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Capítulo 1 (Re)Visitando as noções básicas de fenomenologia1 Georges Boris, Camila Souza, Lucas Bloc & Virginia Moreira (In Fenomenologia Clínica – no prelo) Introdução Este capítulo visa a apresentar e discutir sucintamente alguns conceitos e temas centrais da fenomenologia, proporcionando uma visão geral de sua contribuição para a psicologia e para a fenomenologia clínica. A proposta de (re)visitar as noções básicas de fenomenologia advém de um movimento de retomar aspectos fundantes da relação entre a fenomenologia e a clínica e de servir de ponto de partida para as questões discutidas ao longo deste livro. Não pretendemos desenvolver uma análise aprofundada e definitiva do assunto, mas proporcionar a possibilidade de uma abordagem efetiva dos seus elementos básicos àqueles que buscam se aproximar do “mundo fenomenológico” e que reconhecem a fecundidade da fenomenologia para a clínica psicológica. Assim, inicialmente, abordamos a contribuição, ainda no final do século XIX, de Franz Brentano, reconhecido precursor da fenomenologia, bem como influência significativa, não apenas desta perspectiva, mas de diversos outros sistemas e teorias, como o estruturalismo, o funcionalismo, a psicologia da gestalt, e mesmo a psicanálise (Boris, 1994; 2011; Cataldo-Maria & Winograd, 2013; 2017). Em seguida, apresentamos a proposta metodológica de Edmund Husserl, que, no início do século XX, demarca o surgimento da fenomenologia 1 Este capítulo é uma revisão e uma ampliação do seguinte artigo: BORIS, G. D. J. B. (1994). Noções básicas de fenomenologia. In: Insight Psicoterapia. São Paulo: v. 46, pp. 19-25, nov. como ruptura dos modelos vigentes na época. Por último, discutimos alguns elementos da proposta de Maurice Merleau-Ponty, que desenvolve e radicaliza, de modo particular, a fenomenologia proposta por Edmund Husserl. A contribuição pioneira de Brentano Franz Brentano (1838-1917) foi padre, tendo renunciado ao sacerdócio por não poder aceitar a doutrina da infalibilidade papal, sem, contudo abandonar suas convicções profundamente católicas. Doutorou-se em filosofia, tendo sido mais um filósofo do que um cientista. Foi influenciado por Descartes, Leibniz, São Tomás de Aquino e, sobretudo, por Aristóteles. Por sua vez, influenciou a psicologia da gestalt, o funcionalismo, o estruturalismo, a psicanálise e, mais fortemente, a fenomenologia (Abbagnano, 1984; Boris, 2011; Campos, 1973; Gilles, 1975; Marías, s.d.; Marx & Hillix, 1976; Penna, 1984). A psicologia da época de Brentano era uma tentativa de converter-se em ciência experimental: uma psicologia associacionista, que pretendia explicar tudo por meio de associações de ideias e intervir nas demais disciplinas para convertê-las em psicologia. A psicologia de Brentano assumiu um caráter completamente novo (Maciel, 2001; Marías, s.d)..Brentano chamava seu método de empírico. No entanto, tratava-se de um empirismo de outro tipo. Enquanto o empirista clássico “(...) observa um facto, e outro, e em seguida, abstrai e generaliza as notas comuns”, no método de Brentano, ao “observar um fenômeno, tomo um único caso e vejo o que nele é essencial, aquilo em que consiste, sem o qual não é, assim obtendo a essência do fenômeno. (...) Este método, depurado e aperfeiçoado por Husserl, é a fenomenologia” (Marías, s.d., p. 363). Assim, a proposta empírica de Brentano antecedeu e deu condições para o surgimento da fenomenologia. O nome de Brentano também está associado à psicologia do ato. Sua tese fundamental é que a psicologia deve estudar os atos ou processos mentais, não seus conteúdos – como procedem outros sistemas psicológicos -, pois a experiência é o fundamento da sua perspectiva (Holanda, 2014). Ele acreditava que os atos mentais se referem sempre a objetos; por exemplo, se considerarmos a audição um ato mental – o de ouvir -, ele se refere sempre a algo ouvido – um som, um ruído ou uma música: “neste caso, o evento verdadeiramente mental é a audição, que é um ato e não um conteúdo” (Marx & Hillix, 1976, p. 158). Um outro exemplo é a dor, que é um fenômeno físico, não sendo, portanto, o objeto de estudo da psicologia conforme Brentano. O que seria, então, neste caso, o seu objeto? Para esta nova vertente proposta por Brentano, o objeto de estudo da psicologia seria exatamente a experiência subjetiva da dor - o mal-estar, o sofrimento, o desespero etc. – do modo como é vivida pela pessoa que sente dor. É neste mesmo sentido que a psicologia do ato se opôs ao estruturalismo, ou a uma psicologia do conteúdo. Para os estruturalistas, os processos mentais são conteúdos: ao ver uma cor, a experiência consciente da cor é conteúdo e seria o adequado objeto de estudo da psicologia. Por outro lado, para os psicólogos do ato, os processos de ver, ouvir, julgar, desejar etc. são atos – processos conscientes na cognição (sentir e perceber), na conação (querer, desejar e esforçar- se) e no sentimento (amar e odiar) –, não conteúdos, sendo o objeto apropriado de estudo da psicologia. Assim, os atos levam a conteúdos, pois são intencionais, ou seja, remetem a eles, mas o conteúdo, em si, é físico, não psicológico. Talvez a contribuição mais significativa de Brentano à psicologia resida na noção de intencionalidade, que aponta para a dinamicidade da estrutura da consciência humana. A consciência, ao se organizar em atos, se reporta ao mundo constantemente (Holanda, 2014; Maciel, 2001). A partir de Brentano e como sua marca, a fenomenologia se descentralizou da consciência e do objeto para se voltar à correlação entre esses dois pólos como reveladora de sentido. Assim, a ênfase atribuída à intencionalidade2 dos fenômenos psíquicos torna a psicologia do ato uma precursora do funcionalismo. Para estudar os processos com atos, os psicólogos do ato empregavam a observação fenomenológica, em contraste com Wundt e Titchener (estruturalistas), que utilizavam a introspecção. Para Brentano, então, o objeto de estudo da psicologia devia ser os atos da pessoa, não os conteúdos de estados conscientes (Holanda, 2014). A filosofia do presente, tão presente nas psicoterapias humanistas e de cunho fenomenológico-existencial, também nasceu de Brentano, senão exclusivamente, pelo menos numa parte decisiva: os fenômenos ocorrem aqui e agora e o presente é a única experiência possível. Não se trata de desconsiderar o passado, o que seria um absurdo, desprezando a história de vida e a memória dos pacientes; também não se trata de negligenciar o futuro, os sonhos, os planos e a ansiedade costumeiramente vivida por eles, especialmente nos tempos atuais. Trata-se de presentificar essas experiências passadas e expectativas futuras em vividos conscientes e atualizados, plenos de sentidos. Em 1874, Brentano publicou sua principal obra psicológica e referência fundamental para o nascimento da fenomenologia, Psicologia do Ponto de Vista Empírico, em que aponta uma diferença entre os objetos externos e os internos (mentais). Os primeiros são passíveis de percepção e de observação, enquanto as experiências mentais podem apenas ser percebidas e, portanto, descritas, o que será determinante no método fenomenológico proposto posteriormente por Husserl. Para Brentano, quando vemos algo, ocorrem duas experiências: 1) o ato de ver; e 2) o objeto ou o conteúdo visto. Todo ato se constitui na relação com o objeto, envolvendo uma “intenção” (in-tentio ou in- 2 Termo originado do latim in-tentio (tensão interna, em direção a, referindo-se a uma intensão) e de in-tendere (tender a, referente a uma intenção), ambos os termos significando mente em ação (Boris, 1994; 2011; Cunha, 2010; Japiassú & Marcondes, 2001).tendere) que se apresenta na codependência entre o ato e o conteúdo. Todo ato se volta a algo exterior a ele e a fenomenologia ultrapassa as experiência reais ao se ater aos elementos ideais, a essência das experiências (Campos, 1973). Brentano tomou dos escolásticos a noção de intencionalidade e a reinterpretou. Para ele, a consciência é intencional, isto é, tende sempre a alguma coisa, tem uma ligação com o objeto. Trata-se de uma concepção que, em seu sentido amplo, permanece, com diferentes nuanças, nas diferentes perspectivas fenomenológicas vindouras a partir de Brentano. Neste sentido, pode-se afirmar que a consciência não existe por si mesma, mas é sempre consciência de alguma coisa, ou seja, todos os atos da consciência são, naturalmente, relacionados a alguma coisa, impossibilitando o seu esvaziamento na medida em que aquilo que a caracteriza é sua dinâmica incessantemente intencional. Como exemplo, pode-se afirmar que não há amor sem alguém ou algo amado, percepção sem algo percebido. Assim, conhecer os conteúdos da consciência é conhecer o próprio objeto. Partindo da concepção que o objeto só é acessível à consciência, o único caminho para o conhecimento das coisas é o exame da consciência. Neste sentido, o objetivo do método fenomenológico é efetivamente realizar este exame, buscando atingir o conhecimento das próprias coisas (Campos, 1973). No início do século XX, a fenomenologia começava a se apresentar como uma via para responder a um problema antigo e fundamental da filosofia que dizia respeito à relação entre a realidade existente fora da mente e o pensamento que se faz dessa realidade. O caminho fenomenológico para responder tais questões é que os fenômenos da consciência são o seu ponto principal de referência porque são os dados acessíveis a nós, o único material à nossa disposição imediata e a consideração fundamental de que os fenômenos são capazes de revelar aquilo que as coisas, essencialmente, são, o que advém do conceito de intencionalidade (Campos, 1973). É importante assinalar que Edmund Husserl (1859-1938), autor que trataremos no próximo tópico, foi atraído para a Filosofia a partir do contato com Brentano. Husserl encontrou objetividade, ausência de respostas prontas, finuras dialéticas na ponderação dos diversos elementos dos problemas, discernimento claro dos equívocos que a realidade sugere e um retorno às fontes primitivas dos conceitos filosóficos através da intuição das próprias coisas (Gilles, 1975). Foi a intuição de Brentano sobre o caráter essencialmente intencional de todo ato da consciência que deu a Husserl a chave para superar a dicotomia kantiana. Intencionalidade se refere a algo de distinto, a um objeto, ainda que não seja real, como uma fantasia ou um ser imaginário. Para Brentano, os atos não intencionais não são atos psíquicos como, por exemplo, uma sensação de verde ou uma dor de estômago. As sensações “são simples elementos não intencionais do acto psíquico (intencional), que é a minha percepção de uma árvore verde; e o acto psíquico é o sentimento de desagrado, cujo objeto intencional é a dor de estômago” (Marías, s.d., p.363). Brentano acreditava que a Psicologia devia se concentrar no processo ou ato de sentir e não na sensação como um elemento. Essa ideia de intencionalidade tem consequências como: o ressurgimento dos objetos ideais; a ideia de que o pensamento é algo que não se esgota em si mesmo, que se refere algo diferente dele; e a ideia do homem como um ser aberto para as coisas (Marías, s.d.). Após diferenciar os fenômenos psíquicos, Brentano classifica-os em diversos modos de referência internacional. São três tipos de atos: representações, juízos e emoções. A palavra representação “é usada por Brentano num sentido muito amplo: um pensamento, uma ideia ou uma imagem. A tudo que me é presente à consciência chama Brentano de representação” (Marías s.d., p. 363). O principio de Brentano é de que “todo o acto psíquico, ou é uma representação ou está baseado numa representação” (p. 363). Já o juízo consiste em admirar ou afastar algo como verdadeiro, tomar uma posição, e a emoção tem um sentido de mover-se para alguma coisa, ou seja, apreciá-lo ou valorizá-lo, estimá-lo (Marías, s.d.). A influência de Husserl e o método fenomenológico Edmund Husserl (1859-1938) nasceu no antigo império austro- húngaro, hoje República Checa. Era judeu de nascimento, adotando a fé protestante. Matemático por formação, Husserl foi influenciado por Brentano, de quem foi discípulo, voltando-se à filosofia (Abbagnano, 1984; Gilles 1975; Kelker & Schérer, 1982; Marías, s.d.; Penha, 1984). Na obra Investigações Lógicas (1900-1901), abandonou e criticou a posição empirista assumida em seu livro anterior, Filosofia da Aritmética (1891), que era uma tentativa de reconduzir as noções da lógica a operações psíquicas efetuadas empiricamente. Propôs uma lógica pura, cuja função seria obter a visão evidente da essência dos modos de conhecimento. Mas conhecer a essência dos modos de conhecimento conduz ao mundo da consciência, objeto da psicologia. Assim, Husserl opôs a psicologia descritiva ou fenomenologia pura à psicologia empírica (Abbagnano, 1984; Zahavi, 2015). Na Alemanha, nos dez últimos anos do século XIX, observava-se uma decadência das ideias de Hegel e de Schopenhauer, enquanto as ideias de Marx, Freud e Nietzsche ainda não tinham a força que viriam a ter posteriormente. Os filósofos voltaram-se, então, às ciências positivas, de conhecimento objetivo, abandonando a filosofia especulativa. As matemáticas afastaram-se dos dados da intuição, tentando construir sistemas formais que unificassem diversas disciplinas. A psicologia, em grande parte, tornou-se positivista, tentando constituir-se como ciência exata, baseada num modelo das ciências naturais, e eliminando os aspectos subjetivos e da introspecção, considerados não científicos (Holanda, 2014; Zahavi, 2015). A partir de 1880, começou a haver questionamentos do positivismo. Perguntava-se: as leis da ciência têm validade universal? Qual o sentido de sua objetividade? Não dependem do psiquismo? Desde Kant, os neokantianos propunham um sujeito puro, tentando dar coerência aos diversos domínios do conhecimento objetivo. Mas surgiram novas críticas: o sujeito puro é abstrato. Onde estaria o sujeito concreto em sua vida psíquica imediata e em seu engajamento histórico? (Kelkel & Schérer, 1982). Nesse contexto, surgiu Husserl, a partir de Brentano, que propunha um novo método de conhecimento do psiquismo e uma distinção entre fenômenos psíquicos (comportam uma intencionalidade) e físicos, afirmando que esses fenômenos podem ser percebidos e que o modo de percepção original que deles temos constitui o seu conhecimento fundamental. Husserl assumiu a posição de que o único meio para alcançar o conhecimento das coisas é “exploração da consciência humana” (Campos, 1973, p. 37). Assim, a fenomenologia se constituiu como “uma exploração completa e sistemática da consciência” (p. 37). O método fenomenológico visa a acessar os fenômenos da consciência, que, em seu caráter intencional, envolvem diversos elementos, tais como pessoas, eventos, experiências, memórias sentimentos, pensamentos, imagens, fantasias, construtos mentais etc. Pode-se afirmar que Husserl foi além de Brentano, que se limitava à descrição dos fenômenos psíquicos. Husserl ultrapassou a psicologia descritiva de Brentano, propondo claramente um novo caminho: a fenomenologia (Zahavi, 2015). Fez uma censura às ciências humanas, principalmente à psicologia de sua época, por adotarem os métodos das ciências naturais como propostos por Wundt, aplicando-os sem perceber que seu objetivo é diferente. Afirmava que a natureza só é acessível indiretamente, a partir de fatos hipotéticos e mediatos– ou mediados (por instrumentos, quer sejam os órgãos dos sentidos, quer aparelhos como o microscópio, o telescópio ou o estetoscópio) -, permitindo uma reconstrução e, portanto, uma explicação3, enquanto a vida psíquica é um dado imediato, que exige descrição e sua consequente compreensão4: “explicamos a natureza, compreendemos a vida psíquica”5. Para Husserl, se a psicologia contemporânea pretendia ser a ciência dos fenômenos psíquicos, deveria firmar-se na descrição e na determinação destes fenômenos com um rigor conceitual, ou seja, com um trabalho metódico e conceitos rigorosos. Assim, Husserl rejeitou o naturalismo das ciências naturais e da psicologia por não especificarem seu objeto, tratando-o como um objeto físico e confundindo as causas exteriores de um fenômeno com a sua natureza. Isto acarretava, como consequência, a afirmação de razões e de causas: leis biológicas, psicológicas ou sociológicas. Husserl chamou tudo isto de psicologismo, criticando-o por levar à destruição da base destas ciências, pois reduzia a atividade humana a fenômenos naturais, uma crítica que parece ser ainda bastante atual6. Opôs-se também às posições filosóficas do passado, chamando-as de filosofias prontas e acabadas. Desta forma, a proposta de Husserl pretendeu unir os dados da experiência em sua totalidade (phainomenon7) e o pensamento racional (logos), compondo, assim, a fenomenologia. Como o fenômeno não é construído e é acessível a todos, e o pensamento racional também o é, chega-se a uma filosofia como ciência rigorosa. 3 Ex-plic-ação, significando literalmente ação de aplicar de fora. 4 Com-preensão, significando literalmente apreensão simultânea ou próxima. 5 Trata-se de um argumento atribuído a Wilhelm Dilthey (1894/2011), em suas Ideias sobre uma Psicologia Descritiva e Analítica. Neste sentido, Franco (2012) esclarece que “explicação, como proposto por Dilthey, está associada ao campo das ciências naturais e compreensão ao campo das ciências humanas. Quando se valoriza a explicação como principal elemento do trabalho científico, a diferenciação entre os dois tipos de ciência se esvai. A noção de compreensão, por outro lado, destaca que não pode haver ciências humanas e sociais sem a valorização da peculiaridade dos estudos humanos. Esta distinção tem a ver com aceitação do fato de que o fenômeno humano não é inteiramente reduzível aos fatos e leis das coisas naturais” (p. 21). 6 Não por acaso, nos tempos atuais, podemos perceber uma crescente aproximação reducionista das vertentes positivistas da psicologia em relação às ciências naturais, biomédicas e/ou neurofisiológicas. 7 Do grego phainomenon, originado de phainesthai, significando aparecer (Japiassú & Marcondes, 2001). Portanto, entre uma primeira via do discurso especulativo da metafísica e uma segunda via do raciocínio das ciências positivas, Husserl propôs uma terceira via: a do retorno às coisas mesmas ou intuição originária, ou seja, uma via que, antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade, ou das coisas mesmas. Os fenômenos são percebidos a partir dos sentidos, mas são dotados de um sentido ou de uma intuição da essência. Husserl propôs uma intuição da essência ou dos sentidos, além dos dados dos sentidos. A questão, para a fenomenologia, a partir de Husserl, se tornou clarificar o fenômeno por meio da descrição: as perguntas “o que é?” e “como é?”, tão comuns nos processos psicoterápicos de base fenomenológico-existencial remetem a questões que a fenomenologia busca responder (Angerami, 1985; Zahavi, 2015). A intuição da essência, diferentemente da percepção do fato, “é a visão do sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente percebido e que nos permite identificá-lo” (Angerami, 1985, p. 35). Por exemplo, a criança que, sem um compasso, traça uma forma oval e diz que é um círculo, nos remete ao sentido que atribui ao seu desenho; ou o triângulo que, em qualquer tempo e lugar, é sempre um triângulo. Há uma essência do fenômeno, um sentido ideal atribuído pelo homem, que a fenomenologia visa a alcançar com sua proposta metodológica. Na psicoterapia, a intuição da essência é um recurso importante do psicoterapeuta para o acesso aos fenômenos vividos pelos pacientes. Assim, pode-se afirmar que a fenomenologia, tal como proposta por Husserl, é uma ciência eidética, termo grego derivado de eidos, essência, advindo de Platão (Campos, 1973). Mas de onde provêm as essências? Da consciência, ou seja, elas se dão a nós como vivências da consciência. Esta ideia vem do princípio da intencionalidade de que a consciência é sempre consciência de alguma coisa; isto é, só existe consciência estando dirigida a um objeto (sentido de intentio). Objeto e consciência estão sempre relacionados e, portanto, o objeto é sempre objeto-para-um-sujeito. Daí, conclui-se a existência intencional do objeto na consciência. Não se trata de considerar que o objeto está contido na consciência como que dentro de uma caixa, mas que só tem seu sentido de objeto para uma consciência. Sua essência é sempre o termo de uma direção a uma significação e sem esta direção não se poderia falar de objeto nem de uma essência de objeto. As essências não têm existência alguma fora do ato de consciência que as visam e do modo sob o qual elas as apreendem na intuição (Angerami, 1985; Zahavi, 2015). Pode-se exemplificar a análise intencional através da visão de uma árvore no jardim. Há a árvore real, como objeto em-si, e a árvore representada. A análise intencional não parte do objeto em-si, nem do objeto representado. Parte das coisas mesmas, da árvore-como- percebida, ou seja, do ato-de-percepção-da-árvore-no-jardim, que é a vivência original a partir da qual chegamos a conceber a árvore ou uma árvore representada (Dartigues, 1973). A fenomenologia, nos moldes de Husserl, se voltou à busca da essência da vivência da consciência, um sentido primário que dá condições para reflexões posteriores sobre o objeto. Se um objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, no sentido fenomenológico, ele jamais será objeto-em-si, mas objeto percebido, imaginado, pensado etc. A análise intencional concebe a relação consciência-objeto de modo distinto daquele do senso comum. Consciência e objeto não são entidades separadas na natureza, mas definem-se a partir desta correlação que lhes é co-original. O campo da análise fenomenológica é elucidar a essência desta correlação, na qual se estende o mundo inteiro (Angerami, 1985). O que conduziu Husserl a definir a fenomenologia com a ciência descritiva das essências da consciência e de seus atos é o foco no estudo da correlação sujeito-objeto, que ocorre apenas na intuição originária da vivência (Erlebnis8) de consciência. Não se trata mais, então, apenas de uma psicologia descritiva, tal como a praticava Brentano. A consciência contém muito mais aspectos do que a si mesma. Por meio dela e da sua incessante correlação com o(s) objeto(s), podemos perceber “a essência daquilo que ela não é” (Dartigues, 1973, p. 36). A análise intencional leva à redução ou abstenção fenomenológica (epockhé9), uma colocação entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, existindo em si mesma, independentemente de todo ato de consciência. Husserl entendia que a concepção do senso comum era idêntica à atitude natural, ou seja, pois ambas pensavam que o sujeito está no mundo como em algo que o contém, ou como uma coisa entre outras coisas, entre objetos e outros seres vivos ou conscientes, e até mesmo entre ideias, que encontramos já aí, independentemente de si mesmo (Angerami, 1985; Zahavi, 2015). Permitindo a distinção sujeito/objeto ou consciência/mundo numa correlação mais original do que a dualidade sujeito/exterior,a análise intencional busca se situar no interior da correlação em que ocorre a separação entre o interior e o exterior. No entanto, o acesso a essa dimensão primordial apenas é possível se a consciência efetuar uma verdadeira conversão, ou seja, se suspender sua crença na realidade do mundo exterior para colocar-se como consciência 8 “Erlebnis (do alemão erleben: experimentar algo; derivado de leben: viver), termo utilizado pelos filósofos existencialistas para designar a experiência íntima do indivíduo, seu ‘vivido’, suposto indizível. Assim, o vivido (Erlebnis) tende a opor-se ao conhecimento unicamente intelectual” (Japiassú & Marcondes, 2001, p. 64). 9 Do grego, significando suspensão do juízo. “Na medida em que a fenomenologia visa descrever os fenômenos presentes na consciência e não os fatos físicos ou biológicos, ela é levada a pôr esses fatos ‘entre parênteses’. A epoché designa justamente essa colocação entre parênteses, essa suspensão do juízo (sinônimo de ‘redução fenomenológica’). O homem tem consciência de um mundo que se estende no espaço e no tempo, sendo-lhe acessível pela intuição imediata e pela experiência; as coisas corporais estão aí, quer me ocupe delas, quer não. Esse mundo natural é um existente, uma realidade: eis a tese geral da atitude natural, diz Husserl. A epoché consiste em alterá-la radicalmente, quer dizer, em suspender o juízo sobre o mundo natural (Japiassú & Marcondes, 2001, p. 64). transcendental10, condição de aparição desse mundo e doadora de seu sentido (atitude transcendental). Assim, a consciência não é mais uma parte do mundo, mas o lugar do seu desdobramento no campo original da intencionalidade. O mundo não é em primeiro lugar e em-si- mesmo, como explicam as filosofias especulativas e as ciências da natureza, mas o que aparece à consciência e a ela se manifesta na evidência de sua vivência. O mundo é o que ele é para a consciência (Angerami, 1985) e a redução fenomenológica se caracteriza, justamente, como o artificio metodológico de revelação desse mundo. É neste sentido que Dartigues (1973) afirma: “o mundo, na atitude fenomenológica, não é uma existência, mas um simples fenômeno” (p. 36). A tarefa da fenomenologia é descrever e analisar as vivências intencionais da consciência para perceber como aí se produz o sentido dos fenômenos, inclusive o sentido desse fenômeno global que se chama mundo. A fenomenologia se torna, consequentemente, o estudo da constituição do mundo da consciência ou fenomenologia constitutiva. Além de seus estudos no campo da fenomenologia transcendental, Husserl (1954/2012), ao final de sua vida, deu destaque às críticas sobre as ciências positivistas em ascensão no século XX, que desconsideravam os sentidos da subjetividade humana ao enaltecerem o objetivismo. O modelo científico da época se prendia ao dualismo cartesiano que separava mente e corpo, bem como interior e exterior e sujeito e objeto, pois seu objetivo era entender a realidade em si mesma, e não em como ela é para nós (Husserl, 1954/2012; Zahavi, 2015). Ao trilhar este percurso, Husserl (1954/2012) tentou restituir a significação da vida que fora perdida pela ciência positivista, e retoma, 10 Do latim transcendere, significando ultrapassar, superar. Conforme Japiassú e Marcondes (2001), “a noção de transcendência opõe-se à de imanência, designando algo que pertence a outra natureza, que é exterior, que é de ordem superior. (...) Também se refere ao “que está além do conhecimento, além da possibilidade da experiência, que é exterior ao mundo da experiência” (p. 185). então, a noção de Lebenswelt – mundo vivido ou mundo da vida. Este é o mundo que possui seus sentidos essenciais, pois é “pré-dado como horizonte de todas as induções de sentidos. Encontramo-lo como o mundo de todas as realidades conhecidas e desconhecidas” (Husserl, 1954/2012, p. 40). Os estudos de Husserl (1954/2012) sobre o Lebenswelt puseram em questão o cientificismo da época ao buscarem resgatar a experiência pré-científica, entrelaçando subjetividade e mundo e visando a compreender esta relação em seu sentido intersubjetivo (Zahavi, 2015). Portanto, homem e mundo estão imbricados e é nesta relação que surge o mundo vivido como ponto de desvelamento de nossas experiências. Em momento posterior, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2006; 1951/1969; 1964/2014) retomou os estudos de Husserl sobre o Lebenswelt, tema caro à fenomenologia, e ampliou o seu campo de discussão ao inserir nele a experiência, ao mesmo tempo, como condição e como fundamento do sujeito transcendental, questão que discutiremos a seguir. A fenomenologia da ambiguidade de Merleau-Ponty Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo francês, nascido na cidade de Rocheford-Sur-Mer, foi um dos grandes representantes do pensamento fenomenológico na França. Além de acadêmico e intelectual, Merleau-Ponty também se envolveu em questões políticas quando, juntamente com Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Raymond Aron, Michel Leiris, Albert Ollivier e Jean Paulhan, fundou a revista Les Temps Modernes11. Era um período de ebulição 11 Les Temps Modernes foi a mais marcante revista política, filosófica e literária francesa no período após a II Guerra Mundial. Sua comissão editorial foi criada em 1944 e seu primeiro número mensal lançado em 1945. Foi, inicialmente, dirigida pelo filósofo Jean-Paul Sartre até sua morte, em 1980, seguido por sua mulher, a filósofa e escritora Simone de Beauvoir, falecida em 1986, quando passou a ser publicada por seu último editor, o jornalista, escritor e cineasta Claude Lanzmann, até 2018, ano de sua morte. Em 2019, após 74 anos de existência, a editora Gallimard considerou seu político-social, em que a França vivia uma coalizão tripartidária católica, socialista e comunista, durante o governo provisório instalado após a Segunda Guerra Mundial. Tal situação instigou no filósofo o interesse de refletir e de discutir acerca da condição existencial humana, imprimindo tal questão em seus escritos (Coelho Júnior & Carmo, 1992; Cremasco, 2009). As obras de Merleau-Ponty (1942/2006; 1945/2006; 1951/1969; 1964/2014) reinseriram a existência no processo de mútua constituição da relação homem/mundo, proporcionando grandes contribuições não somente para a filosofia, mas também para a psicologia e para a psicopatologia (Coelho Júnior, 2003). O tema fundamental de suas investigações foi sempre a relação entre o homem e o mundo ou a relação entre consciência e natureza. Seu existencialismo era dirigido para um resultado positivo, pretendendo evitar a negação da possibilidade da existência e da sua liberdade finita (Abbagnano, 1984). As suas primeiras obras, mesmo no campo filosófico, discutiam questões que atravessam a psicologia, tais como o comportamento e a percepção, resultando em seus livros A Estrutura do Comportamento e Fenomenologia da Percepção. Nestas obras, ao enraizar a consciência no mundo, elaborou uma crítica ao positivismo de sua época. Em A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty (1942/2006) analisou os resultados das investigações das escolas de psicologia experimental de sua época – o behaviorismo e a teoria da gestalt – conseguiram nos últimos anos, visando ao questionamento da interpretação causal da relação entre alma e corpo. Merleau-Ponty (1942/2006) afirmava que o objetivo das teorias experimentais residia em analisar, separadamente, o funcionamento das partes de sua configuração total, o que as impedia de alcançar a compreensão de comportamento como uma totalidade integrada e dinâmica (Melo etfechamento inevitável (https://www.theguardian.com/world/2019/may/25/les-temps- modernes-closed-paris-mourns-de-beauvoir-journal). al., 2016). As explicações do comportamento eram limitadas a causas anatômicas, específicas e pontuais (Furlan, 2001). Para Merleau-Ponty (1942/2006), há, na verdade, uma dualidade dialética na relação entre alma e corpo. Afirmava que, se a alma age sobre o corpo, significa reconhecer o corpo como uma totalidade fechada e a existência de uma força responsável pelo significado espiritual de alguns de seus comportamentos. Por sua vez, considerar que o corpo age sobre a alma significa reconhecer a alma como uma força sempre presente ao corpo, podendo ser contrariada pela força mais potente dele. Na realidade, para Merleau-Ponty (1942/2006), estas expressões – corpo e alma - indicam apenas certos níveis de comportamento e significados diferentes. Merleau-Ponty (1942/2006) fazia uma distinção entre estrutura e significado. A estrutura de um comportamento é visível tanto do exterior quanto do interior e é por meio dela que o outro me é tão acessível quanto o meu próprio eu. O significado equivale ao sentido, e, sem ele, percebemos apenas o significado aparente do comportamento (Abbagnano, 1984). Ele refutava a ideia do corpo como mecanismo fechado sobre o qual a alma, ou mesmo o cérebro, poderia agir. O corpo é definido apenas por seu funcionamento, permitindo vários graus de interação. Assim, trata-se de uma estrutura que não é nem coisa nem consciência, mas que corresponde a uma região de sentidos que conduz a pensar a própria existência. Recusava, ao mesmo tempo, a concepção mecanicista de corpo e a noção intelectualista de consciência (Furlan, 2001), permanecendo “com sua concepção de homem como ser-no-mundo” (Rezende, 1975, p. 453). Assumindo um ponto de vista estrutural, Merleau-Ponty reconhecia a prioridade do fenômeno em relação ao real e do percebido em relação às coisas em si mesmas (Rezende, 1975). Em momento posterior, com a publicação da obra Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1945/2006) se inspirou na fenomenologia de Husserl (1954/2012) e destacou a noção de Lebenswelt como o tema principal da fenomenologia, repondo a existência na essência dos fenômenos. A consciência não é, como afirmava Husserl, o olhar lançado sobre o mundo por um espectador desinteressado, mas é sempre a consciência de um eu consagrado ao mundo (Merleau-Ponty, 1945/2006). A facticidade é uma marca da sua fenomenologia. O ponto de partida da filosofia fenomenológica é o cogito (o pensamento de um indivíduo isolado), mas entendido que “eu pertenço a mim mesmo enquanto pertenço ao mundo” (p. 466). Assim, a verdadeira reflexão decorre da identificação com minha presença no mundo e perante os outros; sou um campo intersubjetivo, sou corpo, sou a minha situação histórica. Daí, o problema da percepção passa a ser o problema da relação entre a consciência e o mundo (Abbagnano, 1984). A noção central desenvolvida por Merleau-Ponty, neste período, é o corpo, que constitui a inserção da consciência no mundo como ponte para a subjetivação humana. O corpo é dotado de um instrumento para a projeção de um mundo cultural: a linguagem, que é um sistema particular de vocabulário e de sintaxe. A linguagem como palavra é a revelação do ser ou da nossa ligação com o ser (Merleau- Ponty, 1945/2006; Abbagnano, 1984). A percepção do mundo tem o corpo como condição. Esta percepção nunca é um fato isolado ou isolável e remete a uma fenomenologia do sensível que se distancia do intelectualismo e aponta para uma compreensão da percepção como modo de sentir. Para Merleau-Ponty (1945/2006), o mundo e as coisas são sempre abertos, ou seja, “reenviam sempre para além das suas manifestações determinadas. (...) A este inacabamento do significado das coisas que se apresentam no mundo e do próprio mundo chama Merleau-Ponty de ambiguidade (...)” (Abbagnano, 1984, p. 194). Trata-se de um inacabamento que também é característico da própria fenomenologia em sua incessante tentativa de “revelar o mistério do mundo e o mistério da razão” (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 20). Ao demonstrar que o corpo é, ao mesmo tempo, sujeito e veículo do ser no mundo, Merleau-Ponty (1945/2006) revelou um caminho de conhecimento e de abertura caracterizado pela permanência absoluta de um corpo sempre presente e engajado, mas que deve tanto ser considerado um objeto do mundo quanto ser reconhecido como um meio de comunicação com este mesmo mundo. Se o corpo não é mais apenas um objeto, ele se torna um sujeito? Uma resposta positiva não poderia resolver de imediato o problema das dicotomias ainda apontadas por Merleau-Ponty: sujeito e objeto, homem e mundo, interior e exterior, e mente e corpo. Elas continuariam a existir como elementos opostos. Afastando-se do concepção clássica de psicologia, que atribui ao corpo características próprias compatíveis com o status de objeto, Merleau-Ponty reconheceu a impossibilidade de assimilar o corpo próprio a um objeto devido ao fato de que não podemos nos distanciar completamente dele. O corpo significa um "campo de presença" (p. ?) e permite a comunicação com o objeto. Para Merleau- Ponty, o corpo "não é nem tangível nem visível na medida em que é aquilo que vê e aquilo que toca" (p. 136). Merleau-Ponty (1945/2006) comparava o corpo a uma obra de arte, sendo sua maneira de se distanciar da ideia do corpo como objeto físico: um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes (p. 209-210). Acrescentava que “o corpo revela sentidos e expressa, em cada momento, ‘modalidades da existência’” (p. 220). Ele assume o papel de expressar, mas carrega consigo aquilo que é expresso, colocando-nos continuamente em situação, ou seja, transformando em ato tudo aquilo que era ideia. Trata-se de um “acontecimento da existência” (Nóbrega, 2008, p. 142), como ilustrava Merleau-Ponty (1945/2006): sono, despertar, doença e saúde não são modalidades da consciência ou da vontade, eles supõem um "passo existencial". A afonia não representa apenas uma recusa de falar, a anorexia uma recusa de viver, elas são essa recusa do outro ou essa recusa do futuro arrancadas da natureza transitiva dos "fenômenos interiores", generalizadas, consumadas, tornadas situação de fato. O papel do corpo é assegurar essa metamorfose. Ele transforma as idéias em coisas, minha mímica do sono em sono efetivo. Se o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade (p. 227). Ao existirmos como corporeidade, nos realizamos com e por meio do corpo. Dormir, comer, andar, estar doente, para além de objetividades ou ações, são passos existenciais vividos pelo corpo. Dastur (2001) considera que, ao buscar uma via média entre o empirismo e o intelectualismo, Merleau-Ponty (1945/2006) atribui ao corpo o papel de fundação da subjetividade, o que podemos perceber em suas próprias palavras: minha existência como subjetividade é uma e a mesma que minha existência como corpo e com a existência do mundo, e porque finalmente o sujeito que sou, concretamente tomado, é inseparável deste corpo-aqui e deste mundo-aqui (p. 547). Como pensador da existência, Merleau-Ponty evidenciou a condição humana de estar no mundo e a concepção de que a experiência corporal tem o papel de campo criador de sentido. Em plena maturidade intelectual, Merleau-Ponty morreu aos 52 anos, em 1961. Durante seu curtocaminho de vida, mas notável por sua fertilidade, ele procurou, a partir de sua concepção de corpo, restaurar “o processo de subjetivação do ser humano que faz parte da estrutura do corpo" (Sichère, 1982, p. 2020). Sua morte precoce interrompeu o curso de uma série de escritos com conteúdo inovador, deixando para trás vários manuscritos que, desde então, têm sido objeto de pesquisa. Sua obra permanece potente, atual e inacabada, como a própria fenomenologia. Considerações finais Ao propormos (re)visitar as noções básicas de fenomenologia, nosso intuito é assinalar as principais contribuições da fenomenologia à psicologia. Inicialmente, destacamos a noção de intencionalidade, que aponta para o processo de significação que ocorre na (co)relação da consciência com o objeto ou do sujeito com o mundo. Este princípio serve de mote para a busca de sentidos que atravessa as práticas clínicas de inspiração fenomenológica. Em seguida, assinalamos a contribuição do método fenomenológico, que, em sua origem, objetivou alcançar a essência dos fenômenos da consciência. A intuição das essências é uma intuição além dos dados dos sentidos. É a visão do sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente percebido e que nos permite identificá-lo, compreendendo diretamente o mundo vivencial do indivíduo. Para tanto, a consciência precisa fazer uma redução ou abstenção (epocké), pondo entre parênteses a forma de perceber do senso comum, limitando-se a descrever os fenômenos como se apresentam a ela. O desenvolvimento do método fenomenológico acena para seu caráter existencial, que repõe as essências na existência, como afirmou Merleau-Ponty, e fornece um caminho de acesso à experiência. Trata- se de um método que cria condições para que os diferentes fenômenos vividos emerjam e que possam ser clarificados na incessante busca da compreensão dos significados da experiência vivida. Utilizado em pesquisa e também em diferentes práticas clínicas, o método fenomenológico fornece elementos concretos para a psicologia. Outra contribuição da fenomenologia que podemos destacar é a sua ênfase no presente. Parte do princípio de que os fenômenos ocorrem aqui e agora e o presente é a única experiência possível. Ao se apresentar como uma filosofia do estar aqui-agora, a fenomenologia não nega as influências do passado ou as possibilidades de transformação do futuro, mas considera que elas apenas são significativas no presente. Além disso, a fenomenologia valoriza o como (processo) sobre o porquê (causa). O como leva-nos a compreender o processo, proporcionando a apreensão do fenômeno total. O porquê é fundamentado em causas ou origens, levando a explicar os fenômenos em termos de causalidade, elemento que a fenomenologia recusa como fundamento único dos fenômenos psíquicos ao longo de toda sua história. Podemos salientar, ainda, a concepção de corpo, principalmente sob a égide de Merleau-Ponty, que acentuava o caráter vivido do corpo e sua potência expressiva. Com uma fenomenologia do sensível, Merleau-Ponty contribuiu para um novo olhar para o corpo que serve de inspiração para a compreensão de uma série de fenômenos contemporâneos que têm no corpo sua via de expressão. Trata-se de um corpo dotado de sentido e de (im)possibilidades. Por último, a fenomenologia proporciona uma nova visão do fenômeno como totalidade, abandonando a cisão ou a dualidade entre sujeito e objeto, consciência e mundo, e interior e exterior, o que pode contribuir de forma significativa para o modo como compreendemos a (inter)subjetividade constituída indissociavelmente na sua relação com o mundo. Referências Abbagnano, N. (1984). História da filosofia. (3ª ed., Vol. XIV). Lisboa: Editorial Presença. Angerami, W. A. (1985) Psicoterapia existencial: noções básicas. São Paulo: Traço. Boris, G. D. J. B. (2011). 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