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Autora: Profa. Renata Castro Cardias Kawaguchi Colaboradores: Profa. Vanessa Santhiago Profa. Ivy Judensnaider Prof. Marcel da Rocha Chehuen Educação Física Integrada Professora conteudista: Renata Castro Cardias Kawaguchi É bacharel em Turismo pela Universidade Paulista (UNIP), especialista em Gestão Cultural pelo Senac-RJ, e em Empreendimentos e Cidades Criativas pela Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, e mestre e doutoranda em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Atua no mercado turístico desde 1996, nos segmentos de agenciamento de viagens, hospedagem e eventos. É docente desde 2000, em cursos de graduação (bacharelado e tecnológico) presenciais e a distância e em cursos de pós-graduação na área de hospitalidade. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) K22s Kawaguchi, Renata Castro Cardias. Educação Física Integrada / Renata Castro Cardias Kawaguchi. – São Paulo: Editora Sol, 2024. 104 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Lazer. 2. Tempo. 3. Atividades. I. Título. CDU 796 U519.47 – 24 Profa. Sandra Miessa Reitora Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração e Finanças Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice-Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora das Unidades Universitárias Profa. Silvia Gomes Miessa Vice-Reitora de Recursos Humanos e de Pessoal Profa. Laura Ancona Lee Vice-Reitora de Relações Internacionais Prof. Marcus Vinícius Mathias Vice-Reitor de Assuntos da Comunidade Universitária UNIP EaD Profa. Elisabete Brihy Profa. M. Isabel Cristina Satie Yoshida Tonetto Prof. M. Ivan Daliberto Frugoli Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. M. Deise Alcantara Carreiro Profa. Ana Paula Tôrres de Novaes Menezes Projeto gráfico: Revisão: Prof. Alexandre Ponzetto Giovanna Oliveira Juliana Maria Mendes Sumário Educação Física Integrada APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 LAZER E SOCIEDADE .........................................................................................................................................9 1.1 Organização social do tempo: de Cronos a Kairós ....................................................................9 1.2 Lazer: origens, funções e conceitos .............................................................................................. 13 1.2.1 Função de descanso ............................................................................................................................... 15 1.2.2 Função de divertimento, recreação e entretenimento ............................................................ 16 1.2.3 Função de desenvolvimento ............................................................................................................... 16 1.3 Tempo social ........................................................................................................................................... 18 1.3.1 Tempo psicobiológico ............................................................................................................................ 18 1.3.2 Tempo sociocultural ............................................................................................................................... 19 1.3.3 Tempo livre ................................................................................................................................................ 19 1.3.4 Tempo livre após o trabalho ............................................................................................................... 20 1.3.5 Tempo livre de fim de semana/feriado ........................................................................................... 21 1.3.6 Tempo livre de férias ............................................................................................................................. 21 2 ORÇAMENTO-TEMPO ..................................................................................................................................... 22 2.1 Praticar, assistir, estudar .................................................................................................................... 24 2.1.1 Atividades físicas ................................................................................................................................... 25 2.1.2 Atividades manuais ................................................................................................................................ 25 2.1.3 Atividades artísticas ............................................................................................................................... 26 2.1.4 Atividades intelectuais .......................................................................................................................... 26 2.1.5 Atividades associativas ......................................................................................................................... 27 2.1.6 Atividades turísticas............................................................................................................................... 27 2.2 O lazer como direito: principais marcos regulatórios ........................................................... 28 2.2.1 A casa ........................................................................................................................................................... 33 2.2.2 Ruas e bares .............................................................................................................................................. 33 2.2.3 Centros culturais ..................................................................................................................................... 35 2.2.4 Praças e parques...................................................................................................................................... 36 3 HOMO FABER X HOMO LUDENS ............................................................................................................... 37 3.1 O homem que trabalha ...................................................................................................................... 37 3.2 O homem que se diverte ................................................................................................................... 39 3.3 Integração do faber e do ludens .................................................................................................... 42 4 LAZER E ÓCIO NA CONTEMPORANEIDADE: CONCEITOS, CONCEPÇÕES E SIGNIFICADOS ................................................................................................................................................... 44 4.1 O ócio e as experiências subjetivas ............................................................................................... 45 4.2 A sociedade do hiperconsumo ........................................................................................................ 46 Unidade II 5 CONTRIBUIÇÕES PARA A COMPREENSÃODO LAZER ...................................................................... 55 5.1 Os estudos do lazer no Brasil: principais pesquisadores e contribuições das escolas internacionais ........................................................................................................................ 55 5.2 A escola dumazediana e os principais estudiosos brasileiros ............................................. 58 6 NOVAS PERSPECTIVAS PARA A SOCIOLOGIA DO LAZER ................................................................ 61 6.1 Duplo aspecto educativo das experiências do lazer .............................................................. 64 6.2 Desenvolvimento de projetos de animação sociocultural ................................................... 69 6.3 Lazer e animação sociocultural: áreas de atuação ................................................................. 71 6.3.1 No setor público ...................................................................................................................................... 71 6.3.2 Nas escolas ................................................................................................................................................ 71 6.3.3 No setor privado ..................................................................................................................................... 72 6.3.4 No Terceiro Setor .................................................................................................................................... 72 7 EXPERIÊNCIAS DO LAZER E DO ÓCIO NO BRASIL: ESTUDOS DE CASO ..................................... 74 7.1 Lazer e esporte ...................................................................................................................................... 74 7.2 Lazer e cultura ....................................................................................................................................... 78 7.3 Festas tradicionais ................................................................................................................................ 81 7.4 Jogos, brinquedos e brincadeiras ................................................................................................... 84 8 NATUREZA, SOCIEDADE E TURISMO ....................................................................................................... 85 7 APRESENTAÇÃO Esta disciplina tem como objetivo promover o conhecimento, a reflexão e a compreensão da realidade social em seus múltiplos aspectos, dentre eles, o lazer. No atual contexto, em que o trabalho ocupou (e ainda ocupa) a centralidade da organização social, o lazer e o ócio reaparecem como elementos fundamentais, pois possibilitam a transformação do sujeito, convocando-o a ser conquistado para a expressão de suas subjetividades, contribuindo para uma nova possibilidade de ser e estar. A temática abordada objetiva a habilitação de profissionais para o exercício da docência, com ética e competência e sólida formação teórica e metodológica. Inicialmente, você conhecerá e analisará o contexto contemporâneo a partir da perspectiva da sociologia do lazer, assim como discutirá os conceitos de tempo livre, lazer e ócio. Também estabelecerá as integrações entre o Homo faber e o Homo ludens. Posteriormente, você aprenderá sobre a trajetória dos estudos do lazer no Brasil, sobre suas influências e novas perspectivas. Irá compreender, além disso, o duplo aspecto do lazer e do ócio na educação. Além disso, conhecerá aspectos da sociologia do lazer a partir de estudos de caso brasileiros. INTRODUÇÃO A disciplina expõe como o pensamento sociológico busca compreender o contexto contemporâneo em seus diversos tipos de interações e movimentos. Dentre tantos aspectos socioculturais, destacam-se as relações estabelecidas entre o indivíduo, o lazer e o ócio, considerando as constantes transformações que caracterizam nossa sociedade globalizada. Desde o estabelecimento da era industrial, o trabalho foi a atividade que ocupou a centralidade na organização da temporalidade social, marcada também pela produção e pelo consumo. Na atualidade, o lazer e o ócio reaparecem como elementos fundamentais, pois possibilitam a transformação do sujeito (longe de sua liberdade, criação e desejo), convocando-o à conquista de um tempo para a expressão das suas subjetividades, o que contribui para a aquisição de um novo sentido para sua experiência de ser e estar. 9 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Unidade I 1 LAZER E SOCIEDADE 1.1 Organização social do tempo: de Cronos a Kairós Figura 1 – O relógio Disponível em: https://shre.ink/Ujls. Acesso em: 30 out. 2023. O lazer faz parte de nossa cultura. Como manifestação sociológica, está fortemente presente na contemporaneidade; porém, para compreendê-lo, não podemos deixar de entender também as suas relações com o tempo, um fenômeno complexo que faz parte de nossa experiência existencial. O tempo marca a nossa forma de existir e interagir na sociedade e conduz nossa trajetória entre o passado, o presente e o futuro, movendo nossas aspirações. Na mitologia grega, Cronos era um ser da raça dos Titãs, que devorava os filhos, logo que nasciam, com o intuito de impedir a realização de uma profecia que o alertava de que um dos seus filhos iria matá-lo para tomar seu lugar como senhor da criação. Já Kairós é um deus representado como um jovem de porte atlético com duas asas nos pés que o faziam transitar de forma aleatória e imprevisível. Essas duas figuras míticas eram representantes do tempo, mas cada uma simbolizava um tempo diferente: Por outro lado, se voltarmos o nosso olhar para as sociedades mítico-eróticas, verificaremos que estas tomavam dois tipos de tempo como vitais: um tempo no qual se vive e se elabora um “sempre” transformador (Kairós), e, ainda, um outro, que exaure a vida (Kronos). De outra forma, na contemporaneidade, os homens das ditas sociedades evoluídas reclamam da falta de um tempo para si. No entanto, e de forma paradoxal, seguem investindo tempo e recursos na busca pela realização a partir da posse de 10 Unidade I objetos que entendem ser muito importantes para a sua felicidade (Martins; Baptista, 2013, p. 3). Ao relacionarmos os mitos com a nossa realidade, verificamos que a palavra “tempo” origina-se da palavra grega kronos, da qual derivam outras palavras, como “cronograma” e “cronômetro”, associadas a um tempo a ser controlado, com finitude: segundos, minutos, horas, dias, meses, anos. É o tempo de 24 horas que rege nossos processos sociais. Já kairós representa o tempo subjetivo, significa o tempo oportuno, pessoal, que pode ser rápido ou devagar, dependendo de quem o vive, e associam-se a ele atividades prazerosas ou desgastantes. É aquela sensação pessoal do tempo que não passa, ou passa rápido demais, que se eterniza ou é esquecido. A questão do tempo controlado e do tempo subjetivo interferiu nas relações da humanidade e do trabalho. Para Martins e Baptista (2013), nas sociedades pré-industriais, as atividades exercidas atendiam às necessidades básicas. Até o fim do período paleolítico (700.000 a 10.000 a.C.), as pessoas eram nômades, mudavam de lugar de acordo com as condições propícias para a sua sobrevivência. No período mesolítico (10.000 a 7.000 a.C), a população começou a se estabilizar, com a criação de animais, mas ainda sobrevivia da caça e da coleta de frutos. No período neolítico (7.000 a 3.000 a.C.), houve grandes transformações na relação entre homem e natureza. Além de domesticar animais, o homem começou a cultivar a terra e, por meio da atividade agrícola, introduziu o trabalho coletivo. Ainda não se tinha noção de posse particular, assim como não existia a separação de ações: ao mesmo tempo que se saía para caçar, brincava-se; cozinhava-se ao mesmo tempo que se educava. Todos participavam de tudo; as rupturas aconteciam nos rituais de festa, que rompiam com o cotidiano. Da mesma forma que se foi introduzindoo sedentarismo, a humanidade foi buscando o crescimento na produção de bens para a sua sobrevivência, intensificando o sistema de trocas. Foi nas margens dos rios que muitas sociedades se desenvolveram e que surgiram os primeiros indícios da divisão do trabalho. Havia, então, liberdade na escolha das atividades, e uma parcela da produção era ofertada ao Estado. Conforme afirmam Martins e Baptista (2013), no período arcaico (século VIII a.C.), diminuíram as atividades agrícolas e pastoris. Surgiram as propriedades privadas e a escravidão, fatores que modificaram as relações com o trabalho: de um tempo de trabalho autogerido para um trabalho escravo. Posteriormente, de forma gradual, a escravidão deu lugar ao trabalho de manufatura, também conhecido como dirigismo estatal, que tinha como característica prestar serviços ao Estado. No século V d.C., o dirigismo estatal deu lugar aos poucos ao sistema dominal, caracterizado pelas transformações ocorridas no sistema agrícola devido à difusão do cristianismo. Havia, independentemente do tamanho da propriedade, a terra dos senhores, que tinha uma parcela cedida ao camponês, que nela trabalhava de acordo com o seu tempo. Uma parte de tudo o que ele produzia era destinada ao dono da terra. 11 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Com o fim do Estado carolíngio (séculos VIII e IX), estabeleceu-se o feudalismo, no qual os senhores de terra se apropriavam da produção camponesa exigindo parcelas cada vez maiores do que era produzido, o que obrigava os camponeses a buscar outras formas de renda por meio de trabalhos artesanais e de trabalho assalariado. Os contratos eram estabelecidos de forma individualizada; assim, o tempo de trabalho e a remuneração não eram uniformes. Na Idade Moderna, houve mudanças com relação ao trabalho, marcadas principalmente pelo crescimento das atividades comerciais e pelas crises agrárias e monetárias. Surgiu, assim, o sistema econômico comercial, que desenhava as primeiras intervenções regulamentadas entre tempo, trabalho e salário. O aumento da economia e dos mercados foi a base do sistema capitalista, o processo entendido de um ponto de vista histórico, com o aumento do trabalho assalariado e a substituição do escambo pela moeda que circulava no mercado que ia se expandindo conforme o consumo ia crescendo, aspectos esses que forçaram o surgimento de novas formas de produção mais rápida para suprir as necessidades do sistema que ia se estabelecendo na lógica mercadológica. Segundo Martins e Baptista (2013), o tempo controlado (kronos) interferia diretamente na economia, então caracterizada pela venda e circulação de produtos. No século XVI, a reforma protestante, principalmente nas visões de Martinho Lutero e João Calvino, vinculava o trabalho à salvação divina. O capitalismo era baseado na produtividade organizada por meio de jornadas de trabalho longas e em linhas de produção. A Revolução Industrial surgiu com a introdução das máquinas a vapor, que intensificaram a produção. Os relógios implantados nas fábricas controlavam o tempo de produção e o ganho de produtividade, assim como a modernização dos meios de transporte, essencial para o escoamento dos produtos. Marx (apud Martins; Baptista, 2013, p. 12) aponta que o tempo do trabalho passou a dominar o próprio trabalho. O tempo passou a ser uma moeda de troca: o trabalhador era remunerado pela sua jornada. Para Martins e Baptista (2013), a introdução do sistema capitalista provocou uma maior dimensão do tempo laboral, ou tempo para o trabalho, em relação aos outros tempos sociais. Houve, desse modo, uma supervalorização do tempo do trabalho que trouxe muitas consequências para nossa sociedade, na qual sujeitos sociais são orientados pela lógica da produção e do consumo. O trabalho e a sua execução passaram a ser um meio de alcançar bens materiais e a identidade por meio do consumo e do esvaziamento do sujeito. Muitas vezes, na nossa sociedade, o trabalho para “ter” subtrai o sentido do “ser”. A sofisticação dos meios de transporte e de comunicação por intermédio da tecnologia otimizou o tempo e as tarefas, o que também provocou mudanças nas relações de trabalho. Um exemplo atual são os home offices que, aos poucos, vêm afastando as jornadas homogêneas. O relógio de ponto (presente nas empresas), no trabalho em casa, é substituído pela tarefa a ser 12 Unidade I efetuada. O gerenciamento do trabalho a ser realizado pode ser feito, atualmente, em nossos aparelhos eletrônicos, como os celulares inteligentes e os computadores portáteis, que podem ser acessados de qualquer lugar e em qualquer tempo, possibilitando rapidez e flexibilidade. Os apontamentos nos fazem pensar na necessidade do tempo autogerido (kairós). Há muitas empresas que vêm substituindo a obrigatoriedade da presença do colaborador no ambiente laboral a fim de que o trabalhador desenvolva suas tarefas de acordo com o seu próprio tempo. Assim, há um crescimento no número de profissionais que trabalham e desenvolvem suas atividades de acordo com o serviço que desempenham. Existem, além disso, embora ainda de forma tímida, ações para obter a melhoria da qualidade de vida: o movimento slow de desaceleração do tempo e da vida já acontece em alguns lugares. Faz-se necessário pensar, analisar e refletir a partir de uma perspectiva sociológica: qual o papel social do lazer? Considerando o tempo voltado para as necessidades do sujeito de se expressar socioculturalmente, o lazer tem uma função especial. A música “Paciência” pode ser usada como exemplo das relações que temos com o tempo. Destaque Lenine – “Paciência” Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma Até quando o corpo pede um pouco mais de alma A vida não para Enquanto o tempo acelera e pede pressa Eu me recuso, faço hora, vou na valsa A vida é tão rara Enquanto todo mundo espera a cura do mal E a loucura finge que isso tudo é normal Eu finjo ter paciência E o mundo vai girando cada vez mais veloz A gente espera do mundo e o mundo espera de nós Um pouco mais de paciência Será que é tempo que lhe falta pra perceber? Será que temos esse tempo pra perder? E quem quer saber? A vida é tão rara Tão rara... [...] Fonte: Lenine e Dudu Falcão (2009). 13 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA A música “Paciência”, do cantor brasileiro Lenine, apresenta um dos nossos grandes dilemas do cotidiano: o tempo e suas implicações, como a falta dele em uma sociedade cada vez mais acelerada, a necessidade e o exercício da paciência para termos condições de viver melhor “com mais tempo”. Além disso, a canção apresenta a percepção da finitude do tempo, que passa rapidamente e que “deixamos passar” por estarmos ocupados demais. Exemplo de aplicação Com base no que apresentamos anteriormente e na leitura da letra, eis algumas perguntas para refletir: • Qual tempo queremos e podemos construir para nossas vidas? • Queremos o tempo de kronos ou o tempo de kairós? • Observe as pessoas com as quais você convive. Como são as relações que elas estabelecem com o tempo? 1.2 Lazer: origens, funções e conceitos “Capitão de indústria” mantém relação com a temática do lazer. Destaque Paralamas do Sucesso – “Capitão de indústria” Eu às vezes fico a pensar Em outra vida ou lugar Estou cansado demais Eu não tenho tempo de ter O tempo livre de ser De nada ter que fazer É quando eu me encontro perdido Nas coisas que eu criei E eu não sei Eu não vejo além da fumaça O amor e as coisas livres, coloridas Nada poluídas Ah, eu acordo pra trabalhar Eu durmo pra trabalhar Eu corro pra trabalhar 14 Unidade I Eu não tenho tempo de ter O tempo livre de ser De nada ter que fazer Eu não vejo além da fumaça Que passa e polui o ar Eu nada sei Eu não vejo além disso tudo O amor e as coisas livres, coloridas Nada poluídas Eu acordo pra trabalhar Eu durmo pra trabalhar Eu corro pra trabalhar Eu não tenho tempo de ter O tempo livre de ser De nada ter que fazer É quando eu me encontro perdido Nas coisas que eu criei E eu não sei Eu nãovejo além da fumaça O amor e as coisas livres, coloridas Nada poluídas Ah, eu acordo pra trabalhar Eu durmo pra trabalhar Eu corro pra trabalhar Fonte: Valle e Valle (2006). A música do grupo Paralamas do Sucesso exemplifica as relações do tempo em uma vivência para o mundo do trabalho, que muitas vezes rouba o tempo da liberdade de ser. Como vimos, o tempo controlado foi construído à medida que foi se desenvolvendo o sistema capitalista. Esse sistema, por sua vez, influenciou toda uma dinâmica social, que se estendeu também às sociedades pós-industriais. A Revolução Industrial instituiu: • jornada diária de trabalho de catorze a dezesseis horas; • urbanização com os grandes galpões industriais; • trabalho infantil; • produção em série; • trabalho repetitivo. 15 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA A máquina a vapor foi introduzida entre os séculos XVIII e XIX, e provocou mudanças sociais e econômicas. O tempo é marcado pelo relógio, e não mais pelo ciclo da natureza (amanhecer e anoitecer). O maquinário provoca também a fragmentação do trabalho, distanciando o trabalhador do produto final, restringindo sua participação no processo produtivo. A “revolução” trouxe o crescimento urbano, o êxodo rural, a verticalização das cidades, a redução dos espaços. Esses fatores provocaram o enclausuramento da vida em apartamentos, a perda da identidade individual, as limitações das relações pessoais no âmbito familiar, o afastamento do ambiente natural. A aceleração da vida também contribuiu para a constante concorrência, tensionada pela pressão do trabalho e da configuração das cidades, que carregou com ela a solidão, a insatisfação e o nervosismo, dentre tantas outras doenças psicossomáticas. Ao se apropriar desse processo, o capitalismo usa o trabalho, a racionalização e o lucro em todos os aspectos da vida humana, impondo seus ideais. A luta pelo direito ao lazer está ligada aos embates entre empresários e colaboradores, na conquista de direitos trabalhistas como redução da jornada de trabalho, férias remuneradas e regulação da aposentadoria, para um maior tempo livre. As condições estruturadas por uma sociedade do trabalho contribuíram para conceber o lazer como qualidade de vida e possibilidade de desenvolvimento humano. Podemos dizer que: Lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou ainda para desenvolver sua informação e formação desinteressada, sua participação social voluntária ou livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais (Dumazedier, 1974, p. 34). Nesse sentido, o lazer começa a ser olhado de outra maneira, estabelecendo na sociedade três funções importantes: a) função de descanso; b) função de divertimento, recreação e entretenimento; c) função de desenvolvimento, conforme veremos a seguir. 1.2.1 Função de descanso Figura 2 – Descanso Disponível em: https://shre.ink/UjLN. Acesso em: 30 out. 2023. 16 Unidade I O lazer atua como um reparador do cansaço físico e psicológico resultante das tensões cotidianas, principalmente quanto às pressões do trabalho. Apesar da melhora na execução das tarefas, o ritmo da produtividade e a complexidade dos deslocamentos nas cidades grandes determinam o aumento do tempo necessário para o descanso. 1.2.2 Função de divertimento, recreação e entretenimento Figura 3 – Parque de diversões Disponível em: https://shre.ink/UjLG. Acesso em: 30 out. 2023. A atividade de lazer, nesse sentido, colabora para o rompimento da monotonia. Há compensação e fuga por meio do divertimento e da evasão. Divertir-se, recrear-se e entreter-se são ações que se opõem à rotina. São atividades que rompem a repetição das atividades enfrentadas todos os dias. Há uma ruptura da rotina, que pode trazer experiências distintas. Essa mudança é possível, por exemplo, por meio de práticas que levem o indivíduo a outros lugares, reais (viagens, jogos, brinquedos e esportes) ou fictícios, por intermédio das diferentes linguagens da arte (teatro, cinema, leitura). 1.2.3 Função de desenvolvimento Figura 4 – Desenvolvimento humano Disponível em: https://shre.ink/UjZc. Acesso em: 30 out. 2023. 17 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Voltado ao desenvolvimento da personalidade, o lazer permite a participação em uma vida social mais livre, ou seja, baseia-se na prática de uma cultura desinteressada do corpo, da sensibilidade e da razão, além da formação prática e técnica que oferece novas possibilidades de integração. Nessa vertente, o lazer refere-se também a novas formas de aprendizagem. De acordo com Dumazedier (1974), essas funções são solidárias e estão uma associada à outra, coexistem. As exigências do mundo do trabalho são minimizadas por meio das atividades de descanso, divertimento e desenvolvimento. Nelson Carvalho Marcellino (1996) complementa que o lazer pode ser entendido no seu sentido mais amplo, ou seja, da vivência praticada no tempo disponível, que deve ser desinteressada. O fenômeno lazer impacta trabalho, família e cultura. Revendo a trajetória do trabalho como apresentado anteriormente, verificamos que o desenvolvimento da industrialização acabou com o antigo ritmo do trabalho que era, até então, regido pelas estações do ano e interrompido pelos momentos de festividades. O importante é que o trabalho não mais se identifica com a atividade e que o dia não é ocupado unicamente pelo trabalho, comportando duas ou três horas de lazer. [...] A vida de trabalho não termina mais unicamente devido à doença ou à morte, mas tem um fim legal que assegura o direito ao repouso. Assim, para o trabalhador, a elevação do nível de vida apresentou-se acompanhada pela crescente elevação do número de horas livres (Marcellino, 1988a, p. 25). A necessidade da prática do lazer cresce com a urbanização e a industrialização. Podemos dizer que as relações entre o lazer e as obrigações da vida cotidiana determinam uma participação crescente na vida cultural e social. O lazer é uma manifestação mais completa de si, pela imaginação, pelos sentimentos, sentidos e expressões corporais que retomam a vitalidade da vida e o extravasamento de atividades conduzidas pelo tempo autogerido. Observação O lazer e a recreação, embora estejam próximos, possuem diferenças em suas concepções. De acordo com Cavallari e Zacharias (1994), o lazer é o estado de espírito, a disponibilidade em que um indivíduo se encontra, institivamente, a partir do seu tempo livre, em busca do prazer por meio do lúdico, da alegria, da diversão e do entretenimento. Já recreação, para os autores, é o momento em si ou a circunstância na qual o indivíduo escolhe atividades que satisfaçam suas vontades e anseios. 18 Unidade I Outra diferença entre os dois conceitos é que o lazer é voluntário, espontâneo, é a busca de um estado de prazer ou descanso, e a recreação tem como característica ser uma atividade dirigida, com uma supervisão e um objetivo, ou seja, ter sempre uma condução. 1.3 Tempo social O tempo social é compreendido em três categorias, conforme nossas necessidades, de acordo com Munné (1980). Para um melhor entendimento do conceito, o autor nos apresenta o tempo social conforme a tipologia que segue. 1.3.1 Tempo psicobiológico Figura 5 – Criança dormindo Disponível em: https://shre.ink/UjMz. Acesso em: 30 out. 2023. O tempo psicobiológico é caracterizado pela ocupação e condução das necessidades físicas, biológicas e psíquicas. O tempo psicobiológico é individualizado e endógeno. Por exemplo, as consequências de um bom ou mau sono repercutem na prática social. O tempo destinado a dormir nos restabelece cotidianamente por meio do descanso do corpo e da mente. Desse modo, a qualidade do sono tem uma importância muito grande na saúde e na qualidade de vida. Com relação às horas de sono para uma boa qualidade de vida, especialistas da área da saúde recomendam diariamentede seis a oito horas de sono para que possamos restabelecer, por meio do descanso, um melhor funcionamento do nosso organismo. A restrição das horas de sono pode comprometer seriamente a saúde física e mental, trazendo doenças associadas ao distúrbio do sono e à depressão, que têm como causa principal o acúmulo de tarefas. 19 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA 1.3.2 Tempo sociocultural Figura 6 – Círculo de pessoas Disponível em: https://shre.ink/U2Tv. Acesso em: 30 out. 2023. O tempo sociocultural é caracterizado pela sociabilidade dos indivíduos em relação aos compromissos estabelecidos de acordo com os sistemas de valores introduzidos pela sociedade. O tempo sociocultural depende das relações com os grupos sociais dos quais fazermos parte. Desse modo, ele pode ser heterocondicionado ou autocondicionado. Essa tipologia é marcada por encontros sociais como festas de aniversário, batizados, casamentos, assim como reuniões ou confraternizações na escola, na igreja, entre outros espaços nos quais construímos nossas relações sociais. 1.3.3 Tempo livre Figura 7 – Tempo disponível Disponível em: https://shre.ink/UjYw. Acesso em: 30 out. 2023. O tempo livre se refere ao tempo social em que os indivíduos voltam-se para a realização de atividades criativas e desinteressadas, livres das obrigações. 20 Unidade I De acordo com esses três tipos de manifestação de tempo social apresentados por Munné (psicobiológico, sociocultural, livre). Ansarah complementa que: De acordo com essa classificação, o tempo de vida natural ou biológico é aquele dedicado à satisfação das necessidades vitais do homem, ou seja: dormir, alimentar-se, funções fisiológicas e de asseio pessoal. O tempo de trabalho é utilizado para as atividades remuneradas destinadas à sobrevivência material. Já o tempo dedicado às atividades familiares e sociais é classificado como aquele situado entre o tempo de trabalho e o tempo livre. Finalmente, o tempo livre é o tempo empregado para desfrutar do lazer, ou seja, o tempo dedicado ao descanso, à distração, ao entretenimento, ou, mesmo, às atividades para aumentar o conhecimento (Ansarah, 1990, p. 86). De acordo com Acerenza (1968), o tempo livre de que os indivíduos disponibilizam para o exercício do lazer pode ser dividido em três categorias: após o trabalho, de fim de semana e em feriados, e nas férias. 1.3.4 Tempo livre após o trabalho Figura 8 – Happy hour Disponível em: https://shre.ink/Uj6B. Acesso em: 30 out. 2023. Após o trabalho e depois do cumprimento de suas necessidades biológicas e compromissos, as pessoas podem buscar o entretenimento dentro ou fora de casa, fazendo atividades como assistir à televisão, ouvir música, ir ao teatro, ao cinema, a um centro cultural, ler um livro, participar de um happy hour com os colegas do trabalho ou praticar atividades físicas ou esportivas. 21 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA 1.3.5 Tempo livre de fim de semana/feriado Figura 9 – Família passeando no parque Disponível em: https://shre.ink/Uj6o. Acesso em: 30 out. 2023. Pode-se optar por atividades recreativas e esportivas em parques ou clubes na própria cidade ou bairro e até por turismo de curta duração em deslocamentos de pequena distância intermunicipais e interestaduais. É possível verificar na prática que, aos sábados, domingos e feriados, os espaços de lazer público e privados são tomados para o desenvolvimento de diferentes atividades gratuitas ou pagas. 1.3.6 Tempo livre de férias Figura 10 – Passeio turístico em Veneza Durante as férias, amplia-se a dedicação às atividades mencionadas e ainda se amplia a possibilidade do exercício do turismo como atividade de lazer. As viagens de média e longa duração pelo próprio país ou para países diferentes contribuem para a escapatória das agressões do cotidiano dos grandes centros urbanos, assim como possibilitam diferentes experiências sociais e culturais. 22 Unidade I 2 ORÇAMENTO-TEMPO Qual é o tempo diário, semanal e anual que temos para o lazer? Quanto tempo disponibilizamos para o exercício de atividades que nos beneficiam de forma voluntária e desinteressada? A técnica para estudar como as pessoas gastam seu tempo é chamada de orçamento-tempo. Figura 11 – Ampulheta: artefato para medir o tempo Disponível em: https://shre.ink/UjTb. Acesso em: 30 out. 2023. A seguir incluímos um exemplo de cálculo de orçamento-tempo, usando as seguintes variáveis: TL: Tempo livre Tto: Tempo total Tpb: Tempo psicobiológico Tt: Tempo do trabalho Tsc: Tempo sociocultural Durante a semana: TL = Tto – (Tpb + Tsc + Tt) TL = 24 h – (9 h + 2 h + 9 h) TL = 24 h – 20 h TL = 4 h 23 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Durante o final de semana: TL = Tto – (Tpb + Tsc + Tt) TL = 24 h – (9 h + 4 h + 0 h) TL = 24 h - 13 h TL = 11 h O exemplo anterior apresenta o cálculo do tempo livre que uma pessoa tem disponível durante a semana e no final de semana. Dependendo de alguns fatores, como a dinâmica das cidades, os meios de transporte, a quantidade de horas de sono, o tempo de deslocamento, as pressões do trabalho, entre outros, o tempo livre durante a semana pode aumentar ou se fragmentar. Muitas vezes a correria resultante dos afazeres e compromissos é tanta que as quatro horas (conforme o exemplo do cálculo anterior) de tempo livre se diluem, restringindo as atividades de lazer que podem ser praticadas. Desse modo, é aos finais de semana que temos mais tempo disponível para exercer diferentes atividades de acordo com a nossa liberdade de escolha. Esse tipo de estudo foi muito usado no início do século XX para buscar compreender como as pessoas utilizavam o seu tempo em um contexto marcado pela industrialização. Porém, na atualidade, essa liberdade de fazer o que se quer é ameaçada constantemente pelo consumismo, que coisifica e empobrece o seu significado. Consome-se o lazer, mas não há uma significação da experiência capaz de melhorar evidentemente a qualidade de vida. Observação A compreensão sobre o que é qualidade de vida envolve inúmeros campos do conhecimento. Trata-se de um termo interdisciplinar, pois envolve aspectos biológicos, políticos, econômicos, sociais (dentre os quais se destaca o lazer), entre outros, e encontra-se em constante inter-relação. Em nossa sociedade atual, desde a infância, somos condicionados a exercer uma atividade social predominante: o trabalho. “O que você vai ser quando crescer?” é o tipo de pergunta que já nos fazem desde que somos muito novos. Lembrete Para Dumazedier (1974), o lazer é a prática fora das obrigações sociais em um tempo variável quanto à sua forma e conforme a intensidade das atividades profissionais. O lazer está voltado, como vimos, para o descanso, a diversão e o desenvolvimento. 24 Unidade I O sociólogo Renato Requixa (1977, p. 11), por sua vez, entende o “lazer como uma ocupação não obrigatória, de livre escolha do indivíduo que a vivencia e cujos valores propiciam condições de recuperação e de desenvolvimento pessoal e social”. Nesse sentido, Nelson Carvalho Marcellino (1987) nos apresenta o lazer como atividade desinteressada, libertatória e sem fins lucrativos, pois acredita que, para alcançar o lazer, seja necessária a eliminação de barreiras sociais, a fim de que ele seja encarado como um direito de todos os cidadãos, e não mais como uma atividade segregadora. Por isso, o autor considera a necessidade de uma democracia política e econômica para que o lazer realmente se desenvolva. Já Luiz Octávio de Camargo entende que “as atividades de lazer são, pois, desinteressadas, libertatórias, escolha pessoal, na busca de algum prazer” (Camargo, 1986, p. 34). De acordo com as contribuições do autor, as atividades de lazer podem ser centradas em diferentes ações: praticar, assistir e estudar. 2.1 Praticar, assistir, estudar Figura 12 – O hábito da leitura Disponível em: https://shre.ink/UjTd. Acesso em: 30 out. 2023. Em todas as áreas culturais do lazer, são possíveis três atitudes sob a forma de lazer: praticar,assistir ou estudar um assunto. Ou seja, independentemente de ser uma atividade esportiva ou cultural, podemos encontrar indivíduos que praticam, assistem ou estudam temas sem que seja obrigação fazê-lo. Por exemplo: há pessoas que praticam o teatro, outras que assistem a filmes e outras que estudam por meio de cursos ou eventos. Essas atitudes não são isoladas, uma vez que podem ser combinadas. 25 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA 2.1.1 Atividades físicas Figura 13 – Mulheres praticando futebol Disponível em: https://shre.ink/UVUN. Acesso em: 30 out. 2023. Atividades físicas são, por exemplo, caminhadas, ginástica e os mais diferentes esportes que podem ser executados de maneira formal ou informal em espaços planejados para a sua prática, como academias, estádios ou quadras. Também podem ser exercidos em espaços improvisados, como ruas, casas e praias. Há diferentes interesses que se associam ao lazer nas práticas esportivas, tais como interesse estético, contemplação da natureza, estabelecimento de relacionamentos etc. – isso depende especificamente de cada pessoa. 2.1.2 Atividades manuais Figura 14 – Artesanato Disponível em: https://shre.ink/UVUX. Acesso em: 30 out. 2023. 26 Unidade I As atividades manuais são aquelas ligadas ao prazer de manipular, explorar e transformar. Elas vão desde cultivar flores e hortaliças, praticar artesanato, consertar e desmontar aparelhos até fabricar objetos como estantes, mesas, entre outros. A criação com as mãos representa a expressão de uma capacidade reprimida, que foi substituída por empresas e fábricas. A expressão gestual das mãos, assim como a prática de transformar, assegura a liberdade de criação. 2.1.3 Atividades artísticas Figura 15 – Grafite Disponível em: https://shre.ink/UV8x. Acesso em: 30 out. 2023. Com relação aos interesses de práticas artísticas, destaca-se a importância do imaginário e da capacidade de sonhar, de encantar-se, assim como da busca do belo, que se refere a atividades eruditas e populares relacionadas à arte, ao teatro, ao cinema e à literatura. As atividades artísticas compõem as diversas expressões culturais da humanidade e não podem ser olhadas apenas na perspectiva erudita. A cultura popular também é fonte criadora de ricas manifestações como a música, a dança, a escultura e as pinturas. 2.1.4 Atividades intelectuais Figura 16 – Leitura Disponível em: https://shre.ink/UV8l. Acesso em: 30 out. 2023. 27 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA As atividades intelectuais compreendem aquelas que promovem conhecimento, informação e aprendizagem. O lazer pode promover o exercício do conhecimento e a satisfação da curiosidade intelectual por meio de diferentes atividades, como a leitura de um livro ou de uma revista. 2.1.5 Atividades associativas Figura 17 – Dança tradicional Disponível em: https://shre.ink/UV76. Acesso em: 30 out. 2023. Em todas as atividades de lazer, há um forte conteúdo de sociabilidade expresso nas relações entre amigos, familiares e colegas do trabalho. As atividades associativas são aquelas voltadas aos interesses culturais dirigidos ao contato das pessoas – desde atividades como passear com os filhos ou visitar amigos e parentes até frequentar associações e movimentos culturais e comunitários. 2.1.6 Atividades turísticas Figura 18 – Turismo na cidade do Rio de Janeiro Disponível em: https://shre.ink/UVe2. Acesso em: 11 jan. 2016. Destaca-se o interesse cultural dos indivíduos que buscam o turismo como uma das possíveis atividades de lazer. Conhecer novos lugares, paisagens e estilos de vida promove a alteração da rotina. Utilizando o tempo livre dos finais de semana, feriados e férias, o indivíduo busca ritmos opostos àqueles 28 Unidade I exercidos no cotidiano, paisagens de sol, céu e água, assim como o consumo de alimentos e bebidas diferentes e artesanato. O setor econômico do turismo, por meio da produção e comercialização de roteiros turísticos internacionais, não dá conta de atender a suas implicações. Os pacotes turísticos padronizados, assim como fórmulas de viagens, estão sendo atualmente questionados por valorizarem apenas a questão econômica e restringirem o conhecimento cultural e social das cidades, transformadas em verdadeiros cenários onde há uma encenação da realidade, em detrimento das experiências culturais e sociais e, consequentemente, dos seus impactos. O turismo de massa também promove impactos físicos negativos por meio da construção impessoal de meios de hospedagem que não respeitam a paisagem local, que desprezam a mão de obra nativa e que provocam danos ambientais como a poluição e a deterioração de mares, rios, ruas, além de vegetação e flora nativas. Contudo, há iniciativas por meio da manifestação de outras formas de turismo, como o comunitário e o social, que valorizam a comunidade local e as trocas que podem ser estabelecidas na atividade turística. O turismo social é uma crítica às atividades turísticas convencionais desenvolvidas e comercializadas por grandes corporações. Ele compreende a criação de equipamentos físicos compatíveis com a realidade local, que operem em sintonia com a paisagem e sejam geridos pela população local. Também são valorizados diferentes pontos de interesse que evitem a concentração de grandes massas poluidoras. O turismo social, além disso, valoriza o artesanato local, assim como o custo mais baixo, fortalecendo todo um potencial de valorização das paisagens e dos seres humanos. 2.2 O lazer como direito: principais marcos regulatórios Figura 19 – Principais documentos e diretrizes sobre o lazer Disponível em: https://shre.ink/UV7B. Acesso em: 30 out. 2023. 29 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA A conquista do lazer na trajetória da humanidade provocou a geração de marcos regulatórios. A criação de leis e documentos internacionais – por exemplo, declarações e convenções – teve como objetivo sensibilizar governos de vários países para apoiar as iniciativas voltadas ao lazer. A constituição desses marcos regulatórios não provocou efeitos práticos imediatos, porém foi importante para o início dos debates voltados a discutir o lazer como direito de todos, e não apenas privilégio de alguns. Um dos primeiros esforços nesse sentido foi a Declaração Universal de Direitos Humanos, que aponta, no artigo 24, que “Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas” (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948). No artigo 27, além disso, o documento destaca que “Toda pessoa tem direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e participar do progresso científico e de seus benefícios” (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948). O período pós-Segunda Guerra foi importante para o incentivo do lazer. Uma década depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1959, são promulgados os direitos da criança (Unicef, 1989), assim como, posteriormente, em 1978, reconhece-se o direito à prática esportiva, por meio da Carta Internacional de Educação Física e Esportes (Unesco, 1978). Posteriormente, houve outros documentos que reconheciam a importância das práticas esportivas, inclusive para mulheres, conforme a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984. O documento também ressaltava a necessidade dos governos de promoverem a igualdade de condições para a prática do lazer e dos esportes. Na década de 1990, foram criados documentos que salientavam a importância social e política das atividades de lazer. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2009), o lazer é um dos cinco itens mais relevantes para todos os indivíduos da sociedade, é um direito, assim como a alimentação, a educação, a saúde e a habitação. Um exemplo disso é a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), destacando que toda criança tem direito ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas daprópria idade, bem como à livre participação na vida cultural e artística. O direito e a prática do lazer na infância estão vinculados à aquisição de hábitos saudáveis e à permanência destes na vida adulta. As conquistas trabalhistas e a valorização do tempo livre são grandes ganhos, mas ainda não são suficientes: o direito ao lazer continua fazendo parte da luta de vários segmentos sociais. Podemos dizer que o surgimento das atividades de lazer como prática e direito a ser conquistado acompanham também o crescimento de inúmeros movimentos sociais. Conforme Vieira (2000): As lutas pela liberdade e igualdade ampliaram os direitos civis e políticos da cidadania, criaram os direitos sociais, os direitos das chamadas minorias – mulheres, crianças, idosos, minorias étnicas e sexuais e, pelas lutas ecológicas, o direito ao meio ambiente sadio (Vieira, 2000, p. 39-40). 30 Unidade I Observação A cidadania pode ser entendida como o exercício dos direitos e deveres civis, políticos e sociais. Esses direitos e deveres são estabelecidos na Constituição do país. No caso, referem-se à cidadania brasileira. Os direitos e os deveres estão interligados, e o cumprimento de ambos, assim como o respeito à cidadania, contribuem para uma sociedade mais justa e equilibrada. A sociedade industrial, ao reunir os indivíduos em cidades para trabalhar nas fábricas, provocou e mobilizou lutas e ações para uma melhor qualidade de vida dos operários. “O trabalho ou a exploração do trabalho não era a única situação comum dos habitantes das cidades. Outros segmentos da população, ligados por situações peculiares difíceis, passaram a encontrar-se, a reunir-se e a buscar soluções para encaminhamento de reivindicações comuns” (Camargo, 1986, p. 54-55). Um dos exemplos que podemos citar foi a luta das mulheres operárias. Elas representavam parte da mão de obra fabril. As indústrias pagavam-lhes salários mais baixos em relação aos dos homens com a justificativa de que a população feminina não estava preparada para o trabalho. Embora o movimento de mulheres registre, historicamente, como sua primeira reivindicação, o direito do voto, até então exclusivo aos homens, a palavra de ordem que conferiu identidade ao movimento foi a luta pela igualdade de direito de acesso ao trabalho e de sua remuneração. Com o passar do tempo, as mulheres perceberam que a reivindicação da igualdade de direito ao trabalho, se isolada, era uma armadilha: na realidade, elas estavam reivindicando o direito a uma dupla jornada de trabalho, a profissional, à qual acediam, e a doméstica, que tradicionalmente lhes era legada [...] A mulher trabalhadora é prejudicada no seu tempo livre em relação ao homem (Camargo, 1986, p. 55). O movimento de mulheres, atualmente, tem na sua luta a igualdade e a justiça em relação ao homem, na totalidade de seus tempos sociais, seja em relação ao trabalho profissional, seja em relação ao direito ao lazer. Figura 20 – O rosto feminino Disponível em: https://shre.ink/UV8A. Acesso em: 30 out. 2023. 31 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA O movimento jovem também é caracterizado como irreversível na perspectiva social, cultural e política. A presença do jovem na luta pelo seu espaço na sociedade, desse modo, ainda é uma questão atual, pois é um movimento em constante construção, principalmente com relação ao direito ao lazer. Mesmo quando os jovens lutam por uma maior participação política ou na gestão de escolas e universidades, pode-se vislumbrar uma dimensão de lazer: no fundo eles exigem uma sociedade gerida segundo seus modelos de lazer, mais autêntica, menos autoritária, menos guiada pelo “a-vida-é-assim-mesmo” dos adultos, ditos responsáveis, e mais baseada na inventividade e no prazer extraídos dos modelos de prática convivial de lazer que eles, jovens, dominam (Camargo, 1986, p. 58). Um dos problemas encontrados em muitas cidades, sejam elas grandes, médias ou pequenas, é a falta de disponibilidade de ações e políticas de lazer para os jovens, principalmente a juventude das regiões periféricas de cidades brasileiras e internacionais, que cotidianamente é marginalizada e tratada de forma violenta (física e simbólica), não tendo acesso às mesmas oportunidades de outros jovens pertencentes a outras camadas sociais. Ao discutirmos a questão do lazer na juventude, é importante compreendermos os aspectos da identidade. A dimensão da cultura e consequentemente do lazer surge como espaço privilegiado de práticas e representações simbólicas capazes de demarcar a identidade juvenil por meio de diversas linguagens artísticas, como a música, a dança e outras expressões culturais. O incentivo e o acesso igualitário a elas possibilitam ao jovem se expressar e se inserir socialmente no mundo. Nesse sentido, é importante analisar as diferentes expressões culturais vivenciadas pelos grupos e estar atento a elas. A valorização da indústria cultural para o público jovem muitas vezes está centralizada no consumo, porém é importante destacar os movimentos de questionamento, que possibilitam a construção de novos espaços e novas formas de sociabilização e estímulo de atividades de valorização individual e coletiva. Outra faixa etária importante a ser destacada nas discussões sobre o direito ao lazer é a das pessoas idosas. Para Acosta e Pacheco (2013), o envelhecimento da população está articulado com diversas mudanças nas cidades ao longo do tempo, como o surgimento de espaços, serviços e atendimento voltados à população idosa. A introdução da aposentadoria, somada ao aumento da esperança de vida, possibilitou aos indivíduos mais velhos, já fora do mercado de trabalho, um maior tempo livre. As reivindicações surgiram no vislumbramento de vivências a serem aproveitadas, já que muitas pessoas idosas envelheceram gozando do uso pleno de sua capacidade física e psicológica. O envelhecimento da população já é uma realidade, e, logo, as atividades de lazer devem também se voltar para o atendimento dessa faixa etária. O peso demográfico no conjunto da população urbana propiciou condições de encontro, de intercâmbio e de associação com reivindicações, de início, 32 Unidade I ligadas a melhores condições financeiras de aposentadoria e até mesmo a uma nova oportunidade de trabalho, do direito a serem reconhecidos como indivíduos integrais, com o mesmo direito de decidirem sobre sua vida afetiva e sobre a forma como ocupam o tempo livre existencial de aposentadoria (Camargo, 1986, p. 60). As pessoas idosas representam os grupos de lazer, pois possibilitam novas modalidades de atividades intelectuais, manuais, artísticas e físicas para esse público não só envolvendo equipamentos, mas também ações que favorecem envelhecer com alegria e dignidade. Saiba mais Indicamos os dois filmes a seguir. O primeiro apresenta diferentes formas de expressão da infância e o segundo demonstra a velhice tanto em seus aspectos positivos quanto nos limitadores. AMOR. Direção: Michel Haneke. Áustria; França; Itália: Les Films du Losange, 2012. 127 min. CRIANÇAS invisíveis. Direção: Mehdi Charef; Emir Kusturica; Spike Lee; Kátia Lund; Jordan Scott; Ridley Scott; Stefano Veneruso; John Woo. França; Itália: MK Film Productions S.r.l., 2005. 124 min. Independentemente da faixa etária, é necessário considerar um conjunto de fatores ligado ao contexto cultural no qual os indivíduos estão inseridos. Os contextos culturais em que diferentes grupos sociais vivem e se relacionam são diversos, logo suas opções e atividades de lazer também o são. Nos centros urbanos? Nos bairros pobres? Para os empresários? Para os trabalhadores? Nas áreas rurais? Nos bairros ricos? Como é o lazer Figura 21 – Questionamentos sobre como é o lazer Como vimos representado na figura anterior, há diferentes fatores que podem determinar a prática do lazer, assim como os hábitos e costumes de lazer em diferentes grupos sociais devem ser compreendidos 33 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA e analisados.O que faz as pessoas irem ou não a um museu? Por que ir ou não a um baile funk? Por que muitas pessoas assistem à televisão ou passam seu tempo diante do computador em seu tempo livre? Crianças, homens, mulheres, jovens ou pessoas idosas: onde podem exercitar as suas atividades de lazer? É importante, além disso, lembrar que o lazer voltado para diferentes públicos se manifesta em diferentes tipos de espaço, questão que abordaremos na sequência. 2.2.1 A casa A residência é um equipamento de lazer. É o espaço doméstico. Além da comodidade, o lazer doméstico vem sendo desenvolvido não só pelo crescimento da indústria de entretenimento, mas também por produtos diferenciados oferecidos pelo serviço de TV a cabo, por jogos eletrônicos e também por espaços de lazer. O lazer no âmbito doméstico pode ser muito positivo no desenvolvimento de atividades como fazer trabalhos manuais, cultivar plantas e flores e tocar um instrumento musical. A deficiência dos serviços públicos voltados ao lazer, assim como a questão da segurança, incentiva a prática do lazer doméstico. Há muitas polêmicas em relação ao lazer doméstico: a primeira delas é com relação à qualidade das atividades desenvolvidas. O lazer doméstico seria menos rico do que o lazer obtido fora de casa? Figura 22 – O lazer doméstico Disponível em: https://shre.ink/Uxnk. Acesso em: 31 out. 2023. 2.2.2 Ruas e bares A rua é um espaço importante de sociabilização. Com a construção das cidades, as ruas surgiram para atender às necessidades de contemplação e de encontros. A invenção do automóvel e os poucos investimentos em transporte público de qualidade ameaçam a ocupação das ruas pelas pessoas cotidianamente nos grandes centros urbanos. Por exemplo, prioriza-se, em muitos centros urbanos, o carro, em vez do transporte público ou de outros meios de transporte menos poluentes, como as bicicletas. 34 Unidade I É importante incentivar a ocupação das ruas como um espaço nato para atividades de lazer. A rua proporciona a oportunidade de ver e ser visto, observar as paisagens naturais e as construções humanas, é um lugar propício para encontros. Em alguns municípios, aos finais de semana, a rua é fechada para a circulação de carros e aberta para as atividades de lazer, desde atividades esportivas e brincadeiras até atividades culturais como teatro de rua, feiras de artesanato e apresentações musicais ou de dança. Figura 23 – Pessoas andando na rua Disponível em: https://shre.ink/Uxzk. Acesso em: 31 out. 2023. Já os bares podem ser considerados estabelecimentos que não se limitam a comercializar produtos e serviços de bebidas e alimentação, pois se configuram como locais de encontro com o outro. Os roteiros de lazer nas cidades sempre os incluem em sua programação, não só pelo cardápio, mas também pelo ambiente, que favorece atividades lúdicas como jogos e música. Com a comercialização de bebidas alcoólicas, contudo, esses estabelecimentos frequentemente sofrem com os abusos cometidos por quem os usufrui. Os bares também são prejudicados, muitas vezes, por não colaborarem com a circulação das pessoas ou ainda pela poluição sonora e outros excessos e transtornos que podem comprometer as boas relações com a vizinhança. Apesar disso, contribuem com as atividades de socialização e descontração. Esses estabelecimentos podem evoluir, promovendo diversas atividades culturais, como exposições de arte e lançamentos de livros e álbuns musicais. Com relação ao melhor aproveitamento do espaço da cidade, a proibição de circulação de carros e a introdução de calçadões por parte do poder público, por exemplo, são medidas que podem favorecer os valores culturais e sociais da cidade. 35 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Figura 24 – O bar como local de encontro de pessoas Disponível em: https://shre.ink/Ux1D. Acesso em: 31 out. 2023. 2.2.3 Centros culturais São estabelecimentos que podem ser planejados e implantados para alcançar diferentes classes sociais. Os investimentos são ou deveriam ser voltados não só para a construção, como também para a manutenção e animação do espaço. Para isso, são necessárias políticas culturais que promovam programações de lazer e cultura que atendam às necessidades da população e, assim, que sejam por ela percebidas e usufruídas. As práticas culturais devem ser alinhadas ao público e anualmente distribuídas entre manutenção, reformas, reposição de materiais e divulgação. Os espaços devem ser introduzidos não só nas áreas centrais, mas também nas áreas periféricas, para que a população tenha acesso a eles. Figura 25 – Lazer em espaços culturais Disponível em: https://shre.ink/Ux1W. Acesso em: 31 out. 2023. 36 Unidade I 2.2.4 Praças e parques As áreas verdes não só são importantes para fins paisagísticos e para deixar a cidade mais bonita e agradável, mas também podem significar espaços de encontro e participação, bem como de benefícios à saúde, melhorando a qualidade do ar. Os parques e praças são espaços que incentivam atividades esportivas de baixo impacto, como caminhadas, e o exercício da brincadeira, para crianças. Contadores de histórias, rodas de capoeira, apresentações musicais, oficinas de educação ambiental, e saraus são elementos que podem valorizar o lazer nessas áreas. Figura 26 – Músicos tocando na praça Disponível em: https://shre.ink/UxzN. Acesso em: 31 out. 2023. Saiba mais O livro que indicamos a seguir apresenta uma série de estudos antropológicos sobre as diferentes práticas de lazer na cidade de São Paulo: MAGNANI, J. G.; TORRES, L. L. (org.). Na metrópole: textos de antropologia. São Paulo: Edusp, 2000. Procure, além disso, o filme a seguir, que aborda as relações e práticas de lazer de diferentes pessoas, apresentando fatores difíceis e limitadores de barreiras sociais: O GOSTO dos outros. Direção: Agnès Jaoui. França: Canal+, 2000. 112 min. 37 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA 3 HOMO FABER X HOMO LUDENS De acordo com Luiz Octávio de Camargo (1998), nós, seres humanos, somos sempre faber e ludens, mas não ao mesmo tempo. “Divertir-se trabalhando ou trabalhar divertindo-se é, em tese, o objetivo de todos, mas, na prática, uma exceção válida apenas para muito poucos em muito poucas circunstâncias” (Camargo, 1998, p. 22). Porém entender o faber e o ludens nos leva a compreender melhor as nossas relações tanto com o tempo do trabalho quanto com o tempo de lazer. 3.1 O homem que trabalha Figura 27 – Homem trabalhando Disponível em: https://shre.ink/UxAX. Acesso em: 31 out. 2023. Para Camargo (1998), como faber, a humanidade, em todas as épocas, teve de ser disciplinada, tensa, produtiva, bater metas, ações totalmente contrárias ao divertimento. Foi, assim, adquirindo gestos e postura para alcançar bom desempenho em suas atividades profissionais. Os gestos e as ações são mais contidos, tanto no jeito de falar quanto na forma de nos relacionarmos com os colegas. Existe uma rigidez na postura profissional em sua totalidade: na aparência pessoal, no vestuário, na etiqueta e nos comportamentos profissionais. O que é e o que não é permitido: o que o chefe, a empresa e os colegas pensarão de você? Há um esforço constante de construção do profissional ideal, que tenha uma imagem positiva perante a empresa e o mercado. As exigências do ambiente profissional fazem as pessoas manterem uma postura mais rígida. Enquanto se trabalha, deve-se estar atento aos fatos externos que possam interromper ou prejudicar seu trabalho. Nos dias atuais, com o enxugamento das empresas em relação ao número de empregados, há um acúmulo de funções: o trabalho que deveria ser feito por três, na maioria das vezes, é feito por uma única pessoa. Há sempre uma tarefa atrasada ou no limite do prazo de entrega. 38 Unidade I Aumentam, assim, as tarefas, as tensões e as doenças ocasionadas pelas atividades laborais. O trabalho é um dos elementos que mais interferem na qualidade de vida. Muitas reivindicações dos trabalhadores estão diretamente relacionadasa um ambiente de trabalho saudável. As doenças relacionadas ao trabalho já eram conhecidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) desde o início do século XX. Em nosso País, a Constituição Federal de 1988 moveu o assunto Saúde do Trabalhador do Campo do Direito do Trabalho para o Direito Sanitário, entendendo que a saúde não pode ser negociada, e sim garantida de forma integral. Infelizmente, na prática, são muitos os problemas relacionados à saúde do trabalhador. Grandes empresas preservam e aumentam seus lucros ainda nas condições precárias que são oferecidas ao trabalhador. Segundo dados da OIT, divulgados em 2013: • 2,02 milhões de pessoas morrem todo ano devido a enfermidades relacionadas com o trabalho. • 321 mil pessoas morrem a cada ano como consequência de acidentes no trabalho. • 160 milhões de pessoas sofrem de doenças não letais relacionadas com o trabalho. • 317 milhões de acidentes laborais não mortais ocorrem todo ano. • A cada 15 segundos, um trabalhador morre de acidentes ou doenças relacionadas com o trabalho. • A cada 15 segundos, 115 trabalhadores sofrem um acidente laboral. De acordo com o Ministério da Previdência Social, as doenças que mais causaram o afastamento do trabalho entre 2000 e 2011 foram: • dor nas costas; • joelhos machucados; • hérnia inguinal; • depressão; • mioma uterino; • varizes; • doença isquêmica do coração; • hemorragia no início da gravidez; • câncer. 39 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Além das predisposições, muitas vezes as doenças podem ser desencadeadas pelas más condições do ambiente de trabalho, o que vem forçando muitas empresas a repensar e mudar suas ações na prática quando se trata da saúde de seus trabalhadores. Saiba mais Sobre o papel do trabalho, leia: LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec, 2000. 3.2 O homem que se diverte Figura 28 – Passeio no parque Disponível em: https://shre.ink/UxIP. Acesso em: 31 out. 2023. O Homo ludens tem como característica o relaxamento, é contrário à rotina e à disciplina, apresenta uma receptividade a se divertir. Sobressai no ludens a espontaneidade na expressão de atividades. No momento de lazer, o crachá não vale. O que vale é o que temos de mais pessoal, a espontaneidade. Ser divertido, saber contar piadas, tocar um instrumento musical, cantar, no caso de pessoas mais extrovertidas, ou simplesmente saber deixar-se ficar degustando o momento presente, no caso de pessoas mais introspectivas: essas são as qualidades necessárias (Camargo, 1998, p. 23). 40 Unidade I A seguir incluímos músicas que apresentam a realidade da infância. Destaque Palavra Cantada – “Criança não trabalha” Lápis, caderno, chiclete, pião Sol, bicicleta, skate, calção Esconderijo, avião, correria, tambor, gritaria, jardim, confusão Bola, pelúcia, merenda, crayon Banho de rio, banho de mar, pula-sela, bombom Tanque de areia, gnomo, sereia, pirata, baleia, manteiga no pão Giz, merthiolate, band-aid, sabão Tênis, cadarço, almofada, colchão Quebra-cabeça, boneca, peteca, botão, pega-pega, papel, papelão Criança não trabalha, criança dá trabalho Criança não trabalha... Lápis, caderno, chiclete, pião Sol, bicicleta, skate, calção Esconderijo, avião, correria, tambor, gritaria, jardim, confusão Bola, pelúcia, merenda, crayon Banho de rio, banho de mar, pula-sela, bombom Tanque de areia, gnomo, sereia, pirata, baleia, manteiga no pão Fonte: Antunes e Tatit (2005). Palavra Cantada – “Agenda infantil” Segunda-feira tenho aula de inglês Na terça-feira curso de computação Na quarta-feira faço uma terapia Que me dá muita preguiça Não tenho problema não Na quinta-feira dia de ortodontista Na sexta-feira é minha recuperação Até no sábado acordar às sete horas Pra treinar na minha escola 41 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Capoeira e natação Eu já falei pra minha mãe milhões de vezes Meu Deus do céu eu não sou relógio não Eu sou criança e criança nessa idade Quer brincar bem à vontade Sem ter tanta obrigação Eu já falei mamãe mil vezes Além de tudo tem um monte de lição! Eu sou criança e criança nessa idade Quer brincar bem à vontade Sem ter tanta obrigação Fonte: Agenda... (2014). As músicas do grupo Palavra Cantada revelam um dos aspectos mais corriqueiros que se refletem na questão do tempo livre e na necessidade de brincar da criança na atualidade. Isso ocorre devido à competitividade. A criança é, cada vez mais cedo, apresentada ao Homo faber, seja na brincadeira, seja na noção de “dever” que vai assimilando, assim como, cada vez mais cedo, é apresentada à agenda de atividades. Além disso, em muitos lugares do mundo e do Brasil, crianças são exploradas cada vez mais cedo, trabalhando em condições precárias e insalubres, como ocorria na Revolução Industrial. O sistema educacional prepara desde muito novas as crianças, que depois se tornam jovens a se submeterem ao vestibular e ingressarem no mundo do trabalho. Não basta ir à escola: a sociedade do trabalho impôs e criou necessidades de ocupar o tempo do brincar com cursos extracurriculares como idiomas, informática, entre outras opções existentes. Adultos ou crianças, no decorrer da história, eram basicamente ludens. Conforme as transformações ocorridas na sociedade, com a sofisticação de objetos e aparatos comunicacionais, assim como com a mudança nos modos de produção, passaram a desenvolver o faber. Contudo, é preciso ser ludens. Afinal, o que buscamos na diversão? Para Camargo (1998), são quatro as grandes motivações para toda e qualquer diversão: • Aventura: é do ser humano a descoberta, a revelação do mistério. O livro, o filme, a partida de futebol, a festa são exemplos de como exercitamos a busca de aventura. Ao viajar, buscamos um novo lugar para conhecer, novos costumes, novas pessoas, novas formas de nos alimentar e de ser e estar no mundo. Somos também motivados pelo novo. A experiência lúdica da aventura tem como base a curiosidade, o desenvolvimento da inteligência abstrata e prática. • Competição: a palavra não significa necessariamente disputa com o outro, pois pode ser entendida como disputa contra si, ser melhor do que da última vez. O competir com o outro não significa aprender a esmagar o adversário. O esporte é o maior exemplo de como podemos praticar o perder e o ganhar na vida; ao estabelecer uma relação com o outro, podemos estabelecer desafios para nós mesmos. 42 Unidade I • Vertigem: refere-se à capacidade de se deixar levar, correr riscos: o escorregador, a montanha-russa, os jogos virtuais, a fascinação pela velocidade. • Fantasia: é o devaneio, o pensamento sem amarras, a imaginação que pode ser despertada nas artes plásticas, na literatura, no cinema, no teatro, na música. A capacidade de imaginar possibilita a oportunidade de ver o mundo e as situações de diferentes formas e ângulos. Podemos dizer que a mesma atividade de lazer pode atender a diferentes motivações, o que nos possibilita pensar e refletir sobre como o lazer é fundamental para o exercício do lúdico. Isso porque o lúdico é importante para nos fortalecer para enfrentarmos o cotidiano e os desafios do Homo faber. Retomando a discussão de como é importante e enriquecedor brincar na infância, assim como na juventude, na vida adulta e na melhor idade, reafirmamos que ter experiências lúdicas criativas por meio do lazer possibilita o exercício de viver socialmente e de fazer novas leituras do mundo. A diversão em nossa sociedade é baseada nas relações de consumo, como veremos mais adiante, e, por isso, pode se corromper facilmente e gerar problemas muitas vezes difíceis – até irreversíveis: do gosto pela competição pode nascer a violência; do gosto pela aventura, a dependência dos jogos de azar; do gosto pela vertigem, o uso compulsivo de drogas químicas e não químicas; da fantasia, a paranoia. Muitas vezes a organização econômica de nossa sociedade globalizada se utiliza dos mais diferentes subterfúgios e estratégias para inserir necessidades criadas a fim de promover o consumo.As formas concretas ou simbólicas de necessidade/estímulo permanente do consumo podem corromper o lúdico. Por exemplo, as propagandas de bebidas, refrigerantes, automóveis e brinquedos utilizam o lúdico para promover seus produtos pela diversão. Muitas vezes, o que é imposto, a mensagem, não é se divertir, mas sim consumir. 3.3 Integração do faber e do ludens A seguir veremos uma música sobre lazer. Destaque Arnaldo Antunes – “Se assim quiser” Acabou a hora do trabalho começou o tempo do lazer você vai ganhar o seu salário pra fazer o que quiser fazer O que você gosta e gostaria de estar fazendo noite e dia ler, andar, ir ao cinema, brincar com seu neném e até mesmo trabalhar também 43 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Quando quiser, se assim quiser se assim quiser, como quiser como quiser, quando quiser Ir de bicicleta ao mercado escolher um peixe pro jantar encontrar a namorada ou o namorado escolher alguém pra visitar Quando quiser, se assim quiser se assim quiser, como quiser como quiser, quando quiser Fonte: Antunes (2004). A música de Arnaldo Antunes apresenta o lazer a partir da sua livre vontade, elemento que caracteriza o lazer livre e desinteressado. Ainda assim menciona, em seu início, a relação que temos com o trabalho como forma de sobrevivência. A letra da canção menciona algo recorrente quando nos referimos ao mundo do trabalho, principalmente às vocações: pessoas trabalhando sem nenhuma motivação ou paixão. Como vimos, as doenças físicas e mentais revelam a falta de qualidade no trabalho e a falta de respeito ao trabalhador, caracterizando diversos tipos de abuso. Muitas pessoas aguardam ansiosamente o horário marcado do relógio para recomeçar a viver, assim como submetem a sua felicidade e seus sentimentos de realização ao salário recebido no final de todos os meses. Há uma frustração no mercado de trabalho, atividades são malrealizadas porque muitas pessoas não gostariam de exercer a profissão na qual atuam. A sociedade que foi construída tem na sua centralidade o trabalho. Ao ser apresentados a ele, muitas vezes muito novos, escolhemos uma profissão para seguir sem descobrir que temos não só uma, mas muitas vocações. Quantas pessoas não mudam radicalmente de profissão e buscam outras para se sentirem completas e realizadas? O que é importante considerar ao escolhemos a profissão para que possamos estabelecer uma convivência entre o faber e o ludens? É importante considerar três fatores: • gosto ou interesse; • aptidão; • disposição para enfrentar obstáculos. 44 Unidade I Embora a sociedade nos aponte o trabalho como atividade mais importante, não podemos nos esquecer de que o trabalho mais prazeroso do mundo não pode dar conta de toda a nossa necessidade existencial. É preciso pensar no trabalho, escolher e buscar a atividade com a qual mais nos identificamos, e não aquela que paga melhor. Também no não trabalho, ou seja, no lazer, é imperativo buscar atividades que nos favoreçam a satisfação. É preciso ser faber, mas também é necessário ser ludens para que possamos nos tornar melhores, embora inacabados. 4 LAZER E ÓCIO NA CONTEMPORANEIDADE: CONCEITOS, CONCEPÇÕES E SIGNIFICADOS Além de entender o conceito de lazer, outro aspecto discutido por pesquisadores de diferentes áreas é a questão do ócio. Como vimos, muitos fatores contribuíram para o aumento do tempo livre; contudo, atualmente, existe muito questionamento sobre como esse tempo está sendo aproveitado. Nesse sentido, retomam-se as discussões sobre o ócio. A palavra “ócio” vem do latim otium, que significa “ocupação prazerosa” e está associada à ideia de repouso, e ainda se confunde com a ideia de ociosidade. O tempo livre e o ócio são tomados, muitas vezes, como o mesmo fenômeno social, porém há diferenças a serem compreendidas, uma vez que os conceitos possuem naturezas diferentes. Para Aquino e Martins (2007), o tempo livre como o concebemos tem uma natureza cronológica que atingiu seu ápice após a Revolução Industrial. Há algumas implicações quanto ao tempo, de acordo com os autores: uma delas é a questão da liberdade tomada como um exercício temporal, e a segunda é o conceito de lazer baseado no tempo livre sob uma perspectiva objetiva. O ócio, já em seu conceito, traz uma abordagem que parte da experiência subjetiva. A vivência do ócio constitui uma experiência gratuita, necessária, prazerosa e integrante da forma de ser de cada pessoa, sendo a expressão de sua identidade. A vivência do ócio não depende do tempo da atividade em si, nem da condição econômica, como acontece com o lazer. No trabalho, por exemplo, podemos desenvolver a experiência do ócio. Há pessoas que encontram prazer no trabalho, engajam-se da mesma forma que encontram no ócio em suas atividades laborais uma forma de minimizar as pressões. Ainda segundo Aquino e Martins (2007), o ócio está relacionado ao sentido atribuído a quem vive, ou seja, está relacionado à subjetividade, ao modo pelo qual nos relacionamos com o mundo e as pessoas de forma particular. O ócio tem a sua importância social na perspectiva individual, no questionamento de cada um consigo mesmo em relação à vivência e à experiência do ócio, o que auxilia o autoconhecimento, a identificação, a recuperação do equilíbrio das decepções e frustações. Há uma série de funções que organizam a função do ócio: • Função psicológica: inclui as funções de desenvolvimento, diversão e descanso concebidas por Dumazedier (1974), que atendem parcialmente à compensação das perdas humanas, possibilitando o equilíbrio psicológico do indivíduo. 45 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA • Função social: está relacionada à integração social, em contraponto ao empobrecimento da comunicação interpessoal. • Função simbólica: o ócio oferece a percepção de identidade e um sentido de pertencimento, além da afirmação pessoal por meio da escolha das atividades diversionais. • Função terapêutica: oferece a possibilidade de melhorar a saúde física e mental. • Função econômica: compreende gastos pessoais e familiares com as atividades de ócio, assim como as suas implicações no sistema econômico. Infelizmente, o ócio, nas formas contemporâneas de divertimento e entretenimento, é dominado pelo consumo e muitas vezes possibilita, em vez de uma experiência enriquecedora, uma experiência alienada. O trabalho, o ritmo acelerado e o acúmulo de tarefas sufocam o sujeito, da mesma forma que restringem, muitas vezes, a experiência do ócio. Para Cuenca (2003) a função econômica do ócio é ambígua, pois os gastos alimentam o sistema, mas as práticas não são amparadas pela política econômica. O acesso ao ócio passa pelo consumo, que não expressa experiências significativas. Ainda com o autor, o ócio não pode ser atribuído ao tempo, pois implica a liberdade de escolha. O tempo e a atividade em si não podem determinar uma experiência do ócio. Por exemplo, a pessoa pode ter o tempo livre e viajar, mas a viagem pode ou não ser uma experiência de ócio, dependendo da experiência humanista relacionada com os valores e o sentido da vida para cada um. Por isso é algo subjetivo: a experiência do ócio depende da formação de cada indivíduo. 4.1 O ócio e as experiências subjetivas A identificação da relação entre ócio e tempo livre é resultado dos estudos sociológicos difundidos desde a segunda metade do século XX. Porém, estudiosos de outras áreas, como a Psicologia, afirmam que só o tempo livre não determina uma experiência de ócio. Assim, embora haja uma relação entre ócio e tempo livre, a vivência do ócio depende do exercício humano de vontade, autorreconhecimento e identidade. O pensamento do ócio humanista surge em meados dos anos 1990, como aconteceu no World Leisure and Recreation Association, em 1998. O ócio como experiência humana está vinculado a valores e significados profundos que provocam transformações na vida das pessoas. Ainda há um caminho para se trilhar: o ócio cada vez mais é necessário em um contexto cada vez mais acelerado. O lazere o ócio são capazes de substituir a ordem cronológica do tempo e compreender o sentido da sua duração, para que nós, seres humanos, possamos expressar nossas subjetividades. 46 Unidade I Saiba mais Entre no site do Laboratório de Estudos sobre Ócio, Trabalho e Tempo Livre: Disponível em: http://www.otium.net.br/. Acesso em: 30 out. 2023. E no da Associação Ibero-Americana de Estudos de Ócio: Disponível em: http://www.asociacionotium.org/. Acesso em: 30 out. 2023. 4.2 A sociedade do hiperconsumo A Revolução Industrial não só promoveu a conquista do tempo livre para a vivência do lazer, mas também construiu uma sociedade de consumo. De acordo com Lipovetsky (2007), ela surgiu pela expansão de mercados e pelo consumo de massa, tendo como a sofisticação dos meios de comunicação e transportes elementos fundamentais para seu crescimento – pois eles favoreciam custos reduzidos, aumento da produtividade e circulação do produto até o consumidor. Em uma segunda fase, a partir da segunda metade do século XX, expandiu-se a democratização do consumo de bens duradouros, e a sociedade começou a consumir ideias e modos de vida que até então pertenciam apenas às classes mais abastadas. Realizando o “milagre do consumo”, a fase II dá origem a um poder de compra discriminatório em camadas sociais cada vez mais alargadas, que podem aspirar, confiantes, ao melhoramento constante dos seus recursos; difundiu o crédito e permitiu à maioria das pessoas libertarem-se da urgência das necessidades imediatas. Pela primeira vez, as massas ascendem a uma procura material mais psicologizada e mais individualizada, a um modo de vida (bens duradouros, atividades de lazer, férias, moda) até então exclusivo das elites sociais (Lipovetsky, 2007, p. 29). Há, portanto, uma mobilização da sociedade para criar uma realidade sinônimo da felicidade cercada de conforto e facilidade. Essa mobilização da busca desesperada da felicidade se reflete nos hábitos de consumo e do lazer; “há também todo um ambiente de estimulação dos desejos, a euforia publicitária, a imagem luxuriante de férias, a sexualização dos símbolos e dos corpos” (Lipovetsky, 2007, p. 30-31). A terceira fase do capitalismo já é alçada à sociedade do hiperconsumo, na qual consumidores tornam-se mais exigentes em relação à qualidade de vida: Queremos objetos para viver, mais do que objetos para exibir; compramos isto ou aquilo não tanto para ostentar, para evidenciar uma posição social, 47 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA mas para ir ao encontro de satisfações emocionais e corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e recreativas Lipovetsky, 2007, p. 7-8). As sociedades de consumo surgem devido a um interminável sistema de estímulos e à criação de novas necessidades que prometem a felicidade, assim como a criação de um sistema de signos gerados pelas marcas revela a realização dos seus próprios desejos de prazer, felicidade e êxtase. Há uma veiculação das marcas a imagens, conceitos e valores, proporcionando relações afetivas emocionais entre produto e consumidor, para trazer experiências mais prazerosas. Lipovetsky (2007) ressalta que a nova ordem cultural da contemporaneidade valoriza os laços emocionais e sentimentos do homem, ou seja, além do consumo material, há um consumo do simbólico, tendo como justificativa a resolução de temores, dilemas, frustrações e ansiedades, o que se evidencia na produção e no consumo de valores efêmeros que passam do campo material para o das subjetividades. Nessa perspectiva, destacam-se também as contribuições de Bauman (2009) na obra A arte da vida, em que faz um contraponto entre a vida, a arte e a busca da felicidade na sociedade contemporânea, caracterizada pelas constantes transformações que fazem o sujeito se flexibilizar, ter uma certa capacidade de descartar uma ideia por outra, para dar sentido ao mundo e a sua existência. O autor critica o modelo societário voltado para o consumo de diferentes tipos de mercadorias. Da mesma forma, apresenta a “frustração de não poder consumir” ou a “competitividade com outro” (sobre “quem é mais feliz”) como manifestações de uma sociedade de consumo que faz da felicidade um bem a ser consumido, desde que haja condições econômicas para fazê-lo. O autor afirma ainda que isso determina a inclusão ou a exclusão de pessoas, revelando uma concepção perversa da felicidade. As redes sociais, como o Facebook e o Instagram, evidenciam não só o compartilhamento da experiência, mas também uma concorrência explícita sobre quem é mais feliz. Para Bauman (2009, p. 36), “atingir a felicidade significa a aquisição de coisas que outras pessoas não têm chance nem perspectiva de adquirir. A felicidade exige estar à frente dos competidores”. Ainda segundo o autor: Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, os seres humanos tendem a ser treinados, preparados, exortados, persuadidos e tentando abandonar as maneiras que consideram corretas e adequadas, dar as costas àquilo que prezavam e que imaginavam que os fazia felizes e tornar-se diferentes do que são (Bauman, 2009, p. 68). Bauman (2009) acrescenta que, para alcançar a felicidade, o artista da vida não deve seguir a lógica do mercado, pois amor, carinho e solidariedade não se compram, uma vez que a sua busca não depende de receitas ou fórmulas mágicas ou do atendimento a um determinado padrão instituído por forças hegemônicas. É necessário alcançar nas experiências particulares soluções para o coletivo, estabelecendo, dessa forma, uma ligação com o outro. O lazer e o ócio nessa perspectiva são atividades extremamente benéficas e transformadoras. 48 Unidade I Outros aspectos relevantes em relação à felicidade são a globalização e a identidade. Hall (2011) afirma que a globalização leva ao fortalecimento ou à produção de novas identidades, assim como atribui ao sujeito pós-moderno uma identidade mais fluida com possibilidades de múltiplos pertencimentos. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma celebração móvel; formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais, que nos rodeiam [...] à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante, cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente (Hall, 2011, p. 12-13). O caráter móvel das identidades reflete o efêmero. Desse modo, a identidade do sujeito se adapta e se molda às constantes transformações de um determinado ideal de felicidade. Nesse sentido, o consumo encarrega-se de uma nova função identitária. Não se vendem apenas produtos, mas sim estilos de vida. O sujeito, assim, decide qual identidade “vestirá” hoje, amanhã ou depois. Na incessante busca da felicidade, o homem contemporâneo vive o hedonismo, não estabelece limites e quer conquistá-la a qualquer custo. É nesse contexto de questionamentos das consequências da globalização e do modo de produção capitalista que surge a economia da experiência, com a divulgação de dois trabalhos que tiveram grande impacto nos negócios: o livro The dream society (1999), do dinamarquês Rolf Jensen, e o estudo The experience economy (1999), dos americanos James Gilmore e Joseph Pine. Observação O trabalho de Rolf Jensen (1999), a partir da Sociedade dos Sonhos, introduziu novas necessidades e tendências de mercado, nas quais o componente emocional assumiria um papel-chave no consumo de bens e serviços, pautados por acontecimentos exclusivos e inesquecíveis. Já o trabalho de James Gilmore e Joseph Pine (1999) é um complexo estudo sobre as tendências de vida e consumo por meio da “humanização da demanda” a partir do “mundo das experiências”. A partir da economia da experiência, os negócios do lazer passariam a fundamentarsuas atividades nos locais onde estão inseridos, a partir da ideia de personalização, ou “sensação de exclusividade”, deixando de ser uma atividade padronizada e passando a agregar valores simbólicos e interesses especiais. A prática do lazer e do ócio possibilita a vivência de experiências positivas; porém, muitas vezes, as propostas das atividades de lazer são comprometidas quando são transformadas em dispositivos meramente consumistas, sem oferecer algo significativo e benéfico às pessoas. 49 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA A seguir incluiremos uma música sobre a felicidade: Destaque Marcelo Jeneci – “Felicidade” Haverá um dia em que você não haverá de ser feliz Sentirá o ar sem se mexer Sem desejar como antes sempre quis Você vai rir, sem perceber Felicidade é só questão de ser Quando chover, deixar molhar Pra receber o sol quando voltar Lembrará os dias que você deixou passar sem ver a luz Se chorar, chorar é vão porque os dias vão pra nunca mais Melhor viver, meu bem Pois há um lugar em que o sol brilha pra você Chorar, sorrir também e depois dançar Na chuva quando a chuva vem Melhor viver, meu bem Pois há um lugar em que o sol brilha pra você Chorar, sorrir também e dançar Dançar na chuva quando a chuva vem Tem vez que as coisas pesam mais Do que a gente acha que pode aguentar Nessa hora fique firme Pois tudo isso logo vai passar Você vai rir, sem perceber Felicidade é só questão de ser Quando chover, deixar molhar Pra receber o sol quando voltar Melhor viver, meu bem Pois há um lugar em que o sol brilha pra você Chorar, sorrir também e depois dançar Na chuva quando a chuva vem 50 Unidade I Melhor viver, meu bem Pois há um lugar em que o sol brilha pra você Chorar, sorrir também e dançar Dançar na chuva quando a chuva vem Dançar na chuva quando a chuva vem Dançar na chuva quando a chuva Dançar na chuva quando a chuva vem Fonte: Jeneci e César (2010). Questionamos a qualidade das atividades de lazer e as possibilidades que são dadas para experimentar o ócio: • Até que ponto são edificantes? • O que as pessoas trazem para as suas vidas quando assistem a um filme no cinema ou a uma peça teatral? • Qual a contribuição das viagens para o repertório cultural das pessoas? • Há um enriquecimento ou um empobrecimento das experiências de lazer e do ócio? • As sociedades de hiperconsumo integram ou segregam as pessoas quando se trata do lazer? • É preciso ter para ser feliz? Não pretendemos fechar o debate, mas provocar a observação, a reflexão e o pensamento sobre as práticas do lazer e do ócio em nossa sociedade. Ao conjugarmos o ócio ao lazer como experiência social fora das amarras do hiperconsumo, proporcionamos atividades verdadeiras, autênticas e positivas na construção de pessoas e de uma sociedade melhor e mais humana. 51 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA Resumo Nesta unidade, vimos que entender as relações temporais é fundamental para compreender o conceito de lazer, entendido como um conjunto de atividades que podem ser feitas de forma livre e desinteressada. O lazer estabelece três funções importantes, como vimos: a função de descanso, de divertimento e de desenvolvimento. Essas funções são caracterizadas pela coexistência. O lazer se relaciona com a questão do tempo livre, que pode ser classificado como: tempo livre após o trabalho, tempo livre de final de semana/feriado e tempo livre de férias. Uma das formas de compreender o tempo disponível que temos voltado para o lazer é o orçamento-tempo. Além disso, a prática do lazer pode ser desenvolvida a partir de diferentes ações, como: praticar, assistir, estudar; fazer atividades físicas, manuais, intelectuais, associativas e turísticas. De acordo com a trajetória de sua evolução, a sociedade foi se desenvolvendo a partir de uma ideia de trabalho, determinada por vários acontecimentos, dentre eles a Revolução Industrial, que possibilitou o questionamento do tempo livre para uma melhor condição de vida aos trabalhadores. Surgiram, assim, marcos regulatórios para sensibilizar governos de vários países sobre a importância do lazer. A temática também passou a fazer parte da pauta para reivindicações de diferentes públicos, como as crianças, as mulheres, os jovens e as pessoas idosas. Independentemente do grupo social, o lazer pode ser manifestado em diferentes espaços, tais como a casa, as ruas, os bares, os centros culturais, as praças e os parques. Conforme Camargo (1998), nós precisamos ser ludens e faber, pois o trabalho, por mais prazeroso que seja, não pode ocupar toda a nossa necessidade existencial. É preciso pensar e agir no não trabalho, permitir que o ludens exista a partir das atividades de lazer. Por fim, o ócio pode ser entendido como uma experiência subjetiva e está associado ao sentido atribuído a quem e ao que se vive. A experiência do ócio nos auxilia a nos conhecer e identificar, a recuperar o equilíbrio e lidar com as frustrações a partir de suas funções (psicológica, social, simbólica, terapêutica e econômica). Porém o ócio é constantemente ameaçado pelo consumo, que pode fazer tanto do lazer quanto do ócio atividades alienantes e não edificantes. O ideal é, entretanto, que ele fortaleça o sujeito tanto no âmbito individual quanto no coletivo. 52 Unidade I Exercícios Questão 1. (Enade 2004, adaptada) Milton Santos, ao se referir às relações entre o lazer e o trabalho no mundo atual, comenta que: “As pessoas não se divertem, são objetos de diversão. É preciso resgatar o lazer criativo e popular, que gera solidariedade e trabalho [...]. A diversão é produzida, reproduzida, e as pessoas são convocadas a consumi-la. Houve uma domesticação do gosto, impondo ou reforçando imagens de um mundo ou do outro. Esse ‘lazer industrializado’ faz com que as pessoas não vejam o mundo real, mas o mundo como dizem que é.” Com base no texto anterior, propor uma prática que concorde com essa reflexão significa: I – Tornar obrigatórias as atividades esportivas e/ou de ginástica laboral dentro das empresas de indústria e comércio. II – Propor políticas públicas para promoção do lazer em suas múltiplas possibilidades (autonomia, instalações, tempo livre). III – Racionalizar o custo de produtos de entretenimento e lazer para que a população possa consumi-los. IV – Possibilitar a criação de atividades para promoção de práticas culturais regionais. Assinale a afirmativa correta: A) Somente as afirmações I e II estão corretas. B) Somente as afirmações I e IV estão corretas. C) Somente as afirmações II e III estão corretas. D) Somente as afirmações II e IV estão corretas. E) Somente as afirmações III e IV estão corretas. Resposta correta: alternativa D. Análise das afirmativas I – Afirmação incorreta. Justificativa: a afirmativa refere-se à obrigatoriedade das atividades esportivas. A obrigatoriedade da participação nas atividades fere o estatuto do trabalho, que não prevê em nenhuma lei a obrigatoriedade de ações que não fazem parte das atividades de trabalho. 53 EDUCAÇÃO FÍSICA INTEGRADA II – Afirmação correta. Justificativa: a afirmativa refere-se às ações de conscientização do trabalhador nas suas diferentes esferas. III – Afirmação incorreta. Justificativa: a afirmativa refere-se na redução do lazer. Este fato diminuiria a adesão a esta prática. IV – Afirmação correta. Justificativa: a afirmativa refere-se à criação de atividades culturais que possibilitariam a promoção da saúde. Questão 2. (Enade 2004, adaptada) A partir dos dados da “Pesquisa sobre Padrões de Vida: 1996-1997” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Monteiro et al. (2003) mostraram a prevalência de atividade física (realização de pelo menos 30 minutos em um dia na semana) no tempo de lazer, de acordo com variáveis demográficas e socioeconômicas. A tabela apresenta os resultados proporcionais relativos a essas variáveis. Tabela 1 – Distribuição percentual de prevalência de atividade física pelo menos uma vez na semana VariáveisHomens (n=4.899) % Mulheres (n=5.447) % Idade 20-39 25,3* 8,5 40-59 10,6 8,4 Acima de 60 8,7 6,8 Região Nordeste 19,0* 5,5 Sudeste 17,7 9,8 Local da residência Urbano 19,4 9,3 Rural 13,4 3,1 Renda familiar Primeiro quartil 12,6 1,3* Segundo quartil 15,2 3,3 Terceiro quartil 17,0 6,4 Quarto quartil 28,2 21,8 Educação Primeiro quartil 8,3* 1,3* Segundo quartil 12,7 6,5 Terceiro quartil 21,5 7,2 Quarto quartil 31,5 18,0 * p<0,05 Adaptada de: Monteiro et al. (2003). 54 Unidade I A partir desses dados e considerando as características da população brasileira, conclui-se que apresentam níveis mais baixos de prática regular de atividade física: A) Os indivíduos de alta renda e alta escolaridade, possivelmente por não gostarem de fazer exercícios físicos. B) Os indivíduos de baixa renda e baixa escolaridade, possivelmente por não se preocuparem com a saúde. C) Os indivíduos de baixa renda e baixa escolaridade, possivelmente por se encontrarem mais vulneráveis e, por isso, não conseguirem se engajar em programas de exercícios físicos. D) Os indivíduos de baixa renda, independente de terem ou não baixa escolaridade, possivelmente pela falta de disposição para a atividade física. E) Os habitantes do campo, possivelmente por já serem obrigados a fazer exercícios físicos em seu trabalho. Resposta correta: alternativa C. Análise das afirmativas A) Alternativa incorreta. Justificativa: os indivíduos de alta renda e alta escolaridade são os que mais fazem exercícios físicos. B) Alternativa incorreta. Justificativa: os indivíduos de baixa renda e baixa escolaridade provavelmente não têm acesso ao conhecimento adequado sobre o exercício físico e a saúde. C) Alternativa correta. Justificativa: os indivíduos de baixa renda e baixa escolaridade possivelmente são os mais vulneráveis e com menos informações e, por isso, não conseguem se engajar em programas de exercícios físicos. D) Alternativa incorreta. Justificativa: os indivíduos de baixa renda são os mais vulneráveis e com menos informações e, por isso, não conseguem se engajar em programas de exercícios físicos (lembrando que a baixa renda está associada à baixa escolaridade). E) Alternativa incorreta. Justificativa: os habitantes do campo, provavelmente fazem menos exercícios por terem menos acesso à informação.