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O mínimo sobre MARX Marize Schons 1ª edição — janeiro de 2024 — CEDET Copyright © Aline Galhardo 2024 Os direitos desta edição pertencem ao CEDE — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Av. Comendador Aladino Selmi, 4630 Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8 CEP: 13069-096 — Vila San Martin Campinas-SP Telefones: (19) 3249–0580 / 3327–2257 E-mail: livros@cedet.com.br CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book CEDET LLC 1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761 Phone Number: (407) 745-1558 e-mail: cedetusa@cedet.com.br Editor: Felipe Denardi Revisão & preparação: Vitório Armelin Capa: José Luiz Gozzo Sobrinho Diagramação: Virgínia Morais Revisão de provas: Paulo Bonafina Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo FICHA CATALOGRÁFICA Schons, Marize. O mínimo sobre Marx / Marize Schons Campinas, SP: O Mínimo, 2024. ISBN: 978-65-85033-27-5 1. Marxismo I. Título II. Autor CDD — 320.531 5 ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO: 1. Marxismo – 320.531 5 www.ominimoeditora.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor. Sumário INTRODUÇÃO A CRÍTICA MATERIALISTA AO IDEALISMO ALEMÃO A CRÍTICA À FILOSOFIA POLÍTICA BURGUESA CRÍTICA SOCIOECONÔMICA AO CAPITALISMO CONCLUSÃO DICA DE LEITURA DICA DE LEITURA 2 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NOTAS DE RODAPÉ proposta deste livro é apresentar Marx pela sua sociologia e não pela sua biografia ou pelo A seu pensamento econômico. Essa escolha foi feita por considerar que é a melhor estratégia para explicar os principais fundamentos da teoria de Marx, assim como ampliar a visão do leitor sobre uma tradição teórica que, muitas vezes, fica limitada aos debates econômicos ou militantes. Essa opção decorre do fato de que não são as propostas econômicas e nem mesmo as indicações práticas a favor da revolução o que faz Marx ainda ser inevitável nas discussões tanto acadêmicas quanto políticas. Marx é pertinente não apenas por ser fonte de inspirações partidárias, mas por ter proposto uma teoria social que leva em consideração as transformações históricas e tenta explicar a dinâmica do conflito nas relações humanas que é, talvez, inerente à sociedade. Para tal empreendimento, optei por dividir os capítulos do livro de acordo com seus três principais posicionamentos críticos: a) a crítica ao idealismo alemão;1 b) a crítica à filosofia política burguesa;2 e c) a crítica socioeconômica ao capitalismo. O primeiro capítulo tem como objetivo apresentar as discordâncias de Marx em relação a Hegel e ao idealismo absoluto. Nesse capítulo, busco demonstrar os fundamentos do materialismo histórico, um programa teórico e metodológico que compõe as bases da proposta do socialismo científico.3 No segundo capítulo, procuro explorar a crítica política à burguesia, o que implica em evidenciar o entendimento sobre o conceito de ideologia e as repreensões de Marx às instituições modernas como, por exemplo, o Estado; assim como suas críticas às instituições tradicionais como, por exemplo, a religião. Por fim, este pequeno livro apresenta alguns dos aspectos que compõem a difundida análise de Marx do capitalismo, tendo em vista que esse julgamento está completamente relacionado à proposta revolucionária de superação da ordem estabelecida por meio da organização do programa político do partido comunista. O desafio de trazer O mínimo sobre Marx não significa reduzi-lo em poucas páginas. A intenção é que esse trabalho seja um passo inicial para os estudos daqueles que, independentemente da posição política, estejam dispostos a estudar o pensamento do autor. O CONTEXTO DAS REVOLUÇÕES DE 1848 Em 1848, Marx e Engels escrevem o Manifesto do Partido Comunista (2010), um breve tratado que tinha como objetivo expressar os princípios fundadores da Liga Comunista, uma organização secreta de trabalhadores e intelectuais alemães que viviam no exterior. Esse panfleto demarcava um compromisso público com a causa do comunismo. Porém, tal posição política só pode ser compreendida se considerarmos as disputas ideológicas desse específico momento histórico. O contexto das tentativas revolucionárias de 1848 demonstravam a “exaustão histórica” dos regimes absolutistas ainda presentes na Europa. O capitalismo havia penetrado nessas sociedades transformando os laços sociais tradicionais, estimulando demandas políticas contestadoras e alterando as relações econômicas convencionais. Contudo, durante este processo, específicas tensões políticas se tornaram irremediáveis. É verdade que os propósitos burgueses4 continuavam protagonistas na condução das diversas reformas políticas e transformações econômicas, tendo em vista que no decorrer do século XIX a democracia liberal se tornaria a forma de governo estabelecida em várias partes do mundo. Entretanto, também é verdade que esses processos estavam ocorrendo de maneira desigual e contraditória, o que estimulou oposições à esquerda da atividade política burguesa. Apesar do protagonismo do liberalismo5 nas transformações sociais e econômicas, neste mesmo período, as tensões políticas estimuladas pelo novo modelo de produção capitalista abriam uma janela de oportunidade para o crescimento expressivo dos partidos socialistas na Europa. Esse fenômeno produziu diferentes consequências. A primeira foi a reação conservadora e restauradora, que reivindicava a manutenção da ordem tradicional frente às reinvindicações e demandas insurgentes. O outro resultado foi a expansão de uma agenda socialista independente e notoriamente crítica aos propósitos burgueses. Nesta época, socialistas censuravam o comportamento político burguês que, por muitas vezes, adiava processos revolucionários extremos e chegavam, até mesmo, a apoiar abertamente os regimes conservadores e tradicionais. Esse tipo de dilema pode ser identificado especialmente na periferia capitalista da época como, por exemplo, no processo de Unificação Alemã liderado pela coalizão entre os liberais moderados e os conservadores durante o período bismarckiano6 (Kitchen, 2015). A “traição burguesa” (Saccarelli, 2015, p. 214) estimulou debates conectados na Alemanha e na Rússia que encaminhavam orientação aos movimentos socialistas em diversas regiões da Europa. Alguns dos resultados dessa discussão foram a reorientação dos propósitos socialistas a favor da independência da classe trabalhadora e a ação voltada para a construção de um processo revolucionário capaz de superar o sistema capitalista. Os indivíduos que faziam parte da Liga Comunista realizavam críticas aos intelectuais da época (em especial, no contexto alemão) que, segundo eles, haviam interpretado mal as teorias sociais francesas e inglesas que definiam o comunismo negativamente7 em relação ao socialismo (Townshend, 2013). Marx e Engels sugeriram que o objetivo da ação política exigia estar orientado à “vitória final” do comunismo, um processo que seria mediado pela transição de uma etapa socialista. O comunismo, nesse sentido, é descrito como uma sociedade sem classes, onde não existiria a necessidade do Estado e onde a propriedade privada seria completamente extinguida. O socialismo, por sua vez, foi definido como a ditadura do proletariado, um processo em que a estatização dos meios produtivos serviria como um momento gradual para alcançar o ideal comunista. É nesse contexto que Marx e Engels reivindicam uma ação voltada para a construção de um partido independente que não aceitasse a liderança política da burguesia. Todavia, as tentativas revolucionárias de 1848 não tiveram sucesso. Apesar dos movimentos insurgentes, os governos estabelecidos conseguiram reprimir as agitações. Devido a essa repressão política, tanto Marx quanto Engels foram forçados a se exilar, primeiro em Paris e posteriormente em Bruxelas e Londres. Apesardo fracasso, as tentativas revolucionárias conseguiram produzir um impacto duradouro, especialmente devido à consolidação das ideias de Marx como principal fonte intelectual dos movimentos socialistas e comunistas posteriores. São também as experiências desse período uma das motivações para Marx aprofundar o projeto do socialismo científico que procurava distinguir-se das propostas anteriores do socialismo que Marx e Engels identificavam como utópicas. Segundo Richard Pipes (2001), não há como definir uma fronteira rígida entre socialistas e comunistas.8 De qualquer forma, podemos dizer que entre o fim do século XIX e durante todo o século XX, os propósitos socialistas e os propósitos comunistas se distinguiram de maneira mais evidente. Essa disputa atinge seu ápice no contexto da Segunda Internacional Socialista (1889) nas discussões lideradas pelo Partido Social- Democrata Alemão, especialmente pela atuação de Karl Kautsky.9 Essa ocasião deixou explícita as tensões entre os reformistas e os revolucionários, e é nesse contexto que o Partido Bolchevique, graças a Lênin, passou a liderar a formação de uma identidade ideológica comunista distinta dos socialistas, que tornaram-se atores políticos mais moderados na disputa por transformações sociais. Outros autores, como Gramsci (na Itália) e Rosa Luxemburgo (na Alemanha) também contribuíram para tal distinção entre reformistas e revolucionários, mesmo que não necessariamente tenham se submetido de maneira absoluta ao programa leninista russo. Contudo, a autoidentidade comunista, durante o século XX, esteve geralmente associada ao projeto político que consolidou a União Soviética e outras experiências históricas inspiradas da tradição Leninista como, por exemplo, o processo revolucionário chinês. AS DIFICULDADES DE ESTUDAR MARX A influência de Marx é tanto intelectual como política, sendo muito difícil separar ambas as esferas. É por esse motivo que, antes de tudo, é preciso esclarecer escolhas conceituais e de vocabulário, para tentar evidenciar as diferenças entre o pensamento Marx dos seus intérpretes autointitulados marxistas.10 Nesse sentido, tive a preocupação de limitar o termo “marxista” à forma como as gerações posteriores interpretaram os textos de Marx. Enquanto o uso do termo “marxiano” pretende referir-se ao pensamento de Marx derivado dos textos originais. Tendo em vista que a “tradição marxista”, que se desenvolveu especialmente depois da morte de Marx, exigiria que eu fizesse uma minuciosa distinção entre autores que são divergentes entre si, considero mais viável limitar o recorte do livro ao pensamento de Marx, apesar de deixar parcialmente registradas as participações de Engels em algumas de suas obras e atividades políticas. Mesmo escolhendo fazer esse recorte, não significa que essa foi uma tarefa simples. Isso porque Marx é um teórico amplamente discutido nos círculos acadêmicos, o que quer dizer que as pesquisas sobre o pensamento marxiano nem sempre estão em consenso. Outra dificuldade é que a análise ampla das obras de Marx precisa levar em consideração que o seu pensamento muda como o passar do tempo. Como diria Raymond Aron: “Marx nem sempre disse a mesma coisa sobre os mesmos temas” (Aron, 2003, p. 188). Para auxiliar em explicar essa diversidade, utilizo da definição de Louis Althusser (2015), que considera que existe pelo menos dois Marx: o autor da juventude e o autor da maturidade. Em termos gerais, tal distinção significa que os textos da juventude de Marx expressam considerações de cunho filosófico como, por exemplo, especulações sobre a natureza, a condição humana e as limitações e potencialidades do sujeito na história. Quanto às obras da maturidade, podemos encontrar estudos relacionados ao campo da economia política e a sua clássica análise sobre o capitalismo. Apesar de tal distinção, vale ressaltar que o teor materialista do pensamento de Marx é permanente durante toda a sua trajetória mesmo que em diferentes níveis. Essa definição é importante para que os estudos subsequentes dos leitores levem em consideração a distinção entre o marxismo ocidental11 e o marxismo que se pretendia ortodoxo.12 Não é verdade que a discussão do marxismo ortodoxo exclua completamente as discussões filosóficas, nem que o marxismo ocidental negue completamente a importância da análise das relações econômicas. Todavia, um dos motivos dessa distinção ocorre porque textos como Ideologia alemã (2007) e Manuscritos econômicos e filosóficos (2004) só vieram a público na década de 30, o que impactou profundamente as discussões nos círculos marxistas fora da Rússia. O segundo motivo, é que essa tensão entre neomarxistas e ortodoxos acompanha as críticas ocidentais aos caminhos que a burocracia soviética tomou com o decorrer do tempo. Dessa forma, espero que esse trabalho consiga equilibrar propósitos introdutórios sem renunciar à inevitável complexidade do tema. Considero que a discussão panfletária é vulgar e simplificadora, assim como advogo a favor de que Marx não seja excluído dos estudos dos seus potenciais antagonistas intelectuais ou políticos. O A CRÍTICA MATERIALISTA AO IDEALISMO ALEMÃO O MATERIALISMO pensamento de Marx precisa ser compreendido pela sua postura crítica; isso quer dizer que a teoria marxiana pretende contrapor seus antecessores e construir um programa teórico e metodológico autônomo. A crítica filosófica não consiste na simples rejeição de ideias anteriores. Na verdade, a crítica analisa sistematicamente as premissas de uma proposta teórica, assim como reflete sobre as implicações práticas e políticas da tradição de pensamento em questão. Essa é a postura de Marx em relação ao idealismo alemão, à filosofia política burguesa, aos socialistas utópicos13 e aos anarquistas.14 Por essa razão, a influência de Hegel ou de Adam Smith no pensamento marxiano só pode ser assimilada levando em consideração que, apesar de Marx absorver parte do arcabouço conceitual desses autores, essa escolha não significou validar os pressupostos do idealismo absoluto ou da economia política clássica. O projeto teórico de Marx foi definitivo para marcar uma ruptura no pensamento político e filosófico moderno, e por esse motivo não é razoável presumir que existe uma relação linear entre os pensadores anteriores e Marx. A proposta marxiana produziu críticas em diferentes frentes — política, social e moral —; contudo, nesse primeiro contato com o pensamento marxiano, é necessário assimilar que a sua principal crítica é de caráter teórico e, especialmente, materialista. O materialismo consiste numa concepção filosófica ampla, que afirma que a realidade existe independente da consciência humana, que a matéria é uma condição concreta e que o comportamento da matéria pode ser conhecido.15 Os idealistas, por sua vez, consideram que o princípio de todas as coisas reside no espírito, na ideia, na consciência. Para fins didáticos, o conhecido dilema entre materialismo x idealismo gira em torno das seguintes questões: • A matéria tem autoridade sobre as ideias ou o contrário? • É possível produzir dados objetivos sobre ideias intangíveis? • Existe relação entre a matéria e o conhecimento objetivo? O materialismo proposto por Marx presume que a matéria tem primazia em relação à mente, o que significa afirmar que as ideias não existem de maneira independente das condições materiais. A intenção de Marx e Engels de desenvolver um projeto “científico” frente às propostas do “socialismo utópico” é sustentado, primeiro, pelo pressuposto que a realidade pode ser conhecida objetivamente e, segundo, de que existe um intercâmbio entre a “matéria” e a “realidade objetiva”. Essa proposta específica de materialismo não busca meramente descrever objetos concretos isolados, mas sim conceber uma proposta teórica e metodológica capaz de explicar o desenvolvimento histórico das relações sociais. Apesar de autores como Popper (2002) e Weber (2014) questionarem o patamar científico desta proposta, ironicamente, Marx foi a primeiro a colocarseu próprio projeto teórico no centro da distinção entre “ideologia e verdade” (Outhwaite, 1996, p. 372). Isso produziu efeitos irreversíveis na discussão sobre o que é conhecimento, tendo em vista que Marx inaugura a ideia de que estar do “lado certo da história” — ser, portanto, “científico” — significa estar subjugado ao entendimento marxista de verdade. Por essa razão, o programa do socialismo científico restringe a ciência a um único caminho: o do materialismo histórico. Essa postura muitas vezes justificou uma visão radical de reduzir qualquer proposta divergente à mera ideologia.16 Em resumo, a teoria de Marx precisa ser entendida como uma crítica materialista aos seus antecessores. O materialismo entende que existe uma primazia da matéria sobre a mente. O específico materialismo proposto busca explicar o desenvolvimento histórico das relações sociais. O programa teórico marxiano pretende ser científico por vincular o conhecimento sobre a matéria com a realidade objetiva. Por fim, ironicamente, Marx colocou o socialismo científico como uma espécie de critério de demarcação entre o que é verdade e o que é ideologia, entre o que é factual e o que é utópico. A RELAÇÃO ENTRE INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURA O materialismo presume que as ideias não existem de maneira isolada do mundo material; isso implica em admitir que as ideias e instituições estão limitadas pelas condições concretas de uma época. Por outro lado, são relações materiais, que configuram a organização econômica em uma sociedade, que condicionariam os processos históricos de transformação. Em outras palavras, por mais que Marx admita que a economia e as instituições sociais sejam interdependentes, o Estado ou a religião não são capazes de ter autonomia perante as condições econômicas. A sociedade é, portanto, uma totalidade em constante mudança e, à medida que a economia se desenvolve, ocorrem transformações nas instituições políticas, jurídicas, religiosas e culturais. Os conceitos de infraestrutura e superestrutura são fundamentais para entender a relação entre a economia e instituições. A infraestrutura se refere aos aspectos econômicos e materiais de uma sociedade, incluindo a organização da produção, as relações de propriedade, as forças produtivas e as estruturas de classes.Enquanto a superestrutura é um conceito que se refere tanto às instituições como o Estado, o direito e a religião; quanto a formas de pensar como a cultura e os sistemas de valores.17 A superestrutura consiste na expressão das relações de produção e da organização econômica em uma sociedade, entretanto, isso não significa que podemos concluir que a superestrutura é apenas um reflexo passivo da economia. Um exemplo dessa questão é que Marx admite que o Estado pode ter uma independência relativa; mas, por outro lado, o Estado inevitavelmente é formado a partir de um processo histórico subordinado às relações econômicas. Em contrapartida, as mudanças nos modos de produção e nas relações produtivas, como aconteceu na transição do feudalismo para o capitalismo, podem levar a alterações fundamentais nas instituições, incluindo a forma de governo, as manifestações culturais e as expressões religiosas. Por essas razões, a instituições são capazes de agir sobre a manutenção das relações entre as classes, mas não está nelas o lugar onde relações de poder podem ser transformadas estruturalmente.18 Em resumo, o conceito de infraestrutura e superestrutura pretende explicar a conexão entre as relações econômicas e as instituições sociais. A infraestrutura descreve as relações socioeconômicas e os modos de produção. A superestrutura descreve as instituições como o Estado e a religião, assim como expressões da consciência como a cultura. A superestrutura não tem autonomia absoluta em relação à infraestrutura, o que não significa dizer que essas instituições sociais são mero reflexo passivo da economia. A INVERSÃO HEGELIANA É por essa concepção materialista que em Manuscritos econômicos e filosóficos Marx sugere que a filosofia hegeliana inverteu a relação entre a realidade material e as ideias.19 Isto é, em vez de ver a realidade material como a base fundamental para a existência das ideias humanas, Hegel, de acordo com Marx, transformou o mundo real em uma mera manifestação da ideia. A partir dessa crítica, Marx buscou corrigir o que ele chamou de “inversão hegeliana” ao enfatizar a importância das condições materiais na compreensão da sociedade e da história. A filosofia hegeliana propõe investigar a natureza da consciência e como a consciência se desenvolve ao longo do tempo.20 O conceito de “dialética” tenta descrever esse processo que envolve o conflito e a reconciliação de ideias opostas, no qual a consciência passa por estágios de desenvolvimento em direção a uma compreensão mais rica e complexa. A dialética é o princípio que impulsiona o desenvolvimento e a transformação das ideias e da realidade. Dessa forma, Hegel observa, a partir da história da filosofia, como as categorias, noções ou formas de consciência surgem umas das outras, formando a totalidade cada vez mais inclusiva e racional.21 Em outras palavras, a verdade está no todo e o erro está na particularidade e na simplificação. A dialética, portanto, progride trazendo luz ao implícito e reparando as ausências ou inadequações nas ideias. O problema da dialética se apresenta no pensamento de Marx a partir de três aspectos: a) como um conjunto de leis que governam a realidade; b) como um método para conhecer a realidade; c) como a interação conflituosa das forças sociais no próprio processo histórico (Bottomore, 1988). Dessa maneira, enquanto para Marx a realidade está nas concretas relações sociais de produção, sendo a tensão entre infraestrutura e superestrutura um processo permanente de conflito capaz de fabricar as transformações históricas. Para Hegel, a realidade era moldada por um processo infinito de contradições entre ideias opostas e reconciliação dessas ideias, produzindo assim uma nova concepção mais elevada que irá ser confrontada novamente. O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO Marx enfatiza a objetividade e a independência da realidade em relação ao conhecimento subjetivo. Isso quer dizer que a tentativa de Marx de produzir um projeto científico está de acordo com a proposta de que a realidade pode ser conhecida, que a realidade está em conexão com a matéria e que a realidade é independente do sujeito observador. Diferente do idealismo, Marx reconhece a existência independente dos objetos materiais, defendendo o realismo deste objeto. No entanto, diferente do empirismo, afirma que a verdade científica não pode se limitar pela experiência sensível, pois a experiência pode nos levar a crer que as aparências enganosas das coisas são a verdade. Dessa forma, o materialismo-histórico-dialético consiste em uma proposta teórica que enfatiza a cientificidade e a historicidade do conhecimento, e que busca investigar como as relações sociais e econômicas definem a produção em uma sociedade, identificando as classes sociais e seus respectivos papéis na organização produtiva. Ao utilizar uma abordagem dialética para compreender a dinâmica e as contradições presentes nas relações de produção e nas transformações históricas, Marx reconhece a luta de classes como um motor fundamental das mudanças sociais. A história, portanto, é um processo constante, marcado por contradições e conflitos. As mudanças nas estruturas sociais ao longo do tempo, por sua vez, podem ser analisadas a partir das transformações dos arranjos organizacionais e as relações de produção predominantes em uma sociedade em determinado período histórico, o que foi chamado por Marx de modos de produção. Essa análise histórica é capaz de identificar diferentes modos de produção como, por exemplo, o modo de produção feudal baseado no trabalho servil e na propriedade da terra; ou o modo de produção do capitalismo baseado no trabalho assalariado e na propriedade privada dos meios produtivos. De certo modo,esse tipo de pesquisa produziu “modelos ideais” de diferentes tipos de sociedade baseado na identificação dos diferentes padrões de relações produtivas: • Sociedade primitiva: Identificada como a forma mais antiga de organização social. Nessa fase, a propriedade é comum a todos e as relações de produção são baseadas na coletividade e na subsistência. Não há uma divisão estruturada do trabalho ou exploração sistemática. • Sociedade escravista: Nessa forma de sociedade, a propriedade privada emerge, e a exploração ocorre por meio da escravidão. Uma classe dominante de proprietários de escravos controla os meios de produção, enquanto a classe escravizada é explorada e forçada a trabalhar sem possuir esses meios de produção. • Sociedade feudal: O feudalismo é caracterizado pela relação entre senhores feudais e camponeses. Os senhores feudais possuem as terras e exercem controle sobre os camponeses, que trabalham na terra em troca de proteção e sustento. As relações sociais são organizadas em torno de laços de vassalagem e obrigações feudais. • Sociedade capitalista: O capitalismo é a forma de sociedade predominante na época de Marx e Engels. Nesse tipo de sociedade os meios de produção são baseados na propriedade privada e controlados pela burguesia capitalista. A exploração ocorre por meio da relação entre capital e trabalho assalariado, onde os trabalhadores vendem sua força de trabalho para os capitalistas em troca de salário. • Sociedade socialista/comunista: Marx e Engels vislumbram a superação do capitalismo em direção a uma sociedade socialista e, posteriormente, comunista. No socialismo, os meios de produção serão estatizados e gradualmente a exploração será eliminada. No comunismo, as classes sociais são abolidas, e a propriedade é comum com uma distribuição equitativa dos bens e recursos. Assim, a teoria de Marx sobre a relação entre história e revolução parte de sua análise de diferentes tipos de sociedade, sendo a história um processo que pode ser tanto explicado como previsto a partir da análise materialista das contradições internas presentes em uma configuração socioeconômica.22 Isso significa que o materialismo histórico-dialético não só pretende ser um método capaz de caracterizar modelos de sociedades passadas e explicar o funcionamento do capitalismo presente na época de Marx, mas é também uma filosofia do devenir histórico (Aron, 2008, p. 198) que muitas vezes não distingue com nitidez a fronteira entre a análise do sistema e a previsão sobre o seu desenvolvimento, sendo essa característica um dos aspectos que qualifica o tom profético dos textos de Marx. A A CRÍTICA À FILOSOFIA POLÍTICA BURGUESA A REVOLUÇÃO BURGUESA consideração de que as mudanças históricas ocorrem a partir de rupturas revolucionárias talvez seja um dos traços mais característicos da tradição marxista como um todo.23 Essa suposição de que a transformação social acontece mais por rupturas que por continuidades não é apenas um pressuposto teórico, mas é também uma presunção que inspira formas de ação motivadas a alcançar condições para mudanças dramáticas em detrimento do engajamento voltado aos processos fragmentados de reformas graduais. A revolução, portanto, seria um ato de transformação radical, no qual as antigas estruturas sociais seriam derrubadas e uma nova ordem social seria estabelecida. Especificamente sobre o capitalismo, Marx argumenta que, à medida que este modo de produção se desenvolve, as contradições se aprofundam, resultando em crescentes desigualdades, injustiças sociais e empobrecimento da classe. Deste modo, a revolução é o ponto culminante desses processos de contradições, sendo a oportunidade de a classe oprimida, consciente de sua condição de exploração, se unir e se levantar contra a classe dominante. Assim foi o processo que consolidou o modo de produção capitalista que substituiu o modo de produção feudal. A revolução burguesa na França foi um momento histórico de intensa agitação social e política, derivado das contradições do sistema feudal que tornaram o arranjo social insustentável. O modelo social do Antigo Regime, baseado na aristocracia feudal e no poder absoluto do monarca, estava em conflito com as aspirações e necessidades da burguesia emergente, bem como das massas populares. Por esse motivo, a crescente exploração e opressão das classes produtivas (incluindo os camponeses), aliadas às restrições impostas pelo sistema feudal, criaram as condições materiais para a transformação. Contudo, esse processo é duramente criticado por Marx, à medida que resultou na ascensão dos interesses de uma minoria organizada (a classe burguesa) que após a revolução ascende ao poder e submete as massas populares ao domínio dos seus interesses particulares. Se por um lado Marx observa que a revolução teve o mérito de produzir alguns avanços significativos como a abolição dos privilégios aristocráticos e consolidação do modo de produção industrial, por outro lado, ele também critica o fato de que essas conquistas burguesas mantiveram as desigualdades socioeconômicas. Marx acusa que a ascensão da burguesia ao poder político, na realidade, criou um véu alienante de uma suposta igualdade e liberdade ilusória que esconde uma nova forma de exploração a ser desvendada pelo materialismo histórico-dialético. Dessa forma, a revolução burguesa foi um processo que consolidou o modo de produção capitalista que substituiu o modo de produção feudal. Entretanto, a revolução burguesa foi uma revolução que aconteceu representando apenas os interesses de uma pequena classe que, depois da superação do Antigo Regime, passou a preservar seus interesses mantendo relações opressoras às massas populares. IDEOLOGIA E FALSA CONSCIÊNCIA Para Marx, a busca por mudanças nas concepções ideológicas é insuficiente para a construção de um horizonte revolucionário. A consciência, apesar de fazer parte da organização política das classes, não é capaz de sozinha produzir mudanças estruturais, pois o processo revolucionário também depende das condições materiais, especialmente das transformações das forças produtivas (o que inclui a tecnologia, organização do trabalho e recursos naturais disponíveis).24 Entretanto, nos estudos da juventude, Marx está preocupado em discutir como a ideologia pode ser um mecanismo de controle e manutenção do status quo. A ideologia corresponde a um conjunto de ideias, concepções políticas, filosóficas, religiosas e morais. Todavia, a ideologia, apesar de ser uma espécie de consciência, não consiste em um pensamento subjetivo e individual. A ideologia está subordinada a uma condição de classe (determinada material e historicamente) e, por isso, sempre é coletiva. Nas obras da juventude o tema da ideologia aparece como uma espécie de ilusão, por inverter o caráter das coisas ao considerar que a consciência determina a realidade material.25 Essas são as razões que fazem Marx considerar que a filosofia burguesa, e, portanto, a ideologia da classe dominante, tem como objetivo falsear a natureza das relações sociais a fim de contribuir para a manutenção da sua condição de poder. Por conseguinte, trata-se de uma filosofia “alienante” que “esconde” as relações de exploração por defender que a consciência do sujeito é autônoma das condições materiais determinadas historicamente. A segunda fase da discussão, conhecida como fase de transição (1845–1857), é o período em que identificamos o processo de construção do materialismo-histórico. Nas obras dessa fase, a crítica à falsa consciência será abandonada e o conceito de ideologia será apresentado explicitamente pela primeira vez em A ideologia alemã. A crítica sobre a inversão na relação entre consciência e realidade material permanece, mas Marx aponta sua crítica especificamente à atuação política e intelectual dos “jovens hegelianos”, que consideravam que o meio de ação para a transformação seria “libertar o homem das suas ilusões”. Em contrapartida, Marx e Engels concluem que os verdadeiros problemas da sociedade não estãona consciência, mas nas contradições sociais que são materiais e, por isso, verdadeiras. A terceira fase da análise sobre a ideologia corresponde ao desenvolvimento da obra O Capital, fase mais madura do pensamento de Marx. Nesse momento, a palavra ideologia praticamente desaparece; todavia, o sentido de ideologia passa a fazer parte da própria realidade do capitalismo devido à manifestação invertida da esfera de produção no funcionamento das relações no mercado (O Capital, III, cap. XII). Em outras palavras, é próprio da realidade do capitalismo esconder as contradições das relações econômicas, deste modo, o mercado (circulação de mercadorias e competição) vira fonte da ideologia burguesa (Bottomore, 1998, apud Capital, I, cap. VI). A alienação é como uma consequência inevitável das relações de produção capitalistas, nas quais o trabalho humano é subordinado à lógica do lucro e da acumulação de capital. No capitalismo, as relações sociais entre os indivíduos são mediadas pelas relações de mercado, onde prevalecem a competição e o individualismo. Isso leva à alienação das relações humanas genuínas, onde as pessoas são tratadas como concorrentes ou como meios para atingir fins econômicos. Marx argumenta que a alienação no capitalismo leva à perda da essência humana dos indivíduos. Ao serem privados do controle sobre sua própria vida e trabalho, eles perdem a capacidade de se autodeterminarem e de desenvolverem plenamente suas habilidades e potencialidades. É nesta ocasião que a discussão sobre o “fetichismo da mercadoria” é desenvolvida. O conceito de “fetichismo” descreve a maneira como as relações sociais e econômicas no capitalismo são obscurecidas, transformando as relações entre pessoas em relações entre coisas. Para Marx, no capitalismo, as pessoas tendem a atribuir um valor intrínseco às mercadorias, como se o valor delas viesse de suas próprias características naturais e não do trabalho humano. Essa espécie de alienação leva a uma inversão das relações sociais, ocultando as condições reais de produção no capitalismo como um sistema baseado nas relações de exploração. Dessa forma, a noção de ideologia como “falsa consciência” não consiste em um simples erro individual, mas sim numa distorção específica. Essas alienações ocorrem especialmente no sistema capitalista que esconde as contradições produzidas pela luta de classe e transforma a exploração e a desigualdade em categorias pretensamente universais. É essa condição alienante uma das explicações para a manutenção das relações de opressão e desigualdade. Todavia, apesar de Marx e Engels considerarem que a consciência de classe possui um papel para a manutenção da ordem política e econômica dominante, isso não quer dizer que a ação política centralizada nas mudanças das “formas de pensar” é capaz de produzir uma mudança definitiva nas relações de exploração. A ideologia serve para legitimar e justificar as relações de poder e dominação presentes nas estruturas sociais, entretanto, a mudança histórica não ocorre pela ação política que busca mudança das ideias. O PROBLEMA DA ALIENAÇÃO Em A ideologia alemã, Marx e Engels desenvolvem uma crítica abrangente às filosofias idealistas e materialistas da época, incluindo a filosofia de Feuerbach26 . Mesmo que Feuerbach tenha também criticado fortemente o idealismo, argumentando que a filosofia idealista estava alienando a humanidade ao desviar o foco da realidade material e das experiências concretas do ser humano, Marx, ainda assim, contesta a abordagem de Feuerbach ao materialismo, argumentando que o filósofo alemão não levou em consideração adequadamente as condições sociais e históricas que moldam a consciência. Feuerbach argumenta que a religião e a filosofia tradicional colocavam Deus e a ideia como fundamentos da realidade, negligenciando o ser humano real e suas necessidades terrenas. Em outras palavras, a religião seria uma projeção das qualidades e desejos humanos em um ser divino imaginado, uma forma de alienação, em que a humanidade atribui a Deus as características e poderes que, na verdade, pertencem a ela mesma. Nesse sentido, uma forma de se emancipar dessa existência alienada é reconhecer e afirmar a natureza humana em toda a sua plenitude. Marx, por sua vez, afirma que Feuerbach errou ao considerar o indivíduo como um ator isolado, sem pensar devidamente nas relações sociais e nas estruturas econômicas, produzindo, assim, uma filosofia que permanece presa em uma abstração contemplativa, sem considerar a ação concreta e transformadora da realidade. Apesar de Feuerbach defender que a religião é uma forma de alienação decorrente das contradições e das condições materiais da sociedade, Marx procura ir além dessa análise, conectando a alienação religiosa à alienação social e propondo uma reflexão mais profunda das estruturas econômicas e sociais que perpetuam a exploração e a desigualdade. Marx via a alienação como um produto das contradições das relações sociais no sistema capitalista e, por essa razão, acusou Feuerbach de ter sugerido uma filosofia contemplativa e abstrata que não levava em conta a prática e a transformação da realidade, argumentando que a verdadeira compreensão da realidade só poderia ser alcançada por meio da ação política concreta e engajada. A discussão sobre a religião nos escritos da juventude ainda é devedora da influência de Feuerbach, por isso, aparece como uma espécie de distorção da realidade que serve para impedir a consciência sobre as contradições em uma sociedade de classes, escondendo as relações de conflito e de dominação. Contudo, o tema da religião acaba, por vezes, sendo reduzido à famosa frase “a religião é o ópio do povo”, escondendo uma certa complexidade ou, pelo menos, uma certa variação das abordagens sobre o tema no decorrer do desenvolvimento da teoria marxiana. Deste modo, a segunda abordagem sobre o tema da religião nas obras de Marx faz referência à crítica produzida aos jovens hegelianos em A ideologia alemã. Considerando que a esquerda hegeliana, na época, afirmava que a mudança social dependia da mudança da consciência dos indivíduos, a crítica materialista de Marx irá apontar no sentido oposto ao idealismo. Sendo a religião um elemento imaterial que não tem autonomia em relação às condições materiais, agir sobre a religião não alteraria as relações de dominação que se formam materialmente. Dessa forma, Marx não escolheu a religião como foco de ação política. Inclusive, depois de A ideologia alemã. Marx deu pouca atenção ao tema da religião especificamente, tendo em vista que nas obras maduras de Marx a religião irá ser tratada como uma das diversas forma de ideologia assim como a ética, a cultura e a filosofia (Löwy, 1989). Em síntese, a emancipação de uma vida alienada depende de uma transformação profunda das estruturas socioeconômicas que são reais e concretas e não contemplativas e abstratas. O tema da alienação e da ideologia, apesar das distinções internas dentro do pensamento marxiano, consiste em uma reflexão crítica sobre aspectos contraditórios e injustos na sociedade capitalista estimulando, assim, um engajamento verdadeiramente capaz de superar as condições opressoras historicamente constituídas. SOBRE O ESTADO BURGUÊS A teoria de ideologia de Marx é, na verdade, uma dura crítica à filosofia moderna e liberal e, especialmente, às instituições e conceitos jurídicos produzidos a partir dessa tradição como, por exemplo: o Estado Moderno, a soberania, o direito natural, a liberdade, a igualdade perante a lei, a legitimidade da autoridade política, a democracia representativa e a legalidade. A discussão sobre o Estado na teoria marxiana geralmente desperta controvérsias. Considerando que partidos no campo da esquerda tendem a ser favoráveis ao modelo de Estado centralizador, essa constatação, por mais que verdadeira, não pode ser compreendida como um resultado imediato dos textos originais de Marx. Apesar desse tipo de erro ter suas razões — tendo em vista que a teoria social marxista inspirouprocessos revolucionários que produziram um modelo ditatorial de Estado — o pensamento de Marx não oferece uma teoria sistemática sobre o Estado. Isso não quer dizer que não podemos encontrar considerações sobre esse tema de maneira destacada nos textos originais. Em termos gerais, a concepção marxista do Estado representativo burguês mantém um tom estritamente crítico. O Estado é uma superestrutura e, por isso, não existe de maneira independente das condições sociais e econômicas. A partir desse raciocínio, Marx considera que o desenvolvimento da indústria moderna foi responsável pela formação de um tipo específico de Estado, que passou a ser detentor exclusivo do poder político e da administração dos mercados internacionais. A evolução do capitalismo não só implicou no desenvolvimento da produção de mercadorias e na expansão do comércio, como também produziu novas instituições jurídicas capazes de proteger os interesses da classe burguesa emergente que mobilizou, através do Estado, políticas protecionistas que os protegiam dos competidores internacionais, leis que beneficiavam monopólios e conquistas de privilégios assegurados pelo direito de propriedade. Dessa forma, o Estado consiste em um escritório de administração dos interesses burgueses, sendo as promessas de uma liberdade através da democracia representativa fruto de uma ilusão interessada da classe dominante disposta a perpetuar as relações de exploração. Apesar da frágil concepção marxista original sobre o Estado Moderno, sua teoria mantém coerência ao admitir que mesmo que o Estado Absolutista tenha obtido recursos através da emergente classe produtiva burguesa, é exatamente esse processo histórico econômico (em que a burguesia passa a deter o controle dos meios de produção) o principal elemento para compreender os motivos que levaram o modelo Absolutista ser superado pelo Estado burguês. Essas considerações não esgotam o assunto do Estado na tradição política e intelectual marxista posterior. Na verdade, essa discussão ocupou um lugar muito mais relevante entre os marxistas durante o século XX, sendo um assunto recorrente, apesar de diferentes formas, nas obras de Lênin, dos austromarxistas, dos neomarxistas e do marxismo estrutural. Ainda que o tema do Estado não seja central nos textos originais, o projeto revolucionário proposto por Marx e Engels incluiu o Estado na condução da transformação social pós-capitalista. A aposta da tomada do poder político e a estatização dos meios produtivos estão relacionadas, em grande medida, com as previsões do colapso do sistema capitalista. Contudo, o papel do Estado para a revolução foi especialmente questionado pelos anarquistas como Bakunin (1989), personagem importante na disputa com Marx pelo controle da Primeira Internacional.27 Um dos principais focos das críticas de liberais, libertários e conservadores é que a apropriação estatal dos meios produtivos não é um processo que irá aniquilar as desigualdades, mas sim é um processo que irá aprofundar relações de coerção a partir da concentração de poder e recursos nas mãos de uma classe partidária. A comum explicação do ponto de vista de alguns marxistas é que um Estado socialista, que corporifica os interesses proletários, supostamente é capaz de distribuir os recursos de maneira mais justa e “garantir os direitos fundamentais dos trabalhadores” por serem a expressão de uma nova etapa da história. Isso quer dizer que a promessa revolucionária proporciona uma transformação geral na sociedade, reconfigurando, assim, não só as relações socioeconômicas, mas também transformando a natureza das instituições políticas. Portanto, a revolução implica na superação tanto do modo de produção capitalista quanto das instituições burguesas que dele decorrem. O socialismo, chamado por Marx e Engels de ditadura do proletariado, é um estágio transitório para a construção de uma sociedade comunista superior. O Estado burguês é um produto das contradições de classe na sociedade capitalista, que serve como um mecanismo de coerção da classe dominante sobre a classe dominada. Em uma sociedade sem classe como a sociedade comunista, o Estado supostamente perderia sua importância. Nesse entendimento profético, estima-se, portanto, que a estatização dos meios de produção será capaz de eliminar gradualmente tanto a exploração quanto a necessidade do Estado. Dessa forma, a sociedade comunista é vagamente descrita como uma sociedade sem Estado em que as classes sociais são abolidas, a propriedade dos meios produtivos é comum a todos e a distribuição dos bens e dos recursos é amplamente igualitária. O CRÍTICA SOCIOECONÔMICA AO CAPITALISMO O TRABALHO E A EVOLUÇÃO DA TÉCNICA que nos faz humanos? A reflexão ontológica28 sobre o que define o ser humano consiste em uma das perguntas mais frequentes da filosofia e da antropologia. A discussão sobre a natureza humana geralmente parte do pressuposto de que todos os indivíduos partilham de características em comum. Por outro lado, essa discussão frequentemente tem caráter metafísico, o que para Marx demonstra, na verdade, o caráter ideológico e não científico do debate. Diante deste argumento, a concepção de Thomas Hobbes (2014) sobre a natureza humana como uma natureza violenta, envolve a construção de um Estado natural hipotético que não pode ser verificado, sendo tal teoria reflexo de interesse de classe que buscam legitimar posições políticas dominantes. Desse modo, Marx não desenvolveu uma teoria sistemática sobre a natureza humana, porém instigou uma discussão crítica às teorias clássicas ao direcionar o entendimento sobre a condição humana a um conceito dinâmico e histórico. O que nos faz humanos é a capacidade de produzirmos nossas próprias condições de existência, o que aponta para uma prática humana consciente (a práxis) capaz de transformar a natureza para contemplar suas necessidades. O conceito de “práxis” se refere à interação dinâmica entre teoria e prática, ou entre ação e reflexão. A práxis é a atividade humana consciente e transformadora, na qual as pessoas não apenas refletem sobre o mundo, mas também o transformam por meio de sua ação. A natureza, por sua vez, existe de maneira independente. Contudo, para a humanidade a natureza só ganha significado através da relação com o trabalho humano que é capaz de transformá-la. Essa discussão sobre a relação entre natureza humana e natureza abriu um debate interminável entre os marxistas que, grosso modo, se dividem em dois grupos: a posição do socialismo soviético, que rejeita a concepção de natureza humana, mas reforça a relação instrumental entre atividade do trabalho e transformação da natureza. E a segunda, em oposição ao socialismo soviético, do humanismo neomarxista que coloca a discussão sobre a natureza humana como um dos pontos dos seus debates teóricos. A concepção neomarxista questiona o determinismo histórico rígido do socialismo real e constrói teses que reforçam a capacidade emancipadora dos seres humanos, que só é possível porque existem capacidades humanas universais como os sentidos, a comunicação simbólica (produção da cultura), a linguagem e assim por diante. Portanto, o trabalho é ontológico, mas a força de trabalho é um processo histórico e social, isto é, a questão sobre o trabalho na obra de Marx tem “duplo caráter” (Bottomore, 1988, p. 383). A “atividade de trabalho” é a condição eterna da existência humana, enquanto a força de trabalho é o uso dessa capacidade inerente dos seres humanos para a produção de bens e serviços. A antropologia marxista, ao relacionar a natureza humana ao conceito práxis, concebe uma análise sobre a formação das sociedades como resultado da ação consciente e intencional capaz de transformar a realidade através da evolução da técnica, da produção e da interação. Deste modo, o trabalho é uma atividade fundamental para a evolução da técnica, e a evolução da técnica é fundamental para que os humanos sejam capazes de moldar o mundo a partir das suas próprias necessidades. Entretanto,a evolução da técnica para Marx pode assumir uma percepção dual: entusiasmada e crítica. Se por um lado Marx reconhece que o modo de produção capitalista foi responsável por um progresso civilizatório inegável. Por outro, o ápice do estágio civilizatório que a sociedade industrial atingiu só foi possível graças ao trabalho alienado e, portanto, sustenta-se a partir da exploração e desumanização da classe proletária. Podemos concluir, dessa forma, que a história do capitalismo é indissociável dos conflitos de classe e das relações de exploração. O senso comum sobre a teoria marxista pode incorrer no erro de que Marx e seus intérpretes, de alguma maneira, opunham-se politicamente ao progresso e à tecnologia. Essa não é uma verdade, pois suas predições futuras em relação ao comunismo, absolutamente, não estão de acordo com um ideal de comunismo primitivo e, por isso, pré-moderno. Contudo, em Manifesto do Partido Comunista, seu tom oscila entre o reconhecimento do sentido evolutivo do capitalismo em comparação com as formas anteriores de sociedade e entre um tom crítico (e por vezes trágico) quando acusa que a sociedade burguesa reduziu os laços familiares a relações objetificadas pelo dinheiro. Essa dualidade, definitivamente, demonstra um certo reconhecimento do paradoxo em que o capitalismo incorre: a industrialização torna possível altos níveis de bem-estar tecnológico, entretanto, esse grau de tecnologia só existe porque está sustentado por uma história de exploração da classe proletária e na distribuição desigual da riqueza produzida pelo trabalhador. Portanto, o trabalho é aquilo que permite que seres humanos produzam suas condições materiais de existência a partir de uma relação criativa e instrumental com a natureza. O capitalismo consiste em um estágio histórico superior quanto à evolução da técnica, entretanto, essa evolução coexiste com o aprofundamento das desigualdades sociais. Em outras palavras, Marx identifica um paradoxo: ao mesmo tempo que sociedade industrial elevou o progresso tecnológico de maneira inédita na história, essa evolução ocorre porque é sustentada por relações de exploração da classe proletária que, apesar oprimida, é a classe que verdadeiramente produz a riqueza apropriada pela burguesia dominante. PROPRIEDADE E LUTA DE CLASSES A evolução da técnica é um processo fundamental para que sociedades sejam capazes de superar as limitações impostas por uma economia de subsistência. Neste tipo de configuração não há possibilidade de existir excedente, pois a produção realizada é apenas capaz satisfazer as necessidades básicas de consumo da própria família ou comunidade. A economia de subsistência difere do sistema de produção para o mercado, onde a produção é feita com o objetivo de vender produtos excedentes para obter renda e lucro. A origem da propriedade privada está ligada a essa transformação e refinamento das forças produtivas e das relações de produção ao longo da história que tornou possível a existência do excedente. Assim, no decorrer deste processo histórico, o excedente tornou necessário a organização de condições de armazenamento e o aprimoramento das relações de troca. Essa condição resultou na apropriação privada dos meios de produção por parte de alguns indivíduos ou grupos. Essa apropriação, por sua vez, dissolveu o sentido coletivo da divisão social do trabalho que existia nas sociedades pré-modernas.29 Para os liberais clássicos como Smith (2023), é a divisão social do trabalho que organiza as relações produtivas da sociedade, o que torna possível a interdependência entre indivíduos e a evolução da técnica através da especialização do trabalho.30 Dessa forma, a concepção burguesa da divisão social do trabalho considera que as relações produtivas modernas são responsáveis não só pelo progresso econômico, mas também pela construção de um tecido social solidário, cooperativo e pacífico. De maneira geral, a partir da divisão social do trabalho, os interesses individuais não estão em antagonismo imediato com o progresso coletivo, pois é a interdependência econômica a engrenagem responsável pela solidariedade em uma sociedade complexa.31 Portanto, para o pensamento burguês, a propriedade privada é um instrumento civilizatório capaz de proteger o direito individual, racionalizar a alocação de recursos e permitir que uma sociedade pacífica de contratos se concretize. Para a tradição marxista, o contrário: está na propriedade privada a origem de uma sociedade de classe e, por isso, das relações de conflito, de dominação e de exploração. É o processo que resultou na apropriação exclusiva dos meios de produção e na acumulação do lucro que dissolveu os laços coletivos nas sociedades tradicionais. Isso quer dizer que a divisão do trabalho não só implica a divisão das pessoas em especialistas, mas também a divisão das pessoas em classes. A forma dominante de propriedade em uma determinada época histórica é sempre a expressão da relação dominante de produção, ou seja, das relações sociais através das quais os indivíduos se apropriam dos meios de produção e trocam os produtos. A forma de propriedade, portanto, não é apenas um aspecto externo e aparente, mas reflete as relações fundamentais que determinam a estrutura e o funcionamento de uma determinada sociedade. A teoria que explica a origem e desenvolvimento da propriedade privada é talvez um dos elementos mais importantes para a compreensão da crítica social ao capitalismo, pois há uma relação causal entre a forma de propriedade e a distribuição do poder em uma sociedade. Isso quer dizer que a propriedade no pensamento marxiano não é um objeto, não é um instrumento jurídico e muito menos um direito. É, na verdade, um conceito relacional e histórico que explica a origem da sociedade de classe e, por isso, de uma sociedade em que os interesses privados estão em conflito com os interesses coletivos. EXPLORAÇÃO E MAIS-VALIA A teoria da exploração, conhecida também como teoria da mais-valia, constitui a base de toda a construção sociológica marxista (Durand, 2009). Marx se deparava com perguntas aparentemente simples: Como provar que é o trabalho assalariado dos homens que gera lucro para o capitalista? Como evidenciar o processo pelo qual um valor inicial (antes da jornada de trabalho) se transforma em um outro valor após a jornada de trabalho? Para abordar essa questão, Marx propõe-se começar por explicar a natureza da mercadoria. A mercadoria é definida como “uma coisa externa, uma coisa que, pelos seus atributos, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” (O Capital, I, I, p. 49). O valor de uma mercadoria não é simplesmente determinado pelo custo dos materiais utilizados na sua produção, mas sim pelo trabalho humano necessário para produzi-la32 . Por ser uma entidade complexa, a mercadoria possui tanto um valor de uso, relacionado à sua utilidade para satisfazer necessidades humanas, quanto um valor de troca, que determina sua capacidade de ser trocada por outras mercadorias através do dinheiro. No capitalismo, a força de trabalho é tratada como uma mercadoria, sendo comprada e vendida no mercado como qualquer outra. Os trabalhadores, ao venderem sua força de trabalho aos capitalistas, tornam-se assalariados. A força de trabalho possui um valor de uso, determinado pela habilidade, conhecimento, experiência e capacidade física e mental do trabalhador, que são essenciais para produzir bens ou serviços. O valor de troca da força de trabalho, por sua vez, está ligado ao custo de reprodução da vida do trabalhador, ou seja, o tempo médio que é necessário para produzir os meios de subsistência (alimentação, moradia, vestuário etc.) suficientes para que o trabalhador possa continuar a trabalhar. O salário é a forma monetária que representa o valor de troca da força de trabalho no mercado. Isto é, os capitalistas pagam aos trabalhadores um valor equivalente ao custo de reprodução da força de trabalho, mas os trabalhadores produzem o valor adicional que é chamado de mais-valia. É a apropriaçãodessa mais-valia pelos proprietários dos meios de produção que gera o lucro e sustenta o sistema capitalista. Em outras palavras, no processo de produção capitalista, os trabalhadores vendem sua força de trabalho em troca de um salário. No entanto, o valor da força de trabalho, ou seja, o valor necessário para reproduzir as condições básicas de vida do trabalhador, é menor do que o valor total produzido durante a jornada de trabalho. A diferença entre o valor total produzido pelo trabalhador e o valor pago a ele como salário é a mais-valia. Essa mais-valia é apropriada pelo capitalista como lucro, representando uma forma de exploração econômica. Marx argumenta que a mais-valia é a fonte fundamental para o enriquecimento da classe dominante e para a acumulação de capital. O COLAPSO DO CAPITALISMO A proposição que prevê a autodestruição do regime capitalista consiste nas afirmações em torno do problema da proletarização e pauperização da classe trabalhadora. A tese sobre a proletarização afirma que à medida que o regime capitalista se desenvolve, a classe proletária cresce quantitativamente, pois as classes intermediárias são absorvidas pelo processo de proletarização. A pauperização, por sua vez, consiste em um processo de empobrecimento generalizado da classe proletária. Ou seja, apesar do desenvolvimento do sistema capitalista e especialização dos meios produtivos, as condições de vida da classe proletária tendem a se tornar cada vez piores. Esse dilema se expressa na contradição inerente entre as forças produtivas e as relações de produção. Essas contradições surgem da tensão entre o desenvolvimento das forças produtivas, que englobam os meios de produção, a tecnologia, a capacidade produtiva e a organização do trabalho, e as relações de produção, que envolvem as formas de propriedade, a divisão do trabalho e as relações sociais de exploração. Para Marx, as forças produtivas têm uma tendência natural a se desenvolver e avançar, impulsionadas pela busca de eficiência e produtividade. Isso envolve a introdução de novas tecnologias e o aumento da automatização. No entanto, as relações de produção capitalistas, baseadas na propriedade privada dos meios de produção e na exploração da classe trabalhadora, limitam o potencial pleno e harmonioso das forças produtivas. Essas contradições podem se manifestar de várias formas. Tal como a introdução de tecnologias avançadas e a automação podem levar à substituição de trabalhadores por máquinas, resultando em desemprego da classe trabalhadora e a impossibilidade da melhoria de vida do trabalhador a partir do aumento dos seus salários. Sendo a essência do capitalismo o lucro que é resultado da exploração da classe trabalhadora, a necessidade de manter as taxas de lucro dos capitalistas nesse sistema altamente competitivo, obriga que sejam mantidas e aprofundadas as relações de exploração do trabalho. Dessa forma, o processo de proletarização (amplificação da extensão da classe operária) e processo de pauperização (vulnerabilização das condições de trabalho) resultará, inevitavelmente, na revolta das massas que serão, nesta ocasião, protagonistas para um novo tipo de sociedade. POR QUE A REVOLUÇÃO? O que podemos concluir é que a crítica socioeconômica de Marx reconhece que o desenvolvimento do sistema capitalista é, ao mesmo tempo, uma história de progresso econômico, mas também uma história de inegáveis prejuízos morais e desumanização, pois aliena quem produz do resultado da sua própria força de trabalho. Por conseguinte, as contradições do capitalismo introduzem uma espécie de imperativo revolucionário (Aron, 2008), pois, como é dito no Manifesto do Partido Comunista: “Proletários nada têm a perder com ela [a revolução] a não ser as suas cadeias. Têm, porém, um mundo a ganhar”. A supressão da propriedade privada é a condição para a superação dessa sociedade desigual, tornando possível seguir um caminho para a construção de uma nova sociedade verdadeiramente cooperativa. O processo revolucionário é, assim, tanto uma ação voltada para o futuro como um reencontro com a humanidade que foi perdida desde que a sociedade industrial passou a existir. É por essas razões que Marx propõe que a superação dessas contradições ocorra por meio de uma mudança revolucionária nas relações de produção, estabelecendo um sistema socialista no qual as forças produtivas sejam colocadas a serviço do bem-estar coletivo, em vez de serem subordinadas aos interesses de uma classe dominante. A aniquilação da propriedade é uma prioridade dos objetivos políticos da Liga Comunista, porque as transformações das formas de propriedade permitem a reconfiguração da disposição entre classe dirigente e classe explorada. Portanto, a revolução só é possível com a superação da propriedade privada capitalista, substituída no primeiro momento por uma fase socialista sustentada pela estatização dos meios produtivos. O socialismo é uma fase de transição necessária para que gradualmente a exploração seja eliminada. Como uma fase de transição, o socialismo não é uma configuração social definitiva, mas sim o caminho para alcançar o destino comunista. No comunismo, as classes sociais serão abolidas, o Estado deixará de existir, a propriedade privada será completamente aniquilada e a distribuição de bens e recursos será equitativa. O que Marx proclama com suas reinvindicações revolucionárias é que o comunismo seja o objetivo da ação política. A suposta liberdade da sociedade burguesa é como um véu de ignorância que nos afasta de uma verdadeira liberdade. Uma real emancipação não se satisfaz pelas reformas graduais, mais sim pela superação total e definitiva do sistema vigente. Em outras palavras, a pré-condição para a liberdade é revolução. A revolução proletária supostamente será diferente pois, desta vez, o processo revolucionário será conduzido por uma massa abrangente e não mais por um grupo restrito interessado na construção de uma ordem social sustentada por privilégios e relações de exploração. A profecia de Marx promete uma revolução inédita, completamente diferente de processos revolucionários anteriores. Nesse sentido, a revolução proletária não será apenas uma reconfiguração dos papeis históricos que determinam a classe dominante e a classe oprimida, mas será uma solução final capaz, inclusive, de ditar o fim da história. O pensamento de Marx precisa ser compreendido como uma ampla crítica filosófica e social ao mundo moderno. Quanto à crítica filosófica, Marx propõe um programa teórico e metodológico que pretende conhecer objetivamente a história a partir do reconhecimento das relações sociais concretas. Quanto à crítica social, Marx denunciou as instituições modernas por supostamente esconderem relações de opressão e perpetuarem a dinâmica de exploração, inspirando partidos e transformações políticas pelo mundo. Mesmo que as promessas de Marx não tenham se concretizado, sua imagem ainda é capaz de embriagar gerações posteriores a favor do imperativo revolucionário. Esse imperativo pode aparecer em diferentes tons, dos mais intensos e violentos, aos mais estonados e moderados. Ironicamente, o legado de Marx não resiste pela concretização de suas ambições científicas, muito pelo contrário. O que o torna seu pensamento ainda presente no espaço público é uma específica teoria de sociedade impregnada com um forte teor normativo. Essa teoria social com o tempo se tornou uma forma de senso comum que, para existir, não depende mais da leitura atenta dos textos originais, tendo em vista que se expressa como uma visão de mundo que pouco reflete sobre seus pressupostos. Por outro lado, a pouca disciplina pode até ser uma opção para aqueles que se consideram convertidos, mas nunca é uma opção para aqueles que querem se colocar na posição de críticos. DICA DE LEITURA OS TEXTOS ORIGINAIS A obra de Marx é extensa. Por essa razão proponho a leitura dos textos originais a partir do seguinte programa: FASE JOVEM: Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843) Manuscritoseconômico-filosóficos (1844) A ideologia alemã (1845, publicada postumamente) Crítica da economia política (1859, publicada postumamente) FASE DE TRANSIÇÃO: Miséria da filosofia (1847) Manifesto Comunista (1848) Lutas de classe na França de 1848 a 1850 (1850) FASE MADURA: O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852) Contribuição para a crítica da economia política (1859) O Capital (1867) — Dividido em vários volumes, o primeiro volume foi publicado em 1867, e os demais volumes foram compilados por Friedrich Engels e publicados após a morte de Marx. DICA DE LEITURA 2 O QUE LER DO LIVRO O CAPITAL? A obra O Capital de Karl Marx é composta por três volumes. A seguir, apresento os principais capítulos de cada volume. Volume I: O processo de produção do capital CAPÍTULO 1: A mercadoria CAPÍTULO 2: O processo de troca CAPÍTULO 3: O dinheiro ou a circulação de mercadorias CAPÍTULO 4: A transformação do dinheiro em capital CAPÍTULO 7: O processo de trabalho e o processo de valorização CAPÍTULO 10: A jornada de trabalho CAPÍTULO 15: A mais-valia absoluta e relativa Volume II: O processo de circulação do capital CAPÍTULO 1: O ciclo do capital CAPÍTULO 4: O capital fixo e o capital circulante CAPÍTULO 10: A reprodução simples e a reprodução ampliada Volume III: O processo global da produção capitalista CAPÍTULO 6: A Conversão da mais-valia em lucro e da taxa de mais-valia em taxa de lucro CAPÍTULO 15: Salário e lucro CAPÍTULO 23: A lei geral da acumulação capitalista REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, Louis. Por Marx. 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Os principais filósofos associados ao idealismo alemão são Immanuel Kant, Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph Schelling e Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 2 A filosofia política burguesa é amplamente associada a pensadores que fundamentaram ideias que serviram como base para a estruturação da sociedade capitalista e da democracia liberal como, por exemplo, John Locke, Adam Smith, Barão de Montesquieu e Thomas Hobbes. 3 A ideia de socialismo científico está no esforço de Marx por demonstrar cientificamente a evolução do regime capitalista. Tal definição também serviu como forma de distinção política com os socialistas utópicos da época. Entretanto, há discussões da filosofia da ciência (ver em Popper, 2002) que argumentam que o socialismo científico, na verdade, não pode ser considerado uma ciência verdadeira. 4 O termo “burguês” refere-se a classe social específica associada à ascensão do capitalismo. 5 Considerar o termo “liberalismo” como a autorreferência ideológica da classe burguesa no século XIX. 6 Otto von Bismarck foi um estadista e político alemão do século XIX. Ele é reconhecido por desempenhar um papel significativo na unificação da Alemanha e na consolidação do poder do Império Alemão. 7 Ver em Stuart Mill (2021) um exemplo dessa visão crítica ao comunismo. 8 Por outro lado, autores como Stuart Mill (2021) se preocuparam em fazer tal distinção. As considerações de Mill são mais ou menos simultâneas ao desenvolvimento do programa teórico do socialismo que se pretende científico, o que indica que os ideais socialistas e comunistas já existiam antes Marx e foram, posteriormente, absorvidos pelo seu programa teórico e político. 9 Karl Kautsky foi um proeminente teórico e político socialista, considerado um dos principais teóricos marxistas no final do século XIX e início do século XX. 10 Karl Marx nunca se autodenominou “marxista”. 11 Identificado pelo marxismo de autores como Gramsci, Lukács e os da Escola de Frankfurt. Ver em José Guilherme Merquior (2018) e Perry Anderson (1976). 12 O marxismo ortodoxo geralmente é associado à filosofia oficial do Estado Soviético. 13 Como, por exemplo, Henri de Saint-Simon e Charles Fourier 14 Como, por exemplo, Pierre-Joseph Proudhon. 15 Nos escritos de Marx, diferentes concepções de materialismo podem aparecer, mas tem prevalecido, de modo geral, um materialismo menos rígido a fim de evitar o possível reducionismo que sugere uma relação mecânica entre a matéria e a ideia. 16 György Lukács (2016) argumenta que o materialismo histórico é um método e não um dogma. Por outro lado, renomados críticos e historiadores do pensamento marxista como José Guilherme Merquior (2018) e Leszek Kolakowski (2022) identificam na filosofia de Lukács uma das expressões mais dogmáticas entre as correntes do pensamento marxista. 17 É fundamental levar em conta que a infraestrutura eco- nômica não se constitui simplesmente de objetos como máquinas, capital e propriedade. A infraestruturaé muito mais um conceito sociológico que descreve variadas formas de relações de produção em um dado momento histórico. Por outro lado, a definição do conceito de superestrutura pode aparecer de maneira menos precisa por não haver uma distinção clara em ideologia e superestrutura, ou seja, entre formas de consciência e instituições. 18 Apesar da fronteira pouco nítida entre superestrutura e ideologia, considero conveniente não confundir esses conceitos apesar de estarem relacionados. Dessa forma, sugiro que a ideologia seja compreendida como um componente da superestrutura, referindo-se às crenças, valores, normas e ideias que existem em uma sociedade. Acredito que o autor que melhor expressa essa distinção é Althusser (2022) quando distingue os Aparelhos Repressivos do Estado (exércitos, polícia, governo, judiciário etc.) dos Aparelhos ideológicos de dominação (um sistema de pensamento e as visões de mundo que as pessoas mantêm) no ensaio “Aparelhos ideológicos de Estado” publicado pela primeira vez 1970. 19 Embora Hegel não tenha conceituado explicitamente uma divisão entre infraestrutura e superestrutura, sua ênfase na dialética e na evolução histórica influenciou a maneira como Marx analisou a sociedade. 20 A relação entre Ser e Consciência na filosofia de Hegel é complexa e dinâmica. A consciência não é vista como uma entidade estática e isolada, mas como algo que está em constante evolução e autorreflexão. Isso quer dizer que a consciência é capaz de se tornar consciente de si mesma através da negação e da contradição. Em outras palavras, Hegel argumenta que a consciência chega a um estágio em que se torna autoconsciente, reconhecendo-se como um sujeito consciente em relação a um objeto consciente. Ver em Fenomenologia do Espírito (2014). 21 Apesar de ser associado a Hegel as categorias de tese- antítese-síntese, esses não são conceitos propriamente hegelianos e para especialistas, como José Pinheiro Pertille (2011), essa fórmula cria simplificações grosseiras. Para compreender tal aspecto da filosofia hegeliana, procurar estudos sobre o conceito de Aufhebung. 22 Às margens do processo histórico de transformação do ocidente, Marx definiu o tipo ideal de “modo de produção asiático” para descrever uma forma específica de organização econômica e social que, segundo ele, existia em sociedades antigas na Ásia, particularmente na Índia, China, Mesopotâmia e outras regiões. As características do modo de produção asiático incluem a propriedade coletiva da terra, ausência de classes sociais bem definidas e a organização estatal forte. Para estudos sobre o modo de produção asiático ver em Ciro Flamarion S. Cardoso (1990) 23 É importante ressaltar que há exceções. No sentido teórico podemos destacar tanto o conceito de revolução passiva descrito por Gramsci (1999) como o revisionismo proposto por Eduard Bernstein (1993). No sentido político podemos indicar a postura reformista de Karl Kautsky (1988) e a atuação do Partido Social-Democrata Alemão durante a Segunda Internacional Socialista (1889 a 1916). 24 Em A ideologia alemã, Marx e Engels criticaram diretamente os neohegelianos de esquerda por sugerirem que a revolução iria ser alcançada pela mudança de consciência dos trabalhadores. 25 É importante ressaltar que o conceito de ideologia não aparece expressamente nos textos do jovem Marx, apesar da centralidade da discussão sobre a falsa consciência burguesa. É possível, contudo, reconhecer na crítica de Marx à religião (Teses sobre Feuerbach, 2002 e na crítica ao Estado e ao Direito (Crítica à filosofia do direito de Hegel, 2010) os elementos que irão compor a discussão sobre ideologia na tradição marxiana. 26 Para outro exemplo de crítica a Feuerbach ver em Sagrada Família (2003) 27 A “Primeira Internacional” é uma referência à Associação Internacional dos Trabalhadores fundada em 1864, em Londres, que reunia uma variedade de correntes do movimento operário, incluindo socialistas, anarquistas e sindicalistas. 28 Ontologia é um ramo da filosofia que se concentra na natureza do ser, da existência e da realidade. O termo “ontologia” deriva das palavras gregas ontos (do verbo “ser”) e logos (estudo ou ciência), e pode ser traduzido como “o estudo do ser”. Essa área da filosofia explora questões fundamentais sobre o que existe, o que pode existir, e como as coisas existem. Além disso, a ontologia investiga as categorias fundamentais de existência, tais como substância, tempo, espaço, causa e efeito, identidade e mudança. 29 Marx e Engels consideram que na sociedade tradicional/ tribal os meios produtivos eram coletivizados e a divisão do trabalho não apresentava distinções rígidas dos papéis produtivos. 30 Ver em A riqueza das nações (2023) a descrição de Adam Smith sobre a fábrica de alfinetes (livro I, cap. I). 31 Ver o conceito de solidariedade orgânica de Émile Durkheim (1999) na obra Da divisão do trabalho social publicada pela primeira vez em 1893. 32 Este é o argumento central para a teoria valor-trabalho. Introdução A crítica materialista ao idealismo alemão A crítica à filosofia política burguesa Crítica socioeconômica ao capitalismo Conclusão dica de leitura dica de leitura 2 Referências bibliográficas Notas de Rodapé