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Cognição social refere -se aos proces- sos cognitivos por meio dos quais as pessoas compreendem e explicam as outras pessoas e a si mesmas. Essa compreensão ocorre de forma instantânea, quase automática, mas também pode envolver considerações e aná- lises detalhadas e lentas. Quando considera- mos a complexidade das pessoas, a primeira característica que chama a atenção na cogni- ção social é a rapidez com a qual compreen- demos e julgamos os outros. Essa rapidez de julgamento tem seu preço: embora sejamos bons avaliadores em geral, também comete- mos inúmeros erros quando julgamos o que são os outros e o que somos nós. Talvez o estudo da cognição social possa ajudar -nos a diminuir esses erros melhorando nosso autoconhecimento e nossa capacidade per- ceptiva e interpretativa dos outros. Plano do caPítulo Este capítulo começa pela definição e evo- lução da inteligência social humana e intro- dução aos componentes básicos (schemas e atribuições) dos processos da cognição social. A inteligência social humana surgiu junto com o aumento do número de mem- bros dos primeiros grupos de hominídeos. Os humanos desenvolveram “teorias da mente” para que pudessem julgar os com- portamentos dos outros, especialmente os comportamentos de reciprocidade. Os schemas dizem respeito aos conteúdos (es- truturas de conhecimentos armazenados na memória) de nossa cognição social. As atri- buições são respostas às indagações das cau- sas dos comportamentos que observamos e tentamos compreender. Na segunda parte do capítulo, analisa- remos os diferentes processos da cognição social: atenção, memória e inferência. Cada um desses componentes é analisado em ou- tras áreas da psicologia, tais como a psicolo- gia cognitiva, mas também são, com ajustes e adaptações, fundamentais para nossa au- tocompreensão e para nossa compreensão dos outros. cognição social: coMPreenden do os outros De uma forma direta e simples, a cognição social pode ser definida como o pensar do indivíduo a respeito de si próprio e dos ou- tros. Entretanto, embora a ênfase inicial tenha sido no pensar (cognição), os psicó- logos sociais também procuram associar sentimentos e comportamentos à cognição social. O estudo das relações entre nossos pensamentos a respeito dos outros e de nos- sos sentimentos, avaliações, emoções e com- portamentos deu origem à distinção entre a “cognição quente” versus “cognição fria”, bem como à visão pragmática que relaciona a cognição ao comportamento: as ações são causadas pelos processos mentais envolvi- dos no pensamento. 4 cOGniçãO sOciaL bartholomeu t. tróccoli INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce 80 tOrres, neiva & cOLs. Pensar sobre os outros é a atividade central de nossas vidas. Todos nós somos psicólogos amadores, pois estamos constan- temente explicando nossas ações e as ações dos outros. Quando, por exemplo, alguém nos agride verbalmente em resposta a uma observação qualquer que acabamos de fazer, entendemos imediatamente que essa pessoa “pode ter se sentido ofendida ou ameaçada pela minha posição”. Estamos apenas reco- nhecendo que o outro possui uma crença (acredita que tenho alguma intenção) e um desejo (quer evitar algo que considera nega- tivo). A explicação das ações como resulta- dos das crenças e desejos é o que define a chamada “psicologia senso comum” ou “psi- cologia leiga”. A psicologia leiga é produto do perío- do formativo da espécie humana, período que começou depois da separação da linha- gem humana da linhagem dos chipanzés há cerca de 6 milhões de anos1. Ambientes diferentes colocam problemas adaptativos diferentes, exigindo diferentes adaptações. Para compreender a evolução da mente hu- mana, o ambiente social da espécie é mais importante do que o ambiente físico. Como os outros primatas, nossos ancestrais viviam inicialmente em pequenos grupos – mas que foram ficando maiores com as consequentes estruturas sociais cada vez mais complexas –, nos quais as questões colocadas pelas interações eram tão importantes quanto a sobrevivência aos predadores. Quais os pro- blemas adaptativos enfrentados por nossos ancestrais? Vários autores (p. ex., Evans e Zarate, 1999; Buss, 2005) sugerem os se- guintes: • Evitar predadores • Achar a comida certa • Formar alianças e amizades • Ajudar crianças e parentes • Entender a mente dos outros • Comunicar ‑se com os outros • Selecionar parceiros sexuais Todos esses problemas colocaram obstáculos cruciais para a sobrevivência de nossa espécie, e o modelo predominante na psicologia evolucionista atual defende que a seleção natural provocou o surgimento de módulos mentais responsáveis pela supera- ção desses obstáculos (Cosmides e Tooby, 1992; Buss, 2005). O modelo da mente modular propõe que a mente é composta de vários módulos que se comunicam e in- teragem como uma estrutura inata que se desenvolveu naturalmente e de forma se- melhante aos órgãos biológicos. Para a psi- cologia evolucionista, os diversos módulos mentais são adaptações que surgiram para resolver problemas adaptativos, permitindo a sobrevivência e a reprodução de nossa es- pécie. Alguns módulos surgiram já nos an- cestrais de nossos ancestrais e são comparti- lhados com outros animais; outros são bem mais recentes e resultaram de adaptações a ambientes radicalmente diferentes dos ambientes de outras espécies. De qualquer maneira, os módulos não param de evoluir e todos foram se modificando durante o pe- ríodo formativo da espécie humana. Os problemas colocados pelo ambien- te social foram inicialmente compartilhados pelos humanos assim como por todos os ou- tros primatas. A luta por recursos escassos poderia ser enfrentada com o surgimento de coalizões formadas por dois ou três mem- bros da espécie. No entanto, após a sepa- ração de nossa linhagem da linhagem dos chipanzés, o tamanho dos grupos humanos foi aumentando cada vez mais, criando um valor também cada vez maior para a estra- tégia de formação de alianças e coalizões. A associação com outros em busca de for- mação de amizades passou a ser tão im- portante quanto saber escolher a comida certa ou possuir a habilidade para detectar predadores. Mas a formação de alianças é uma tarefa difícil, porque envolve questões de altruísmo recíproco: a troca de favores só funciona se forem observadas regras do tipo “ajudo você agora e você me ajuda depois”. Existe sempre o risco de que um membro da aliança fique com os benefícios sem contri- buir com nenhum dos custos envolvidos. O problema da não reciprocidade é tão grave que a espécie que não desenvolver mecanismos para enfrentá -lo não sobrevive. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce rayan Realce PsicOLOGia sOciaL: PrinciPais temas e vertentes 81 A questão é simples: o membro da espécie que não colabora com o pacto do altruísmo recíproco tem mais chances de sobreviver e reproduzir do que os que são facilmente enganados. Genes que favorecem esse tipo de comportamento vão ficar cada vez mais frequentes no pool genético da espécie e, eventualmente, todos serão egoístas e não altruístas. Como ninguém mais vai ajudar ninguém, as alianças se desfazem, ficando impossível viver em grupos. Não surpreende, portanto, que todas as espécies que vivem em grupos descobri- ram mecanismos para enfrentar a questão dos membros egoístas e aproveitadores. Ao analisar as soluções encontradas por diver- sas espécies, Axelrod propôs, na década de 1980 (p. ex., Axelrod, 1984), a existência de três condições, que, quando implemen- tadas, neutralizam o problema dos apro- veitadores: (1) organismos encontram os mesmos organismos repetidas vezes; (2) organismos podem reconhecer aqueles que já encontraram antes,diferenciando -os dos que são totalmente estranhos; e (3) orga- nismos possuem memória suficiente para lembrar de como aqueles que já encontra- ram os trataram nesses encontros prévios. Por que a existência dessas três condições elimina o risco do altruísmo não correspon- dido? Porque os aproveitadores podem ser punidos e os cooperadores podem ser re- compensados. Quem se recusou a retornar os favores pode ser punido com a expulsão do grupo ou com a recusa de qualquer ajuda posterior. Quem cooperou e retribuiu pode ser recompensado com ajuda contínua na hora da necessidade. Todas as três condições foram surgindo em nossos ancestrais hominídeos ao longo de seu período formativo. A interação contí- nua entre eles demonstrava que a existência desses grupos só era possível porque a evo- lução tinha projetado tanto módulos sofisti- cados de reconhecimento facial quanto uma boa memória para interações sociais. Todos nós somos extremamente sensíveis ao altru- ísmo recíproco e mantemos uma espécie de “contabilidade social” para cada conhecido ou amigo. Se nossos registros indicam que alguém tem feito menos bem por nós (ou nossos amigos de alianças cooperativas) do que o fazemos por ele, então, na próxima vez que houver uma solicitação de ajuda, nos sentiremos bem menos inclinados – ou mesmo nos recusaremos – a ajudar. Essa contabilidade social também envolve me- canismos mentais complexos, porque exige que, de alguma maneira, sejam atribuídos diferentes valores para diferentes ações. Quando uma pessoa doa seu bem para outra que está necessitada, os valores associados a essa ação de cooperação e a consequente retribuição vão depender de outros fatores contextuais. Neste caso, a contabilidade so- cial levará em conta, por exemplo, a situa- ção econômica de quem fez a doação ou empréstimo: a bondade de uma pessoa rica é valorizada de uma forma bem diferente da bondade de quem tem muito pouco e faz um grande sacrifício em favor do outro. O valor da ação também vai depender do custo para o doador e do benefício para o receptor da ação, mas os custos e benefícios de qualquer ato de bondade não podem ser fixados pre- viamente, pois dependem do contexto no qual ocorrem2. Esse é o ponto principal para a apre- sentação da cognição social. Nós humanos desenvolvemos sistemas sociais complexos que só podem funcionar – no sentido do sucesso reprodutivo e da sobrevivência da espécie – se alicerçados em sistemas cogni- tivos igualmente complexos que se manifes- tam em nossa inteligência social. cresciMento dos gruPos HuManos e o surgiMento da inteligência social No período entre 6 milhões a 150 mil anos atrás, o tamanho médio dos grupos hominí- deos saltou de cerca de 50 para 150 mem- bros. Como já abordamos anteriormente, à medida que os grupos foram aumentando, vários módulos dedicados às trocas sociais foram evoluindo, favorecendo a formação de alianças estáveis que mantiveram os gru- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 82 tOrres, neiva & cOLs. pos sociais coesos (o que também pode ser observado nos vários tipos de primatas). No caso dos humanos, entretanto, a evolução fez surgir um módulo bastante complexo e sofisticado: o “módulo de leitura da mente”, isto é, o módulo mental que permitiu que fizéssemos suposições ou inferências sobre o que as outras pessoas estão pensando, tendo por base suas ações, palavras e comporta- mentos3. Grupos maiores exigem mais capa- cidade de memória para acompanhar os comportamentos dos outros, bem como capacidades de raciocínio social bem mais sofisticadas, que possibilitem manter equi- líbrios delicados entre lealdades e amiza- des conflitantes. Nesse ponto, já estamos considerando estratégias e jogos políticos bastante sofisticados, nos quais mentiras, promessas, jogos de cena e até mesmo sin- ceridade e franqueza, ajudam -nos a manter nossos amigos e a enganar nossos inimigos. Aos poucos, surgem os psicólogos amadores armados com uma “teoria da mente”: uma teoria sobre como a mente humana funcio- na. O principal axioma dessa teoria afirma que as ações são causadas por processos mentais, tais como crenças e desejos. A explicação do surgimento da teoria da mente dentro de uma perspectiva evo- lucionista de adaptação à seleção natural e sexual implica que a psicologia leiga não é uma invenção cultural. Ela é uma parte inata, herdada, da mente humana, que se desenvolve nos primeiros anos de vida até estar completa por volta dos 4 anos e meio. Nessa idade, a criança já consegue passar nos “testes de falsa crença”: Uma psicóloga apresenta dois bonecos à criança. Os bonecos, chamados Sally e Ana, estão em um quarto de uma casa de brinquedo, junto de uma cama onde há almofadas. Primeiro, a criança observa Sally colocar alguns doces debaixo de uma almofada para logo em seguida sair do quarto. Enquanto Sally está fora, Ana tira os doces debaixo da almofada e os coloca em seu bolso. Quando Sally volta ao quarto, a psicóloga pergunta à criança “Onde Sally pensa que os doces estão?”. Antes dos 4 anos e meio, a criança respon- de “no bolso da Ana” o que é uma resposta típica de quem ainda não desenvolveu uma teoria da mente. A criança não tem a noção de que os outros podem ter crenças diferentes de suas próprias crenças. Ela acha que todas as outras pessoas acredi- tam no que ela acredita. E ela acredita no que ela viu: Ana colocou os doces no bol- so. Portanto, Sally também tem a mesma crença. Após os 4 anos e meio, a resposta muda radicalmente: “Sally acredita que os doces estão debaixo da almofada”. Com o surgimento da teoria da mente, a criança já compreende que outras pesso- as podem manter crenças que são diferen- tes das suas e que também podem manter crenças que são falsas. Só então a criança pode tentar manipular outras pessoas por meio da indução de falsas crenças, isto é, só então a criança aprende a mentir. E sem a capacidade para mentir, não é possível jogar os jogos políticos necessários para a vida em grupos sociais. linguageM e altruísMo recíProco Nossos ancestrais adquiriram a capacidade para usar linguagens complexas e sofisti- cadas antes de deixar a África há cerca de 100 mil anos. Na década de 1950, Noam Chomsky demonstrou que seria impossível para as crianças aprenderem uma língua de forma tão rápida apenas com os estímulos dados pelos pais e pelo ambiente cultural. A criança só aprende uma língua porque ela nasce pré -programada para este tipo de aprendizagem. Por que então nossos ances- trais desenvolveram mais essa capacidade inata? Qual o problema adaptativo supera- do com o uso da linguagem? A teoria mais comum sugeria que a lin- guagem é um sistema de comunicação que evoluiu para ajudar nossos ancestrais na caça e na defesa contra os predadores. De acordo com essa teoria, a função da linguagem era a de troca de informações sobre o ambiente INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS PsicOLOGia sOciaL: PrinciPais temas e vertentes 83 físico e ecológico, uma vez que sons são bem mais eficazes do que sinais visuais na escuri- dão da noite e através de longas distâncias. Essa teoria, entretanto, foi contestada por Robin Dunbar (2004), quando propôs que a função básica da linguagem é a troca de informações sobre o ambiente social. Mais uma vez, a questão do altruísmo recíproco está na raiz de uma nova proposição para um mecanismo inato. Em grandes grupos, o altruísmo recíproco só funciona quando existe informação suficiente sobre quem é ou não é de confiança. Com grupos cada vez maiores, não é possível distinguir – apenas por meio da experiência direta, pessoal – entre os aproveitadores e os que cooperam. Sem a linguagem, isto é, sem um sistema de comunicação sofisticado, os grupos não po- deriam crescer, ficando bastante limitados no número possível de membros. Existe um limite no número de pessoas que um indi- víduo pode manter relações físicas diretas e constantes para que possa estimar quala probabilidade de cooperação futura4. Para Dunbar (2004), a linguagem evo- luiu para ajudar nossos ancestrais na ob- tenção de informações sobre quem merece ou não confiança, principalmente quando não ocorre uma reciprocidade direta. Na reciprocidade indireta, o indivíduo é altruís- ta com outra pessoa na esperança de esta- belecer sua reputação como generoso e de confiança. Esse é um bom exemplo em que a linguagem ajuda na troca de informações sociais, permitindo que os humanos usufru- am das vantagens de se viver em grandes grupos. Daí o fascínio humano pela fofoca: ela é a forma mais eficaz de comunicação para se obter informações sobre a confiabili- dade dos outros. características gerais da cognição social Até agora, estabelecemos as bases evoluti- vas de algumas das características do fun- cionamento do cérebro humano, que surgi- ram como adaptações às primeiras questões colocadas pelas interações sociais de nos- sos ancestrais. Agora, descrevemos alguns dos princípios que norteiam os estudos da cognição social: (1) o indivíduo como um avarento cognitivo; (2) orientação para os processos; (3) pessoas como agentes cau- sais; (4) percepção mútua; (5) centralida- de do eu; (6) qualidade da percepção; (7) orientação pragmática (tático - motivada); e predominância dos processos automáticos (indivíduo como ator -ativado). 1. O indivíduo como um avarento cognitivo. As pessoas não gostam de pensar muito, exceto quando acham que é necessário. Elas procuram fazer render ao máximo o pouco do esforço cognitivo que conse- guem exercer. Devido a essa tendência, Fiske e Taylor (1991; 2008) definiram as pessoas como “avarentas” no uso de seus recursos cognitivos. Não que as pessoas não consigam realizar trabalhos cogniti- vos complexos. Elas o fazem quando eles são importantes e necessários. Mas o mun- do é muito complicado, especialmente as outras pessoas e, frente a essa realidade, é melhor utilizar “atalhos cognitivos”, buscar simplificações e aproximações, em vez de proceder com análises minuciosas e bem fundamentadas. Vários dos processos que serão analisados mais adiante estão relacionados com a “sovinice cognitiva” das pessoas. 2. Orientação para processos. A abordagem da cognição social sempre utilizou a abor- dagem predominante na psicologia cogni- tiva, na qual os processos cognitivos são descritos como processos computacionais: as pessoas recebem informações (input), codificam o que receberam, armazenam na memória, recuperam da memória para realizar inferências e para gerar produtos (output). A psicologia cognitiva tende a definir os processos cognitivos como for- mados por estágios sequenciais. O mesmo ocorre na cognição social. A sequência atenção → memória → julgamento, bem como outras sequências paralelas (atenção → julgamento ou atenção → memória) são alguns dos principais referenciais INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 84 tOrres, neiva & cOLs. des critivos da psicologia cognitiva e da abordagem da cognição social. 3. Pessoas como agentes causais. Parte funda- mental da teoria da mente que recebemos por meio de nossa herança evolutiva é a percepção de que as pessoas são agentes causais. Percebemos as pessoas como sendo impulsionadas internamente em direção a suas ações e objetivos. Sentimos que os outros possuem agendas internas, não observáveis. Isso faz com que as pessoas fiquem bem mais interessantes e complexas como alvos de percepção e julgamento. 4. Percepção mútua. Outra característica que torna as pessoas interessantes e nossa percepção sobre elas em algo bem mais complexo, é que elas também retornam a percepção afetando o observador. Nossos impulsos naturais para compreender e explicar os outros se misturam com o que percebemos como a percepção e o julgamento deles a nosso respeito. A cog- nição social é uma percepção mútua, um processo de mão dupla. 5. Centralidade do eu. Uma das consequên- cias do processo de mão dupla mencio- nada no item anterior é que a percepção de outra pessoa envolve o eu de quem percebe. O observador olha para outra pessoa e termina por também perceber a si próprio. As reações que a pessoa julga per- ceber nos outros também define o que ela é: a adequação de seus comportamentos, opiniões e crenças, da maneira de vestir, etc. A centralidade do eu do observador é inevitável. 6. Qualidade da percepção. Todas as carac- terísticas mencionadas até o momento chamam a atenção para a questão da exatidão e da qualidade do processo de observação de fenômenos não observá- veis. Traços não observados são difíceis de comprovar, e este é também um grande problema em áreas como a psicologia da personalidade, por exemplo. Nas áreas da avaliação psicológica, são utilizados modelos e análises estatísticas comple- xas em busca de algum tipo de validação dos traços não observados que possam descrever as pessoas. Qual a qualidade da psicologia leiga? Embora cometamos muitos erros, é evidente que, em média, chegamos a interpretações razoáveis, uma vez que conseguimos conviver razoavel- mente bem. Uma das razões está no uso de opiniões alheias como técnica de va- lidação de nossos julgamentos. É sempre possível confrontar nossa percepção com a percepção de um amigo em comum em busca de algum respaldo coletivo. 7. Orientação pragmática (tático ‑motivada). Seguindo William James, um dos lemas enfatizados na cognição social é que o “pensamento tem por objetivo a ação” (Fiske e Taylor, 1991, 2008). Como ana- lisamos anteriormente, esta característica está profundamente alicerçada em nossa história evolutiva. O pensamento social das pessoas surgiu em função do planeja- mento, da preparação e do ensaio prévio para as interações do indivíduo com seu grupo social de alianças e amizades. O indivíduo é um tático -motivado ao pensar para agir, escolhendo entre várias estraté- gias políticas e sociais que garantam suas alianças e reciprocidade mútua. Para Fiske e Taylor (1991): O contexto pragmático social do pensar sobre os outros significa que a cognição social tanto é causa quanto efeito da in- teração social. A ligação com a interação social significa que (a) a qualidade e a exatidão das percepções das pessoas são suficientes para os propósitos do dia a dia; (b) elas constroem significados baseados nos traços, estereótipos e histórias mais úteis (convenientes e coerentes); e (c) seus objetivos determinam como pensam. (Fiske, 1995, p. 157) 8. Predominância dos processos automáticos (indivíduo como ator ‑ativado). Nos últimos anos, outro modelo do ser humano tem surgido na cognição social. O modelo indivíduo como ator -ativado considera que há uma predominância de processos afetivos e comportamentais automáticos, isto é, não acessíveis à consciência. A qua- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS PsicOLOGia sOciaL: PrinciPais temas e vertentes 85 se maioria das ações do tático -motivado não acontece como fruto de deliberações conscientes. Pelo contrário: associações inconscientes, ativadas em milésimos de segundos, ativam/preparam (priming effects) cognições, avaliações, afetos, mo- tivações e comportamentos (Dijksterhuis e Bargh, 2001; Fazio e Olson, 2003). eleMentos da cognição social As pessoas usam suas estruturas cognitivas para chegar a uma compreensão rápida e bastante satisfatória a respeito dos outros e de si mesmas. Quais são os elementos que formam os conteúdos das estruturas cogni- tivas? São dois os elementos principais que preenchem nossas estruturas cognitivas: schemas e atribuições. Schemas Os schemas são estruturas cognitivas com- postas de conhecimentos sobre conceitos, objetos ou eventos, representados por seus atributos e pelas relações entre esses atri- butos (Fiske, 1982; Fiske e Neuberg, 1990), os quais expressam pré -concepções ou teo- rias sobre conceitos, objetos ou eventos. No nosso caso, os schemas que nos interessam são pré -concepções ou teorias a respeito das outraspessoas e de nós mesmos. Você, por exemplo, provavelmente tem um sche‑ ma sobre o que é uma pessoa extrovertida: quais são suas principais características? O que ela faria em uma situação tensa? É uma pessoa confiável? Amiga? Prestativa? Emo- cionalmente Instável? Barulhenta? Por pos- suir um schema “pessoa extrovertida”, você responde facilmente a estas perguntas por- que você tem uma série de pré -concepções sobre ela. Para os psicólogos cognitivistas, um schema não passa de um termo com- plicado para representar esse conjunto de conhecimentos ou pré -concepções. Pré- -concepções possuem muitos elementos, informações conectadas entre si, formando uma teoria sobre “pessoa extrovertida” ou sobre quaisquer outros conceitos, objetos ou eventos. Uma implicação é que você pode não ter um schema sobre um conceito ou algo em particular. Quais são os tipos de schemas? No exemplo acima, temos um schema de pessoa extrovertida. Mas as pessoas também pos- suem todo tipo de schemas sobre traços de personalidade (estável, agressivo, cordial), ou de pessoas em uma determinada situa- ção (comportamento em um restaurante, na sala de aula, no cinema). Neste caso, te- mos o equivalente a scripts que descrevem ou prescrevem como a pessoa deve se com- portar em certas situações. Outros tipos são os schemas sobre objetivos sociais (vingança, sedução, ajuda) e os schemas sobre papéis sociais que contêm os comportamentos e os atributos que esperamos de determinadas pessoas que ocupam posições sociais (che- fes, líderes, administradores, professores, estudantes de graduação, estudantes de pós -graduação, membros de uma quadrilha, políticos, etc). Os schemas sobre papéis são schemas equivalentes a estereótipos. Schemas sobre o próprio eu (self ‑sche‑ mas) constituem a base de nosso autoconcei- to, mas também pode ser que não tenhamos nenhum schema sobre uma determinada di- mensão de nosso eu. Se você nunca foi do tipo esportivo, por exemplo, não há como ter uma rede de conhecimentos e de pré- -concepções sobre esse componente de seu eu. Como os self ‑schemas são bastante elabo- rados, tendemos, entre outras coisas, a nos lembrar mais de informações que nos dizem respeito do que de informações que nos são indiferentes. (Kihlstrom, Cantor, Albright, Chew, Klein e Niedenthal, 1988). Qual, então, são as funções dos sche‑ mas? Schemas influenciam a maneira como codificamos, relembramos e julgamos as informações que temos acesso sobre con- ceitos ou eventos. Os schemas também di- rigem nossa atenção para determinados as- pectos das informações a que temos acesso. Um exemplo retirado de uma pesquisa de Owens, Bower e Black (1979) serve para ilustrar as funções dos schemas. Nessa pes- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 86 tOrres, neiva & cOLs. quisa, três grupos de participantes leram cada um uma versão do seguinte relato: Cris(tina) acordou sentindo -se enjoada novamente e ficou pensando se poderia estar grávida. Como iria dizer ao professor que ela estava namorando? E a questão do dinheiro ainda era outro problema... Cris foi para a cozinha, tirou a chaleira do armário, fez café, olhou o café e decidiu adicionar um pouco de leite e açúcar. Depois, vestiu -se e foi ao médico. Quando chegou ao consultório do médico, Cris foi examinada inicialmente pela enfermeira, que procedeu com os exames prelimina- res rotineiros. Cris subiu na balança, e a enfermeira registrou seu peso. O doutor entrou na sala, examinou os resultados desses procedimentos, sorriu e disse “Bom, parece que todas as minhas ex- pectativas foram confirmadas.” Cris foi embora e, quando foi chegando à sala de aula, decidiu sentar -se na primeira fila. Cris entrou na sala e sentou -se. O pro- fessor foi para frente da sala e começou sua aula. Durante toda a aula, Cris não conseguiu se concentrar no que estava sendo dito. A aula parecia não terminar nunca. Mas, finalmente, terminou. Como o professor foi cercado pelos alunos logo após a aula, Cris saiu rapidamente da sala. No final daquela tarde, Cris foi a uma recepção no departamento e ficou olhando para ver quem estava lá. Cris foi até o professor, querendo conversar com ele, sentindo -se um pouco nervosa sobre o que dizer. Um grupo de pessoas começou a jogar alguns jogos. Cris foi até uma mesa onde estavam refrigerantes e salgadinhos. O lanche estava bom, mas Cris não se interessou por conversar com as outras pessoas presentes. Depois de certo tempo, Cris decidiu ir embora. (Owens, Bower e Black, 1979 apud Fiske, 1995, p. 163) Um dos três grupos da pesquisa de Owen e colaboradores (1979) leu esta ver- são da história. Agora, considere a mesma história com uma introdução diferente, substituindo as primeiras linhas até os três pontinhos (...): “Cris(tiano) acordou se per- guntando quanto peso tinha ganho até o momento. O treinador de seu time de fute- bol tinha dito que ele só seria escalado para o próximo jogo se ganhasse bastante peso e passasse no teste antidoping. A pressão era muito grande...” Continue com a mesma história já transcrita acima. Para o terceiro grupo, grupo controle, não foi fornecida nenhuma introdução, e a história se inicia depois dos três pontos (...). Entre a primeira e a segunda versão da história, o significado muda radicalmente por conta dos schemas ativados. Na primei- ra, temos o schema “gravidez indesejada” e, na segunda o schema “candidato a atleta”. Essa mudança radical ocorre porque nossos schemas para as duas situações levam a dife- rentes codificações e à ativação de conheci- mentos e reações emocionais adicionais que trazem para o que está escrito. Por exem- plo, para entender melhor a influência do schema “gravidez indesejada” da primeira história, imaginemos que nossa persona- gem tivesse tido oportunidade de conversar com o professor. Como ela estaria se sen- tindo em uma situação dessas? Ansiosa? Desconfortável? Você não acha que teria sido melhor ter combinado um encontro com o professor em outro momento em vez de tentar conversar na recepção? Cristina ficou feliz quando descobriu que aumen- tou de peso desde a última consulta? E na segunda versão da história, como Cristiano estava se sentindo com relação a seu pro- fessor? Por que queria falar com o professor na recepção? Como ele estava se sentindo em relação a seu peso? Qualquer pessoa que tenha schemas ativados por essas histórias é capaz de compreendê -las, preenchê -las, imaginar caminhos e cenários alternativos, e assim por diante. Para analisar mais ainda o papel dos schemas, Owen e colaboradores (1979) so- licitaram, meia hora depois da leitura, que os participantes relatassem de memória tudo que tinham lido nas histórias, pro- curando ser o mais fiel possível ao relato original. Os resultados mostraram que os dois grupos, cujas histórias ativaram sche‑ mas distintos, relembraram mais detalhes INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS PsicOLOGia sOciaL: PrinciPais temas e vertentes 87 na ordem correta e com menos erros e acréscimos de informações extras do que o grupo de controle. Os schemas ativados di- rigem a atenção das pessoas para detalhes cruciais, guiam a memória e influenciam o julgamento. A rapidez com a qual as pessoas jul- gam as outras acontece porque o julga- mento é feito automaticamente on ‑line. Os schemas permitem que façamos julgamentos e avaliações simplificadas, polarizadas e au- tomáticas. Somos apresentados a alguém que nunca vimos antes e, imediatamente, temos reações positivas ou negativas já a partir do momento que começamos a re- ceber informações (tom de voz, aparência, postura, conteúdo do que diz). Acontece que, quando encontramos alguém que ati- va algum schema ligado a outra pessoa ou evento, ocorre uma reação ou transferência das mesmas reações de julgamento para a pessoa que acabamos de conhecer – sem que tenhamos nenhuma consciência disso. Pode ser até que o novo conhecido não nos lem- bre ninguém em particular,mas venha de categorias de pessoas (ocupação, etnia, lo- cal de nascimento) sobre as quais temos for- tes reações afetivas ou de opinião (Andersen e Cole, 1990; Fiske, 1982; Devine, 1995). A categoria mais forte que existe é “nós” versus “eles”, uma divisão inter -grupos que sempre desencadeia julgamentos positivos para o nosso grupo e negativos para os de fora (Brewer, 1979; Mullen, Brown e Smith, 1992). Não é de surpreender, portanto, que cada um de nós provoque reações tão diver- sas nas outras pessoas. Os schemas afetam nossa atenção, me- mória e julgamentos, mas não são as úni- cas influências em nossos pensamentos a respeito dos outros. Afinal, também temos outras evidências e informações que perce- bemos ou recebemos de outras fontes. Os schemas atuam em confronto com as evidên- cias; e o equilíbrio que surge dependerá de vários fatores. Em algumas situações, nossa motivação – quando temos pouco tempo, sobrecarga cognitiva, cansaço, por exemplo – nos leva a uma predominância de nossos schemas sobre as evidências (Brewer, 1988; Fiske e Neuberg, 1990; Gollwitzer, 1990; Hilton e Darley, 1991). Em outras situações, os fatores que influenciam esta relação são a congruência entre schemas e dados (Fiske, Neuberg, Beattie e Milberg, 1987) e o valor diagnóstico dos dados (Hilton e Fein, 1989; Leyens, Yzerbyt e Schadron, 1992). Trata- -se, de fato, de uma questão de superação de nossos schemas e estereótipos em função dos dados e informações a respeito de uma determinada pessoa em particular. Os fa- tores que podem diminuir a influência dos schemas e estereótipos são mais atenção e mais motivação para que possamos ir além das reações automáticas altamente influen- ciadas por nossos schemas. atribuições Os schemas são definidos como um dos dois elementos básicos da cognição social. O ou- tro são as atribuições. As pessoas são perce- bidas como agentes causais e é importante saber como elas atribuem causas aos com- portamentos dos outros e a seus compor- tamentos. Não só atribuímos causas, como essas atribuições têm profundas influências sobre nossas reações afetivas e comporta- mentos futuros. Esta é a razão pela qual as atribuições são parte fundamental de nossos pensamentos a respeito dos outros e de nós mesmos. Quando atribuímos disposições ou traços como causas de comportamentos ob- servados, fornecemos toda informação ne- cessária para ficar armazenada no schema relativo aos traços, comportamentos e rea- ções afetivas em questão. Weiner (2000; 2005) propõe duas teo- rias para explicar as atribuições de causas a que o indivíduo recorre para explicar os próprios comportamentos (teoria da atribui‑ ção intrapessoal) e os comportamentos dos outros (teoria da atribuição interpessoal). Embora os modelos atribucionais de Weiner tenham sido desenvolvidos para explicar questões motivacionais nos comportamen- tos de desempenho, vamos utilizar suas pro- posições para descrever como as atribuições de causalidade são realizadas pelas pessoas INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Parte II - O indivíduo 4. Cognição social