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Saúde Pública e Farmacoepidemiologia Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Thais Adriana do Carmo Revisão Técnica: Prof.ª Me. Luciana Nogueira Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco História da Saúde Pública Brasileira • Introdução; • Uma breve história da saúde e das políticas públicas brasileiras. • Apresentar alguns aspectos históricos e algumas refl exões sobre a evolução do sistema de saúde e da saúde brasileira. Analisar a história é fundamental para o entendimento da situação de saúde atual. • Resgatar os principais atores e sujeitos, as principais concepções e fatos que contribuíram para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) – com os seus avanços e problemas. Leia o Material teórico com atenção, procurando refl etir sobre o assunto proposto e a sua importância para a inserção do profi ssional farmacêutico no contexto da saúde do País. OBJETIVO DE APRENDIZADO História da Saúde Pública Brasileira Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira Contextualização Nesta Unidade abordaremos uma breve história da saúde pública no Brasil. Entender como foi o desenvolvimento do setor da saúde em nosso país e as suas consequências é imprescindível aos profissionais e gestores em saúde pública. Partiremos do pressuposto de que o modelo assistencial adotado em determina- da comunidade é construído historicamente e diretamente determinado pelas suas concepções e pelos seus valores próprios. Portanto, é fundamental conhecer um pouco da história para a compreensão da realidade atual e planejamento do futuro. 8 9 Introdução Quando se analisa o perfil epidemiológico de diferentes países, percebe-se que o processo saúde-doença acontece de formas distintas, dependendo das condições sociais e econômicas de cada um. De fato, a saúde está diretamente ligada às condi- ções de vida da população, ao desenvolvimento tecnológico e científico disponível, ao acesso da população a bens e serviços, ao modo de produção de cada sociedade. Nessa perspectiva, pode-se dizer que os fatores que determinam a ocorrência e distribuição dos fenômenos ligados ao processo saúde-doença são construídos historicamente e dependem do desenvolvimento econômico, da forma com que cada sociedade foi organizada, dos valores culturais e de como são estabelecidos os papéis e as relações de cada um no contexto social. A diversidade abrange desde a forma de se pensar saúde ou doença – conceito – até a forma de organização dos serviços de saúde – modelo assistencial. Por exemplo: Nos Estados Unidos há programas públicos de saúde – Medicare e Medicaid –, mas somente para trabalhadores de baixa renda e/ou aposentados que comprovem situação de pobreza. A maioria da população (75%) tem planos ou se- guros privados de saúde. Nesse país, a atenção à saúde individual é percebida como uma questão privativa de cada cidadão. Ao Estado cabem ações consideradas clás- sicas em saúde pública, tais como a fiscalização e o controle de bens, serviços e o acompanhamento de doenças transmissíveis. Já no Canadá, o sistema de saúde é público, organizado e administrado pelo Estado. O princípio que orienta esse modelo assistencial é que a saúde é um direito de todos. A partir da universalização do atendimento, da integralidade das ações de saúde e da gestão pública do sistema, o objetivo é garantir um sistema público forte para [...] somar anos à vida (percentuais de reduções de mortalidade por do- enças cardiovasculares, câncer de mama, acidentes etc.); somar Saúde à vida (percentuais de redução de dor lombar, de doenças sexualmente transmissíveis, de fumantes, entre outros) e somar bem-estar à vida (autonomia, saúde mental, redução da violência). (CONILL, 2000) É importante ressaltar que o Canadá foi um dos primeiros países a adotar uma con- cepção de processo multideterminado e dinâmico em relação à saúde/doença. No Brasil há o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988 por meio da Constitui- ção Federal. Esse sistema parte do princípio de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Possui diretrizes semelhantes àquelas adotadas pelo Canadá – universalidade e equidade de acesso, integralidade das ações de saúde, unificação e descentralização administrativa etc. (CARVALHO, 1993). Mas será que a resolutividade do SUS é semelhante à do sistema canadense? Ou será que o modelo estadunidense é o que atende melhor à população?Ex pl or 9 UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em um serviço hierarquizado por níveis de atenção à saúde, a atenção primária deve ser capaz de resolver cerca de 80% das demandas da população (TURRINI; LEBRÃO; CESAR, 2008). Será que é isso que acontece no Brasil? E com o restante do sistema? Para quem acompanha as notícias de jornais, a impressão é que o SUS não atende às necessidades da população brasileira. As manchetes mencionam filas, falta de médicos, demora para a realização de exames, dificuldade de acesso a me- dicamentos, epidemias de dengue, surtos de febre amarela etc. E essa impressão é corroborada por artigos científicos. Turrini, Lebrão e Cesar (2008), por exemplo, relatam a avaliação do serviço através de inquérito realizado com usuários. Um dos resultados obtidos é que os pacientes buscavam atendimento em diferentes serviços, até mesmo em outras regiões além daquelas em que resi- diam – e muitos dos quais continuavam com a queixa inicial. Importante! Existem muitos artigos publicados sobre a impressão dos usuários do SUS, mas cuidado! Muitos apresentam uma pesquisa com pouquíssimos usuários, ou regiões delimitadas, o que pode levar a um julgamento equivocado sobre a verdadeira condição do Sistema. Assim, leia os materiais, mas sempre com olhar crítico. Importante! Além da literatura científica, um fenômeno atual, conhecido como judicialização da saúde, reforça a percepção de que o setor da saúde é um problema no País. Esse fenômeno nada mais é do que a busca da garantia a medicamentos, exames ou pro- cedimentos necessários à manutenção e recuperação da saúde por meio de ações judiciais. Ou seja, pessoas que necessitam dessas intervenções enão as conseguem através do SUS, entram na Justiça para obtê-las (PEPE et al., 2010). A Pesquisa nacional de saúde, realizada em 2013 – em uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, realizou um levantamento de base nacional com três questionários: um referente às características do domicílio, outro acerca dos moradores do domicílio e um individual. A previsão era a realização dessa pes- quisa a cada cinco anos e os resultados podem ser consultados em: https://goo.gl/ovW1qH Ex pl or Partindo do pressuposto de que o modelo assistencial adotado em determinada comunidade é construído historicamente e diretamente determinado por suas con- cepções e valores próprios, é fundamental conhecer um pouco da história para a compreensão da realidade atual. Entender como foi o desenvolvimento do setor de saúde no Brasil e as suas consequências é imprescindível aos profissionais e gesto- res em saúde pública, até mesmo para que possam melhorar as condições de vida e a realidade brasileira. 10 11 Uma Breve História da Saúde e das Políticas Públicas Brasileiras Por meio dos relatos dos primeiros portugueses que chegaram ao Brasil, tem-se uma ideia de que aqui era um “paraíso”. Era uma terra de índios fortes, robustos e saudáveis e isenta das epidemias europeias. Figura 1 Fonte: historia.ufg.br Mas a ideia de perfeição logo foi abandonada. A política de Portugal com a nova colônia foi baseada no extrativismo – modelo exploratório. As riquezas – madeira e ouro, principalmente – eram retiradas e enviadas para Portugal. Na primeira fase do período colonial, a Corte Portuguesa enviava expedições periódicas e posteriormen- te, com a criação das capitanias hereditárias, iniciou o processo de povoamento. Processo que encontrou grandes dificuldades, principalmente na instalação dos colonizadores que não dispunham de infraestrutura adequada e nos conflitos inten- sos estabelecidos com os índios. Aos poucos, a economia foi se desenvolvendo ba- seada em trabalho escravo e no desbravamento do interior do território brasileiro. De fato, a Corte Portuguesa não buscou uma organização do espaço social. A situação de vida era precária e insalubre. No setor da saúde não houve nenhuma ação sistematizada. Além disso, havia grande carência de profissionais de saúde. A grande maioria dos físicos – médicos – e boticários – farmacêuticos – que aqui atuavam era leiga, sem formação universitária, que recebiam autorização do físico- -mor – médico do rei – para exercer a profissão na Colônia (BERTOLLI FILHO, 2008; NUNES, 2000). Em relação à legislação, eram vigentes as mesmas normas e decisões de Portu- gal, mas sem a mesma fiscalização. 11 UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira Foi um período marcado por epidemias, tais como a varíola – trazida pelos escravos africanos – no Nordeste – associada à lavoura da cana-de-açúcar – e em Minas Gerais – associada à extração do ouro –, a hanseníase e peste, todas com altas taxas de mortalidade entre a população. Algumas ações isoladas eram realizadas visando o controle das epidemias e havia um insipiente controle dos portos, das ruas, casas e praias (NUNES, 2000). Uma importante contribuição foi a dos padres jesuítas que vieram catequizar os índios e representar a Igreja Católica no Novo Mundo. Organizaram não apenas igrejas e pastorais, mas também os primeiros hospitais e as boticas. De fato, as boti- cas dos jesuítas eram quase sempre as únicas presentes em diversas vilas e cidades. E sem o arsenal medicamentoso europeu disponível, houve aproximação com a cultura indígena e muitas vezes o atendimento realizado era baseado na utilização de plantas consideradas medicinais (EDLER, 2006). A situação começou a melhorar com a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808. Para a instalação dos nobres, houve várias reformas em diferentes setores. A intenção era garantir condições adequadas de vida para a elite portuguesa que se transferiu para a Colônia. Juntamente com as obras de infraestrutura, foram criados hospitais e os primeiros cursos de Medicina e Farmácia. Entretanto, mesmo com tais avanços, a situação de saúde permaneceu precária. Havia poucos profissionais de saúde e desconfiança da população à Medicina euro- peia trazida junto com a Corte. Eram mínimas as condições sanitárias das cidades e os poucos hospitais não tinham higiene adequada, ou número de leitos suficientes (BERTOLLI FILHO, 2008). A maioria das ações adotadas relacionavam-se ao controle da varíola, mas sem muita eficácia. Com a Independência do Brasil e implantação do Império, partes das atividades realizadas foram descentralizadas aos municípios, tais como a vacinação contra a varíola e o controle da chegada dos escravos, nos portos, para evitar a entrada de doentes. Além dessas ações, os municípios identificavam os portadores de doenças infecciosas e os expulsavam da área urbana. Em 1829, foi criada a Imperial Academia de Medicina, como entidade asses- sora de D. Pedro I. Em seguida, as ações de saúde foram novamente centralizadas e colocadas sob a responsabilidade da Comissão Central de Saúde Pública, que se transformou na Junta Central de Higiene Pública. Esse órgão tinha a função de co- ordenar as atividades de saúde pública, fiscalizar o exercício da Medicina, realizar a vacinação antivariólica e inspecionar os portos – por meio da Inspetoria dos Portos. Foram criados também hospícios e lazaretos para receber loucos e doentes a fim de evitar a disseminação dessas doenças (BERTOLLI FILHO, 2008; BRASIL, [20--]). Entretanto, as ações realizadas foram insuficientes e o Brasil passou a ser conhe- cido como o país mais insalubre do mundo. Foi alvo de grandes epidemias nesse período, principalmente de varíola, febre amarela e cólera. 12 13 Importante! É importante destacar que durante todo o período colonial e imperial, predominava a teoria miasmática, que explicava a ocorrência das doenças a partir do aparecimento de ares corrompidos, gases nocivos, ou odores venenosos que se originavam na atmosfera ou no solo a partir da decomposição de plantas, animais e até mesmo dos indivíduos doentes, pobres – em cortiços –, ou de pessoas mortas – em cemitérios. Trata-se da concepção que direcionava as ações de saúde e dos profissionais médicos da época. Importante! A Proclamação da República, em 1889, trouxe como proposta a modernização do País. As diretrizes eram Ordem – uma nova ordem política (a República) – e Progresso – povo suficientemente saudável e educado. Na área da saúde, as prio- ridades deveriam ser tanto a saúde individual, quanto coletiva. Era o início da saúde pública no Brasil (ANDRADE; PONTES; MARTINS JUNIOR, 2000). Na primeira fase da República, os principais problemas ocorridos foram: • Grande choque entre as ideias tradicionais – teoria miasmática – e a Medicina Moderna – teorias de Pasteur e Bernard; • A situação dos serviços de saúde – totalmente desorganizados; • Epidemias de varíola, febre amarela, peste bubônica, febre tifoide e cólera (BERTOLLI FILHO, 2008). A partir de 1900 chegou ao País, por meio de pesquisadores formados na Euro- pa, um novo campo de conhecimento: a higiene social e epidemiologia. Os defen- sores desse movimento foram denominados higienistas, constituídos de médicos e cientistas que defendiam não apenas ações curativas, mas também a necessidade de políticas sociais definidas e estruturadas ao setor. Para tanto, procuraram assu- mir posições políticas e administrativas no governo, visando à implantação de uma política pública de saúde. A ação dos higienistas associada à precária situação de saúde e à imagem que os outros países tinham do Brasil – o Rio de Janeiro era conhecido como o “Túmulo dos Estrangeiros”, dada a magnitude da mortalidade ocorrida entre os imigrantes europeus –, fez com que o presidente Rodrigues Alves estabelecesse como priori- dade o saneamento e a reforma urbana da cidade carioca. Oswaldo Cruz foi nomeado diretor-geralde saúde pú- blica – cargo correspondente ao atual ministro da saú- de – e implementou as seguintes ações sanitárias, que se iniciaram no Rio de Janeiro e foram disseminadas para outras cidades: • Fiscalização sanitária dos habitantes das cidades; • Canalização dos rios; • Drenagem dos pântanos; • Destruição dos criadouros de ratos e insetos; Figura 2 - Oswaldo Cruz Fonte: Wikimedia Commons 13 UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira • Reforma urbanística; • Divulgação das regras de higiene; • Isolamento obrigatório das pessoas com doenças infectocontagiosas e mentais; • Proibição do exercício da Medicina por leigos; • Criação dos institutos de pesquisa e produção de vacinas e medicamentos – que deram origem aos atuais Instituto Butantan, Instituto Biológico e Instituto Adolfo Lutz; • Criação do Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos – atual Instituto Oswaldo Cruz –, com o objetivo de estabelecer normas e estratégias ao con- trole dos vetores da febre amarela; • Vacinação obrigatória contra varíola em todo o País. As medidas adotadas trouxeram grandes avanços na condição de saúde das cidades. Entretanto, houve muita resistência. A maioria da população, tanto leigos como profissionais de saúde, não acreditava nas propostas higienistas. Oswaldo Cruz foi ridicularizado e constantemente atacado. Por sua vez, o governo impunha as suas decisões, invadindo casas, derrubando cortiços e vacinando compulsoria- mente. O ápice dos atritos foi o episódio conhecido como a Revolta da Vacina: os cariocas se insurgiram contra o governo, montando barricadas nas ruas, organizan- do greves e enfrentando a polícia. Na década de 1920, foi promulgada importante Lei, criando as Caixas de Apo- sentadoria e Pensões (CAP); a Lei Elói Chaves buscava equacionar demandas de saúde e higiene relativas aos trabalhadores (BRAVO, 2006). As CAP recebiam contribuições do governo, das empresas e dos trabalhadores. Eram organizadas por empresas e tinham como objetivo garantir aos trabalhadores assistência médica- -curativa, medicamentos; aposentadoria por tempo de serviço, velhice e invalidez; pensão aos dependentes e auxílio funeral. O período compreendido entre 1930 e 1945, conhecido como “Era Vargas”, foi marcado pela adoção de políticas sociais mais organizadas e sistematizadas. Por exemplo, foi criado o Ministério da Educação e da Saúde Pública e publicada a legislação trabalhista – Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) –, que garantiu im- portantes direitos aos trabalhadores, tais como férias, 13º salário, salário mínimo, carga horária máxima de trabalho, entre outros. As ações de saúde foram estruturadas em dois setores: saúde pública e medi- cina previdenciária. A saúde pública era coordenada pelo Ministério da Educação e da Saúde Pública e envolvia ações coletivas e preventivas. Entre essas ações estavam o atendimento a enfermidades específicas, endêmicas, tais como a hanseníase, tracoma e ancilos- tomíase e campanhas de Educação em Saúde. A medicina previdenciária garantia as ações curativas e individuais aos trabalha- dores por meio dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP), criados a partir das CAP. 14 15 Ademais, os problemas decorrentes da estrutura adotada foram os seguintes: • Muitas vezes as decisões eram políticas – e não técnicas –, com consequente definição de prioridades que não correspondiam à demanda da população; • Com a centralização gerencial no governo federal houve uma desorganização dos serviços de saúde que já estavam estruturados em Estados mais desenvol- vidos e ricos; • Com a separação das responsabilidades entre o Ministério de Educação e Saú- de Pública e os IAP, a atenção à saúde foi fragmentada e as ações curativas organizadas em um modelo hospitalocêntrico, sem resolutividade, de alto custo e excludente. Além disso, as campanhas educativas realizadas, apesar de inovadoras, traziam em seu bojo um conceito eugenista, que responsabilizava a mistura de raças e a origem da população brasileira pela falta de educação e ocorrência das doenças no País. De fato, houve avanços nas condições sanitárias dos grandes centros, com a diminuição da ocorrência de epidemias urbanas. Entretanto, o período foi marcado pelo avanço das endemias na zona rural e no interior, principalmente a esquistosso- mose, doença de Chagas, hanseníase, tuberculose, doenças sexualmente transmis- síveis e doenças gastrointestinais. O modelo hospitalocêntrico não era viável para todo o País e faltavam hospitais e atendimento aos doentes. A concepção hegemônica acreditava que a saúde individual era de responsa- bilidade de cada um, cabendo ao Estado a garantia de ações de alcance coletivo e preventivo. Com a queda da ditadura de Getúlio Vargas, teve início um período de redemo- cratização (1945-1964). Assim, uma das prioridades do governo democrático era a organização racional dos serviços públicos. Os objetivos principais foram sistema- tizados no Plano Salte – que previa investimentos e avanços nas áreas de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia. Entretanto, esse plano não foi implementado totalmente e, com a volta de Vargas (em 1953), a situação da saúde presenciou outro retrocesso. O novo governo de Getúlio foi marcado pela ausência de uma política eficiente e racional, restando investimentos irrisórios na área da saúde. Para efeito de com- paração, enquanto nos Estados Unidos o investimento realizado no período era de cerca de 4,5% do seu Produto Interno Bruto (PIB) e na Inglaterra de 3,5%, o Brasil destinava cerca de 1,2% de seu PIB às ações de saúde. A partir de 1956, Juscelino Kubitschek propôs uma política desenvolvimentis- ta com ênfase em obras de infraestrutura, com exceção do saneamento básico. A área da saúde recebeu poucos investimentos, centralizados principalmente na construção de hospitais. Uma ação importante foi a criação de serviços de higiene infantil e de postos de puericultura, que tinham como objetivo a atenção à saúde da criança. 15 UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira Com poucos investimentos e uma política de saúde desarticulada, o Brasil che- gou à década de 1960 com uma situação precária, marcada por alta mortalidade infantil e baixa expectativa de vida. Enquanto nos países desenvolvidos já se alcan- çava uma taxa de mortalidade de menores de um ano abaixo de 10 mortes para cada 1.000 nascidos vivos (10 / 1000), na Cidade de São Paulo a mortalidade era de 86,5 / 1000, em Salvador, BA, de 353,5 / 1000 e em Natal, RN, chegava a 421,6 / 1000. Em relação à expectativa de vida ao nascer, os números eram baixos devido aos altos índices de mortalidade e morbidade observados: 51 anos em Porto Alegre, RS; 37 anos em Recife, PE, e 30 anos no sertão nordestino. O quadro era de falta de serviços e funcionários especializados e capacitados, inexistência de um planejamento adequado e a percepção de que a atenção à saúde era um ato de bondade dos políticos. Somente os trabalhadores devidamente regis- trados tinham direito ao atendimento individualizado e curativo. Nos governos de Jânio Quadros e João Goulart, a partir de 1960, a sociedade civil começou a se organizar para reivindicar melhores condições de vida, princi- palmente na zona rural. As ligas camponesas são exemplos dos movimentos civis organizados: pediam reformas de base – na educação, no sistema administrativo e tributário –, reforma agrária e mudanças no setor da saúde. Foi o início do movi- mento sanitário. Com o golpe militar em 1964 e a implantação da ditadura, a prioridade política passou a ser investimentos na segurança nacional e em obras de infraestrutura, de modo que o setor da saúde foi novamente deixado de lado. O modelo assistencial adotado foi fundamentado na centralização administra- tiva – o planejamento e as decisões ficavam a cargo da instância federal – e na dicotomia das ações individuais versus coletivas, assim como nas ações preventivas versus curativas. Novamente, a norma foi um modelo hospitalocêntrico,com ações insipientes e sem resolutividade. Em 1971, foi criada a Central de Medicamentos (Ceme) como uma política pú- blica visando à produção e distribuição de medicamentos essenciais – inclusive, produtos imunológicos. Com a redemocratização política, a partir de 1980, o movimento sanitário foi retomado. Tratava-se de um movimento articulado entre cientistas e pesquisadores da área da saúde, de lideranças políticas e movimentos populares que reivindica- vam uma reforma sanitária, propondo um modelo assistencial baseado na concep- ção de que a saúde é um processo multideterminado e, portanto, deve ser abordado de forma integral e multidisciplinar. Surgiu a proposta de um Sistema Único de Saúde (SUS), baseado em experiên- cias realizadas em outros países; público, hierarquizado em níveis de atenção à saú- de, com ênfase na atenção primária e com gestão descentralizada e participação 16 17 popular. Tal modelo foi defendido e estruturado na VIII Conferência Naciona l de Saúde, em março de 1986. Participaram desse evento [...] diversos setores organizados da sociedade e houve um consenso de que para o setor da saúde no Brasil não era suficiente uma mera reforma administrativa e financeira, mas sim uma mudança em todo o arcabouço jurídico-institucional vigente, que contemplasse a ampliação do conceito de saúde. (ANDRADE; PONTES; MARTINS JUNIOR, 2000) Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal brasileira, uma grande conquista foi determinante para a implantação do novo modelo: o reconhecimento de que a saúde é um direito inalienável de todos os cidadãos e que cabe à sociedade garantir esse direito. Figura 3 Na Constituição encon tram-se as diretrizes para a implantação do SUS: éticas – valorativas – e operativas – organizacionais –, a saber: 1. Unifi cação dos serviços de saúde – direção única em cada esfera de gover- no – e descentralização administrativa; 2. Atendimento universal e integral, com prioridade para as atividades pre- ventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; 3. Participação da comunidade na gestão do serviço. Em 1990, o SUS foi regulamentado por meio da Lei o rgânica da saúde (Lei n.o 8.142): • Lei Federal n.o 8.080/90: “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos servi- ços correspondentes e dá outras providências”; (BRASIL, 1990a) • Lei Federal n.o 8.142/90: “Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergover- namentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências”. (BRASIL, 1990b) Essas leis tratam dos objetivos do SUS, das responsabilidades dos diferentes gestores, das formas de financiamento do sistema e da viabilização da participação popular na gestão. 17 UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira Quadro 1 – Resumo dos princípios doutrinários e organizativos do SUS. Princípios doutrinários Princípios organizativos Universalidade: o SUS deve atender a todos, sem distinções ou restrições e sem custo. Regionalização: organização do SUS com base territorial e populacional – para promover a distribuição racional dos serviços. Equidade: as pessoas devem ser atendidas de acordo com as suas necessidades, sem privilégios, de forma justa – o que não é sinônimo de igualdade. Hierarquização: organização dos níveis conforme a densidade tecnológica dos serviços – pelos diferentes níveis de atenção. Integralidade: garantia de atenção holística – promoção, prevenção, tratamento e reabilitação. Descentralização: transferência de responsabilidade da gestão e dos recursos aos municípios. Controle social: garantia da participação social no acompanhamento e na formulação das políticas de saúde. Fonte: elaborado pela professora conteudista A década de 1990 foi marcada pela implantação do novo modelo. Esse processo foi acompanhado por intensos debates que refletiram – e refletem – [...] a presença de interesses antagônicos em relação à sua consolidação, tanto como política pública calcada na universalidade, equidade, inte- gralidade, participação da população e dever do Estado, quanto às difi- culdades para construir modelos assistenciais ancorados na concepção ampliada de saúde, que foi a base do processo de proposição do próprio SUS. (NOGUEIRA; MIOTO, 2009) Atualmente, tem-se no Brasil um arcabouço legal que sustenta um sistema de saúde universal, que tem como objetivo implantar medidas preventivas e curativas, de alcance individual e coletivo, a fim de atender às demandas populacionais. Leia o artigo intitulado A legislação da atenção básica do Sistema Único de Saúde: uma análise documental, de Domingos e colaboradores, apresentando uma reflexão sobre as normas jurídicas relativas ao SUS e à atenção básica. Disponível em: https://goo.gl/9xUYi5 Ex pl or Há desafios? Sim. Há falhas e problemas de acesso e atendimento. Faltam re- cursos, profissionais e equipamentos. Não há a mesma qualidade nas diferentes regiões do País. Há desvio de recursos e falta de um planejamento adequado. Contudo, são também percebidos vários avanços, por exemplo, a gestão dos serviços foi municipalizada em grande parte do Brasil; a rede de atenção básica foi expandida; estratégias como a saúde da família são exitosas; vários conselhos de saúde estão implantados e ativos etc. Agora, cabe a nós, profissionais de saúde e cidadãos brasileiros, contribuir para que a saúde seja realmente um direito de todos. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos A história da saúde pública no Brasil – 500 anos na busca de soluções O documentário A história da saúde pública no Brasil – 500 anos na busca de soluções, elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz mostra, de forma mais resumida, os pontos abordados no filme. Assista-o em: https://youtu.be/7ouSg6oNMe8 Filmes Políticas de saúde no Brasil O filme Políticas de saúde no Brasil: um século de luta pelo direito à saúde foi produzido em 2006, por iniciativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, do Ministério da Saúde, com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Este filme apresenta a história das políticas de saúde no Brasil e como essa se articulou com a história política brasileira, destacando os mecanismos que foram criados para a sua implementação, desde as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAP), até a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Leia uma resenha sobre este filme em: https://goo.gl/3Tzstn E o assista em: https://youtu.be/L7NzqtspLpc Leitura Equidade na Gestão Descentralizada do SUS: desafios para a Redução de Desigualdades em Saúde LUCHESI, P. T. R. Equidade na gestão descentralizada do SUS: desafios para a redução de desigualdades em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, v. 8, n. 2, p. 439-448, 2003. https://goo.gl/prx3iV 19 UNIDADE História da Saúde Pública Brasileira Referências ANDRADE, L. O. M. de; PONTES, R. J. S.; MARTINS JUNIOR, T. A descen- tralização no marco da reforma sanitária no Brasil. Rev. Panam. Salud Publica, Washington, USA, v. 8, n. 1-2, ago. 2000. Disponível em: <http://www.scielosp. org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1020-49892000000700026&lng=en&nr m=iso>. Acesso em: 25 fev. 2013. BAHIA, L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessá- ria, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 7, ago. 2018. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/csp/2018.v34n7/e00067218/ pt>. Acesso em: 18 fev. 2019. BERTOLLI FILHO, C. História da saúde pública no Brasil. 11. ed. São Paulo: Ática, 2008. BRASIL. Lei Federal n.o 8.080/90. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 20 set. 1990a. ______. Lei Federal n.º 8.141/90. Diário Oficial da União. 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