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O MÍNIMO SOBRE IDADE MÉDIA Edmilson Cruz 1ª edição — julho de 2022 — CEDET Copyright © Edmilson Cruz 2022 Sob responsabilidade do editor, não foi adotado o Novo Acordo Ortográfico de 1990. Os direitos desta edição pertencem ao CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Av. Comendador Aladino Selmi, 4630 Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8 CEP: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas-SP Telefones: (19) 3249–0580 / 3327–2257 E-mail: livros@cedet.com.br CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book CEDET LLC 1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761 Phone Number: (407) 745-1558 e-mail: cedetusa@cedet.com.br Editor: Felipe Denardi Copydesk: Ulisses Trevisan Palhavan Capa: Nelson Provazi Diagramação: Virgínia Morais Revisão de provas: Paulo Bonafina Flávia Theodoro Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo FICHA CATALOGRÁFICA Cruz, Edmilson. O mínimo sobre Idade Média / Edmilson Cruz Campinas, SP: O Mínimo, 2022. isbn 978-65-997705-4-8 1. Idade Média I. Título II. Autor CDD 909-07 ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO: 1. Idade Média — 909-07 www.ominimoeditora.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor. Sumário O MITO DA DARK AGE A SOCIEDADE E A ECONOMIA MEDIEVAIS A MULHER NA IDADE MÉDIA A EDUCAÇÃO NA IDADE MÉDIA O PRÓXIMO PASSO NOTAS DE RODAPÉ N O MITO DA DARK AGE a escola, você deve ter aprendido que na Renascença o pensamento moderno dissipou as trevas medievais, pôs fim ao período das sombras, colocando a ciência no lugar de uma névoa de superstições e crendices. Se chegou à universidade, então, tem certeza absoluta de que a Idade Média foi de fato a Era das Trevas, em oposição à luminosa Era da Razão que se seguiu. Pois é, aprendeu tudo errado. São pouquíssimas as pessoas que tratam a história da Idade Média de maneira sensata e sem viés ideológico, descrevendo como realmente foi esse tão vasto e interessante período. Neste livro, vamos falar de como se formou o mito da Dark Age e desmentir cada um de seus pilares: a sociedade e a economia medievais, a condição da mulher e a educação. Aqui damos o primeiro passo da nossa jornada para aprender o mínimo sobre a Idade Média, e descobrir por que há um ódio tão grande ao período medieval. A IDADE QUE ESTÁ NO MEIO Comecemos pelo nome: Idade Média. O que é alguém “mediano”? Ou uma nota “na média”? Depende da situação: pode se referir a algo bom, como pode também trazer um certo teor negativo. “Você é um aluno mediano, tirou uma nota na média” — é uma coisa que não é boa nem ruim. A palavra “média” se refere a “aquilo que está no meio”. De fato, a Idade Média é o período entre a Antigüidade e o Renascimento, e é comumente aceito que vai de 476, queda do Império Romano do Ocidente, até 1457, ano em que o Império Otomano conquistou o Império Bizantino. Alguns historiadores dizem que esse período durou até 1492, quando a América foi descoberta; outros até 1500, quando se descobriu o Brasil; e outros ainda até 1517, quando se deu a Reforma Protestante. Apesar da grande discussão sobre o fim da Idade Média, podemos estabelecer que seu processo terminal foi inaugurado quando o rei francês Filipe, o Belo, “seqüestrou” o Papa Clemente V e o transferiu de Roma para Avignon, no Sul da França, dando assim início ao período chamado Cativeiro de Avignon. É nesse momento que o poder político superou o poder religioso, o que representava uma decadência para a estabilidade da Idade Média. Contudo, não resta dúvida de que a Idade Média teve início com a queda do Império Romano do Ocidente. Mas por que esse período de quase ou mais de 1.000 anos é chamado de Dark Age, de “Idade das Trevas”? Régine Pernoud, uma importante historiadora da Idade Média, relata em seu livro Idade Média: O que não nos ensinaram que os primeiros a usarem este termo foram os franceses Diderot e Voltaire — ambos totalmente anticlericais, principalmente o segundo — em suas enciclopédias, com as quais buscavam reescrever a história da França. A IGREJA A Idade Média foi o período em que a Igreja construiu o Ocidente, evangelizou e converteu os bárbaros. Ela foi o centro cultural e educacional ao longo desses 1.000 anos, de modo que não podemos falar do período medieval sem falar da Igreja Católica. Como ela conduzia tudo e a religião católica dava base para todas as relações, os dois filósofos nomearam o período como Dark Age e propagaram que: 1) a Igreja era uma instituição opressora que governava na época, e que o Tribunal da Inquisição perseguiu pessoas, estudiosos e cientistas, restringindo a liberdade de expressão; na Idade Média havia uma hierarquia social em que os reis abusavam do seu poder e controlavam as pessoas; nesse período ocorreram grandes guerras, como as Cruzadas, exclusivamente por causa do poder da Igreja, que controlava e conduzia as pessoas a esses atos brutais; 2) a mulher era menosprezada; 3) não havia escola, não havia educação, somente os burgueses e a aristocracia tinham contato com a verdade; a Igreja controlava o conhecimento; tudo permanecia confinado nos mosteiros; todos eram idiotas e ignorantes por causa da Igreja. Vejam como a ideologia iluminista permeou as reflexões historiográficas de Voltaire e de Diderot, os quais, em vez de relatarem os fatos históricos, fizeram apenas propaganda, e nada mais. As enciclopédias iluministas não são, em sentido amplo, história sobre a Idade Média, mas propaganda enganosa, cujo objetivo era incutir no artesão, no ferreiro, no padeiro de então a idéia de que estavam sendo controlados e enganados. O objetivo dos iluministas era destruir a Idade Média. E ocorre que, à historiográfica iluminista seguiu-se a escola historiográfica marxista (de meados do século XIX e até o século XX ), que não desfez esse trabalho, mas, ao contrário, o intensificou. ACONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA A partir das idéias de Karl Marx, veio a lume uma concepção marxista da história, que analisa tudo sob a óptica materialista e da luta de classes, uma óptica em que a economia é o centro da sociedade, e todo o resto é secundário, porque o que de fato determina as relações humanas é, para eles, o poder econômico. É assim que os marxistas analisam a história. Os historiadores marxistas contam a história como se no passado houvesse um povo bárbaro controlado pelos romanos, até que veio uma revolução para pôr fim ao Império. Então teve início um novo momento histórico, no qual as pessoas começaram a ser controladas pela Igreja, até que se rebelaram e, sob o comando de líderes como Pedro Valdo, Lutero, John Wycliffe e Giordano Bruno, tiraram a hegemonia da Igreja. Em seguida, iniciou-se outro período: agora a monarquia francesa controlava as pessoas. De novo, o povo se uniu, destituiu o rei e fez uma revolução. E começou assim um outro momento histórico... Essa maneira de contar a história segue os princípios da dialética marxista: uma tese seguida por uma antítese, e do embate entre estas duas surge uma síntese; temos o povo oprimido, o opressor e, desse confronto, um novo momento histórico. A concepção marxista da história é totalmente ideológica, e analisa todos os fatos a partir da luta de classes e da dialética marxista. É o que chamamos de materialismo histórico, princípio usado pelos historiadores para analisar também a Idade Média. Qual é o problema de analisar a Idade Média a partir de uma óptica econômica? O problema é que nesse período a economia não era a base ou o fundamento das relações humanas e sociais, mas algo secundário. O centro de tudo era Deus. A sociedade era teocêntrica e conduzida pela Igreja Católica, que na época era a maior instituição religiosa, educacional e cultural existente. No trabalho como nas demais atividades, as pessoas viviam segundo uma visão teocêntrica, querendo, acimade tudo, agradar a Deus e seguir os princípios da Igreja. Havia uma moralidade comum entre as pessoas. Elas não desejavam mal aos outros, porque desejavam que todos fizessem o bem. A Igreja, por ser a instituição central, dava uma orientação, um norte para as pessoas viverem para a Deus, para chegarem até Deus. A partir dos primórdios da cultura cristã na Antigüidade, o mundo medieval foi adquirindo uma unidade até atingir seu apogeu, que chamamos de Alta Cristandade ou Alta Idade Média. Mas os materialistas não conseguem enxergar e analisar isso, pois, para eles, tudo é meramente econômico, e isso não pode ser lido ou deduzido das relações econômicas. Todos os nossos livros didáticos, todo o discurso histórico, a documentação historiográfica realizada nos últimos 150 anos sobre a Idade Média foi feita segundo princípios materialistas e, por isto, olham para o período medieval como uma Dark Age. Foi só em meados do século XX, com a produção de historiadores da Escola dos Annales, como Jacques Le Goff, mas sobretudo de historiadores católicos, que buscavam reconstruir a Idade Média e contar como ela realmente foi, que a historiografia materialista perdeu espaço. No Brasil, porém, ela ainda é muito forte nas escolas. Leva muito tempo para que os professores possam se despir dessa concepção marxista e ensinar de maneira correta. Por mais que recebam bom material historiográfico, eles acabam sempre abordando o período medieval com certo preconceito contra a fé. Todo esse preconceito a respeito da Idade Média é resultado de duas ideologias: a iluminista e a marxista. Para além da ideologia, precisamos buscar e aprender segundo as fontes primárias: os manuscritos, os livros, e sobretudo as obras de arte da época, como a arquitetura, por exemplo. Para ter claro que a “Era das Trevas” não passa de uma construção ideológica, um mito, vamos abordar agora os três pilares dessa imagem da Idade Média como sendo uma Dark Age: a sociedade e a economia medievais, a situação da mulher e a educação. C A SOCIEDADE E A ECONOMIA MEDIEVAIS omo vimos há pouco, a Idade Média tem algo totalmente diferente de qualquer outro período histórico, principalmente da Modernidade, e o mito da “Idade das Trevas” foi construído sobre três mentiras: a sociedade e a economia medievais impunham com a Igreja uma hierarquia em que os reis abusavam do seu poder e controlavam as pessoas, em que todos eram pobres e desiguais; a condição da mulher era menosprezada, pois ela não tinha dignidade e liberdade, não tinha vez e devia ser submissa ao homem; e a educação, ou melhor, a idéia de que não havia educação alguma. O período medieval é atacado nesses três pontos. Neste capítulo, falaremos a respeito do primeiro: a organização social e a economia. DO TEOCENTRISMO AO ANTROPOCENTRISMO Desde a Revolução Industrial até hoje, a sociedade é conduzida por um princípio econômico. A Revolução Industrial fez com que a humanidade inteira passasse a viver em torno da economia, ao passo que na Idade Média havia uma sociedade teocêntrica e as pessoas viviam em torno de Deus, porque todos eram católicos. E por serem católicos, tinham de observar o primeiro mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. De modo que todas as relações, ações e ocupações, das mais cotidianas às mais extraordinárias, desde o rei até o guerreiro, todas partiam da visão teocêntrica. Na passagem do teocentrismo medieval para o antropocentrismo renascentista, a humanidade começou a sofrer uma evidente decadência moral. Vejamos um aspecto dessa decadência: a questão da escravidão. Na Idade Antiga, havia escravidão por dois motivos: por guerra, e por dívida. Por exemplo, você é romano e foi guerrear com um trácio. Ele não é como você: não fala latim, não se veste nem vive como você; logo, ele não era um igual. Você é superior e, por isso, ao vencê-lo no campo de batalha, tem o direito de escravizá-lo. Era assim que os romanos pensavam. Entre o povo hebreu, assim como em outros, havia a escravidão por dívidas: se alguém devia dinheiro e não podia pagar, tal pessoa se entregava como escravo a seu credor até que conseguisse pagar sua dívida com o trabalho. Não tendo uma visão da dignidade humana em geral que permitisse ver o outro como igual, essas sociedades não viam problema na escravidão. Com o advento do cristianismo e com a progressiva transformação da sociedade medieval numa sociedade teocêntrica, isto é, na qual o centro de valor era a revelação divina e seus ensinamentos, por meio do ensino da caridade, era como se a Igreja proclamasse: “Não se pode escravizar os outros, porque o outro é igual a você. Pode não falar a mesma língua, não ter a mesma cultura, nem o mesmo modo de viver; mas é igual em dignidade, pois todos nós somos chamados a ser filhos de Deus e, portanto, a sermos todos irmãos”. Por isso, notamos que entre 1100 e 1450, período chamado de Alta Idade Média e apogeu do cristianismo, não havia escravidão, pois a Igreja conseguiu conduzir o povo da maneira mais correta possível. Naturalmente, foi um processo lento e árduo que levou muito tempo, sobretudo porque os povos bárbaros costumavam ter escravos. Com todas as transformações ocorridas naquele movimento que veio a se chamar de Renascimento, passou a predominar uma nova visão de mundo, a do antropocentrismo: o homem assumiu uma posição de centralidade em relação ao universo, não buscando mais agradar primeiramente a Deus, mas alcançar sua felicidade pessoal ou, em geral, o que lhe agradava pessoalmente. Por conta dessa visão, a escravidão retornou: não mais uma escravidão por guerra ou dívida, mas por raça, porque não se reconhecia nas outras pessoas a mesma dignidade. Junto com a escravidão, “renasce” na Idade Moderna o panteísmo dos povos pagãos, que quase desaparecera na Idade Média. A idéia de que a terra, o trovão, as árvores são realmente deuses, de que a Terra tem energia, tudo isso é o retorno do paganismo greco- romano no Renascimento, algo que a Igreja havia vencido. É preciso ressaltar um aspecto social muito interessante — que analisaremos à parte e mais a fundo no capítulo 2 —, sobre a condição da mulher. A Idade Média foi o período da história em que as mulheres tiveram maior liberdade e o maior número de cargos políticos, como rainhas, condessas, baronesas, entre outros. Elas tinham a mesma dignidade do homem por causa do casamento, ao passo que, no mundo antigo, eram vistas como alguém de menor dignidade, o que refloresceu na Idade Moderna. A idéia mesma de casamento foi inteiramente transformada pelo cristianismo: o pater familias romano era senhor, dono de sua mulher, de seus filhos, bem como de todas as suas propriedades; o esposo e a esposa cristãos são “uma só carne”,1 e devem um ao outro o mesmo amor incondicional. A ESTRUTURA SOCIAL Na Idade Média, a sociedade era estruturada de maneira totalmente diferente da que houve depois no mundo moderno. Na Modernidade, temos uma pirâmide econômica: quanto mais dinheiro uma pessoa tem, mais alto está na pirâmide. Porém, para explicar o Medievo, tenho certeza de que seu professor de história usou, e inclusive desenhou na lousa, a mesma pirâmide: no topo está o clero; no meio, a nobreza; embaixo, os plebeus. Essa divisão não faz nenhum sentido. Apague isso da sua mente. Na Idade Média não existia uma tal divisão econômica: no topo, o clero, que recebia o dízimo dos nobres e plebeus; no meio, os nobres, que recebiam dinheiro dos plebeus; e na base, os plebeus, verdadeiros coitados que, presos à terra, eram obrigados a trabalhar a vida inteira e que, apesar de serem chamados de servos, eram de fato escravos. Tenho certeza de que foi assim que o seu professor, seguindo a concepção marxista da história, lhe ensinou. O mínimo que você precisa saber sobre a Idade Média é que não era assim. A divisão social na Idade Média não se dava a partir de questões econômicas, mas de funções sociais. Lembre-se: a economia era algo secundário, não havia moedas em muitas localidades, e estas, por serem totalmente agrícolas, se organizavamcom base no escambo. Antes, porém, de tratar a questão propriamente econômica, devemos analisar melhor a estrutura social: na sociedade medieval cada indivíduo tinha uma função social específica. Qual era a função do clero? Ensinar as pessoas. A sua função era muito específica: ensino e cultura. E por que isso ocorreu? Porque a Igreja assim impôs? Não. Foi porque os bárbaros, à medida que se convertiam, aprendiam com a Igreja não apenas sobre questões morais e catequéticas, como também sobre questões gerais da vida. Assim, a Igreja acabou se tornando naturalmente a grande educadora medieval — e por isso é chamada, até hoje, de “mãe e mestra da verdade”. E além de educadora, ela tinha também uma função social e filantrópica, como fruto da verdadeira caridade. Ela cria os hospitais, leprosários, orfanatos, as escolas públicas e outras instituições para proteger os pobres; cria o fundo de socorro, que era uma espécie de previdência para quando alguém ficasse ferido ou muito velho para trabalhar. A própria Igreja provia às pessoas o que precisavam para sobreviver, como comida, roupa, ou outros bens. Provia todo o necessário para se ter uma vida digna. Além de fundar mosteiros, que eram os grandes centros de pesquisa, e inúmeras ordens religiosas, que cuidavam das pessoas, a Igreja fundou também as universidades. Tudo o que, hoje, é fornecido pelo Estado — educação, saúde, cultura, administrados pelos respectivos ministérios da cultura, da saúde, da educação etc. — era fornecido então pela Igreja. Todas as questões sociais, educacionais e de saúde eram cuidadas pelas ordens religiosas. Havia ordens até mesmo de segurança para ajudar os peregrinos a saírem de Roma e chegarem a Jerusalém: a Ordem dos Templários; se alguém se ferisse em Jerusalém, estava lá a Ordem dos Hospitalários para socorrer. Não havia plano de saúde, não havia necessidade de pagar escola particular, não havia necessidade de pagar por nada, pois tudo era gratuito. A Igreja pedia apenas o dízimo. E, podemos dizer, era mais do que justo que as pessoas, em troca de tudo isso, dessem algo à Igreja em prol do bem comum. Por conta desse fator educacional e filantrópico, os reis concediam terras à Igreja, para construir mosteiros e igrejas, conscientes de que, com estes, viriam centros educacionais e culturais, hospitais, bem como arquitetos e outros profissionais úteis, uma vez que a Igreja ensinava as matemáticas. Com as ordens religiosas, a cidade se renovava. Os reis concediam as terras e os camponeses, mesmos os mais pobres, contribuíam com o que podiam para a subsistência de monges e padres: frangos, porcos, milho, trigo, pão, verduras e outros víveres da terra. A Igreja não constringia ninguém, mas apenas dava e ajudava. E é natural que, ao dar e ajudar, também se receba algo de volta. Era assim que ela fazia na Idade Média. Portanto, esqueça esse negócio de triângulo, de topo da hierarquia social; a Igreja tinha uma função principal: a função educacional. E qual era a função dos nobres? Eles tinham a função específica de defender o povo, os camponeses e o clero. Eram eles que iam para as guerras — o que quer dizer que eram suas esposas que perdiam o marido, e eram seus filhos que ficavam órfãos de pai. Os nobres eram cavaleiros que combatiam e colocavam em risco a própria vida pelo povo, pois tinham a função social bem clara de defender. A função dos plebeus, por sua vez, era fazer com que todo esse mecanismo funcionasse. Eles colocavam a mão na massa, eram os trabalhadores. Sem os trabalhadores, a Igreja não poderia educar e os nobres não poderiam lutar. É preciso entender que tudo era uma troca, uma questão de relações guiadas por funções sociais, e cada um tinha a sua. O clero era divido entre clero regular (diocesano) e secular (ordens religiosas, algumas mendicantes). Na nobreza, havia os altos nobres (príncipes, duques, marqueses e condes) e os baixos nobres (viscondes, barões e cavaleiros). Por fim, havia os camponeses, uns ricos e outros pobres. A função social de cada um não determinava o próprio poder financeiro. Havia nobres pobres (como a família de Santo Tomás de Aquino), e camponeses ricos. Pare um momento e pense, para não cair na história dos professores: se a nobreza detivesse todo o dinheiro, de onde teriam surgido os burgueses do século xvi? Os burgueses eram os comerciantes, que antes eram servos e plebeus. O rei estipulava o seguinte: “Aqui está a terra para você plantar. Eu lhe concedo a defesa e, em troca, peço um terço do obtido”. O nobre recebia um terço e dava a defesa. Se o camponês colhesse o suficiente para sua subsistência e para o terço devido ao rei, ele vendia o resto. Os burgueses foram aqueles que começaram a vender o excedente do que produziam. As relações sociais eram uma questão de troca. Mas então não havia diferença de status social? Assim como, quando comparados, um cavaleiro medieval tinha então mais prestígio social do que um simples camponês, do mesmo modo, quando comparamos hoje, um professor universitário, que goza de enorme prestígio social, tem mais status que o dono do restaurante da mesma universidade. Neste caso, quem é mais rico? O dono do restaurante, naturalmente. Mas quem tem mais prestígio social quando fala? O professor universitário. É ele quem será ouvido e respeitado, por conta do prestígio social que lhe dá o seu pós-doutorado. Assim, prestígio e função social não significam riqueza. Outro mito que precisamos derrubar é o de que os plebeus eram quase escravos. A única coisa a que se viam obrigados era pagar um terço do que produziam aos nobres. E hoje não somos talvez obrigados a pagar impostos? Pagamos, e muito mais que um terço do que produzimos! Trabalhamos o ano inteiro e tudo o que ganhamos até maio é exclusivamente para pagar imposto; de 12 meses, 5 são de dinheiro para o governo. Damos quase 50%, muito mais do que um terço daquilo que produzimos. Também é mentira a questão de que a nobreza controlava e abusava dos plebeus. Os camponeses ganhavam bastante com suas vendas e trabalhavam em média 4 ou 5 dias por semana. Nunca trabalhavam aos domingos, muito menos aos sábados, e alguns nem mesmo às sextas. Eram 4 dias de trabalho por semana, e no máximo 6 horas por dia. Outro detalhe: não trabalhavam no inverno, pois o frio e a neve tornavam impossível cultivar a terra; em compensação, trabalhavam mais duro no verão. Faziam outras coisas no inverno, mas que não poderíamos chamar de trabalho servil, muito menos escravo. Comparar um escravo com um servo é uma estupidez. Em geral, quem faz esse tipo de comparação não sabe o que foi um escravo e muito menos um servo. Antes de passar à economia medieval, resta ainda um último mito a ser derrubado; último, mas não menos importante, uma vez que está presente em muitos livros didáticos e outros meios de divulgação: o de que o servo era preso à terra e, por isto, um escravo; ou seja, ele até tinha liberdade, mas não podia abandonar seu local de nascimento. Mentira. Reflita um momento e tente imaginar por que os camponeses não abandonavam sua terra natal. Se meus pais são do Sul da França, por que eu deveria me arriscar e ir para o Norte da Itália? Por que ir para a Prússia, Escandinávia, Irlanda ou qualquer outro país? Por que eu faria isso, se sei exatamente o que e como plantar, se sei exatamente como é a terra, o clima, o relevo da minha região? Tenho meios para sobreviver neste ambiente, e não em outros cujo relevo, clima, terra eu desconheço por completo. Não havia tecnologia, sites, jornais, muito menos estradas e pontes ou meios de transporte rápidos e acessíveis. Como o camponês poderia fazer essa troca, do conhecido e seguro pelo desconhecido e incerto? Estava em jogo não apenas seu bem-estar, mas principalmente sua sobrevivência, sua vida. Assim sendo, ele optava por ficar onde tinha nascido. Isso não significa que estava preso à terra, mas que era inteligente o bastante para não se arriscar. Como é que um camponês do interior da França poderia ter ouvido falar da Grã-Bretanha? Mesmo que tivesseouvido, não saberia chegar até lá. Devemos levar em conta todos esses aspectos sociais quando formos falar da Idade Média, para não mais cairmos nessas mentiras. A sociedade medieval era estruturada a partir desse ponto e era assim que funcionava. A FAMÍLIA NO CENTRO DA SOCIEDADE Além desses aspectos da estrutura social medieval, como as funções sociais e a organização social, há um outro, além da religião, muito importante: a sociedade era organizada em torno da família. Todas as instituições e organizações, todos os contatos e relações humanas se davam a partir do núcleo familiar. Vejamos a questão do trabalho. Como um jovem aspirante a ferreiro aprendia o ofício? A forja ficava sempre na casa do ferreiro, de modo que o ambiente familiar e o ambiente profissional estavam juntos. Se quisesse dominar tal arte, o jovem aprendiz precisava se mudar para a casa do ferreiro, que se tornaria então como que um pai para ele, e ensinaria não apenas sobre o ofício, como também sobre questões de vida e administrativas, como cuidar da família, como lidar com as pessoas, porque ser o ferreiro era algo um pouco mais do que apenas exercer essa profissão no horário comercial. O jovem se tornava um membro da família e, ao longo da convivência, podia observar como o ferreiro conduzia e organizava a vida em todos os seus aspectos. Mais do que um mero aprendiz profissional, era um verdadeiro discípulo, que, à medida que ia aprendendo o ofício, tomava lições para a vida toda. Era como se o mestre fosse um pai que ensinasse seu filho. O mesmo acontecia nas escolas. Os padres e os monges, bem como os professores leigos, tinham uma relação paterna para com o aluno. Até porque os pais de sangue delegavam a educação dos filhos muitas vezes a um tutor, que lhes transmitia tanto os próprios conhecimentos técnicos (gramática, retórica, matemática etc.) quanto os próprios valores. Tudo estava integrado. Assim, o núcleo familiar se estendia por todas as relações humanas, as de trabalho, as educacionais, as da Igreja. Nesta, era o padre que assumia o papel de pai da sua comunidade, nutrindo um amor paterno para com as pessoas. Os reis, por sua vez, eram como pais de toda a sociedade, capazes de entregar a própria vida, de morrer pelo seu povo. Era assim que se comportava um verdadeiro rei. Por ser a base da sociedade medieval, a família tinha uma importância essencial. As relações familiares definiam todas as relações sociais na Idade Média. Com o Renascimento e a nova cosmovisão antropocêntrica, o papel familiar foi aos poucos se dissolvendo. Seu total desaparecimento ocorreu após a Revolução Industrial, quando as relações humanas passaram a ser norteadas por critérios econômicos, e o aspecto familiar, antes primordial para a sociedade, sucumbiu de todo. Se, hoje, as pessoas não têm a capacidade para imaginar como era uma sociedade centrada na família e na religião, muito menos têm a capacidade moral para restabelecer ou viver algo semelhante àquele mundo. Seriam necessários muitos anos educando gerações para que pudéssemos novamente entender o que foi viver a partir de uma organização familiar, pois hoje a instituição da família está praticamente arruinada. A Revolução Industrial representou para a família o início da substituição das relações sociais pela economia. A MONARQUIA A monarquia medieval era totalmente diferente da moderna e contemporânea. Hoje, quando as pessoas pensam em monarquia, imaginam um rei soberano com poder absoluto que dita as regras e todos devem segui-las. Foi assim principalmente nas monarquias modernas do século xvi, xvii e xviii, até a destruição de todas as grandes monarquias, no século XX. Atualmente a única que persiste é a inglesa, mas trata-se de uma monarquia parlamentarista, que é muito distinta da monarquia medieval. Nas monarquias medievais, o rei não tinha um poder absoluto; mas tinha, como dissemos, a função de salvar, proteger e defender seu povo. O rei não intervinha nas funções sociais ou na educação, pois isso era função da Igreja. Se ele tentasse controlar aspectos para além da sua função, era deposto. A função específica do rei era militar e, para ir a guerras e defender o povo, dependia de seus vassalos, por isso era um suserano. Ter vassalos significava que outros nobres se ajoelhavam diante do rei e faziam-lhe voto de obediência. Este voto garantia auxílio ao rei em caso de necessidade e, em contrapartida, o auxílio do suserano quando eles necessitassem. Os vassalos também podiam ter seus vassalos. Era uma hierarquia: o rei, o maior suserano, tinha vassalos, os quais, por sua vez, eram suseranos de outros vassalos, e assim por diante. Contudo, o rei não podia inopinadamente declarar guerra contra Fulano ou Sicrano, pois dependia do apoio e da aprovação dos vassalos. O voto de obediência era quase sempre respeitado, mas poderia haver contestação, por exemplo no caso de guerra injusta, já que existia a noção de que todos faziam parte da mesma família. Portanto, a monarquia medieval não era absoluta; era uma monarquia ideal. O sistema feudal era um sistema ideal, porque sua organização se baseava no poder de pequenos locais. Não havia um poder centralizado que controlava a todos, mas o poder era dividido em vários pontos que se uniam por uma causa. Essa falta de centralização do poder é outro aspecto importante da sociedade medieval. A ECONOMIA MEDIEVAL Sobre a economia medieval, antes de mais nada, precisamos dizer que também houve uma “revolução industrial” na Idade Média — não a Revolução Industrial da Idade Moderna, mas uma revolução de avanço tecnológico em comparação com a Idade Antiga. Deu-se um avanço econômico e tecnológico notável e, se tivéssemos dado continuidade àquele caminho, teríamos alcançado resultado ainda mais notáveis. Todos os avanços tecnológicos que foram empreendidos na Idade Moderna ocorreram, na sua maioria, por causa da guerra, enquanto na época medieval os avanços ocorriam por causa da caridade. Sobre esse assunto, vejamos o que diz Jean Gimpel em seu livro A revolução industrial da Idade Média: A Idade Média que descrevemos não é a do “período das trevas”, dos romances palacianos e da cavalaria. É a das máquinas; se a conhecemos mal é porque a história da técnica se manteve ignorada por um longo tempo; os intelectuais e os universitários menosprezaram quase sempre o trabalho manual e a atividade técnica dos engenheiros medievais. […] No decorrer da História das Civilizações, os intelectuais raramente souberam apreciar as realizações dos engenheiros, trabalhadores oriundos muitas vezes de meios modestos e obrigados a ganhar a vida. Os intelectuais ignoraram igualmente os escritos redigidos nesses meios técnicos. O caso de Leonardo da Vinci é típico. Como engenheiro, foi desprezado pelos literatos de seu tempo, os quais ignoravam que muitas idéias e invenções descritas em seus Cadernos já se encontravam nos tratados técnicos redigidos antes dele. E ainda hoje o ignoram.2 De fato, não houve nenhum ramo de atividade em que os monges não tenham mostrado grande criatividade e notável espírito de pesquisa. Naquele tempo, os mosteiros eram os núcleos intelectuais. Ali havia uma sólida e contínua formação, ali permaneciam os manuscritos para o estudo dos monges. Por causa da Ordem de São Bento, base para todos os mosteiros ocidentais posteriores, o ritmo da vida era ditado pela máxima beneditina: “Ora et labora et lege” [ore, trabalhe e leia], ou seja, paute a vida segundo a oração, o trabalho e o estudo. Desse modo, dividiam a vida em horas de estudo, horas de trabalho manual e horas de oração. Ao período de trabalho manual e de estudo, acrescentaram depois as atividades agrícolas que precisavam fazer com as pesquisas, raciocinando a respeito de como melhorar aquela mesma atividade agrícola e aperfeiçoá-la tecnicamente, e facilitar as atividades de plantar, conseguir água etc., enfrentadas diariamente. Os monges faziam tudo para sua própria subsistência: plantavam, cuidavam de animais, tratavam do couro, do leite, da lã, e assimpor diante. E, com suas pesquisas, começaram a desenvolver seus meios e pôr em prática um avanço tecnológico agrícola evidente. Por conta da vida retirada que exigia a ordem, os monges optavam por locais mais altos ou de difícil acesso, como pântanos. E, para utilizar essas terras, precisavam desenvolver tecnologias para plantar em declives e pântanos. Foi assim que descobriram que as regiões pantanosas, quando devidamente trabalhadas, podem se tornar o melhor tipo de terra para se plantar. Ao mesmo tempo, desenvolveram maquinários para auxiliar a plantação, como a enxada e o arado. Como não havia mão-de-obra escrava, os monges substituíram a força braçal pelo uso de tecnologia, de modo que, assim, não precisavam mais de dez monges para capinar um lote de terra, mas podiam servir-se de uma enxada e, com ela, uma pessoa podia fazer o trabalho de dez. Antes os romanos precisavam de muitos escravos por carecerem de tecnologia, ao passo que os monges começaram a desenvolver suas tecnologias e, no mesmo espírito de caridade, a ensinar as pessoas como utilizá-las. Assim, os camponeses tiveram acesso a tecnologias e instrumentos desenvolvidos no mosteiro que podiam ajudá-los na agricultura. Houve a substituição também da energia utilizada. A força braçal dos escravos foi substituída pelo uso de ferramentas e, em certa medida, pela força da natureza, como energia eólica e hidráulica, e também pela força animal. O moinho de água, por exemplo, foi inventado no século vii. Os monges perceberam que a água gira o moinho e este, por sua vez, gira uma engrenagem, e os eixos da engrenagem podem bater um moedor, ou fazer com que se tenha um sistema de irrigação. Em vez de amassar o trigo à mão, criaram uma máquina para isso. Do mesmo modo, foi inventado o carro de boi. Veja que interessante o seguinte trecho sobre o uso da energia hidráulica, tirado de um manuscrito medieval citado por Gimpel em A revolução industrial da Idade Média: Um braço de rio, atravessando as numerosas oficinas da abadia, por toda a parte se faz abençoar, graças aos serviços que presta [...]. O rio lança-se inicialmente com ímpeto na azenha, onde se agita e redemoinha, tanto para triturar o trigo sob o peso das mós como para agitar a peneira que separa a farinha do farelo. Ei-lo agora no edifício vizinho; ele enche a caldeira e se entrega ao fogo que a coze para preparar a cerveja dos monges, se as vindimas tiverem sido ruins. Mas o rio não se dá por satisfeito. Os moinhos de pisoar chamam-no por sua vez. Estava atarefado a preparar o alimento dos monges, agora pensa em seu vestuário. Nada recusa do que se lhe pede. Eleva ou abaixa esses pesados pilões, esses malhetes ou, para melhor dizer, esses pés de madeira, poupando aos frades grandes fadigas […]. Quantos cavalos se extenuariam, quantos homens fatigariam os braços nesses trabalhos que o gracioso rio executa para nós; a ele devemos nossas vestimentas e nosso alimento […].3 Nesse manuscrito podemos perceber como a energia hidráulica era usada. Assim podiam produzir farinha, curtir o couro para fazer as roupas, bombear água, serrar madeira, fazer escavações. Um número realmente impressionante de atividades. Podiam até mesmo melhorar a forja dos metais, fazendo com que, em vez do ferreiro, fosse o pilão que, movido pela água, batesse no ferro. A siderurgia também fez grande avanço na Idade Média. Graças às novas tecnologias da forja, conseguiam manipular muito melhor o metal, a ponto de criar armaduras, canhões e afins. Com os avanços siderúrgicos, vieram também avanços na construção em geral. Por exemplo, foi possível usar pregos de metal, e não mais os frágeis e limitados pregos de madeira; aperfeiçoaram o guindaste a roda que, por meio de um sistema de cordas e roldanas acionadas por grandes rodas, movidas pela força humana, podiam levantar cargas pesadas e aprimorar a construção de catedrais — com essa tecnologia os homens conseguiram, apenas caminhando naquela rodinha, quase como ratos de laboratório, erguer e puxar toneladas de pedra como nunca antes. Desenvolveram também os moinhos de maré e de vento, e este último apareceu no Oriente só depois de os cruzados terem expulsado os muçulmanos e criado o reino de Jerusalém. Somente no século xii surgiria o primeiro moinho de vento da Síria. Com ulterior avanço da siderurgia no século xii e xiii, deu-se novo aperfeiçoamento na produção de moedas: a Igreja começa a cunhar e ensinar as pessoas a cunhar moedas. E a partir disso vão nascer as bolsas de valores, os seguros, os bancos, os cheques. Alguém poderia perguntar: Mas qual é a diferença entre a economia medieval e a atual? Segundo o historiador Jacques Le Goff, a grande diferença está precisamente no pensamento que norteia o uso do dinheiro. A Igreja, enquanto entidade educadora e moral da época, transmitia uma visão do dinheiro ligada a uma moralidade, e esta moralidade, por sua vez, ligada a um destino eterno: quem utiliza mal o dinheiro e prejudica o próximo está pecando, e quem persiste no pecado é condenado ao Inferno. Era permitido emprestar dinheiro? Sim, mas não se podia pedir os juros do dinheiro emprestado, pois seria considerado usura. Usura não é o mesmo que lucro, mas sim juros pelo próprio dinheiro, o que era condenado pela Igreja. Não havia um sistema financeiro que vivesse com base nos juros, como existe hoje, em que o dinheiro se tornou algo quase imaterial. O dinheiro então estava vinculado a bens e produtos. Na Idade Média, o dinheiro servia fundamentalmente para ajudar as pessoas, para complementar o escambo. E, a partir dessa visão, os templários inventaram o cheque. Se um homem quisesse ir para Jerusalém e lutar, ele entregava o que possuía, e um templário usava o dinheiro como unidade de medida para ver quanto valiam os seus bens e lhe dava uma carta, um cheque. Quando chegava em Jerusalém, o homem ia ao banco dos templários, apresentava o cheque e sacava aquele mesmo valor, para que pudesse comprar seus bens e iniciar ali sua vida. É muito interessante o que começou a acontecer mais tarde com os templários: eles começaram a desenvolver uma riqueza muito grande por causa dos bancos e das grandes doações que recebiam por ser uma ordem religiosa de defesa e proteção dos católicos. A Igreja estava no centro da sociedade e conduzia a todos, desde as organizações sociais até as econômicas. A revolução agrícola medieval ocasionou um aumento de população. Em 700, segundo Gimpel, havia 27 milhões de pessoas na Europa, enquanto no ano 1300 esse número passou para 73 milhões. Isso se deu por causa de todo o avanço econômico e tecnológico, e a cada ano, de 700 até 1300, a população foi aumentando cada vez mais, contradizendo a mentira propagada de que as Cruzadas teriam sido feitas para diminuir a população da Europa. Quando as Cruzadas começaram, por volta do ano 1090–1100, a população européia era de 40 milhões de pessoas, ou seja, a população medieval não diminuiu, mas aumentou. Isso tudo graças à tecnologia que auxiliava a vida das pessoas e que os monges ensinavam, por caridade, compartilhando suas descobertas. Ano População Variação 700 27 milhões – 1000 42 – 1050 46 9,5% 1100 48 4,3% 1150 50 4,2% 1200 61 22% 1250 69 13% 1300 73 5,8% Aumento da população ao longo dos anos na Idade Média Disso tudo se conclui muito facilmente que aquela velha pirâmide social, aquela “sociedade estratificada” do professor de história, seja do ginásio, do ensino médio ou, pior, do cursinho pré-vestibular, nada mais é do que uma caricatura de influência marxista, que toma toda uma civilização integrada e bem-ordenada e lê os seus aspectos socioeconômicos tendo como critério princípios estranhos a essa mesma civilização, e por isso a compreende muito mal. É preciso tentar compreender os fenômenos sociopolíticos da Idade Média compreendendo rigorosamente seus princípios, sua organização teocêntrica, em torno dos valores máximos da religião católica — o amor a Deus e o amor ao próximo —, e os clérigos da Igreja, representante autorizada desses valores, comocaridosos ordenadores e mestres da vida social. Avancemos de cheio sobre outro ponto muito subvertido pela historiografia iluminista, que persiste até hoje em nossos livros didáticos: a figura da mulher no contexto medieval. J A MULHER NA IDADE MÉDIA á vimos que a Idade Média possuía uma organização social baseada na família e na religião, e a mulher tinha uma função específica fundamental para essa sociedade familiar: era a mãe da sociedade — as esposas eram mães de seus filhos; as rainhas, mães de seus súditos; as madres e religiosas, mães das comunidades. O papel social da mulher era de grande importância e estava relacionado ao contato familiar. A historiografia marxista, baseada em sua ideologia feminista, sempre busca dizer que a mulher tinha função secundária e quase nula. (Já ouvi na escola que a mulher era proibida de ter orgasmos na relação sexual, e por isso os homens medievais, antes de consumar a relação, cobriam o rosto dela com um pano; que chegavam até a cortar o clitóris das meninas quando crianças. Pode-se dizer, é verdade, que esse era um costume da época — mas dos muçulmanos, e não dos católicos, como querem os marxistas). Por causa da historiografia ideológica que vimos na apresentação, a mulher medieval passou a ser vista como um elemento de menor valor. Aproveitando-se das referências religiosas, começaram a dizer que “a Igreja defende que, tendo ela comido o fruto proibido e sendo assim a origem do pecado, a mulher teria uma dignidade inferior à do homem”... Tudo isso é uma grande bobagem. Basta observar que a Igreja tem como sua rainha, a santa mais louvada e superior a qualquer outra criatura, uma mulher: a Virgem Maria. Se foi pela mulher que entrou o pecado, foi também pela mulher que entrou a salvação — é o que ensina a Igreja, e por isso Maria é diariamente louvada, ao lado de seu filho Jesus, homem e Deus. A LIBERDADE DA MULHER MEDIEVAL Para falar da liberdade feminina durante a Idade Média, há um livro muito interessante, e que pode ser facilmente encontrado. Trata-se da Correspondência de Abelardo e Heloísa, um livro medieval que retrata o amor cortês do monge arrependido Abelardo para com a sua amada Heloísa. Abelardo se apaixona pela aluna Heloísa e a pede em casamento. A moça responde que não irá se casar, pois pretende ir para a universidade estudar. Abelardo é insistente. Enfim, o que há de interessante nessa história? A independência de Heloísa para com Abelardo. É uma prova de que a mulher tinha liberdade, sim, para fazer o que bem entendesse e que não era obrigada a nada. É natural que, por ser uma organização familiar, o casamento era uma instituição muito importante, e os pais tinham o papel de dizer com quem o filho iria ou não se casar. No entanto, a mulher tinha a liberdade para aceitar ou não o casamento. Pois, para ser aceito, o casamento tinha de ser feito na Igreja, onde cada noivo deve responder à pergunta: “É de livre e espontânea vontade que você está aqui?”. Se não fosse de livre e espontânea vontade, o casamento seria inválido. A mulher tinha liberdade, e o casamento coloca igualdade entre ela e o homem. Embora já houvesse a união entre um homem e a mulher no mundo antigo, a Igreja santificou essa união e, ao santificá-la por meio do sacramento matrimonial, estabeleceu a igualdade entre homem e mulher. Na Suma teológica, Santo Tomás de Aquino comenta que Deus retirou um osso da costela do homem e fez a mulher para mostrar que ambos são iguais e que estão um ao lado do outro. A mulher não veio de um osso do crânio do homem, para ser superior a ele, nem dos pés, para ser inferior, mas de uma de suas costelas, para mostrar que os dois possuem a mesma dignidade. Devido a isso, bem como ao fato de participarem todos de uma mesma religião, e estando esta no centro da sociedade, a mulher medieval tinha grande liberdade na vida pública. Se hoje se alardeia tanto a necessidade da presença maciça de mulheres em cargos públicos mais por questão ideológica, na Idade Média a mulher desempenhava um importante papel social por necessidade, principalmente as nobres. Quando um rei morria, por exemplo, muitas vezes era a mulher que tomava frente ao reinado. Não houve outro período histórico com um número tão grande de mulheres rainhas, imperatrizes, baronesas, condessas, senhoras feudais que cuidavam do seu feudo, condado, baronato, império e reinado, porque elas gozavam da mesma dignidade que os homens. GRANDES MULHERES MEDIEVAIS Vejamos agora uma série de mulheres que demonstram a posição e a liberdade da mulher medieval, como acabamos de dizer. Comecemos com Isabel de Castela (1451–1504), apelidada de “Isabel, a Católica”, que teve um papel fundamental na descoberta da América (1492). Ela financiou a viagem de Cristóvão Colombo (1451–1506) na sua busca por uma nova rota para as Índias, uma missão que o levaria a descobrir a América — ou seja, foi uma mulher que deu apoio incondicional para que se descobrisse a América. E isto aconteceu ainda no século xv,durante a chamada “decadência” da Idade Média. Matilde da Inglaterra (1102–1167), filha de Henrique i da Inglaterra e esposa de Henrique V do Sacro Império Romano-Germânico, juntou um exército e lutou pelo trono usurpado por seu primo Estêvão de Blois. Leonor da Aquitânia (1122–1204) foi uma das mulheres mais ricas e poderosas de toda Idade Média. Foi duquesa da Aquitânia e condessa de Poitiers, rainha consorte da França, como esposa de Luís vii, e depois da Inglaterra, como esposa de Henrique ii, além de matriarca da dinastia Plantageneta, que reinou sobre a Inglaterra entre 1154 e 1485. Ou seja, ela teve um papel essencial na política da França e da Inglaterra, e seu mecenato fez renascer a cultura cortesã. Teve ainda a sorte de ter nascido em um reino preocupado com a educação: seu avô, Guilherme ix, foi um dos primeiros trovadores e poetas vernaculares, inculcando nas netas o hábito e o interesse por leituras filosóficas, astronomia e matemática. Não bastasse tudo isso, ela liderou exércitos várias vezes durante sua vida e foi um dos líderes da Segunda Cruzada. A Princesa Isabel da França (1295–1358), esposa do Rei Eduardo ii e rainha consorte do Reino da Inglaterra de 1308 até 1327, quando descobriu a traição do esposo; formou então um exército para lutar pelo trono, recebendo por isso o apelido de “Loba da França”. Cristina de Pisano (1363–ca. 1430), grande poetisa e filósofa italiana que viveu na França durante a primeira metade do século xv, já defendia o papel vital das mulheres na sociedade, especialmente no meio literário. E, digamos, com sucesso, pois foi, na França, a primeira mulher de letras a viver do seu trabalho. Na área religiosa e intelectual, temos o grande exemplo de Santa Hildegarda de Bingen (1098– 1179), apelidada de “Sibila do Reno” por conta das visões que tinha e conseqüentes profecias que fazia. Mais de três séculos antes de Leonardo da Vinci, ela já havia reproduzido o “Homem Vitruviano”, cuja autoria costuma ser atribuída a Da Vinci. Santa Joana d’Arc (ca. 1412–1431) foi sem dúvida uma das personagens mais extraordinárias da Idade Média. Lutou em batalha e conduziu o exército francês contra os ingleses, que queriam dominar a França. Uma mulher foi a heroína e símbolo da França pelos seus feitos durante a Guerra dos Cem Anos (1337–1453). Santa Mônica (331–387), piedosa mãe de Santo Agostinho (354–430), permite-nos recordar com que providencial sabedoria Deus se serve das criaturas para produzir os efeitos que deseja. Por ter passado 32 de seus 56 anos rezando e chorando pela conversão do filho, bem como por ter dado à Igreja um bispo e Doutor da estatura de Agostinho, sempre se prestou grande devoção a ela. Santa Hilda de Whitby (ca. 614–680), importante figura na conversão da Inglaterra, foi uma das primeiras monjas, uma grande administradora e professora. Santa Catarina de Siena (1347–1380), uma terceira da Ordem dos Pregadores (dominicanos), sempre foi uma mulher fraca e doente, mas forte e decisiva para colocar fim ao cativeiro de Avignon.Nenhum Papa teve coragem de desafiar o rei, mas Santa Catarina sim: lutou arduamente para trazer o papado de Gregório xi de volta para Roma durante o chamado Cisma do Ocidente. Após todos esses exemplos, não resta dúvida sobre a importância e a força que tinha a mulher medieval, mesmo que alguns ainda insistam em diminuir a sua posição apenas por não poderem ser padre. A principal função da mulher era ser mãe; a do padre, ser pai. Se trocamos a função social, o mundo entra em desordem. Foi o que os ideólogos e engenheiros sociais buscaram fazer nos últimos anos: inverter as funções sociais do homem e da mulher, causando todo o caos atual, a ponto que muitos precisam ler inúmeros livros para descobrir a distinção entre homem e mulher. O AMOR CORTÊS Outro ponto que ressalta a importância da mulher na Idade Média é o desenvolvimento do chamado “amor cortês”, uma série de comportamentos que buscava enaltecer o amor. Poderíamos resumi-lo com a citação do famoso versículo da Epístola aos Efésios, capítulo 5: a mulher deve ser submissa ao homem. Mas a que tipo de homem? Ao homem baderneiro? Beberrão? Corrupto? Adúltero? Não, ao homem que está disposto a morrer por ela. É essa a submissão que São Paulo descreve. Ora, assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela.4 O amor cortês se desenvolveu a partir do século xii na Idade Média. Para conquistar uma donzela, o homem é capaz de lutar contra dragões e contra os maiores exércitos, capaz de morrer pelo amor da sua amada. Esse conceito do amor romântico surge na Idade Média, por causa do catolicismo. A mulher nunca foi tão amada e tão prestigiada. O homem fazia de tudo para agradá-la. Se a mulher derrubasse o lenço, o homem o recolhia; ele estendia seu manto sobre o chão para que ela passasse sem molhar os pés. Além de todo esse cuidado, o homem era um guerreiro e, se a mulher pedisse prova de seu amor, ele tinha de prová-lo. Hoje, o cortejo se limita a mensagens em redes sociais ou paqueras em bares, mas naquela época, para conquistar e conseguir casar-se com uma mulher, o homem tinha de fazer muitas coisas por ela. Em seu livro Impressões da Idade Média, Ricardo da Costa diz: Ser amável, educado e fino. Saber expressar seu amor de forma gentil: essa foi a primeira e principal fase na transição do homem-guerreiro para o cortesão. Esse era o novo homem cortês do século xii, um cavaleiro que caminhava a passos largos para se tornar um cavalheiro.5 Esse era o amor medieval. Infelizmente, por causa de muitos filmes e livros, que buscavam apenas destruir a imagem mais elevada desse amor e da Igreja, temos a impressão de que a mulher na Idade Média era uma espécie de objeto do homem. Um bom exemplo disso é o famoso filme Coração valente: todo o seu enredo é construído com base na idéia de que os senhores feudais podiam, por direito, tirar a virgindade das mulheres do próprio feudo. A trama se dá em torno da relação entre um senhor feudal que queria casar-se com uma donzela e, para que ele não desonre a esposa, um outro homem o mata. É uma grande mentira. Não há nenhum embasamento histórico para nada disso. Não existe nenhum documento, nenhum manuscrito, literalmente nada que comprove o direito do senhor feudal sobre as donzelas. Trata-se de uma completa invenção hollywoodiana. E por ignorância ou malícia, os professores sempre dão filmes desse teor para os alunos. E pior: esses filmes acabam entrando no imaginário popular e essas mentiras, de repente, se tornam verdades incontestáveis. Mas, no fundo, não passam de mentiras, grandes e infundadas mentiras. O que se passava naquele tempo era totalmente o contrário. Isso nunca seria aceito pela Igreja e muito menos pela sociedade. Devido ao nível moral de então, as pessoas nunca aceitariam algo semelhante. A Igreja tinha uma moralidade muito elevada, por ser a mãe da sociedade, a Mater Ecclesiae, ensinava as pessoas como deveriam viver. Por serem todos católicos — o rei, o professor, o guerreiro, o artesão, o camponês —, partilhavam dos mesmos valores e participavam da mesma sociedade, na qual as relações morais estavam diretamente ligadas aos ensinamentos da Igreja. Esta foi a verdadeira situação da mulher na Idade Média: um grande upgrade, uma elevação à mesma dignidade do homem sob todos os aspectos, e até mesmo a um patamar mais elevado: o da Virgem aos pés de quem toda a cristandade se ajoelha, e da donzela amada, pelo amor da qual o homem deve fazer loucuras. Vamos ver agora a terceira das três falácias que enumeramos: a educação durante esses tão vilipendiados séculos medievais. A A EDUCAÇÃO NA IDADE MÉDIA ntes de começarmos a falar da educação medieval, é preciso indicar dois livros fundamentais sobre o tema. O primeiro é História da educação na Idade Média, no qual o professor Ruy Afonso da Costa Nunes trata de todo o desenvolvimento da educação medieval. O segundo é A inveja dos anjos: As escolas catedrais e os ideais sociais na Europa Medieval (950–1200), no qual o historiador C. Stephen Jaeger relata como as universidades e as escolas catedrais desempenharam um papel importantíssimo no desenvolvimento de toda Idade Média. Como vimos no capítulo 1, a Igreja sempre desempenhou um papel educativo. Desde o início da Igreja, houve grandes santos que foram educadores e tiveram um papel muito importante na educação ocidental. Temos, por exemplo, São Justino, que foi o primeiro a desenvolver uma escola apologética para rebater as afirmações dos filósofos romanos que atacavam a Igreja, e São Clemente de Alexandria, que foi um grande mestre da escola teológica ali fundada. No período primitivo da Igreja, foram fundadas escolas teológicas em Antioquia, Alexandria, Roma, Cesaréia e em muitos outros lugares. Tivemos grandes padres capadócios, como São Basílio, São Gregório de Nazianzo e São Gregório de Nissa; tivemos São João Crisóstomo, grande educador e autor de Sobre o sacerdócio, livro que serviu para a formação e a educação de praticamente todos os padres posteriores a ele; São Cirilo de Alexandria; e tivemos os dois grandes ícones da educação no período primitivo da Igreja: São Jerônimo, que, por seu conhecimento lingüístico, fez a tradução da Bíblia, e Santo Agostinho, considerado o grande pai da doutrina da Igreja e artífice da unidade entre filosofia grega e teologia católica. A partir dessa tradição surgem as instituições de ensino. A IGREJA ENQUANTO EDUCADORA Com a queda do Império Romano do Ocidente, caíram também todas as instituições, inclusive as escolas sofistas — onde, por sinal, estudavam os padres no ensino primário e secundário. Assim, restava apenas a Igreja como educadora, que ao longo dos anos tinha desenvolvido o ensino para crianças, a catequese, com o qual eram ensinadas as verdades da fé, o Credo, o Símbolo em que deveriam acreditar e o qual seguir, a moral que deviam observar. Após a queda do Império Romano, os clérigos viram que não bastava ensinar apenas questões teológicas e começaram a dar também um ensino intelectual para as crianças. Aos poucos, a Igreja começou a educar os bárbaros e esse tipo de educação começou a ter um princípio de civilidade. Assim, de uma maneira muito natural, formaram-se as pequenas escolas. Tanto na fundação de escolas quanto no ensino, a Igreja tinha um objetivo muito diferente do que tinha o Estado romano. Este visava única e exclusivamente educar as crianças para formar cidadãos, para que elas servissem ao Estado, enquanto a Igreja visava educar as crianças para a santidade. A escola surgiu com o objetivo de formar as crianças para o encontro da verdade, da verdadeira sabedoria e, nessa busca, percorreriam o caminho da santidade. A educação medieval é também diferente da educação atual: naquela, a educação espiritual e intelectual estavam unidas; nesta, divididas. Hoje, as pessoas almejam apenas à educação intelectual, crendo que a educação espiritual e intelectual não devem andar juntase que são coisas distintas. Como podemos ver no exemplo de grandes educadores dado há pouco, os maiores sábios foram ao mesmo tempo grandes santos. Vejamos o exemplo de Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, São Domingos de Gusmão, São Boaventura, Santo Antônio... Eram grandes intelectuais, realmente impressionantes, e ao mesmo tempo pessoas de vasta e profunda vida espiritual. E devemos lembrar que a santidade é alcançada não apenas por meio da vida de oração, como também pela vida de estudos. O mundo atual carece de sábios, e aqui não entendo pessoas de vasta cultura, mas sim pessoas capazes de unir a vida de estudos à vida espiritual. As escolas católicas se dividiam em três tipos. As escolas catequéticas ou paroquiais, onde as crianças recebiam o ensino para a primeira comunhão e a alfabetização. Escolas episcopais, onde as crianças recebiam uma espécie de ensino secundário e aprendiam os fundamentos do trivium. E escolas monásticas, que eram escolas de educação mais avançada, para as quais as crianças podiam ir direto e receber todas essas etapas educacionais. As escolas monásticas eram uma espécie de universidade (antes mesmo desta surgir), só que, além da vida intelectual, havia nelas uma vida espiritual muito bem ensinada. Existem mosteiros que desenvolveram um ensino intelectual importantíssimo, como o Mosteiro de Cluny. Só depois surgem as universidades, no século xiii. Esses quatro tipos de escola tomavam como base a regra de São Bento: rezar, trabalhar e estudar. E delas saíram grandes santos que desempenharam papéis educacionais muito importantes, como São Bonifácio, São Patrício, São Cirilo, São Metódio, Santo Isidoro de Sevilha, Santo Tomás de Aquino, entre outros. Esses grandes santos do início do processo medieval foram fundamentais para o avanço educacional da época. A educação romana era mais voltada para o direito, o ensino militar e público, e para as línguas, com o objetivo de educar para a vida pública — essa era a escola dos sofistas. Já na tradição grega havia um ensino profundo da filosofia, da lógica e das virtudes. Podemos dizer que, ao longo dos séculos, a Igreja pegou o que havia de bom da educação grega e romana para formar suas escolas, baseadas no ensino das artes liberais. AS ARTES LIBERAIS O que são as artes liberais? Os conhecimentos que nos libertam da ignorância: “Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32). Não se deixe enganar pela semelhança do nome, pois as artes liberais não têm nada a ver nem com educação artística nem liberalismo econômico. Referem-se aos ofícios, disciplinas acadêmicas ou profissões (artes) desempenhadas pelos homens livres. São compostas do trivium (lógica, gramática e retórica) e do quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), em oposição às artes mecânicas, consideradas próprias dos servos ou escravos. Eram as sete artes liberais que tornavam o homem livre. Esse modelo de educação visava, junto com a educação espiritual, fazer do homem um grande sábio. Toda a educação dada aos jovens era feita em latim com base nas grandes obras de Cícero, Quintiliano e outros autores antigos, pois essa língua tinha uma grande função cultural, como língua comum da intelectualidade acima dos dialetos locais. Nas escolas paroquiais, acontecia a alfabetização, a catequese, a educação vocacional para meninos e meninas, o ensino de gramática a partir da poesia e da memorização dos Salmos. Nas episcopais, dava-se início às artes liberais e mecânicas, bem como a um ensino moral e teológico. Nas monásticas, eram ensinadas as artes liberais, as artes mecânicas, filosofia, teologia e ciência. Tudo era gratuito. Vale lembrar outra vez que os mosteiros eram os grandes centros de pesquisa, onde eram ensinadas de modo mais aprofundado a ciência natural, a biologia, a química, a mecânica, sobretudo porque lá havia os pergaminhos dos livros. Na Idade Média, era muito caro e difícil ter um livro, porque ainda não havia sido inventada a imprensa, e os monges tinham de copiar à mão todo o livro. Levava-se em média um ano inteiro para copiar, por exemplo, a Bíblia. Portanto, os livros eram itens de difícil acesso. São muitos os que acusam a Igreja de ter proibido por séculos que as pessoas tivessem acesso à Bíblia. Parece uma acusação plausível para nós, hoje em dia, pois temos acesso facilitado pelas tecnologias modernas; mas durante a Idade Média a Bíblia era uma espécie de biblioteca por si só, pois era composta de inúmeros pergaminhos. E mesmo muitos mosteiros e paróquias medievais não possuíam a Bíblia completa, mas apenas alguns de seus pergaminhos. A Igreja não proibia ninguém de ter acesso à Bíblia, mas o interessado tinha de ir até o mosteiro para consultar uma parte das Sagradas Escrituras, esperando que tal mosteiro tivesse o pergaminho daquela parte específica. Certa vez, uma família pobre de Assis pediu dinheiro a São Francisco. Sem possuir nada além do Novo Testamento, o santo entregou seu pergaminho para que a família o vendesse, e com este dinheiro conseguiram sobreviver por dois anos. Veja só como era caro um livro. As artes mecânicas, ensinadas nos mosteiros, eram a tecelagem, a metalurgia, a guerra, a navegação, a agricultura, a caça e a medicina. Havia ainda as artes do cavalheirismo, que eram exclusivas dos nobres e contavam com uma educação para a guerra: eles aprendiam equitação, cavalaria, natação, arco e flecha, luta, caça, xadrez e versificação. Os mosteiros e abadias tinham, portanto, a importante função de educar a sociedade, de transmitir, sobretudo, os princípios e valores da vida cristã às pessoas. Esses lugares eram como que centros de irradiação do conhecimento, e alguns acabaram tornando-se verdadeiros luminares culturais, como as abadias de Cluny e de São Vitor, que dariam origem às universidades. AS UNIVERSIDADES A idéia principal das universidades era fazer com que as pessoas tivessem uma formação técnica e, assim, se tornassem profissionais sem negligenciar a vida espiritual. Este era o seu objetivo quando a Igreja as fundou: avançar no conhecimento. A partir dos mosteiros desenvolveram-se as faculdades de direito, teologia, filosofia e outras. As universidades surgiram no século xiii,depois de um processo de conquista de maior independência por parte da Igreja. Antes disso, no século x, o chamado “Século de Ferro”, a Igreja sofrera no embate contra alguns senhores feudais que queriam controlá- la. Houve papas e bispos subjugados por famílias, bispos de doze anos de idade que eram nomeados pelos senhores feudais, entre outros abusos. Foi um período difícil para a Igreja. Durante esse período, havia, no interior da França, um pequeno mosteiro fundado por Santo Odão na cidade de Cluny. Santo Odão aceitou as terras concedidas por um senhor feudal e fundou o mosteiro sob a condição de que o senhor feudal não interferiria na escolha de seu abade. Ele respondeu: “A única coisa que desejo é que rezem por mim todos os dias. Esse é meu único pedido”. O pedido foi aceito, e o mosteiro, fundado. Da Abadia de Cluny e de sua regra surgiram inúmeros santos, formados sem interferência do poder temporal. Em questão de duas gerações, surgiram mais de 2.000 mosteiros sob a regência dessa mesma abadia e, a partir deles, grandes santos e papas, como Urbano ii — o Papa monge responsável por convocar a Primeira Cruzada. Assim, a Igreja começou a desempenhar um poder maior e a se impor contra o controle do poder temporal. Com vistas à expansão da cristandade, surgiu a idéia de fundar as universidades. E a primeira foi a Universidade de Paris, fundada em 1170. As universidades se tornaram então os grandes centros intelectuais e de pesquisa, que antes eram os mosteiros. Ocorre que, com essa expansão, a relação entre a formação humana e espiritual e o trabalho intelectual foi sendo prejudicada, e estas duas coisas foram se afastando progressivamente. Nos mosteiros, os jovens recebiam ensinamento e espiritual e formação intelectual como duas facetasde um mesmo modo de vida, ao passo que, nos cursos universitários, o conhecimento puramente racional, a lógica e a filosofia pura se destacavam da vida de oração. Ocorreu uma divisão: o ensino espiritual ficou nos mosteiros, e o intelectual, nas universidades. E foi nessa época que surgiu, por conta de necessidades próprias do trabalho das universidades, a idéia do diploma, uma declaração escrita e oficial que representava a garantia do cumprimento de um período de estudo, que atestava uma formação completa e um conhecimento adquirido. Em pouco tempo, com vistas ao cargo profissional a que o diploma dava acesso, o objetivo de muitos estudantes passou a ser esse mesmo diploma, e não mais o conhecimento por si mesmo. Com o diploma, era possível sair de um local e trabalhar em outro, dar aula em outras universidades, bastando apresentar o diploma para dar fé da própria capacitação. Isso deslocou o objetivo último da busca da verdade para a comprovação titular. A DECADÊNCIA INTELECTUAL O surgimento do diploma em decorrência do funcionamento das universidades ocasionou uma decadência intelectual, pois o objetivo central do ensino passou da sabedoria em si mesma para a aquisição do diploma que a atestava. O primeiro fruto relevante dessa decadência foi o nominalismo, corrente filosófica surgida no meio universitário com Guilherme de Ockham (1285–1347). Sua tese principal é a inexistência das formas gerais das espécies — ou seja, não existira de fato nas coisas o gênero “cachorro”, ou “árvore” ou “mesa”, que pudesse ser abstraído pela inteligência humana. Essas generalizações seriam apenas resultado do somatório de todos os cachorros, árvores e mesas individuais que tivéssemos visto, isto é, “cachorro”, “árvore” e “mesa” não passam dos nomes que damos a essas coisas — daí nominalismo. Os nominalistas reduziam todas as entidades a particulares, de modo que os conceitos nunca são abstraídos das coisas. Para eles, só existem os nomes puros e, portanto, elimina-se a realidade das coisas universais. O nominalismo abriu espaço para o relativismo. Troque o conceito de cachorro e de árvore pelo de beleza, de amor: logo não existiria mais nada absoluto, nem mesmo Deus e seus mandamentos. Junto com a filosofia nominalista, desenvolveu-se dentro das universidades de direito, principalmente as romanas, um interesse muito grande pela cultura greco-latina. Assim, os estudantes começaram a ter contato e ler os escritos gregos e romanos, que estavam nos mosteiros, despertando ao mesmo tempo grande fascínio pela cultura greco-romana e desprezo pelas novas conquistas e criações da Idade Média. São os primeiros passos do Renascimento. As duas coisas surgiram juntas: o nominalismo e o Renascimento. A Igreja fundou em 1170 a Universidade de Paris e esta criou o diploma em 1250, ambas contribuindo para a derrocada. À decadência intelectual, seguiu-se a decadência espiritual, que, por sua vez, produziu uma decadência social que atingiu a Igreja, a Europa e, mais tarde, quase o mundo todo. A sociedade começou a perder a sua identidade à medida que abandonava seu centro e fundamento: o ensino espiritual. O antropocentrismo tomou de vez o lugar do teocentrismo, como na antiga cultura greco-romana. O paganismo e o amor aos deuses gregos voltaram. Esse retorno da cultura grega se evidenciou especialmente na pintura e na escultura. Por exemplo, as pinturas da Capela Sistina retratam Jesus como um deus romano, e Nossa Senhora como Minerva. No antropocentrismo, o homem se considera responsável pelas coisas, se vê como sendo o centro do universo. Deus assume uma posição contraditoriamente secundária nessa nova cosmovisão. Cada crise intelectual gera uma série de novos problemas e dificuldades para a geração seguinte, que se vê então desnorteada, sem saber mais o que é certo e o que é errado, o que é belo e o que é feio, o que é verdade e o que é mentira. E todos nós hoje somos, de certo modo, frutos da decadência que se deu desde a Idade Média, acentuada especialmente no decorrer dos quatro séculos da Modernidade. E quais os resultados do ensino moderno? Basta comparar os “sábios” de hoje com os sábios da Idade Média, para dirimir qualquer dúvida sobre qual modelo educacional é de fato melhor. I O PRÓXIMO PASSO sso que vimos é o mínimo que é necessário saber — ou, dito de outro modo, é o mínimo que precisamos desaprender — para começar a de fato estudar a Idade Média, a verdadeira Idade Média. Derrubamos várias mentiras que comprometem um estudo mais aprofundado do tema e distorcem vários aspectos deste período tão longo e tão impressionante. O leitor talvez tenha pensado, mais de uma vez, que há, na verdade, tesouros e maravilhas da nossa história e da nossa cultura que não estão acessíveis a nós, encobertos por essa camada de mentiras. Como resgatar o que há de bom em nossa tradição ocidental, como trazer de volta algo que é nosso por direito, e do que não deveríamos ter sido privados? A única maneira de mudarmos a situação atual é por meio de nossa auto-educação, da leitura e do estudo, para que assim possamos também educar nossa família e nossos amigos, criando pequenos núcleos de estudos tais como os da Idade Média. Educá-los para a caridade, para a santidade, para a sabedoria. Devemos sempre nos lembrar da regra de São Bento: rezar, trabalhar e estudar. Devemos fazer tudo de forma organizada, estruturada dentro da nossa vida pessoal, para que assim consigamos mudar a realidade em que nos encontramos, pois a mudança virá de baixo para cima, e não o contrário. Precisamos despertar em nós o desejo pela vida intelectual e espiritual, como havia na Idade Média. UMA BREVE BIBLIOGRAFIA Além da bibliografia, gostaríamos de comentar brevemente alguns dos historiadores e fontes que serviram de referência. O primeiro livro a se indicar é Em busca da Idade Média, do historiador francês Jacques Le Goff. É um dos grandes historiadores do Medievo, pois ele, mesmo não sendo católico, e sim um seguidor da Escola dos Annales, é um estudioso muito sério. Em seus livros, buscou realmente escrever e contar como realmente foi essa época. Infelizmente, apesar de seus livros estarem em todas as universidades, muitos são os que distorcem o que o autor disse. Outros livros importantes são Os intelectuais na Idade Média, em que Le Goff explica a importância dos mosteiros e dos intelectuais medievais; A Idade Média e o dinheiro: ensaio de uma antropologia histórica, em que fala da economia medieval e de como a Igreja deu um ensinamento moral muito importante para os medievais a respeito do uso do dinheiro; Homens e mulheres da Idade Média, com o qual podemos entender o cotidiano medieval, e São Luís, com o qual, por meio da história do rei de França, um grande santo e rei medieval, podemos entender a importância da aristocracia. Outros dois livros importantes são A ascensão das universidades, de Charles Homer Haskins, e Reflexões sobre o Medievo, uma seleta de artigos sobre diversos pontos da Idade Média, principalmente do cotidiano medieval. Imprescindível é o trabalho da historiadora Régine Pernoud, que escreveu muito sobre a Idade Média e de maneira muito acessível, como Idade Média: o que não nos ensinaram e A Idade Média contada aos meus sobrinhos. Neste, a autora narra histórias de grandes personalidades medievais. Em Impressões da Idade Média, o professor Ricardo da Costa, atualmente o maior medievalista brasileiro, desconstrói as idéias a respeito da “Idade das Trevas”, entre as quais a de que não havia educação na Idade Média, que as mulheres eram controladas e submissas. Outra obra de um brasileiro notável e grande medievalista é A Idade Média: Nascimento do Ocidente, do historiador Hilário Franco Jr. O historiador Christopher Dawson escreveu vários livros a respeito da Idade Média, e o ponto interessante é que ele analisa esse período a partir da religião católica. É um ponto importante, pois, como vimos no capítulo 1, não é possível falar da Idade Média sem falar de religião e da Igreja Católica. Em suas obras,mostra o cotidiano e a mentalidade medievais. Em Os deuses da revolução, por exemplo, o autor trata do fim do pensamento medieval e do início do modernismo, mostrando como tal mudança deu base para a Revolução Francesa. Outros livros seus são: Inquéritos sobre religião e cultura, O julgamento das nações, A formação da cristandade e Criação do Ocidente: a religião e a civilização medieval. Todos eles são importantes para entender a Idade Média. Contudo, de todos eles, é indicado que você comece por dois livros simples e muito acessíveis: Idade Média: o que não nos ensinaram, de Régine Pernoud, e Impressões da Idade Média, de Ricardo da Costa. C.Stephen Jaeger, A inveja dos anjos: as escolas catedrais e os ideais sociais na Europa medieval (950–1200). Charles Homer Haskins, A ascensão das universidades. , Reflexões sobre o Medievo. ChriStopher DawSon, Os deuses da revolução. , Inquéritos sobre religião e cultura. , O julgamento das nações. , A formação da Cristandade. , Criação do Ocidente: a religião e a civilização medieval. Hilário FranCo Júnior, A Idade Média: Nascimento do Ocidente. Jacques Le Goff, Em busca da Idade Média. , Os intelectuais na Idade Média. , A Idade Média e o dinheiro: ensaio de uma antropologia histórica. , Homens e mulheres da Idade Média. , São Luís. Jean Gimpel, A revolução industrial da Idade Média. Paul Zunthor, Correspondência de Abelardo e Heloísa. Régine PernouD, A Idade Média contada aos meus sobrinhos. , Idade Média: O que não nos ensinaram. Ricardo Da Costa, Impressões da Idade Média. Ruy Afonso Da Costa Nunes, História da educação na Idade Média. NOTAS DE RODAPÉ 1 Diz São Paulo em Ef4,30, lembrando Gn1,23. 2 A revolução industrial da Idade Média, trad. ÁlvaroCabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p.8. 3 Ibidem, pp. 12–13. 4 Ef 4, 23–24. 5 Ricardo da Costa, Impressões da Idade Média, Armada, 2016. A SOCIEDADE E A ECONOMIA MEDIEVAIS A MULHER NA IDADE MÉDIA A educação na Idade Média O próximo passo Notas de Rodapé