Buscar

GUERRA PSÍQUICA DE TODOS CONTRA TODOS - DELÍRIO DO PODER - MARCIA TIBURI

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Guerra psíquica de todos contra todos
O clima delirante em que vivemos é parte fundamental do capitalismo em todas as suas fases. Não se trata de um mero mergulho espontâneo das massas na irracionalidade, de uma criação espontânea das narrativas delirantes, muitas das quais, em nossa época, estão ligadas à religião e à sexualidade. Daí que falar em Deus e sexo (ou gênero, para onde os delirantes nem transferiram seu problema) tenha se tornado tão decisivo.
Se O capitalismo é uma forma de racionalidade perversa que cria delírios em seu favor, ele pode favorecer o enlouquecimento a partir da perda de seus próprios limites. Vejamos. Kant diz, na Crítica da razão pura, Que a própria razão que pode enlouquecer, justamente ao se perder de seus limites. Por isso todo o esforço desse pensador em traçar os limites da razão, Que são os mesmos limites do conhecimento. Deus é um dos exemplos importantes de Kant que devemos lembrar em nossa época, quando “Deus” é um termo dos mais usados e abusados. Não podemos, sob uma perspectiva kantiana, saber nada sobre algo como Deus. A rigor, sabemos apenas o que nós mesmos nele pomos, ou seja, sabemos e podemos saber apenas sobre nossa relação com aquilo que chamamos de Deus, sobre nossas teorias acerca de Deus. Deus deveria ser tratado como um assunto muito mais particular, porque, em nível coletivo, ele pode estar na base dos delírios religiosos. Hoje, as religiões não vivem apenas da ilusão, como definir a Freud, mas também da administração dos delírios, como fazem as instituições de poder.
Ora, aquilo que escapa aos limites da razão, mesmo sendo fruto da razão, cai na irracionalidade. A razão é uma medida dentro de um limite. Além dela, estamos no Reino da desmedida. Não se pode imaginar um destino feliz para as atitudes com base na desmedida tendo em vista a limitada condição humana, sempre em busca de parâmetros. Nesse sentido, mesmo a manipulação mais abjeta precisa ser limitada, do contrário, pode levar a pura e simples destruição até mesmo daquele que opera a manipulação. O delírio capitalista tem relação direta com essa desmedida, com a perda do caráter “racional” e “medido” das ações que permitiam ao sistema ser como era. No capitalismo, sempre se tratou de administrar a desigualdade para que ela não colocasse em risco o próprio capitalismo. A desigualdade nunca comprometeu o sistema. O sistema, que sobrevivia ‘equilibrado” em sua própria lógica interna, evoluiu, isso a tendência era se transformar espontaneamente em algo menos desigual, mas ainda desigual. Com a entrada de novos agentes, de novos trabalhadores, de exigências desses trabalhadores em relação a direitos, de novas demandas sobre a vida da economia, o capitalismo se transformou, mas perdeu justamente aquela capacidade de sustentar a desigualdade que o caracterizava e lhe dava sustentação. Percebendo que sua força estava se perdendo, o sistema a ser ou sua forma de ser, em uma tentativa ensandecida de manter-se como tal.
Ora, o que vale para a economia vale para a política. Também na política, com a presença de novos atores, de novas demandas, de novas exigências, o sistema se modificou e, desesperado, apelou para ignorância. A violência nos métodos e nas armas políticas implodiu a democracia. As falas e práticas loucas que vemos em diversos líderes pelo mundo afora nos fazem saber que estamos sob o signo da loucura plena. À loucura, como disse Mino Carta, foi elevada à forma de governo. Hoje, assistimos praticamente calados a quem ameaça matar uma parcela imensa da população brasileira, matar os “opositores” do sistema. E não há o que fazer, por que as instituições todas estão lançadas no delírio elevado a forma de governo. E esse delírio se dá na forma de um consenso em torno da mentira.
Tomemos, portanto, como exemplo para pensar a questão da racionalidade - e da economia e da política - , o ato negativo de “mentir”. Refiro-me à mentira como um negativo da verdade. Mesmo não sendo algo ético, mentir pode ser uma atitude carregada de um espírito racional, uma atitude pensada e organizada pragmaticamente por alguém que mede os meios pelos fins e que pretende alcançar um determinado objetivo com sua mentira. A mentira racional é organizada dentro de um parâmetro: o da verdade. Até porque o parâmetro da razão é a verdade. Mentir em escala industrial também pode ser racional, mas tende a ser perigoso, Pois as pessoas atingidas podem se sentir ofendidas quando se descobriram enganadas e querer revidar ou exigir reparação. Percebida, a mentira deve ser coibida, proibida ou punida institucionalmente, quando for o caso.
Mas o problema é outro quando a mentira se torna a lógica do mundo e substitui a verdade. Quando mentir não é mais a exceção, mas a regra, então a mentira se perdeu da medida que envolvia uma escala racional em relação à qual ela se pautava. Quando a mentira se pauta pela verdade, ela ainda é racional. Mas quando não se pauta mais pela verdade, quando se torna a nova medida, o novo “parâmetro” do mundo, então chegamos à desmedida e ao irracional. A destruição do mundo está à nossa espera. Se a mentira for o novo parâmetro do mundo e se todos aderirem a ele, o entendimento se tornará impossível, as relações se tornarão inviáveis, porque a própria linguagem não servirá mais ao conhecimento e ao reconhecimento. A noção de ficção chegará a outro patamar, ou desaparecerá por completo.
No mundo em que a mentira é o patamar, a ficção será sutil demais para sobreviver. Se mentir for a regra, a desconfiança também o será, e muito mais que isso: viveremos em um mundo em guerra de todos contra todos. E talvez sejamos capazes de um novo modo de fazer guerras. Dessa vez, no mundo da pós-verdade, a guerra será psíquica. Vencerá quem for mais manipulador.
A capacidade de manipulação será o foco da grande disputa, a disputa pela competência para a perversão. Talvez já tenhamos chegado a esse estágio e não tenhamos ainda levado em consideração o que nos move hoje. É assim que já agem os políticos adequados ao tempo da mentira que eles mesmos ajudaram a criar, muito além do que conhecemos até aqui, quando as regras dos jogos de poder ainda eram ana3lógicas e ainda era possível falar de uma coisa tão antiga como a ética.
Capítulo Guerra psíquica de todos contra todos do livro DELÍRIO DO PODER de MARCIA TIBURI (págs.46-48)

Mais conteúdos dessa disciplina