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Análise da Segurança Pública no Rio de Janeiro


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FACULDADE CAMPOS ELÍSEOS
 ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO PÚBLICA 
ADRIANA APARECIDA FLORIANO
O DIREITO, A SEGURANÇA PÚBLICA E A SEGURANÇA DOS DIREITOS
SÃO PAULO
 2018
FACULDADE CAMPOS ELÍSEOS
 ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO PÚBLICA
ADRIANA APARECIDA FLORIANO
O DIREITO, A SEGURANÇA PÚBLICA E A SEGURANÇA DOS DIREITOS
 Monografia apresentada à Faculdade Campos Elíseos, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Gestão Pública sob supervisão da orientadora: Prof. Fatima Ramalho Lefone. 
SÃO PAULO
2018
FACULDADE CAMPOS ELÍSEOS
 ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO PÚBLICA
ADRIANA APARECIDA FLORIANO
O DIREITO, A SEGURANÇA PÚBLICA E A SEGURANÇA DOS DIREITOS
 Monografia apresentada à Faculdade Campos Elíseos, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Gestão Pública sob supervisão da orientadora: Prof. Fatima Ramalho Lefone. 
Aprovado pelos membros da banca examinadora em
___/___/___. com menção ____ (________________).
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
São Paulo
2018
DEDICATÓRIA
A todos da família que durante todo o tempo me incentivaram e me apoiaram para a realização de mais uma etapa importante de minha vida.
AGRADECIMENTOS
A DEUS pela benção de me manter feliz no gozo de minhas plenas faculdades físicas e mentais.
EPÍGRAFE
No meio da dificuldade se encontra a oportunidade.
Albert Einstein
RESUMO
Esta monografia tem por objeto analisar a questão da Segurança Pública com foco no Rio de Janeiro, visa investigar uma política criminal adequada, a partir do confronto de experiências ou trabalhos científicos realizados em outras localidades do mundo. A proposta de solução aqui encontrada perpassa pela análise entre dois modelos ou paradigmas de políticas públicas bem definidas e antagônicas entre si. Uma caracaterizada na mão forte do Estado, com efetiva interferência nos usos e costumes locais, na qual a esfera de liberdade dos cidadãos é limitada em prol de um radical combate ao crime. Tem como pano de fundo um apego irrestrito a ‘Lei e a Ordem’ e que ficou muito bem representada pela ‘Política de Tolerância Zero’, adotada em Nova York na década de 90 por Rudolph Giuliani e William Breatton, impressionando mundo pela eloquência de seus métodos. Já a outra proposta segue na confluência das ideias de três expoentes estudiosos da violência urbana, dois europeus, Loic Wacquant (francês) e Alessandro Baratta (italiano) e um brasileiro Carlos Magno Nazareth Cerqueira que, na mesma época, seguiam linhas de pensamento completamente antagônicas aquelas experimentadas nos Estados Unidos. Para eles, cada um ao seu modo, somente com uma política pública ‘não discriminatória’ e atenta aos ‘direitos humanos’ poderia ostentar legitimidade suficiente para mudar efetivamente o comportamento de um povo e gerar resultados mais eficazes. O desenvolvimento desta monografia apontou para a necessidade de se considerar certos fatores, próprios do povo brasileiro e peculiares ao seu momento histórico-cultural, político e social, haja vista as especificidades da conjuntura existente naquela época e, atualmente, no Estado do Rio de Janeiro. E, por fim, foram vislumbradas algumas possíveis ações afirmativas objetivando a minimização do caos urbano carioca, de modo a permitir um futuro melhor, com maior sentimento de segurança e melhores condições de subsistência dentro de um Estado de Direito Democrático.
Palavras chave: Segurança Pública. Política Criminal. Tolerância zero. Direitos humanos. Segurança dos direitos.
ABSTRACT
This monograph's purpose is to analyze the issue of Public Safety with a focus in Rio de Janeiro, aims to investigate a criminal appropriate policy from the clash of experiences or scientific work elsewhere in the world. The proposed solution found here permeates the analysis among two models or paradigms of public policies defined and antagonistic to each other. A sidewalk on the strong hand of the state, with effective interference in local traditions and customs, where the sphere of citizens' freedom is limited in favor of a radical fighting crime. Its backdrop unrestricted attachment to 'Law and Order' and that was very well represented by 'Zero Tolerance Policy', adopted in New York in the 90s by Rudolph Giuliani and William Breatton, world impressed by the eloquence of his methods . Since the proposal follows another at the confluence of three exponents of the ideas scholars of urban violence, two Europeans, Loic Wacquant (French) and Alessandro Baratta (Italian) and a Brazilian Carlos Magno Nazareth Cerqueira which, at the same time, followed lines of thought completely antagonistic those experienced in the United States. For them, each in his own way, only with a public policy 'non-discriminatory' and attentive to 'human rights' could boast sufficient legitimacy to effectively change the behavior of a people and generate more effective results. The development of this monograph pointed to the need to consider certain factors specific to the nature of the Brazilian people and their peculiar historical moment-cultural, political and social, given the specifics of the situation existing at that time and currently in Rio January. And finally, we glimpsed some possible affirmative actions aimed at minimizing the urban chaos of Rio, to enable a better future, with greater sense of security and better livelihoods within a democratic rule of law.
Keywords: Public Safety. Criminal Policy. Zero tolerance. Human rights. Security rights.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO	8
1.1 OBJETIVO GERAL……………………….....……………………….………….8
1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS……………………………………………………8
1.3 PROBLEMA……………………………………………………………………….8
1.4 JUSTIFICATIVA………………………………………………………………….8
2 POLÍTICA CRIMINAL	10
2.1 REALIDADE URBANA, CONTROLE SOCIAL E SISTEMA PENAL	10
2.2 A POLÍTICA DE TOLERÂNCIA ZERO	15
2.3 A POLÍTICA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO	27
3 CRÍTICA ESPECIALIZADA	36
3.1 WACQUANT E A REALIDADE DE HOJE EM NOVA IORQUE	36
3.2 CERQUEIRA E A REALIDADE DE HOJE NO RIO DE JANEIRO	39
3.3 ALESSANDRO BARATTA E A SEGURANÇA DOS DIREITOS	43
4 O ESBOÇO DE UMA POLÍTICA DE SEGURANÇA PARA O RJ	49
5 CONCLUSÃO	56
REFERÊNCIAS	58
1 INTRODUÇÃO
A ‘etiologia’ do crime, ou o ‘estudo das causas’ da criminalidade sempre foi uma preocupação das sociedades ao longo da história da humanidade.
1.1 Objetivo geral 
O problema do crime é tão grave que quando se cogita de sua solução, isso não implica em sua erradicação. Daí porque, mesmo com a interdisciplinaridade dos saberes: sociologia, antropologia, psicologia, criminologia e direito - só para citar as disciplinas mais afins, - o máximo que se entendeu possível foi admitir como ‘solução’, a sua mera tolerância em níveis razoáveis de convivência.
1.2 objetivos específicos 
A criminologia moderna, por exemplo, que reúne o cabedal de conhecimentos mais qualificado, conquanto analise conjuntamente os fenômenos do crime, da criminalidade, de suas causas, do agente, da vítima e do controle social, também não conta com a eliminação do crime como algo factível.
1.3 problema
Nessa ordem de ideias, muitas escolas e tendências filosóficas foram palco de debates intermináveis e o consenso geral, base para uma investigação adequada, parte da ideia de que a metodologia aplicável para o seu estudo não é o das ciências naturais, mas o das ciências do espírito, pois não sendo o crime um fenômeno natural, mas sociopolítico, não está ele sujeito a uma explicação, no sentido de se submeter às leis gerais de funcionamento da natureza. Sua análise dá-se no campo da compreensão, no sentido de apreender o significado das ações humanas conforme presentes nas obras da cultura1.
1.3 justificativa
Ultimamente, o desejo de se conter o crime por meio de uma política pública de segurança, polarizou-seentre duas grandes vertentes, uma desenvolvida na América do Norte (E.U.A) e outra na Europa com reflexos no Brasil.
A primeira pautada na mão forte do Estado. Teve fonte de inspiração em 1982, com a publicação da revista The Atlantic Monthly de autoria de James Q. Wilson e George Kelling. Dois estudiosos americanos determinados em demonstrar a relação de ‘causalidade’ entre a ‘desordem e a criminalidade urbana’. Tese desenvolvida a partir da experiência de outro conterrâneo, o psicólogo Philiip Zimbardo que, após abandonar um carro em um bairro nobre da Califórnia constatou que - na primeira semana - nada acontecia, mas bastou uma janela do veículo ser ‘quebrada’ para que, - em poucas horas - os vândalos o saqueassem por completo.
Daí se deduzindo a ‘Teoria das Janelas Quebradas’ (broken Windows theory), segundo a qual; quando algo se quebra (como uma janela) e o seu conserto não ocorre imediatamente, as pessoas logo sentem a falta de autoridade no local e tendem a impor a sua própria lei de desmando e anarquia. Essa teoria, precursora, deu azo, anos mais tarde, à ‘Política de Tolerância Zero’, inaugurada em Nova Iorque e que rapidamente tomou o mundo afora, como exemplo de gestão de segurança urbana.
Por outro lado, em direção diametralmente oposta, viu-se crescer na Europa e, por conseguinte, no Brasil três vultos de prestígio intelectual notórios.
O primeiro, Loic Wacquant (francês), notabilizou-se, justamente por ter estudado a fundo a realidade de Nova Iorque na década de 90, a partir da qual, desenvolveu varias obras tematizadas pela violência urbana nas grandes metrópoles. Já, o segundo, Alessandro Baratta (italiano), tornou-se conhecido no mundo todo pela autoridade de seu conhecimento sobre criminologia, fato marcante com a publicação da obra intitulada: ‘Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal’ (1983).
Enquanto isso, no Brasil, especificamente no Estado do Rio de Janeiro, despontava outra grande figura. Tratava-se de um Coronel da Polícia Militar, de cor negra que, contra toda a evidência de poder dominante nos idos dos anos 80 e 90, ousou propor um modelo de polícia, completamente diferente daquele até então vigente.
Com base na essência das ideias desses atores que, não chegaram a sistematizar uma política publica de segurança concreta, mas deixaram a semente de seus pensamentos para que isso, mais tarde, pudesse ser feito é que, - com este breve ensaio crítico - se pretende propor uma política criminal centrada na ‘segurança dos direitos’ onde, de um lado, tenhamos o Estado com o direito de se impor pela força quando, estritamente necessário e, de outro, tenhamos os cidadãos com o dever de se submeterem as forças da segurança pública, desde que seus ‘direitos fundamentais’ também sejam respeitados. Tudo visando compatibilizar os interesses contrapostos sob a égide do Estado Democrático de Direito, eleito em
nossa carta magna para o fim de minimizar o caos urbano no Estado do Rio de Janeiro sem causar efeitos deletérios muito profundos na população civil e na própria Administração da Justiça.
2 POLÍTICA CRIMINAL
2.1 REALIDADE URBANA, CONTROLE SOCIAL E SISTEMA PENAL
Em todo mundo e durante todo o tempo da história, a questão da segurança pública esteve atrelada com a situação sociopolítica e econômica do Estado. Quanto mais deteriorada se encontre a infraestrutura do Estado com instabilidades econômicas e desigualdades sociais, mais facilmente se percebe o sentimento de insatisfação institucional e insegurança pública.
Os refugos dos mercados são os soldados do exército da marginalidade. O habitat natural deles são bem conhecidos de todos e estão presentes em todas grandes metrópoles: Favela no Brasil, poblacione no Chile, villa miséria na Argentina, cantegril no Uruguai, rancho na Venezuela, banlieue na França, gueto nos Estados Unidos, etc2.
Locais, tidos por “regiões-problema”, “áreas proibidas” ou “circuito selvagem” na qual se concentram os excluídos do Estado e formam territórios de privação e abandono, gerando violência e medo para todos que não compartilham de sua cultura (de imigração, pouca escolaridade, exclusão do mercado de trabalho) e hábitos (consumo de drogas, prática de crimes, vadiagem, prostituição)
Paradoxalmente, o que se constata para eles é a absoluta falta de perspectiva, pois do problema à pseudo-solução, pouca ou nenhuma diferença faz. O confinamento é o único destino possível, seja pela prisão social na qual já estão imersos (favelas, guetos, etc), seja pelo gueto judiciário para na qual provavelmente terminam quando são alcançados pelo sistema penal (a prisão propriamente dita).
Desfechos estes que só não se verificam quando morrem antes, em virtude das péssimas condições insalubres de suas comunidades ou quando não resistem à própria violência, da qual são criadores e vítimas ao mesmo tempo.
A combinação entre disparidade social e pobreza de massa constitui a receita perfeita para o crescimento inexorável da violência criminal3.
Em uma linguagem metafórica, o estado de completa estabilidade é utópico, o bolo sempre sola. A receita adotada nunca é a adequada e quanto mais se observe
2 WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. Trad. João Roberto Martins Filho. Rio de Janeiro. Revam. 2ª edição. 2005, p. 7.
3 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.
2001, p. 8.
ingredientes do tipo: distúrbios socioeconômicos e culturais, maiores são as chances de se produzir desordem urbana e criminalidade.
E o que é pior; se pensar que para salvar a receita seja necessário só adicionar polícia. Aí é que o bolo sola mesmo! O sistema entra em colapso gerando seletividade, repressividade e estigmatização. Três vertentes nefastas do Sistema Penal, entendido este como o conjunto de instituições que, segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o direito penal4.
Seletividade porque a par de, ideologicamente, o sistema penal apresentar-se igualitário, apto a alcançar a todos indistintamente. Considerando, apenas, o aspecto da conduta conforme sua previsão normativa (a lei penal). Na prática, vê-se que existe toda uma gama de fatores que converge para a mesma categoria de pessoas. Aqueles que frequentam as delegacias de polícia; respondem a processos penais ou foram condenados pela justiça pública. Todos fazem parte do mesmo grupamento social: são os pobres, os negros, os desempregados, os analfabetos, os imigrantes irregulares no país, etc.
Repressividade porque embora o poder punitivo seja profetizado como algo justo, operando somente nos estritos limites da necessidade conforme von Liszt: “só a pena necessária é justa”, a bem da verdade, o que se vê é justamente o contrário, o uso desmedido da força em total desproporcionalidade com o ataque contra o bem jurídico. Muitos são os casos em que a repressão quando já não vem deformada por contingência legal, assim se torna, pela influência exacerbada da mídia sensacionalista.
Estigmatização porque o sistema penal em vez de operar seus efeitos somente no instante da perturbação social causada pelo crime ou durante o período de sua eficácia formal, isto é, enquanto durar o processo no qual o autor responde como réu. Seus efeitos deletérios são estendidos para muito além do trânsito em julgado da sentença condenatória, marcando o indivíduo para sempre. Característica nefasta a que Francesco Carnelutti já chamava a atenção: “A pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez, não termina nunca. Quem em pecado está perdido Cristo perdoa, mas os homens, não”.
4 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Editora Revam. 12ª Ed. 2011, P. 25.
Pois bem, feitas essas considerações, uma questão-chave logo se apresenta como porta de entrada para uma análise mais cuidadosa da tríade proposta (realidade urbana, controle social e sistema penal), a questão que visa saber como deve ser compreendida a criminalidade. Como um fenômeno anormal/patológico? Como uma consequência das más condições de vidado delinquente? Como expressão de desorganização social? Ou, como algo normal?
A toda evidência não nos parece ser mais admissível considerar o crime algo anormal sugerindo um tratamento a semelhança de um modelo médico-sanitário e tampouco fruto exclusivo das más condições de vida do indivíduo ou decorrente somente da desorganização social do Estado, porque se assim o fosse, o crime seria inconcebível nas classes mais abastadas e absolutamente impraticável nos países mais desenvolvidos do mundo.
Em nosso pensar a criminalidade é um fenômeno social normal e como bem dissera o saudoso Coronel Cerqueira da Polícia Militar do Rio de Janeiro:
os conflitos entre os indivíduos e a ordem legítima devem ser esperados, mas não podem ser tratados como situações anormais, psicopatológicas ou conflitos culturais. Só as perturbações graves e extremas chamadas crimes e por terem sido desaprovadas previamente por um acordo unânime merecerão uma sanção penal. Estes crimes devem ser poucos e comprovados, pois vão ser tratados de acordo com a desaprovação social que um tratamento penal pressupõe. 5
No entanto, se por um lado, conforme dissemos as más condições de vida das pessoas e a desorganização social do Estado não são fatores independentes e exclusivos para a criação da criminalidade, certamente, o são para o seu fomento, aumento e quiçá descontrole total. Tudo está complexamente implicado.
O fenômeno ‘criminalidade’, gênero dos acontecimentos de ordem pública e os ‘crimes episódicos’, espécies dos acontecimentos particulares, nada mais são que reflexos ou aspectos sociopolíticos do Estado, cuja história, transformações culturais e estrutura institucional são fatores fundamentais.
A natureza política do fenômeno é evidente por quaisquer perspectivas. Está presente no processo de criação dos delitos quando o Poder Legislativo decide quais condutas merecem ser qualificadas como crime; está presente no Poder Judiciário quando os juízes decidem quem deve ser condenado; e está presente no Poder Executivo, seja quando a polícia investiga quem supostamente praticou
5 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Coleção Polícia Amanhã. Freitas Bastos Editora. 2001, p. 38
aquela conduta criminalizada pelo Poder Legislativo, seja quando o Ministério Público - titular da Ação Penal - decide quem deve ser processado judicialmente e; por último, quando o sistema penitenciário executa a pena imposta ao condenado pelo Poder Judiciário.
Mas, não é só! Não se pode perder de vista que o sistema penal como um todo não se limita as instituições acima. O sistema penal é muito mais que isso e está difuso na sociedade. Trata-se de um conjunto de agências de poder que, interagindo com o meio social influenciam e são influenciados por este. Estamos nos referindo à imprensa, a opinião pública, a família, a igreja e demais seguimentos sociais, os quais, juntos, formam um senso comum regulatório ou, porque não dizer, o próprio controle social informal.
O problema é que a violência urbana comporta o que se convencionou chamar de cifra negra e de taxa de atrito, dois dados estatísticos fundamentais para qualquer estudo sério da questão criminal.
Por cifra negra se entende a defasagem existente entre a real ocorrência de infrações penais e a que efetivamente chega ao conhecimento da polícia e que deveria retratar o aumento ou a diminuição da criminalidade em determinada época e região6.
Já a taxa de atrito corresponde a diferença entre o número de crimes cometidos, conhecidos por meio de pesquisas e o número de crimes, cujos autores são efetivamente condenados a uma pena privativa de liberdade, pois é estudando a taxa de atrito que se torna possível dimensionar e localizar o nível de perda ou déficit nas várias etapas do sistema de justiça criminal7, de modo a revelar o índice de impunidade desse sistema.
Tais aspectos, embora não possam ser ignorados para efeito algum de pesquisa convém ressaltar que, considerá-los uma verdade acabada, constitui o mesmo que passar um atestado de ingenuidade, pois a fonte (ou origem) desses dados, não raro, provém do próprio órgão investido de combater a criminalidade e,
6 Tal circunstância implica considerar três níveis de criminalidade: a legal, a aparente e a real. A legal como sendo a situação dos crimes que são registrados nas estatísticas oficiais, embora possa haver outros desconhecidos do sistema de justiça criminal; a aparente como sendo a situação daqueles crimes que são conhecidos do sistema de justiça criminal, embora possam não constar das estatísticas oficiais; e a real que traduz a situação dos crimes ocorridos e devidamente registrados. A cifra negra é, portanto a diferença existente entre a criminalidade real e a aparente.
7 LEMGRUBER, JULITA. Controle da criminalidade: mitos e fatos. IL Instituto Liberal do Rio de Janeiro. Revista Think Tank. São Paulo, 2001, p. 4.
por isso mesmo, não induzem a credibilidade desejável, devendo servir, somente, como indicadores de tendência ou reveladores de sintoma, mas jamais de certeza.
2.2 A POLÍTICA DE TOLERÂNCIA ZERO
Consagrado como a primeira “fábrica de ideias” da nova direita americana, o Manhattan Institute - em conferência organizada no início dos anos 90, sobre “qualidade de vida” - divulgava pela primeira vez para altos executivos, jornalistas renomados e políticos de peso, a campanha de incentivo ao “caráter sagrado dos espaços públicos” e com base nessa ideia-força o, então, futuro prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani cunhava os primeiros contornos da doutrina da Tolerância Zero8.
A ideia central se baseava em que o espaço público (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus, metrô, etc) era patrimônio dos cidadãos de bem, lugar de convivência harmônica e ordeira, não podendo ser perdido para os povoados de rua (mendigos, pobres, desempregados, drogados, etc) acostumados com o vandalismo e o ambiente sujo, próprios para abrigar maus costumes.
Para tanto, Rudolphi Giuliani já na condição de prefeito de Nova Iorque, contando com o auxílio de seu braço direito, William Bratton - recém promovido da segurança do metrô para a chefia de polícia municipal, - reeditou um dos principais chavões de as Janelas Quebradas “quem rouba um ovo, rouba um boi”, acreditando assim que “lutando passo a passo contra pequenos distúrbios cotidianos se fará recuar as grandes patologias criminais”9.
Contanto com o apoio das elites locais, o objetivo se concentrou em refrear o medo nas classes média e alta mediante uma perseguição sistemática aos povoados de rua e para tal tomou as seguintes medidas:
· Aumentou em 10 vezes os efetivos e equipamentos das brigadas;
· Restituiu as responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados; e
· Implementou um sistema de radar informatizado, com arquivo central sinalético e cartográfico, monitorado por microcomputadores a bordo de carros patrulha, desenvolvido para mobilizar com rapidez (quase instantânea) as forças de ordem incumbidas de reprimir os pequenos passadores de drogas, as prostitutas, os
8 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
9 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p. 25.
sem-teto, os pichadores, a embriaguez, a jogatina, a mendicância e os atentados aos bons costumes, dentre outros comportamentos tidos por antissociais10.
O método adotado era o do regime de mercado, aferido por avaliações semanais de desempenho, na qual aquele policial que apresentasse os maiores índices de apreensões e/ou prisões com reflexo direto na queda da criminalidade era homenageado, enquanto outros com performances não tão boas, eram constrangidos a melhorarem seus resultados sob pena de perderem incentivos.
Nesse contexto, o xerife Bratton passou a se destacar por emplacar uma estratégia de ‘polícia intensiva’ em oposição a uma ‘polícia comunitária’ (de tradição britânica - “polícia de proximidade”) e, em vez, de focar delinquentes isolados, passou a focar mais as gangues de rua contando sempre comum forte aparato armado e tecnológico.
Sua grande vitória junto à população civil ocorreu quando conseguiu diminuir drasticamente a burocracia que emperrava o sistema policial, tornando-o mais dinâmico e atraente ao restante do mundo.
Bratton, simplesmente, promoveu uma despedida em massa de funcionários do alto comando da polícia: três quartos dos comissários de bairro foram dispensados, acarretando a queda da idade média da corporação de 60 para 40 anos de idade e transformou os comissariados em ‘centros de lucro’, conforme conseguissem diminuir estatisticamente as taxas de criminalidade11.
E, contando com a simpatia midiática e de muitos governantes populares, - inclusive do próprio prefeito Giuliani, - William Bratton não precisou de muito esforço para conseguir que seu discurso de manutenção da lei e da ordem fosse logo encampado como necessidade primordial e angariasse significativos recursos orçamentários para a polícia nova-iorquina.
Só em 1996, o número de detenções aumentou em 24%, atingindo a cifra astronômica de 314.292 pessoas e o efetivo de interpelados por infrações à legislação de drogas duplicou, superando 54.000, mais de mil pessoas por semana12.
A queda dos índices de criminalidade em Nova Iorque entre 1993 e 1996 foi flagrante a tal ponto de Bratton comparar sua gestão policial a de uma grande
10 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p. 26.
11 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
12 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Jorge Zahar Editor. Trad. André Telles. Rio de Janeiro, 2001, p 28.
empresa dizendo: “Estou pronto a comparar meu staff administrativo com qualquer empresa da lista Fortune 500” e a brincar confrontando sua preocupação em acompanhar os índices da criminalidade com a de um banqueiro indagando: “Conseguem imaginar um banqueiro que não verificasse suas contas todos os dias?”13
Em que pese a queda dos índices da criminalidade em Nova Iorque, o que não se pode afirmar é se esse resultado - no final das contas, - valeu mesmo a pena já que na mesma época, a cidade de San Diego aplicando a política de “Polícia de proximidade”, integrada à população, apresentou idêntica queda de criminalidade, embora mediante um esforço bem menor, visto só ter precisado aumentar seu efetivo em 6% e a quantidades de detenções diminuiu em 15% em três anos, contra 24% de aumento em Nova Iorque14.
Em cinco anos a cidade de Nova Iorque aumentou seu orçamento, somente, com polícia em 40% atingindo 2,6 bilhões de dólares, quatro vezes mais do que as verbas destinadas aos hospitais públicos. A polícia passou a ostentar um verdadeiro exército de 12.000 policiais para um efetivo total de mais de 46.000 empregados em 1999, dos quais 38.600 eram agentes uniformizados, enquanto os serviços sociais da cidade tiveram suas reservas cortadas em um terço, perdendo 8.000 postos de trabalho para ficar com apenas 13.400 agentes funcionários15.
No entanto, Nova Iorque era tida como exemplo de cidade segura e paradigma da legitimação da gestão policial e judiciária contra a delinquência urbana e demais incivilidades. Seu prestígio se propagava rapidamente pelos quatro cantos do mundo.
No fim da década de 90, a repercussão dos feitos pela dupla Giuliani/Bratton era sentida com eloquência:
Na Escócia, o ministro do Interior dizia: “A tolerância zero vai limpar nossas ruas”; Na Alemanha, a União Democrata-Cristã (CDU) apresentava em Frankfurt maciça campanha sobre o tema “Null Toleranz”; Na Itália, a “moda repressive” da grife Giuliani já causava furor desde 1997; Na Inglaterra Tony Blair e Jack Straw não faziam por menos, embora dando um matiz europeutizado para a doutrina importada; Na África a influência foi até intensificada com a adoção de barricadas e
13 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. cit., p. 28.
14 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
15 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
tropas de choque usadas nas vielas pobres de Cape Flats e Water Front; Na Nova Zelândia, seu chefe de polícia dizia que seu país jamais teve uma polícia corrupta e os métodos da tolerância zero sempre foram utilizados por lá; Em Toronto, seu prefeito Mel Lastaman anunciava que iria inaugurar o “maior crackdown contra o crime jamais visto antes”; No México era lançada a “Cruzada nacional contra o crime” com base nos mesmos métodos nova-iorquinos; Em Buenos Aires, o secretário da justiça e da segurança, León Arslanian propalava que aplicaria “a doutrina elaborada por Giuliani” e, também aqui, no Brasil, em 1999, o então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz anunciava a aplicação da “Tolerância Zero” mediante a contratação imediata de 800 policiais civis e militares como forma de combater a onda de crimes que assolava a Capital brasileira16.
O discurso da doutrina se espalhou de forma tão intensa pelo mundo afora que acabou se alastrando por âmbitos sequer imagináveis até então, como a fomentar, por exemplo:
a expulsão automática dos estudantes que haviam levado arma para a escola, a suspensão de esportistas profissionais culpados por violências fora dos estádios, o controle minucioso do contrabando de drogas nas prisões, mas também o rechaço sem trégua dos estereótipos racistas, a sanção severa dos comportamentos incivilizados dos passageiros de avião e a intransigência em relação a crianças que não usavam cinto de segurança no banco traseiro dos carros, do estacionamento em fila dupla ao longo das avenidas de comércio e da sujeira nos parques e jardins públicos (...) 17.
A consequência lógica desse cenário foi sensível na solidificação de um novo perfil da sociedade americana, caracterizada, não pela solidariedade, mas pela compaixão; seu objetivo não era o de fortalecer os laços sociais (e muito menos reduzir as desigualdade), mas no máximo aliviar a miséria mais gritante.18
Os EUA passaram, então, a vivenciar o paradoxo entre um falso Estado- Providência e um falso Estado Caritativo (ou Assistencialista) para um verdadeiro Estado Penal.
É que o Estado de bem-estar-social (Welfare State), tido como modelador e conformador da vida econômica e social, enquanto produtor de bens, agente de crédito e organizador de serviços para a sociedade, só existiu mesmo para as classes mais abastadas dos EUA e o Estado Caritativo que oficialmente lhe teria
16 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. cit., p. 31-33.
17 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. cit., p. 34.
18 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Instituto
Carioca de Criminologia. Feitas Bastos, 2002, p. 20.
sucedido, em vez de, produzir uma guerra contra a pobreza, na verdade, operou uma guerra contra os pobres.
As classes subalternas foram jogadas a própria sorte nas grandes cidades, com efeitos concretos nos bairros mais pobres. Em 1994, os Estados Unidos apresentaram a taxa mais elevada de pobreza (15% ou 40 milhões de pessoas) dos últimos dez anos contados até 2002. Embora o país tenha conhecido patamares altíssimos de crescimento econômico, os afro-americanos foram os que mais padeceram desse processo de intensa seletividade19.
A “reforma dos serviços sociais” chancelada por Clinton em agosto de 199620, preconizava: “fazer as pessoas passarem da assistência ao emprego”, trocando o direito à assistência das crianças mais desfavorecidas por um salário aos seus pais21, fato que estabeleceu uma demarcação categórica entre “pobres merecedores” e “pobres indolentes”, empurrando estes últimos para os segmentos mais baixos do mercado de trabalho22.
Essa reforma, curiosamente, não tocou na Medicare, a assistência médica dos assalariados aposentados, nem nas caixas de aposentadoria Social Security que eram, em 1994, as principais fontes de gastos sociais do Estado americano com
143 e 419 bilhões de dólares, respectivamente. Ela atingiu exclusivamente os programas categoriais reservados aos pobres, assistidos, Aid to Families wuith Dependent Children (AFDC), Suplemental Security Income (SSI, a verba para as pessoas idosas, indigentes e enfermas) e os ticketsde alimentação (food stamps) que cobriam apenas uma fração da população oficialmente classificada como pobre23.
19 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 9-10.
20 39 milhões de americanos viviam abaixo do “limiar federal de pobreza” (15 mil dólares por ano para
uma família de quatro pessoas), mas menos de 14 milhões (dos quais 9 milhões são crianças) recebiam a verba AFDC. Em 1992, 43% das famílias pobre recebiam alguma ajuda pecuniária, 51% cupons alimentares e apenas 18% se beneficiavam de um auxílio-moradia (Folbre, 1996:68).
WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 42.
21 “Os pais eram obrigados a trabalhar ao cabo de cinco anos, assim como uma duração acumulada máxima de cinco anos de assistência por uma vida. Uma vez esgotada a sua “quota”, uma mãe sem recursos cujos filhos esgotaram seus cinco anos não disporá mais de nenhum socorro por parte do
Estado; ela será obrigada a aceitar qualquer emprego disponível (se existir algum) e voltar-se para o apoio familiar, a mendicância ou a economia criminosa.” WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 44.
22 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 41
23 39 milhões de americanos, abaixo do “limiar federal de pobreza” (15 mil dólares por ano para uma
família de quatro pessoas), mas menos de 14 milhões (dos quais 9 milhões eram crianças) recebiam a verba AFDC. Em 1992, 43% das famílias pobre recebiam alguma ajuda pecuniária, 51% cupons alimentares e apenas 18% se beneficiavam de um auxílio-moradia (WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 42).
A medida teve grande repercussão no eleitorado das classes médias brancas porque o setor do welfare, segundo Wacquant:
era percebido essencialmente como beneficiador dos negros. Não importava se a maioria desses beneficiários era de origem europeia (39% dos beneficiários AFDC eram brancos, 37% afro-americanos e 18% latinos). A ideia fixa era a de que a assistência aos pobres só servia para manter na ociosidade e no vício os habitantes do gueto (...). A associação estreita entre assistência social e cor da pele tornava os programas vulneráveis no plano político (Quadagno, 1994). Ela permitia mobilizar contra este setor do Estado Caritativo a força dos estereótipos raciais e dos preconceitos de classe que, ao se combinarem, faziam do pobre do gueto um parasita social, quiçá um verdadeiro “inimigo” da sociedade americana.24
O Governo Federal assim delegou a responsabilidade dos programas de assistência aos 50 estados da União e, por meio deles, aos milhares de Condados encarregados de fixar os critérios de elegibilidade, de distribuição de verbas e de organização dos eventuais programas de formação (ou orientação profissional) para “dirigir as pessoas ao emprego”25.
Os Estados e Condados, então, ficaram livres para, inclusive, restringir as condições de atribuição dos benefícios já que a própria lei instituidora previa um sistema de prêmios aos Estados e Condados que conseguissem diminuir seus assistidos, reconduzindo-os, obrigatoriamente ao trabalho em cerca de 25% até 2001 e 50% até 200226.
Na ânsia de angariar tais prêmios mais rapidamente, muitos Estados e Condados prefiram lançar mão da solução mais pernóstica possível e reduziram a duração acumulada da assistência, por pessoa, de cinco para dois anos e suprimiram diversas categorias de verbas.
Resultado: logo de início, observou-se uma redução do nível de vida das famílias americanas mais pobres, o valor monetário das verbas e sua acessibilidade diminuíram fortemente e, de acordo, com estudos do Ministério dos Negócios Sociais, entre 2,5 e 3,5 milhões de crianças indigentes ficariam privadas de qualquer ajuda em 2002 com a simples aplicação da quota de cinco anos máximos de assistência em um momento que os Estados Unidos já tinham a taxa mais alta de pobreza infantil de todos os países ocidentais27.
24 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 42.
25 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
26 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
27 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
Em 1º de janeiro de 1997, cerca de meio milhão de residentes estrangeiros perderiam as modestas ajudas que recebiam até então, como a verba Supplemental Security Income de 420 dólares por mês concedido às pessoas idosas inválidas ou cegas28.
Para Wacquant em 1997, a economia informal de rua já tinha a garantia de que voltaria a crescer e, com ela a criminalidade e a insegurança que corroem a vida cotidiana no gueto, também aumentariam. O número de pessoas e famílias sem teto deveria progredir, assim como o de indigentes e de doentes sem tratamento.
A ascensão da miséria e da violência seria inevitável, ampliando o grande encarceramento dos pobres e, notadamente dos jovens negros do gueto, que seriam os alvos principais dessa intervenção penal.
A história se incumbiu de mostrar que os Estados americanos abandonaram a regulamentação do bem-estar-social para priorizar a administração penal dos rejeitados humanos da sociedade de mercado que tendeu por incorporar o subproletariado urbano a uma sulfurosa marginalização29.
Os anos 90 ostentaram números expressivos. A “Unidade de Luta contra os Crimes de Rua”, tropa de choque de 380 homens (quase todos brancos) se consagrou como a ponta de lança da “política de tolerância zero”. Seus membros passaram a ser objeto de diversos inquéritos administrativos por procederem a prisões “pelo aspecto” (racial profiling) e por zombarem sistematicamente dos direitos constitucionais de seus alvos. De acordo com a National Urban League, em dois anos essa brigada que, rodava de carros comuns e operava à paisana, deteve e revistou nas ruas 45.000 pessoas por mera suspeita baseada no vestuário, aparência, comportamento e – acima de qualquer outro indício – a cor da pela. Mais de 37.000 dessas detenções se revelaram gratuitas e as acusações sobre metade das 8.000 restantes foram consideradas nulas e inválidas pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas 4.000 detenções justificadas: uma em onze. Uma investigação levada a cabo pelo jornal New York Daily News sugeriu que, perto de 80% dos jovens homens negros e latinos da cidade haviam sido detidos e revistados, pelo menos uma vez, pelas forças da ordem30.
28 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Op. Cit., p.
29 WACQUANT, Loic. As duas faces do Gueto. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo. Boitempo. 2008, p. 9.
30 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 35.
Os incidentes policiais se multiplicaram rapidamente com a implantação da política de “qualidade de vida”, pois a quantidade de queixas feitas diante do Civilian Complaint Review Board de Nova Iorque aumentou assustadoramente em 60% entre 1992 e 1994. A grande maioria motivada por patrulhas de rotina – em oposição às operações de polícia judiciária-, cujas vítimas eram residentes negros e latinos em três quartos dos casos. Só os afro-americanos foram responsáveis por realizarem 53% das queixas. Sendo certo que representavam somente 20% da população da cidade31.
Uma espécie de idiossincrasia, logo, tomou conta do líder do sindicato dos policiais de Nova Iorque que, inusitadamente, percebendo os exageros policiais convidou seus 27.000 associados a aderirem uma operação-padrão, recomendando- lhes usar o máximo de reservas possível antes de notificar uma detenção por motivo banal, como atravessar a rua fora da faixa, sair com cachorro sem coleira ou andar de bicicleta sem buzina, como exigia a política policialesca da cidade. Para ele: “Agora que a criminalidade caiu fortemente, um ajuste de estratégia se faz necessário. Se não estabelecermos o equilíbrio, isso se tornará um modelo para um Estado policialesco e para a tirania”32.
A célebre frase, bem retratava a desconfiança que - a essa altura - pairava no ar de Nova Iorque. Uma pesquisa, então, realizada, demonstrava que a esmagadora maioria dos negros da cidade de Nova Iorque considerava a polícia uma força hostil e violenta, representando um perigo constante; 72% julgavam que os policiais faziam uso abusivo da forçae 66% julgavam que suas brutalidades contra pessoas de cor eram comuns e habituais (contra apenas 33% e 24% dos brancos).
É dizer; dois terços pensavam que a polícia de Giuliani agravava essas brutalidades e apenas um terço dizia ter a sensação de se sentir mais seguro. Já para os nova-iorquinos brancos, 50% e 87% declaravam o contrário: elogiavam a prefeitura por sua intolerância contra o crime e se sentiam muito menos ameaçados na cidade33.
31 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 36. 32 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 36. 33 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 37.
Ou seja: a tolerância zero apresentava duas facetas diametralmente opostas, segundo se tratasse da perspectiva do alvo (sempre negros), ou, se tratasse da perspectiva do beneficiário (sempre brancos)34.
Outro dado interessante é que, enquanto a criminalidade caía continuadamente desde 1992, o contingente preso e julgado, não parava de aumentar. Em 1998, os 77 juízes da corte criminal de Nova Iorque, responsáveis pelos delitos de menor potencial ofensivo (passíveis de pena até um ano de prisão), examinaram 275.379 casos, ou seja, mais de 3.500 cada um, o dobro do número de casos examinados em 1993, com praticamente os mesmos meios. Sendo comum também o abarrotamento de processos por defensores públicos e juízes, provocando todo o tipo de mazelas, desde adiamentos intermináveis, resignações de acusados se declarando culpados, até a anulação de milhares de processos. Circunstância que levou a Giuliani a dizer que “o impacto do trabalho da polícia visando diminuir o crime estava sendo virtualmente perdido”. 35
Sem contar que no ano de 1995, Los Angeles, com uma população de, apenas 3,5 milhões de habitantes, continha maior número de homicídios que a Inglaterra e o País de Gales36, com 50 milhões de pessoas.
E o que se dizer do sistema carcerário nessa conjuntura? Uma pesquisa mais acurada indicava que - desde os anos 60, - a demografia penitenciária americana tendia a diminuir até 1975 quando atingiu o patamar de 380.000 detentos. Mas, dez anos depois, a tendência se inverteu drasticamente. O efetivo de encarcerados saltou para 740.00, antes de superar 1,5 milhão em 1995 e roçar os dois milhões no final de 1998, ao ritmo de um crescimento de quase 8% durante a década de 90. Tal triplicação da população penitenciária em 15 anos, segundo Wacquant, representou um fenômeno sem precedentes ou comparação em qualquer sociedade democrática, ainda mais por ter se operado durante um período em que a criminalidade permanecia globalmente constante e depois em queda. Seus índices estratosféricos deixavam de 6 a 12 vezes atrás os principais países da União Europeia (vide tabela abaixo elaborada em 1999)37.
34 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 37.
35 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 38
36 LEMGRUBER, JULITA. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Op. cit., p.
37 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 81
O encarceramento nos Estados Unidos e na União Europeia em 1997
	País
	Quantidade
de prisioneiros
	Índice p/ cada
100 mil habitantes
	Estados Unidos
	1.785.079
	648
	Portugal
	14.634
	145
	Espanha
	42.827
	113
	Inglaterra/Gales
	68.124
	120
	França
	54.442
	90
	Holanda
	13,618
	87
	Ítália
	49.477
	86
	Áustria
	6.946
	86
	Bélgica
	8.342
	82
	Dinamarca
	3.299
	62
	Suécia
	5.221
	59
	Grécia
	5.557
	54
Fonte: TABELA 01: Bureau of justice Statistics, Prison and Jail Inmate at Mid-Year 1998, Washington Government Priting Office, mar 1999, para os Estados Unidos; Pierre Tournier, Statistique pénale annuelle du Conseil de I’Europe, Enquête 1997, Estrasburgo, Conselho da Europa, no prelo, para a União Européia
Nada obstante, o aumento exponencial do número de prisões, a consequência natural foi o desenvolvimento por parte da Administração Pública de uma indústria carcerária que acompanhasse a demanda.
Entre 1979 e 1990 os gastos neste setor cresceram 325% em termos de funcionamento e 612% em termos de construção. A partir de 1992, quatro Estados já destinavam mais de um bilhão de dólares ao sistema carcerário: Califórnia (3,2
bilhões), Nova Iorque (2,1), Texas (1,3) e Flórida (1,1). No total, em 1993, os Estados Unidos gastaram 50% a mais com suas prisões que com sua administração judiciária (32 bilhões de dólares contra 21), ao passo que os orçamentos dessas duas administrações eram idênticos 10 anos antes (por volta de sete bilhões de dólares cada uma). E, a partir de 1985, os créditos para funcionamento das penitenciárias superavam anualmente o montante destinado ao principal programa de ajuda social, Aid to Families with Dependent Children (AFDC), ou, as somas destinadas à ajuda das famílias pobres (Food Stamps)38
A concorrência dos investimentos públicos no setor carcerário foi fortemente acirrada pela iniciativa privada que, a par de iniciada em 1983, retomava o crescimento de forma pujante. No âmbito federal e estadual, 213 novas prisões foram construídas e o número de empregados nelas foi se multiplicando ano a ano. No total, em 1993, o sistema penitenciário já contava com mais de 600.000 empregados, o que fazia dele, o terceiro maior empregador do país, atrás somente da General Motors e a cadeia de supermercados Wal-Mart.
O mercado ficou tão aquecido que a American Correctional Association, organismo semiprivado, responsável pela divulgação das novidades no setor carcerário, promoveu uma espécie de “salão da carceragem”, na qual mais de 650 firmas expuseram seus produtos e serviços (Congresso realizado em Orlando - 1997), exibindo todo o tipo de mobiliário para celas, como colchões à prova de fogo, algemas forradas, cadeiras imobilizantes, uniformes de extração (para retirar detentos recalcitrantes de suas celas) até, cinturões eletrificados de descarga mortal, entre outros.
Enfim, em apertada síntese, foi essa política criminal que imperou em Nova Iorque e jamais poderá ser esquecida por quem quer que seja no trato da gestão da segurança pública no mundo moderno. Uma política criminal que, em vez de pautar- se pela atenuação dos efeitos colaterais do sistema penal caminhou por fortalecê- los, acirrando a sua estigmatização e seletividade. Promovendo a discriminação da sociedade entre nacionais e estrangeiros, notadamente os estrangeiros latinos e, principalmente, entre os ricos e pobres e os brancos e negros. Tudo isso, mediante um altíssimo custo social, dificilmente reconhecido por um americano nato, pertencente da classe média ou alta de sua sociedade, mas facilmente percebido
38 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. Op. cit., p. 86-87.
por juristas, criminólogos, antropólogos e/ou sociólogos do restante do mundo que hajam se dedicado ao tema.
2.3 A POLÍTICA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO NAS DÉCADAS DE 80 E 90
Na mesma época do murmurinho provocado pelas primeiras notícias da doutrina da tolerância zero. No Brasil, precisamente, entre 1983 e 1987 (primeiro governo de Leonel Brizola); 1987 e 1991 (governo Moreira Franco); 1991 e 199539 (segundo governo Brizola) e 1995 e 1999 (Marcelo Alencar), os cariocas viviam semelhante alvoroço por uma mudança de atitude na questão da violência urbana.
A sociedade brasileira - no primeiro período acima - ressentia-se de um momento de transição, saindo de uma cultura autoritária, fruto do governo militar para experimentar uma cultura democrática que se insinuava como solução para todos os males, mas ainda se apresentava muito insípida na consciência do povo. O país vivia os primeiros apelos por eleições diretas para a Presidência da República e respirava a expectativa de um dia ver convocada uma Assembleia Nacional Constituinte que se encarregasse de promover uma nova ordem constitucional para o Brasil.
As primeiras medidas da governança carioca foram à criação do Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos, instituído para ser o centro de reflexão estratégica, com vistas ao assessoramento nas ações relacionadas à segurança pública, ação policial, justiça e cidadania e a reestruturação do comandodas polícias, então, chefiadas por oficiais do Exército e que na nova configuração, passou a ter três secretarias na qual foram distribuídos o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar e a Polícia Judiciária e Direitos Civis. Sendo nomeado para a Polícia Civil, o Delegado Arnaldo Campana e para o alto comando da Polícia Militar, o Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira40.
Já, no Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio de Janeiro, documento responsável pela introdução das diretrizes políticas da Segurança Pública, era nítida a preocupação com os ‘direitos humanos’. Tema que ecoava do ex- presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, como sendo de um valor inestimável para todas as sociedades e gerações vindouras.
O documento textualmente enfatizava que a mudança de postura do governo em relação à comunidade deveria começar pelo respeito aos direitos humanos em
39 Sendo certo que entre 2 de abril de 1994 e 1º de janeiro de 1995 assumiu a governança do Estado, o então vice-governador, advogado Nilo Batista.
40 Vale lembrar que no Governo Marcello Alencar (1995-1998), a Secretaria de Segurança Pública é
ressuscitada e novamente submetida a um General de Exército, no caso o Gen EB Nilton de Albuquerque Cerqueira.
todos os níveis. Particularmente, em relação à segurança dos cidadãos seria necessário criar a consciência do fim das arbitrariedades e impunidades, ressaltando que, ninguém mais deveria temer a polícia, pois ela teria sido reformulada justamente para proteger a todos e não reprimir.
Porém, tudo no âmbito da segurança publica girava envolto a uma cortina de fumaça formada, em grande parte, pela desconfiança que o esquadrão da morte (Scuderie Detetive Le Coq) deixara. Esse esquadrão, formado por policiais imbuídos de fazerem justiça pelas próprias mãos disseminou o medo e a violência no interior do Estado41.
A nova ordem de polícia, nesse contexto sombrio, teria de deixar para trás alguns costumes enraizados na cultura policial como ver os moradores de favela como cúmplices de criminosos; os próprios ‘barracos’ como escritórios do crime e não como domicílios e as blitzes de rua como ações que podiam prender qualquer um pelo simples fato de estar em atitude suspeita.
De agora em diante, não! A ordem era só entrar nos barracos com mandado; se fosse a hipótese de flagrante delito ou; houvesse a autorização do morador. E, nas blitzes, ninguém mais poderia ser preso para averiguações, senão por motivos concretos e justificados.
No que se refere à manutenção da ordem, a diretriz assinalava que esta se faria por meio do policiamento preventivo, do diálogo e da ação política com o governo garantindo aos cidadãos, o direito de se manifestarem livremente, de modo que as manifestações populares, greves ou passeatas não seriam mais resolvidas no âmbito exclusivo da polícia, mas por uma decisão que caberia ao campo político. A polícia, então, acostumada a atuar nessas ocasiões subordinada aos setores de informação militar das forças armadas, agora, passava a se sentir desprestigiada, sem o poder de outrora.
Entendia-se que a redução da criminalidade não seria possível sem a supressão de suas causas sociais relativas ao trabalho, alimentação, educação e integração social da população como um todo. Daí porque, o governo orgulhava-se de dois programas em específico, o programa de educação integral (conhecido
41 O esquadrão da morte ou Scuderie Detetive Le Coq (denominação dada em homenagem a um detetive de sobrenome francês, assassinado pelo temido bandido Manoel Moreira, apelidado de Cara de Cavalo), foi uma organização criminosa que, criada a pretexto de promover justiça privada atuando no espaço na qual o Estado não podia chegar por limitações institucionais, promoveu uma centena de execuções sumárias até hoje carentes do devido esclarecimento.
como Centro Integrado de Educação Pública - CIEP) e o programa de habitação Cada Família um Lote42.
O primeiro programa tinha por propósito os ideais de uma sociedade inclusiva, procurando fomentar a cultura de se manter as crianças pobres, o maior tempo possível dentro de um ambiente escolar, longe das ruas e dos maus costumes. Foi idealizada a construção de quinhentas unidades escolares que deveriam ser espalhadas por todo o Rio.
Enquanto o segundo programa, visava por meio de um regime de financiamentos e cessão de lotes, a construção de casas populares, com a nota peculiar de que, em vez de conceder aos homens, o registro de propriedade dos imóveis, esse título era emitido em favor das mulheres, por entender o governo que eram elas quem exerciam nas classes mais carentes, a função de provedor familiar.
A ação policial, em geral, seria uma forma de administrar tensões mediante intervenções repressivas e, preferencialmente, preventivas. Essas características da nova diretiva demonstrava que a generalidade dos fatores sociais não estava no lado de fora do problema, mas sim, no lado de dentro, como parte de um mesmo organismo.
Ademais, também se vislumbrava a percepção de que o principal papel da polícia deveria ser o de administrador de tensões e conflitos e, não, necessariamente o de repressor, razão pela qual, agora, em diante, a prevalência pelas ações preventivas se impunha em detrimento das ações de pronto emprego, próprias das forças armadas.
Outro aspecto visível da nova política estratégica da polícia foi a sua aproximação às comunidades locais, por meio de suas entidades representativas, associações de moradores e igrejas, a fim de estimular a mobilização da população na busca de melhores níveis de segurança e relacionamento, providência importante para desconstruir na cabeça das crianças, jovens ou adolescentes - presentes aos montes nas favelas mais humildes, - a imagem do policial armado e violento para incutir nas suas consciências, o estereótipo de uma pessoa do bem e de simpática representação do Estado43.
42 SOARES, Luiz Eduardo; SENTO-SÉ, João Trajano. Estado e segurança pública no Rio de Janeiro: dilemas	de	um	aprendizado	difícil,	2000,	p.	8.
http://www.ucamcesec.com.br/arquivos/publicacoes/01_Est_seg_publ_RJ.pdf
43 Dentro desta iniciativa destaca-se a criação dos Centros Integrados de Policiamento Comunitário
O maior desafio, no entanto, era transformar o policial e a polícia. Mudar no âmbito do senso comum, a ideia de que todo policial civil ou militar era corrupto e que o curso de formação existente nas polícias do Estado, não era capaz de formar gente capaz como acontecia nos cursos preparatórios para as carreiras das forças armadas, verdadeiro suprassumo de carreira ideal para todo jovem. Não havia a menor duvida que para mudar esse panorama, seria necessário muito esforço e muita vontade política para romper os grilhões da resistência.
A medida de urgência apontava pela necessidade de promover uma revisão curricular e metodológica; atualização e reciclagem; articulação com universidades e outros centros de ensino e pesquisa.
Nesse sentido, pode-se destacar o Ciclo de Estudos sobre Segurança Pública realizado para discutir os resultados da campanha “O Rio contra o crime”; o Seminário de Estudos Jurídicos sobre Segurança realizado para esclarecer questões de natureza estritamente jurídicas e o Curso de Administração de Segurança Pública (nível de pós-graduação) instituído em convênio com a Fesp/RJ para oficiais superiores e delegados de polícia realizado para melhor aperfeiçoá-los nos seus respectivos ofícios. Além da facilitação de acesso à ESPM (Escola Superior da Polícia Militar), mediante concurso, viagens de estudo para a Europa e EUA com a finalidade de possibilitá-los conhecer outros sistemas de polícia.
As políticas de valorização do homem contaram ainda com diversas outras iniciativas, destacando-se a criação do Centro de Reabilitação de Aditos Químicos visando cuidar dos dependentes químicos; o Programa de Assistência Judiciária em convênio com a Defensoria Pública feito para proporcionar maior proteção jurídica aos policiais; a Política de Avaliação de Desempenho para dar-lhes mais motivação no trato do seu dia-a-diae a Política Operacional que tratava das questões profissionalizantes e de reestruturação dos efetivos.
Já, na gestão do governador Moreira Franco (1987 a 1991), a proposta que se apresentava era completamente antagônica a anterior, em vez de uma política de prevenção, com previsão de resultado a médio ou longo prazo, a promessa foi de uma política de confronto, com proposta de acabar com a violência no Estado em, apenas, 6 (seis) meses.
(Cipoc’s), implantado na Cidade de Deus pelo 18º BPM e que promoveu a primeira tentativa de integração harmônica entre polícia e comunidade, cuja experiência contou com o apoio de Vigilantes Comunitários e de Policiamento ostensivo de Bairro.
O país vivia intensamente o clima de uma nova ordem constitucional e se preparava para as primeiras eleições livres a Presidência da República desde 1960.
No Rio de Janeiro imperava um clima de desconfiança com relação à ‘Segurança Pública’ já que o governo Brizola foi considerado um verdadeiro ‘fiasco’. A crítica o acusava de ter sido muito benevolente nos morros, dizia que ele teve envolvimento com a contravenção penal (jogo do bicho) e o crime organizado. Além de não contar com a simpatia dos militares e tampouco do Sistema Rede Globo de Produção, principal emissora televisiva do país.
E, como se não bastasse, um grande segmento da polícia (civil e militar) por se sentir enfraquecido no seu governo, em virtude das medidas muito educadas que ele impôs, difundia a ideia de que sua administração, mais contribuiu para o descrédito da Segurança Pública que para uma mudança positiva de comportamento.
Moreira Franco, então, chegou com forte apoio político-partidário contando, inclusive, com a simpatia do Presidente da República José Sarney que gozava de grande prestígio, em virtude das primeiras impressões positivas que o Plano Cruzado gerou na opinião pública. Assim, defendendo uma política criminal mais contundente, cujo slogan de campanha propunha “a ‘civilização’ que se opunha a ‘barbárie’ brizolista”, contou com um Programa Especial de Aparelhamento e Modernização das Polícias, com o aumento de 2.500 homens para guarnecer o policiamento ostensivo, a aquisição de 280 veículos, uma considerável quantidade de armamentos novos, um avançado sistema de radiocomunicação com antenas especiais, peças de reposição para viaturas, além de mobiliário e uniformes (Plano dos 100 dias: metas e resultados, 1987).
A grande bandeira do governo se refletia no lançamento dos “dez mandamentos” de sua polícia que estabelecia que:
1 - A ação das Polícias Civil e Militar do Estado tem o dever fundamental (...) de assegurar a todo cidadão e cidadã o maior dos direitos, que é o direito à vida.
2 - Como prestadores de serviços nas questões de segurança pública, os policiais civis e militares precisam estar nas ruas, ao alcance de todos, a qualquer hora e em todos os lugares.
3 - Essa presença deve, obrigatoriamente, inspirar-se no fato de que a lei oferece a todos os recursos necessários à ação policial em sua tarefa básica de combater o crime.
4 - Só diante de evidências seguras ou suspeitas fundamentadas, nunca em outras hipóteses, o direito de ir e vir do cidadão poderá ser submetido a constrangimento.
5 - A inviolabilidade do lar, a igualdade de todos perante a lei, a liberdade de consciência e de culto religioso, de convicção política e filosófica, o sigilo da
correspondência, das comunicações telegráficas e telefônicas, a integridade física e moral dos detidos, a ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes, a propriedade de bens, o livre exercício do trabalho, a liberdade de reunião, de associação e de manifestação do pensamento, são conquistas democráticas cujo zelo permanente precisa fundamentar, de forma inequívoca, a conduta policial.
6 - Austeridade, firmeza e eficiência, indispensáveis para que se leve a bom termo o combate à criminalidade em nosso Estado, são valores que não podem ser, operacional ou filosoficamente, confundidos com arrogância, truculência ou arbítrio.
7 - Restabelecer o princípio da autoridade, como reclama o enfrentamento da aguda situação de insegurança a que está exposta a família fluminense, é tarefa que não prescinde da credibilidade que as Polícias Civil e Militar devem conquistar junto à comunidade.
8 - A comunidade espera de suas polícias ação protetora e solidária.
9 - O Estado é consciente de que o dever do bom exemplo lhe compete e saberá amparar suas polícias, tal e qual a população, sempre que suas ações tenham seu ponto de equilíbrio e razão do ser no estrito cumprimento da lei.
10 - Compete ao Chefe da Polícia Civil e ao Comandante da Policia Militar zelar para que tais princípios, conceitos e valores sejam rigorosamente observados, com a transparência necessária à permanente vigilância da opinião pública.” (O Globo, 24/03/1987: 13)44.
Tal documento deveria servir como uma fonte ‘norteadora de conduta adequada’, mas em vez de operar esse efeito, parece ter operado um efeito reverso, pois na prática as coisas aconteceram, justamente, às avessas. O prazo de cem dias dado pelo próprio Governador transcorreu sob o fluxo de um ‘surpreendente’ incremento de denúncias de corrupção e transgressão nos meios policiais.
Diz-se, surpreendente, porque o governador visando combater o corporativismo da Polícia Civil, cujo chefe costumava ser um Delegado de carreira, determinou que, daquele instante em diante, passasse a ser um advogado e para tal, nomeou primeiramente o Dr. Marcos Heusi (mar/1987 – set/1987) e depois o Dr. Hélio Saboya (set/1987 – mar/1988), mas a medida não apresentou resultado aparente. Basta dizer que Saboya com, apenas, dois dias no cargo já contava com 51 assassinatos ocorridos com características de grupos de extermínio (O Globo, 14/09/1987)45
44 MAMEDE, Alessandra Costa. Governo Moreira Franco e Política de Segurança Pública: o inimigo interno.
˂http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1275675657_ARQUIVO_alessandranpuh.p df˃
45 MAMEDE, Alessandra Costa. Governo Moreira Franco e Política de Segurança Pública: o inimigo interno.
˂http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1275675657_ARQUIVO_alessandranpuh.p df˃
As Corregedorias das duas Polícias (civil e militar) tiveram substancial aumento de denúncias, mas a maioria delas não demonstrou a eficácia desejada; as sindicâncias mal apuravam alguma coisa e os envolvidos, praticamente saíam ilesos. Antigos policiais com alguma experiência nos órgãos de segurança nos tempos de regime militar adquiriram grande autonomia, tratando a segurança pública como uma espécie de problema técnico46. O alto comando da polícia civil não gostou da troca de seu comando por advogados estranhos aos seus quadros e a insatisfação logo se alastrou para outros âmbitos.
Houve diversas reivindicações salariais, protestos por melhores condições de trabalho e os policiais de ambas as corporações, passaram a utilizar os seus rádios de operação para criticar o governo e difundir suas inquietações para o restante da população civil.
A truculência policial voltou a imperar nas comunidades mais carentes da cidade e sua reiteração tomou conta das manchetes dos jornais, chegando o Jornal do Brasil - em tom de deboche - apelidar a polícia de a “polícia do Moreira”, referindo-se a suposta passividade do governador aos exageros cometidos “por sua polícia” nas ruas.
Mas, a nota peculiar desse período foi o fato de que, mesmo diante de toda essa onda de repressão e a flagrante divergência metodológica de combate ao crime experimentada neste governo, se comparado ao período anterior (Brizola), os índices de criminalidade continuaram a crescer ligeiramente.
Enfim, ao deixar o governo, Moreira Franco se despediu do Palácio Guanabara levando na bagagem, um dos maiores índices de rejeição da história recente da governança carioca, tanto assim que desde então nunca mais se atreveu a concorrer a governança do Estado carioca.
O segundo governo Brizola (1991/1995), foram mantidos os mesmos princípios filosóficos de seu primeiro, quais sejam: prevenção,participação comunitária, intolerância com o abuso de poder policial e articulação institucional, tendo sido restabelecida a Coordenadoria de Justiça e Segurança Pública, agora, contando com o coordenador geral o vice-governador, Dr. Nilo Batista, a quem coube assessora o governador na fixação e condução da política criminal da segurança pública do Estado podendo, inclusive, tomar decisões de alto risco em
46 http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/12432/12432_7.PDF
situações de rebeliões em presídios, sequestros com reféns, saques, greves violentas, etc.
No âmbito político houve grande preocupação com o relacionamento da polícia militar com a sociedade, buscando o máximo de articulação de forma a obter o seu reconhecimento junto a opinião pública no tocante a importância do seu trabalho; no âmbito administrativo notou-se certo esforço nas políticas de pessoal (interna corporis) das polícias, notadamente no ensino, instrução, apoio logístico, financeiro, saúde e modernização administrativa e; no âmbito operacional, se detectou certo empenho para viabilizar a otimização dos métodos, das técnicas e dos procedimentos policiais, havendo no âmbito restrito da PM, notório propósito de melhorar os níveis de liderança de seus oficiais nos diversos escalões de seu comando.
De acordo com o próprio Cerqueira, os maiores problemas aconteceram no âmbito dos efetivos policiais, pois em 1987, fim do primeiro governo, os efetivos da PM contavam em tono de 34 mil homens; no final de 1991, início do segundo governo, eram 31 mil e no final de 1994, 27 mil. Infelizmente a administração, não conseguiu na área de recrutamento e seleção, obter resultados positivos, ou seja, superar os efetivos de saída do pessoal com sua efetiva incorporação de policiais que amenizasse a redução dos efetivos. Além dos baixos níveis salariais disponíveis para a classe por força de contingenciamento dos recursos contribuiu em muito pelo crescente desinteressa pela carreira policial.
Para se ter uma ideia do quão caótico foi esse período, tem-se que: em março de 1992, para 500 vagas, se apresentaram 7.198 candidatos no concurso da PM, sendo aprovados 502. Em dezembro, para 993 vagas, se apresentaram 1.768, sendo aprovados 162. Em julho de 1993, para 500 vagas, se apresentaram 3.743,
sendo aprovados 139. Em julho de 1994, para 250 vagas, se apresentaram 1.750,
sendo aprovados 24747.
Por fim, veio o governo de Marcelo Alencar (1995/1999) nomeando o General Nilton Cerqueira para comandar a segurança no Estado. Marcelo Alencar assumiu o governo do Estado em janeiro de 1995 e a sua gestão ficou lembrada por três fatos marcantes; a retomada da política pautada pela força; a criação da condecoração por
47 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Coleção Polícia Amanhã. Freitas Bastos Editora. 2001, p. 183.
bravura, prêmio dado aos policiais que se destacassem no enfrentamento contra a marginalidade, cujo critério acabou sendo o de ostentar no currículo o maior número de marginais mortos em operações oficiais48 e a inusitada forma de tratar os dados estatísticos da segurança pública como segredos de estado, circunstância pela qual, as fontes de pesquisa se tornaram mais difíceis e inseguras do que costumeiramente já eram.
No entanto, é possível lembrar que entre janeiro e maio de 1995, a média de mortes produzidas somente pela PM foi de 3,2 por mês e após o General assumir a Secretaria de Segurança Pública do RJ, de junho de 1995 a fevereiro de 1996 passou para 20,55 por mês49.
Enfim, em perfunctória análise da Segurança Pública praticada no Rio de Janeiro durante os anos 80 e 90, vê-se que o desempenho foi fraco em todas as administrações do Estado não havendo, em termos práticos, muito do que se orgulhar, salvo algumas ideias ou iniciativas isoladas que tiveram o mérito de, apenas, servirem como fonte de inspiração para serem repensadas e melhoradas anos mais tarde. O grande aprendizado dessa trajetória foi a certeza de que não existe plano ou programa de Segurança Pública que dê certo sem o engajamento da sociedade, na qual Polícia e comunidade se dialoguem constantemente.
48 SOARES, Luiz Eduardo; SENTO-SÉ, João Trajano. Op. cit. 20.
49 Apud. http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/12432/12432_7.PDF
3. CRÍTICA ESPECIALIZADA
3.1 WACQUANT E A REALIDADE DE HOJE EM NOVA IORQUE
Para Loic Wacquant, maior especialista de violência urbana do ocidente nos últimos anos50, os Estados Unidos representam o maior exemplo de migração do fenecimento do estado do Bem Estar Social para o Estado Penal. Sua política de privilegiar o sistema penal como instrumento para administrar a insegurança e conter os deslocamentos provocados pela desregulamentação econômica foi o grande equívoco do governo que, aos poucos, foi se descarrilando a tal ponto de transformar o combate à miséria em combate aos miseráveis.
Basta dizer que no fim da década de noventa, embora os negros representassem apenas 12% da população livre dos EUA, eles constituíam 50% da população privada de liberdade. Sendo que, um em cada três jovens negros, entre 20 e 29 anos, se encontrava preso, sob livramento condicional ou liberdade vigiada, contra o percentual de um preso para cada dezesseis dos jovens brancos51.
E, o que ainda é pior, 25% dos negros de alguns estados, por já ter cumprido pena por algum delito intencional, mesmo insignificante, está alijada do processo eleitoral para o resto da vida. Isso mesmo! Não pode nunca mais votar, o que comprova a odiosa seletividade do sistema norte-americano52.
De acordo com Wacquant, foi à deficiência da assistência social, do auxílio à infância e dos serviços médicos praticados nos anos noventa, o fator que mais contribuiu para que viciados pobres, doentes mentais e sem-teto fossem parar atrás das grades, número que veio crescendo nas últimas décadas até, pelo menos, 2008 e veio fazendo com que as prisões se transformassem em dejetos humanos de uma sociedade cada vez mais subjugada às leis do mercado e da compulsão da responsabilidade pessoal.
Nesse sentido, o sistema carcerário americano teria cumprido uma dupla função: a de promover a retirada das ruas da massa de desempregados e gerar
50 Wacquant é autor das seguintes obras tematizadas pela violência urbana e traduzidas para o português: As Prisões da Miséria. Brasil. Trad. André Telles. Jorge Zahar Ed, 2001; Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Brasil. Trad. Vera Malaguti Batista. Freitas Bastos Editora, 2001; Os condenados da Cidade. Brasil. Trad. João ROBERTO Martins Filho. Revan, 2001; As duas faces do Gueto. Brasil. Trad. Paulo Cezar Castanheira, 2008.
51 LEMGRUBER, JULITA. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Op. cit., p. 11.
52 LEMGRUBER, JULITA. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Op. cit., p. 11-12.
lucro para as empresas de segurança privada, transformando a população pobre e encarcerada em objeto de lucro.
Hoje - início do século XXI, - o Estados Unidos ostentam a maior densidade carcerária do mundo, com 2,2 milhões de presos53, montante decuplicado, só entre 1970 a 200054, seguido da China com 1,6 milhões, Rússia com 740 mil e Brasil com 560 mil.
Isto é; os Estados Unidos contando atualmente com aproximadamente 5% da população mundial, possuem quase um quarto da quantidade de presidiários do mundo, sendo que a China, segunda colocada, com uma população quatro vezes superior ao dos EUA ainda deve excluir de seu quantitativo, as centenas de milhares de pessoas mantidas em detenção administrativa (a maioria delas no sistema extrajudicial de reeducação por meio do trabalho), voltada para ativistas políticos que não cometeram crime algum55.
Em 2008, os EUA ostentavam a incrível marca extraída do Centro de Estudos de Presídios que, por índice de encarceramento, apontava o país com 751 pessoas em cadeias ou presídios para cada cem mil habitantes (contados apenas os adultos), um em cada 100 habitantes, portanto, se encontravam atrás das grades56.
A boa aparência dos espaçospúblicos, hoje, certamente mais limpos e menos povoado de mendigos, esconde a realidade de que para isso, o Estado americano gastou com segurança, mais do que destinou a qualquer outro programa interno (só no último governo Clinton se havia gasto cerca de US$ 19 bilhões)57 e, apesar da leve queda dos índices de criminalidade em Nova Iorque - a partir de 2009 - não há nenhuma fonte de convicção relacionando tal queda à política de tolerância zero praticada nos anos noventa.
Aliás, muito pelo contrário, a maioria dos especialistas diz que o alto numero de encarceramento, pouco contribuiu para a queda dos índices de criminalidade verificados nos últimos tempos. Até porque, o país ainda conta com índices altíssimos de crimes violentos; leis muito duras; um legado de turbulência racial; um
53 CARVALHO, Igor. Um flagrante de (in)justiça no Brasil. Revista Forum. 113 ano 11. Agosto, 2012, p. 16-19.
54 LEMGRUBER, JULITA. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Op. cit., p. 10.
55	http://www.direitopenalvirtual.com.br/noticias/segundo-portal-uol-eua-detem-a-lideranca-mundial-
em-numero-de-presos-e-sentencas
56 Apud. http://www.direitopenalvirtual.com.br/noticias/segundo-portal-uol-eua-detem-a-lideranca-mundial- em-numero-de-presos-e-sentencas
57 CARVALHO, Igor. Um flagrante de (in)justiça no Brasil. Op. cit., p. 16-19.
intenso fervor no combate às drogas ilegais e a falta de uma rede de segurança social, tudo, aliado ao próprio sistema democrático do país que, carregaria parcela de culpa, na medida em que os juízes (muitos deles levados aos cargos por eleição), são seduzidos mais facilmente pela opinião pública, em geral, a favor de uma Justiça criminal rígida.
Não foi à toa que Julita Lemgruber em cuidadoso trabalho, informara que em 2000, Jenni Gainsborough e Marc Mauer do Sentencing Project, teriam divulgado um amplo estudo comparativo sobre taxas de encarceramento e taxas de criminalidade nos estados norte-americanos e os principais resultados apontaram que, entre 1991 e 1998, os estados com os maiores acréscimos nas taxas de encarceramento tiveram, em média, as menores reduções em suas taxas de criminalidade58.
Por conseguinte, em 2012, o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo já faz propaganda, atribuindo a diminuição da criminalidade, - pela primeira vez verificada em trinta anos - ao desmantelamento das leis mais rígidas contra as drogas e ao recente programa penitenciário de libertação antecipada de presos (menos perigosos). A situação em Nova Iorque reflete a mudança de atitude na política de justiça criminal. Política que faz a trajetória inversa ao da tolerância zero e já é responsável pelo fechamento de sete prisões de um total de sessenta e sete previstas59. Tudo, visando livrar o contribuinte nova-iorquino de um encargo que em nada se revertia em proveito dele e que, agora, pode tirar o país da liderança daqueles que possuem o maior número de prisões e prisioneiros no mundo, podendo daí em diante, dotar o orçamento de diretrizes realmente benéficas aos cidadãos, substituindo a falsa aparência de segurança por efetiva melhoria da saúde e previdência social.
58 LEMGRUBER, JULITA. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Op. cit., p.
59 http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/conteudo.phtml?id=1259932
3.2 CERQUEIRA E A REALIDADE DE HOJE NO RIO DE JANEIRO
Carlos Magno Nazareth Cerqueira, Coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi assassinado em 1999 e de seu legado se pode extrair o testemunho de quem, pessoalmente, experimentou os percalços de uma política pública de segurança, considerada um verdadeiro divisor de águas entre dois paradigmas antagônicos, a política criminal punitivista e a política criminal garantista. A primeira de franca aplicação no Estado correspondeu à regra de todos os governos, à exceção, dos períodos de Brizola que representaram o segundo modelo, mas que por razões variadas não foram bem compreendidas pela opinião pública e, por conseguinte, não surtiram os efeitos desejados.
Os artigos de Cerqueira60 contém uma análise bem criteriosa e fundamentada dos aspectos conjunturais da época em que exerceu o comando da Polícia Militar e da Secretaria de Estado. Mas segundo ele mesmo, para compreender o que aconteceu, fazia-se necessário que o interprete se despojasse de qualquer preconceito antibrizolista ou antipatia aos discursos de apoio aos direitos humanos e os considerasse dentro de um contexto fático-social e não somente político- ideológico61.
Tais períodos de governança foram importantes para demarcar uma fase pela qual, pioneiramente, se tentou adotar uma concepção de conflito, não mais como ‘ameaça’, mas como ‘espaço’, ‘possibilidade de crescimento’, ‘mudança’, ‘criatividade’ e ‘oportunidade de integração social’. Ferramentas essenciais para instrumentalizar programas de políticas públicas no campo da segurança em regimes democráticos62.
Para Cerqueira, o Rio precisava substituir o tratamento repressivo, tradicionalmente dado aos conflitos sociais urbanos por formas negociadas, consensuais e civis, fazendo dos direitos humanos e dos direitos e deveres do cidadão, o fundamento para o manejo dos problemas de ordem pública.
Sua proposta consistia, não em desacreditar o comando do Exército, mas em demonstrar que a segurança pública interna do país, necessitava ser desarticulada
60 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Remilitarização da segurança pública – a Operação Rio. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma polícia. Coleção Polícia Amanhã. Rio de Janeiro. Instituto Carioca de Criminologia. Freitas bastos, 2001, p. 45.
61 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia, p. 47.
62 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia, p. 47.
da doutrina de segurança nacional por enfatizar que polícia não é tropa de guerra e seu opositor não é um inimigo a ser abatido, senão, apenas, um dissidente a ser contido e se necessário, no máximo, preso.
Segundo ele, a lógica de guerra implicava em uma relação recíproca na qual quem declara guerra, obriga o outro a ficar em guerra com ele, mesmo a contragosto. Daí, porque, por princípio, essa lógica não serviria para um Estado que se diz democrático porque neste, as relações de força necessitam ser dissolvidas em relações de direito, reguladas por lei63.
Defendia a tese de que a doutrina de segurança nacional partia do pressuposto da divisão do mundo em dois blocos antagônicos que se repeliam entre si e, que, mal comparando, representa na segurança pública, o modelo da defesa social, na qual o criminoso e o crime aparecem como entes patológicos e disfuncionais ao sistema social, o criminoso é o mal e a sociedade ordeira é o bem. Tese ultrapassada pelas teorias sociológicas contemporâneas que consideram o conflito como algo próprio das estruturas e das dinâmicas sociais, um fenômeno normal, um fator positivo de crescimento e vital para as relações sociais64.
Segundo Cerqueira era perfeitamente possível estabelecer a diferença entre uma ordem pública democrática e outra autoritária, que seria aquela a ser rompida.
A primeira é aquela na qual há espaço para o conflito, na qual o consenso pode ser construído livremente, não é obrigatório, havendo condições para o dissenso ser expresso e ser manifestado, sem impor-se também de forma exclusivista. A outra autoritária repousa na hipótese da unanimidade, isto é, no consenso obrigatório (todos aderem ao projeto social), não havendo possibilidade para os dissidentes. Estas ideias se apoiam na análise de Norberto Bobbio, para quem a democracia deve incorporar no seu processo as duas formas: o consenso e o dissenso. As regras do jogo democrático devem estabelecer o campo para a atuação de uma - consenso – sem a exclusão da outra e não permitir formas de dissenso que inviabilizem o consenso. Nos regimes totalitários prevalece a ideia da unanimidade, isto é, há um consenso que não admite o dissenso porque é ou pretende ser o consenso de todos65.
Mas, o fato é que os dois governos Brizola não

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