCHO, 2002, p. 32) Diante do resumo do enredo do romance Senhora (1874), de José de Alencar, a autor propõe a seguinte análise: • Tema: Amor versus Ambição. • Assunto: o casamento e a vida conjugal de Aurélia e Fernando. • Mensagem: o amor é mais forte que a ambição. 3. Para concluir Se você quer escrever textos ficcionais inesquecíveis, sugerimos que você se deixe envolver pela infinidade de obras memoráveis como essas que usamos de exemplo aqui e, além disso, que você estude os elementos narrativos para dominá-los e aplicá-los em suas criações. Referências ALENCAR, J. Senhora. Domínio Público, 2023. Disponível em: http://www. dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000011.pdf. Acesso em: 8 mar. 2023. ASSIS, M. Dom Casmurro. Domínio Público, 2023. Disponível em: http://www. dominiopublico.gov.br/download/texto/bv00180a.pdf. Acesso em: 8 mar. 2023. ASSIS, M. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Domínio Público, 2023. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf. Acesso em: 8 mar. 2023. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000011.pdf http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000011.pdf http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv00180a.pdf http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv00180a.pdf http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf 40 FRIEDMAN, N. O ponto de vista na ficção. O desenvolvimento de um conceito crítico. Trad. Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, mar./maio 2002. GANCHO, C. V. Como Analisar Narrativas. São Paulo, SP: Ática, 2002. GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. São Paulo, SP: Cultrix, 1973. HOFF, P. C. Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa. Porto Alegre, RS: SAGAH, 2017. MARTINS, D. P. et al. Escrita literária. São Paulo, SP: Grupo A, 2022. MOISÉS, M. A Criação Literária. Prosa I. 20. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 2006. MOISÉS, M. A Análise Literária. 19. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 2014. 41 Empreendedorismo criativo Autoria: Carla Patricia Fregni Leitura crítica: Marcelo Vianna Batista Objetivos • Contextualizar o conceito de empreendedorismo criativo. • Abordar a criação literária como empreendimento criativo. • Ilustrar as principais práticas literárias no empreendedorismo criativo brasileiro. 42 1. Do escritor ao empreendedor literário Neste conteúdo de estudos, devemos entender o potencial da criação literária para se tornar em um empreendimento criativo e viável. Para isso, permearemos diversos conceitos que se interconectam até chegarem ao que é entendido como empreendedorismo criativo. Abordaremos temas, como tipos de empreendedores, contextos industriais, economia criativa e economia cultural. Além disso, trataremos alguns exemplos de empreendimentos literários. 2. Empreendedorismo criativo A primeira vez que a expressão economia criativa surgiu foi em 2001, em matéria de capa da revista Business Week, intitulada The Creative Economy – The 21 century corporation. No entanto, a semente dessa expressão já tinha sido plantada com o conceito de Creative Nation (Nação Criativa), cunhado pelo governo da Austrália em 1994, quando determinou a implantação de uma política de requalificação do papel do Estado no desenvolvimento da cultura do país. Dentro dos estudos sobre economia criativa e indústrias criativas, encontramos também o de empreendedorismo criativo. Alguns autores tomam esse tema como uma ampliação das pesquisas que são dedicadas às artes, às indústrias culturais e às mídias ao longo dos últimos cinquenta anos. Termos, como empreendedorismo, empreendedorismo criativo, empreendedorismo cultural e empreendedorismo artístico, mostram-se justapostos. É compreensível, uma vez que falar de empreendedorismo por si só já é considerar a criatividade como elemento intrínseco. 43 O termo empreendedorismo pode ser definido de diversas maneiras, mas, geralmente, é associado à criação de novos negócios ou à inovação em empresas já existentes. De acordo com Dornelas (2001), empreendedorismo é o processo de criar algo novo com valor, que envolve tempo e esforços, assumindo-se riscos e enfrentando-se incertezas. Dolabela (1999) destaca que empreendedorismo não é apenas um processo de criação de novas empresas mas também um conjunto de habilidades e atitudes que podem ser aplicadas em diversas áreas da vida, como no mercado de trabalho e na vida pessoal e social. O empreendedorismo é a capacidade de transformar sonhos em realidade, de buscar soluções criativas para os desafios do dia a dia, de identificar e aproveitar oportunidades de crescimento pessoal e profissional. Para alguns autores, como Santos (2016), um empreendedor artístico seria aquele que utiliza seus talentos e suas habilidades artísticas para criar e gerir negócios relacionados à arte, como galerias de arte, escolas de arte, estúdios de gravação, entre outros. Para isso, ele deve terconhecimento técnico e habilidades gerenciais para garantir o sucesso do seu empreendimento. Segundo Laraia et al. (2014), um empreendedor cultural é aquele que utiliza as manifestações culturais como fonte de inspiração e inovação para criar negócios que promovam experiências culturais que são distribuídas como produtos de massa. Por exemplo: cinemas, óperas, teatros, shows de rock etc. Segatto et al. (2018) define o empreendedor criativo como aquele que utiliza a criatividade e a inovação para criar e gerir negócios com a preservação da propriedade intelectual e a distribuição apropriada a cada segmento que pode ocupar os diversos setores econômicos, como design, propaganda e marketing, literatura, entre outros. 44 Seja qual for o formato de empreendimento, todos estão circunstanciados pela economia. A economia criativa e a economia cultural são termos frequentemente utilizados no contexto do desenvolvimento econômico e cultural. Embora os dois conceitos estejam relacionados, eles se referem a áreas distintas e possuem objetivos diferentes. A economia criativa abrange atividades que envolvem a criação, a produção e a comercialização de bens e serviços que são resultados do talento, da habilidade e da criatividade das pessoas. Segundo Silva (2020, p. 18) “economia criativa é o espaço de reencontro entre a lógica da necessidade da economia e da liberdade típica da criatividade cultural”. A indústria criativa é um setor econômico baseado na geração de valor a partir da criatividade e da propriedade intelectual. Essa indústria inclui atividades, como design, publicidade, arquitetura, moda, software, jogos eletrônicos, entre outras (FLORIDA, 2002 apud SANTOS, 2016). Para Laraia et al. (2014), a economia cultural engloba as atividades econômicas relacionadas à cultura, como produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais. Para os autores, a economia cultural tem um papel importante na promoção da diversidade cultural e no desenvolvimento socioeconômico das regiões onde se realiza. A indústria cultural é um termo cunhado por Adorno e Horkheimer (1985), em sua obra Dialética do Esclarecimento, para se referir ao conjunto de atividades econômicas que produzem e distribuem produtos culturais em massa, tais como filmes, músicas, livros, revistas, entre outros. Discussões fomentadas pela obra mencionada inspiram reflexões até hoje: afinal, industrializar a cultura é transformar a arte em produto? Quando se torna produto, continua sendo arte? No caso de uma criação literária, será que um poema ou um conto de ficção pode manter sua 45 fruição artística mesmo sendo industrializado? Afinal, o autor pulsa sua criatividade espontaneamente ou será sempre refém de um mercado que exige novidades em escala de produção industrial? Uma das principais diferenças entre o conceito de indústria cultural e o conceito de indústria criativa é que a primeira se concentra na produção e na distribuição em massa de bens culturais, enquanto a segunda abrange um conjunto mais amplo de atividades econômicas que geram valor a partir da criatividade e da propriedade intelectual. Além disso, a indústria criativa é frequentemente associada a processos de inovação, enquanto a indústria cultural tende a ser mais tradicional e voltada para a reprodução de produtos culturais já estabelecidos. Em economias capitalistas, com suas culturas baseadas no consumo, a procura por qualidades empreendedoras chega a ser considerada um lugar comum, pois empreender é ter o poder de antecipar oportunidades. Nesse cenário, uma ideia que não esteja ligada a alguma oportunidade não é uma ideia empreendedora. Segundo Hashimoto (2014), é importante que uma ideia esteja pontuada por tempo/espaço apropriados. O autor propõe cinco maneiras para se detectarem oportunidades: • Corrigir o que está errado: em nosso cotidiano, podemos observar uma infinidade de coisas erradas e, por trás delas, a oportunidade de corrigi-las. Por exemplo: perda de tempo em filas; queda da internet pela falta de energia; sujeira na tela do notebook; falta de banheiros públicos em shows de rock etc. • Sanar necessidades: mesmo que o foco não esteja em problemas, podemos observar necessidades que não estão sendo atendidas. Se houver necessidade por parte de um público que pode pagar para ser atendido, há oportunidade. Por exemplo: contar com troca de pneus quando se está no meio do caminho; encontrar 46 estacionamento com cobertura para o carro; ter desinfetantes à base de álcool para as mãos em lugares públicos etc. • Realizar os sonhos das pessoas: imagine poder realizar os desejos daquele público que pode pagar por isso! Por exemplo: comprar uma casa com piscina; ter uma cafeteira de última geração na cozinha; fazer um pedido pelo celular e receber a pizza em poucos minutos etc. • Trazer de volta algo bom do passado: nesse caso, o céu é o limite, pois não há quem não guarde saudade de alguma coisa, algum momento, algum sabor, algum cheiro. Por exemplo: filmes antigos; decoração retrô; parques de diversão; gibis; restaurantes caseiros; casas de campo, entre outros. • Propiciar melhorias: por que não pensar em melhorias para a sociedade? Por exemplo: celulares mais baratos; bibliotecas populares; apoio a jovens em situação de riscos etc. Para um empreendedor, detectar janelas de oportunidades é essencial. Como observado por Hashimoto (2014), oportunidades estão pontuadas por tempo/lugar: é um desafio prever quando e onde elas surgirão e por quanto tempo estarão à disposição. Por isso, desenvolver algumas habilidades apropriadas deve ser prioridade dos empreendedores. Dornelas (2001) menciona características fundamentais para se tornar um empreendedor de sucesso: • Desenvolver automotivação, ou seja, mesmo que pareça não haver retorno imediato, ele deve focar no objetivo de realização que está um pouco mais à frente. • A iniciativa também deve ser uma característica empreendedora, pois não se espera que tudo aconteça espontaneamente: agir é imperativo. 47 • Relacionar-se com os mais variados tipos de pessoas e desenvolver uma rede extensa de contatos (networking). É assim que se estrutura um alicerce e conexões que são úteis ao desenvolvimento pessoal e do negócio. • Conhecer profundamente cada elemento de seu empreendimento. • Liderar e inspirar as pessoas ao seu redor, inspirando-as e contagiando-as com uma liderança natural. • Ser capaz de desenhar objetivos claros a respeito do que se quer e aonde se quer chegar. • Saber coligar os recursos conseguidos para utilizá-los de maneira efetiva. • Aprender a tomar decisões com firmeza, sem hesitações. • Ter competência para persuadir pessoas-chave para cooptarem por seus objetivos. É bastante comum encontrarmos tentativas de se rotular o perfil do empreendedor ideal. Existem muitas investigações acadêmicas para se chegar à fórmula do empreendedor de sucesso. Desenhar traços em comum entre as personalidades, os comportamentos-chave, os testes etc. No entanto, uma certeza existe: empreender é possível a todas as pessoas, basta desenvolver habilidades empreendedoras. 2.1 A criação literária como um empreendimento criativo A literatura é uma área que pode ser explorada como fonte de empreendimento dentro da economia criativa. Segundo Oliveira (2016), os escritores podem utilizar suas obras literárias como fonte de empreendimento criativo, transformando-as em produtos culturais comercializáveis. Para isso, é preciso entender que as obras literárias 48 não são apenas um fim em si mesmas, mas podem ser utilizadas para gerar novas formas de receita, como a venda de livros, peças teatrais, roteiros de filmes ou séries, entre outras opções. Outra opção apresentada por Pimenta (2016) é a utilização da literatura como fonte de inspiração para a criação de novos produtos culturais, por exemplo, jogos de tabuleiro, jogos eletrônicos, aplicativos, entre outros. O autor destaca a importância dacriatividade para a geração de novas ideias e a necessidade de se adaptar a um mercado em constante transformação. Para se utilizar das criações literárias como empreendimento dentro da economia criativa, é preciso pensar em formas de produzir e comercializar os produtos culturais. Conforme Melo (2017), a comercialização de produtos literários pode ser realizada através de editoras, lojas virtuais ou físicas, feiras literárias, entre outros meios. É importante também investir em divulgação, criando redes de contatos, utilizando as redes sociais e outras plataformas digitais para promover as obras literárias. Em suma, é possível utilizar as criações literárias como fonte de empreendimento dentro da economia criativa, transformando-as em produtos culturais comercializáveis ou utilizando-as como fonte de inspiração para a criação de novos produtos. Para isso, é necessário investir em criatividade, adaptar-se ao mercado em constante transformação e pensar em formas de produção e comercialização dos produtos culturais. A economia criativa é um setor em constante crescimento, e a literatura de ficção é um segmento importante dentro desse universo. Aqui estão alguns casos de investimentos na economia criativa que envolvem literatura ficcional: • Plataformas de autopublicação: com o surgimento de plataformas de autopublicação, como Amazon Kindle Direct 49 Publishing, a literatura de ficção tornou-se mais acessível e democrática. Autores independentes podem publicar seus próprios livros em formato digital, sem precisar passar pelo processo de seleção de editoras tradicionais. Essas plataformas têm atraído investimentos de empresas, como a Amazon, e ajudado a expandir o mercado de livros eletrônicos. • Adaptações para filmes e séries: a indústria de entretenimento tem investido cada vez mais em adaptações de livros de ficção para o cinema e a televisão. Essas adaptações podem gerar receitas significativas para autores e editoras, além de impulsionar as vendas dos livros originais. Um exemplo recente é a série “Bridgerton”, da Netflix, baseada na série de livros de Julia Quinn. • Livros de nicho: autores que escrevem para públicos específicos, como fãs de fantasia, ficção científica ou romance, podem encontrar oportunidades de investimento em editoras independentes que se concentram em nichos específicos. Essas editoras podem oferecer serviços de edição, design e marketing, que ajudam os autores a alcançarem seu público-alvo. • Plataformas de crowdfunding: o crowdfunding é uma forma popular de financiamento para autores independentes de ficção. Plataformas, como Kickstarter e Indiegogo, permitem que autores publiquem projetos de livros e solicitem financiamento de seus leitores. Essas plataformas têm sido uma fonte de investimento para muitos autores que, de outra forma, não teriam acesso a financiamento tradicional (LEPRI, 2013). • Feiras de livros: as feiras de livros e os festivais literários são eventos importantes para autores e editoras, oferecendo oportunidades de networking, divulgação e vendas. Empresas podem patrocinar esses eventos para ganhar exposição para suas marcas e produtos, enquanto autores e editoras podem vender diretamente para leitores e fãs. 50 3. Considerações finais Para concluirmos este conteúdo de estudos, devemos propor profundas reflexões sobre caminhos para que a literatura artística mantenha sua singularidade, mesmo quando submetida ao empreendedorismo. A coisificação da arte é discutida por Walter Benjamin (1985) em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Ele argumenta que a reprodução mecânica da arte, como ocorre na indústria cultural, retira a aura da obra de arte, isto é, sua aura de autenticidade e singularidade. A reprodução técnica torna a obra de arte uma mercadoria, que pode ser facilmente produzida e consumida em massa, perdendo sua conexão com a tradição e com a experiência estética. No mercado editorial, a comercialização de obras literárias pode ser vista como uma atividade empreendedora, que envolve a criação de produtos e serviços para atender às demandas dos leitores e do mercado. No entanto, essa atividade enfrenta também o desafio de preservar a diversidade e a singularidade da produção literária em um mundo cada vez mais padronizado e mercantilizado. Para enfrentar esse desafio, é fundamental que os empreendedores criativos adotem estratégias que valorizem a qualidade e a originalidade das obras literárias e que possibilitem a criação de espaços de autonomia e experimentação estética, capazes de desafiar a lógica do mercado e da produção em massa. Uma dessas estratégias é a criação de editoras independentes, que privilegiam a produção de obras literárias de qualidade e que valorizam a singularidade dos autores e de suas obras. Essas editoras investem em processos de curadoria e seleção de obras, que buscam identificar talentos e obras inovadoras, capazes de contribuir para a diversidade da produção literária (SEGATTO, 2018). 51 Além disso, as editoras independentes podem investir em estratégias de marketing que valorizem a originalidade e a singularidade das obras literárias, buscando estabelecer conexões com públicos mais exigentes e críticos, que valorizam a qualidade e a autenticidade das obras. Outra estratégia importante é a criação de redes de colaboração entre autores, editoras e leitores, que possibilitem o intercâmbio de ideias e experiências e que contribuam para o desenvolvimento de uma cultura literária mais diversa e plural. Dessa forma, é possível comercializar obras literárias e, ao mesmo tempo, preservar sua diversidade e sua singularidade em um mundo cada vez mais padronizado e mercantilizado. Para isso, é fundamental que os empreendedores criativos adotem estratégias que valorizem a qualidade, a originalidade e a singularidade das obras literárias e que busquem criar espaços de autonomia e experimentação estética, capazes de desafiar a lógica do mercado e da produção em massa. Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1985. BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, SP: Brasiliense, 1985. DOLABELA, F. O segredo de Luisa: uma ideia, uma paixão e plano de negócios: como nasce o empreendedor e se cria uma empresa de sucesso. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados, 1999. DORNELAS, J. C. A. Empreendedorismo: transformando ideias em negócios. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 2001. FLORIDA, R. The rise of the creative class: and how it’s transforming work, leisure, community and everyday life. New York: Basic Books, 2002. HASHIMOTO, M. Empreendedorismo: plano de negócios em 40 lições. São Paulo, SP: Saraiva, 2014. 52 LARAIA, R. et al. Empreendedorismo Cultural: um estudo sobre o impacto da economia criativa na gestão de organizações culturais. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAD, 38., 2014, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro, RJ: ANPAD, 2014. LEPRI, L. Crowdfunding: a revolução do financiamento coletivo. São Paulo, SP: DVS, 2013. MELO, C. A. 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SEGATTO, L. V. et al. Empreendedorismo criativo: conceitos, práticas e perspectivas. Revista de Administração Mackenzie, São Paulo, v. 19, n. 6, p. 1-22, 2018. SILVA, F. A. B. da. Considerações sobre as relações entre economia criativa e políticas de evento. In: SILVA, F. A. B. da; BRASÍLIA, P. (orgs.). Políticas públicas, economia criativa e da cultura. p.13-26. Brasília: Ipea, 2020. Sumário Apresentação da disciplina A criação e a criatividade Objetivos 1. Para começar 2. Criatividade e criação 3. Últimas reflexões Referências Gêneros e tipos literários Objetivos 1. Por onde começar 2. Conceitos e exemplos 3. Considerações finais Referências Narrativas de ficção Objetivos 1. Para começar 2. Narrativas literárias ficcionais 3. Para concluir Referências Empreendedorismo criativo Objetivos 1. Do escritor ao empreendedor literário 2. Empreendedorismo criativo 3. Considerações finais Referências