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DELÍRIO DAS MASSAS E ESCRAVIZAÇÃO DIGITAL - DELÍRIO DO PODER - MARCIA TIBURI

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Delírio das massas e escravização digital
O delírio é das massas, que não tem como saber de si mesma. A condição de massa implica a inconsciência. Para que a massa funcione como tal, é preciso que cada um dos seus participantes seja capaz de perder os contornos da própria subjetividade. Para superar o delírio no nível das massas devemos nos dedicar a um exame do estado do nosso desejo em nível coletivo nos dias atuais. Mas o que é feito do desejo em uma sociedade capitalista? Ora, ele é apagado e rebaixado a necessidade e, ao mesmo tempo, logo depois de ter sido amordaçado e recalcado, tratado como normal ou natural.
Poderíamos chamar o desejo de instinto, e ao coletivo poderíamos dar os nomes de “manada”, “rebanho”, mas esses termos não serão bem recebidos em nossa época, como não o eram na época de Nietzsche. A autocrítica não é um forte das massas. Acostumadas a adulação cada vez mais radical dos meios de comunicação, da indústria cultural, das religiões do capital, as massas, ou aqueles que estão na sua condição, são incapazes de superar o narcisismo adquirido. O narcisismo é uma espécie de zona de conforto, de consolo. É uma espécie de remédio, embora placebo, que o próprio sistema oferece aos seus robôs, para que não sintam muitas dores nas engrenagens e possam continuar colaborando com um sorriso mecânico no rosto ou saibam se esconder por conta própria quando estiverem fora de uso.
Um detalhe, antes de seguir, já que voltamos ao tema dos robôs. Todos devem saber que a palavra “robô” significa escravo (“robota”, do esloveno, significa “servidão”). A rigor, “robô”, “escravo” e “trabalhador” são termos ligados entre si. A função psíquica dos meios de comunicação e da indústria cultural como um todo é fabricar estímulos violentos ou angustiantes, o que vemos em todos os tipos de mercadoria do cinema e da televisão, e os placebos para amenizar seus efeitos. Na verdade um círculo vicioso de consumo do veneno e do seu remédio. Sobre isso falei em um livro publicado em 2012, intitulado Sociedade fissurada.
O objetivo é deixar todos dóceis, ocupados em digerir os temas das últimas séries apresentadas nas televisões do mundo. A verdade é que ninguém suportaria o capitalismo se ele não trouxesse uma alta dose de promessas de conforto, adulação, consolo, placebos e próteses para o indivíduo se achar um feliz cidadão do mundo. O robô se organiza com todos esses incrementos, energias e combustíveis, sendo uma nova forma subjetiva produzida por táticas de sedução que garantem obediência estrita a ações e funções. Robotização seria o devir-negro do mundo, de que fala Achille Mbembe, se a escravização, da qual foram vítimas os africanos no capitalismo moderno, produzir se figuras dóceis. Mas há uma pequena diferença.
Como no capitalismo, nada é de graça, há um preço a ser pago. Esse preço é subjetivo e objetivo, sempre pago em sofrimento pessoal, emocional e também material. O narcisismo cobra um preço alto porque, para ser mantido, requer muito esforço. Os novos escravos contemporâneos pagam infinitamente, até seu completo esgotamento, com a alma e o corpo. Devem dar tudo o que tem e o que não tem pelo que o capitalismo lhes oferece, dores e seus remédios. Por meio do tratamento de adulação narcisista, que é diferente do amor-próprio, as pessoas tendem a ficar de bem consigo mesmas e esquecer que há problemas no mundo ao seu redor. Quanto mais narcisismo, menos noção de alteridade a significar que há o mundo ao redor. Podemos, sem dúvida, falar de um delírio narcísico que se tornou generalizado. A medicina psiquiátrica define o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) como uma doença rara, mas isso não se confirma quando pensamos em massas de pessoas bastante transtornadas. Por meio do narcisismo, as pessoas são capazes de sentir a servidão como um privilégio, como bem colocou Ricardo Antunes ao falar dos novos escravos digitais. No entanto, a escravização digital significa, na verdade, uma robotização direta.
O exemplo do trabalho é maravilhoso porque nos permite conhecer dimensões do que estamos entendendo como o delírio coletivo. De um lado, há os absurdos mais disparatados; do outro, as ações sem sentido. Mas não é bem assim. De um lado, as coisas mais estapafúrdias sendo ditas e promovidas, um festival de extravagâncias; do outro, as pessoas fazendo coisas que não fariam, caso pensasse melhor.
As coisas mais estapafúrdias sendo ditas e praticadas não são ingenuidades nem banalidades quando ditas pela boca dos poderosos, ainda que possa haver alguém que se expresse autenticamente nesses contextos. Disparates verbais tem uma função no cenário geral: produzir confusão e criar um clima propício ao que se chama a muito tempo de “prática”. 
Por um lado, as loucuras ditas estimulam práticas que acalmam; ir à igreja, por exemplo. Não é à toa que as igrejas interessadas em crescer economicamente produzam tantos discursos na linha do delírio. Vai-se a igreja para participar de êxtases coletivos que em tudo parecem delírios, e vai-se a igreja também para se sentir curado deles.
Por outro lado, muitas pessoas se entregam ao mundo da prática mais fria justamente por parecer um mundo mais seguro. Tornam-se robôs, em alguma medida, mas mantêm a alma viva. Salvam a si mesmas. As pessoas se entregam à prática também porque se cansam de falas que não tem nada a dizer. O fanatismo ou captura, ou cansa as pessoas. Alternativa parece sempre bipolar: ou o indivíduo sucumbe à ele, lhe dá costas e fica à deriva. 
Os fanatismos prejudicam a vida do espírito, por que afastam do pensamento Sério que deveriam garantir a vida do espírito. As pessoas que desistem de ouvir desistem de pensar. São capazes de desistir da filosofia, assim como desistem da política, que seria uma forma da prática a partir da consciência do que se faz. Ao perceber que estão todos malucos, os que se mantém “não malucos” optarão por não dar conversa, por não fazer parte, por debandar, por desistir da linguagem como objeto que permite compreender e explicar os atos básicos do conhecimento, assim como um dia desistiram da política. No meio da confusão mental generalizada e das tentativas toscas de manter a consciência, a própria filosofia poderá se transformar, aos olhos de pessoas bem-intencionadas, “coisa de maluco”. Melhor não dar ouvidos à “loucos”.
Caíram na teia dos delírios coletivos seguem fazendo o que tem que ser feito sem questionamento, seja votar, seja pagar o dízimo, seja ver os programas de televisão, seja ouvir ou dançar as músicas, seja acompanhar as notícias do jornal televisivo, seja xingar os adversários nas redes sociais. Muitos seguem porque duvidar é coisa do demônio. Duvidar é uma prática mental demonizada. Quem pensa demais são os “comunistas” e similares, e esses, no delírio dominante, são personificações do demônio.
Assim, a divisão do trabalho não deixa mais o trabalho intelectual na mão das elites. Aliás, esse conceito de “elite” se torna cada vez menos atual, por que as elites econômicas eliminam o trabalho intelectual sério. E também o trabalho artístico. Eliminam a própria elite intelectual porque ela, da mesma forma, atrapalha a elite econômica. Hoje, o que as elites econômicas fazem é criar teorias contra as reflexões, para que as populações não tenham acesso ao pensamento crítico. E as elites econômicas detêm, além do poder midiático, o poder religioso.
Foucault falou em “biopoder”, O cálculo que o poder faz sobre a vida. O cálculo do poder sobre o conhecimento e a ciência, que não devem estar ao alcance de todos, continua vivo, mas o cálculo fundamental é feito sobre a narrativa, a linguagem, o simbólico e o imaginário, O sistema de crenças das pessoas, que se confunde hoje com seus desejos reprimidos sob fundamentalismos de todo o tipo. Há um controle direto sobre o que se pensa e sobre o que se pesquisa. E por mais que busquemos nomes novos, vamos sempre ter que voltar ao velho termo marxista: “ideologia”. Ela é o cálculo que o poder faz sobre a linguagem, sobre o que se pode e como se pode saber ou não saber.Já vimos esse filme, alguns dirão. Na Idade Média, era Deus o que não podia ser questionado. Hoje é o capital, que se apresenta no cotidiano sob várias formas. Uma delas é a vida digital. Um novo ambiente no qual o capital frutifica.
Capítulo Delírio das Massas e Escravização Digital do livro DELÍRIO DO PODER de Márcia Tiburi (págs.53-56)

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