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EA D O Culto a Maria 4 1. OBJETIVOS • Conhecer e refletir sobre o culto a Maria. • Compreender a importância de Maria no centro da histó- ria com o seu filho Jesus Cristo. • Identificar e analisar a veneração a Maria no Novo Testa- mento. • Compreender o culto marial na atualidade. 2. CONTEÚDOS • Presença de Maria na vida da Igreja. • Culto a Maria hoje. © Mariologia108 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Sobre a história do culto marial, confira as seguintes obras: a) SOLL. Maria in der Geschichte von Theologie und Frommigkeit. In. HM, 1984, p. 93‑231. b) GAMBERO, L. Il culto mariano attraverso le varie epoche cultural. In: NDM, 1985, p. 429‑436. 2) Leia os livros da bibliografia indicada, para que você am- plie seus horizontes teóricos. Coteje‑os com o material didático e discuta a unidade com seus colegas e com o tutor. 3) Utilize o Esquema de conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste Caderno de referência de con- teúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu de- sempenho. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE No estudo da unidade anterior, você foi subsidiado com con- teúdos relacionados aos dogmas marianos. Já nesta unidade, conheceremos o culto a Maria, bem como sua importância na vida da Igreja. 5. PRESENÇA DE MARIA NA VIDA DA IGREJA A Virgem Maria de Nazaré, israelita, filha de Abraão, filha de Sião (RATZINGER, 1990), é a Mãe do Verbo encarnado, primeira discípula de Jesus Cristo (GARCIA PAREDES, 1997), membro emi- nente da Igreja (At 1, 14), sendo proclamada mãe da igreja por Paulo VI a 21 de novembro de 1964, presença ativa e exemplar na vida da Igreja (JOÃO PAULO II, 1987), e peregrina e nossa compa- 109© O Culto a Maria nheira de caminhada; tudo isso mostra a importância da pessoa de Maria e de sua presença na vida da Igreja. É então para a sua glória e para o nosso consolo que nós procla- mamos a Santíssima Virgem Maria mãe da igreja, isto é, de todo o povo de Deus, tanto dos fíéis como dos pastores, que nós a chama- mos Mãe muito amada; e desejamos que, doravante, com este títu- lo tão suave, a Virgem seja ainda mais honrada e invocada por todo o povo cristão (DOCUMENTATION CATHOLIQUE (D. C.) 6/12/1964, 1544). O Papa João Paulo II inicia a sua Carta Apostólica Tertio Mil- lenio Adveniente lembrando as palavras do apóstolo Paulo: “Ao chegar à plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher” (Gal 4, 4). E a plenitude do tempo, segundo o Papa, "iden- tifica‑se com o mistério da Encarnação do Verbo, Filho consubs- tancial ao Pai, e com o mistério da Redenção do mundo”. São Paulo sublinha, nessa passagem, que o Filho de Deus nasceu de mulher, sujeito à Lei, e veio ao mundo resgatar quantos estavam sujeitos à Lei, para poderem receber a adoção de filhos. E acrescenta: “Por- que sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: ‘Abba, Pai!’”. A sua conclusão é verdadeiramente consoladora: “Portanto, já não és servo, mas filho; e, se és filho, também és herdeiro, pela graça de Deus” (Gal 4, 6‑7) (TM 1). Certamente, o interesse central de Paulo em Gl 4, 4 é o nascimento do Filho de Deus, do Filho con- substancial ao Pai, por quem veio a Redenção do mundo, de modo que, como diz o Papa, se trata do anúncio do mistério da Encarna- ção, e para a realização da qual teve papel decisivo uma mulher, que historicamente foi a Virgem Maria de Nazaré. O Novo Testamento reconhece a importância de Maria, co- locando‑a no centro da história juntamente com o seu filho Jesus Cristo. É importante constatar que Paulo ligou não somente o Filho de Deus com a história do mundo e da salvação, mas também a mãe desse mesmo Filho, e que Paulo, com seu conhecimento claro da preexistência e da divindade de Cristo e igualmente da reali- © Mariologia110 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO dade do seu nascimento terrestre, apresentou as duas premissas, das quais decorre, com lógica concludente, o dogma fundamental de toda a doutrina marial: a maternidade divina dessa mulher. Nesse sentido, Gl 4,4 é dogmaticamente a afirmação mario- lógica mais importante do Novo Testamento. O apóstolo dos gen- tios começa a ligação da Mariologia com a Cristologia mediante o testemunho da maternidade divina de Maria e por meio do início de uma visão histórico‑salvífica e antropológica do seu significado (SOLL, 1978). Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– João Paulo II deu muita importância a Gl 4, 4-6 na encíclica “Redemptoris Mater” (cfr. RM 1), insistindo particularmente sobre a ideia de que, na plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, em cumprimento das promessas, nascido sob a Lei e nascido de uma mulher. É significativo que esse texto tenha sido o ponto de partida da encíclica papal, explicando toda a sua doutrina marial a partir dele. Igualmente, é importante lembrar que o Papa inicia a sua Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente citando Gl 4,4, (cfr. TM 1). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– No Novo Testamento, a prioridade é o anúncio do querigma, ou seja, o anúncio da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo; porém, já podemos falar em indícios bastante fortes de um culto a Maria, sobretudo no Evangelho de Lucas. A Igreja antiga, se tivesse tido algo contra o culto marial, cer- tamente teria eli minado, na formação do Cânon, o Magnificat do evangelho de Lucas. Disso pode‑se muito bem dizer que o Magni- ficat, de modo especial a proclamação marial: “Do ravante as gera- ções todas me chamarão bem‑aventurada” (Lc 1,48b), tem o seu Sitz im Leben no culto marial que começa na Igreja antiga. Esse culto marial não é posto em questão também por Lc 11, 27‑28, em que Jesus responde à mulher que lhe dissera: “‘felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!’. Ele, porém, respondeu: ‘Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam’, pois, no contexto do evangelho de Lucas, o louvor pronun ciado pela mulher é, com efeito, repetição do louvor 111© O Culto a Maria pronunciado inicialmente por Isabel: “bendita és tu entre as mu- lheres, e bendito é o fruto do teu ventre!”(Lc 1,42). Lucas não teria também aceito essa tradição na redação do seu Evangelho se tivesse havido, no seu tempo, uma recusa a tal louvor da pessoa da mãe de Jesus (MUSSNER, 1984). Esses dados são suficientes para concluir que, no Evangelho de Lucas, se encontram já claros indícios de um culto marial em gestação e uma doutrina marial com os seguintes aspectos: 1. Maria é a cheia de graça (Lc 1,28); 2. Maria é a virgem intacta (Lc 1,27.34); 3. Maria é a mãe do Messias (Lc 1,31‑33); 4. Maria é a mãe do Filho de Deus (Lc 1,35b); 5. Maria é a desposada do Espírito Santo (Lc 1,35a); 6. Maria é a obediente serva do Senhor (Lc 1,38); 7. Maria é o exemplo daqueles que creem (Mãe dos que creem) (Lc 1,45); 8. Maria é o exemplo daquele que ouve a Palavra de Deus (Lc 2,19.51b; 11,28); 9. Maria é a Mãe das dores (Lc 2,35b); 10. Maria é a bendita entre todas as mulheres e a proclamada bem ‑aventurada por todas as gerações (Lc 1,42.48b) (MUSS- NER, 1984). Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Convém notar que, para o contexto de libertação na América Latina, a doutrina marial de Lucas, de modo especial do Magnificat, é importante. Segundo Amato (apud Dicionário de Mariologia, 646): “E a própria Virgem Santíssima parece consciente da sua condição de libertada por Deus, já que o cântico do magnificat se revela como a ‘carta magna’ dessa Teologia da libertação (AMATO).” A Congregação para a Doutrina da Fé, na sua Instrução sobre a Liberdade Cristã e a Libertação n. 48, apresenta Maria como a representante dos pobres de Iahweh; ela mesma pobre, mas plenamente liberta, sendo, pois, facilmente reconhecida e identificada pelos pobres:“O senso da fé, tão vivo nos pequeninos, sabe reconhecer imediatamente toda a riqueza do Magnificat, ao mesmo tempo soteriológica e ética”. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– © Mariologia112 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Esses dados do Novo Testamento e outros textos, especial- mente Jo 2, 1‑12; 19, 25‑27, comprovam que a veneração e o cul- to a Maria não são uma invenção medieval da Igreja. No caso do Magnificat: É claramente um hino litúrgico da primeira comunidade cristã que representa os sentimentos de Maria, de gratidão e gozo, e expri- me sua fé no mistério da Encarnação. Quando se põe nos lábios da Virgem, o Magnificat transforma‑se num cântico da Igreja que exprime aquilo que a Mãe do Senhor significa para ela. [...] O Magnificat é um testemunho muito valioso de que a comemo- ração litúrgica de Maria entrou na Igreja antes que Lucas escreves- se seu Evangelho. Isso revela que Maria, desde a Igreja apostólica, forma parte da Liturgia e, portanto, da vida espiritual dos cristãos, os quais sempre oram segundo a fé na qual foram batizados (GON- ZÁLEZ, 1998, n.p.). Essa veneração a Maria, tão evidente no Novo Testamento, vai se desenvolver nos séculos subsequentes ao período neotesta- mentário, de uma forma gradativa e sempre crescente na vida da Igreja, na sua liturgia e na devoção do povo cristão, tendo aí im- portante papel o sensus fidelium ou sensus fidei, pois, na história do desenvolvimento do dogma, o culto, os símbolos, a vivência, a experiência e, sobretudo, a fé vivida precederam as proclamações dogmáticas oficiais, o que significa que o dogma surge da fé viva da Igreja, fundamentada na Escritura e na Tradição. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– “Sensus fidelium” e “sensus fidei” são expressões correntes na linguagem teológica para designar o sentido cristão ou o sentido da fé. A denominação “sensus fidei” seria, segundo Dillenschneider (1954), a menos equivoca, pois a fórmula sensus fidelium pode dar, às vezes, a impressão de que se trataria somente da fé dos simples, do povo, quando, na verdade, os representantes do Magisté rio também são fiéis autênticos. Para evitar esse inconveniente, alguns autores preferem servir-se de um termo de alcance mais geral, falando com “sentido da fé” ou “sentido cristão”; Franzelin fala mesmo em “consciência da fé” ou “consciência da Igreja”. A Constituição Apostólica Munificentissimus Deus de PIO XII usa muito as expressões “Christiani populi fides” e “communis fides Ecclesia”, que, algumas vezes, fazem referência aos elementos objetivos da fé abraçados pelo corpo eclesial sob a graça do Espírito Santo. Neste nosso estudo, utilizamos, de preferência, o termo “sensus fidelium”, que parece exprimir melhor a realidade que temos interesse em analisar, pois, à apresentação clássica de Dillenschneider, temos a mais recente de Tillard (1976), que faz a distinção entre fé popular e fé erudita. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 113© O Culto a Maria A importância de Maria na vida da Igreja vai se confirmar pelas proclamações dogmáticas que aconteceram no decorrer dos séculos: 1. Maria, Mãe de Deus (Concílio de Éfeso, 431, D 111a). 2. Virgindade Perpétua de Maria (Concílio Lateranense, 649, DZ 255s). 3. Imaculada Conceição (Pio IX, 8 de dezembro de 1854, Bula Ine- ffabilis, D 1641). 4. Assunção de Maria (Pio XII, Const. Apost. Munificentissimus, 1º de novembro de 1950, AAS 42(1950), D 2333). O Concílio Vaticano II confirmou a doutrina marial dos con- cílios e as proclamações dogmáticas e abriu novas perspectivas. A intenção básica do Concílio foi a de "esclarecer com empenho, tanto a missão da Bem‑aventurada Virgem no mistério do Verbo Encarnado e do Corpo Místico, como os deveres dos homens re- midos para com a Mãe de Deus, mãe de Cristo e mãe dos homens, mormente dos fiéis", sem querer ter tido a intenção de propor a doutrina completa sobre Maria (LG 142). O importante é que Maria, na perspectiva da Lumen Gentium, é vista no mistério de Cristo e da Igreja, e não como uma figura isolada (LG 140‑141). Além desses aspectos, uma intenção básica do Concílio foi a de possibilitar o diálogo ecumênico, evitando, no documento, termos que pudessem ferir a sensibilidade ecumênica, e citando os textos bíblicos comuns às confissões cristãs quando se trata de Maria na Sagrada Escritura. As proclamações dogmáticas vieram revelar a natureza pro- funda da pessoa de Maria e sua vocação e atuação no plano salví- fico de Deus, natureza essa revelada também pelos vários títulos que ela tem recebido. Um desses títulos, certamente o mais im- portante, é Theotokos, ou seja, Mãe de Deus (D 111a). Outro título de grande significado para a Igreja, embora fosse já conhecido na antiga tradição, mas que recentemente recebeu uma confirmação oficial por meio de Paulo VI, é o que proclamou Maria como Mãe da Igreja (MS 56 (1964),1015. Cf. tb. D.C. 6/12/1964, 1544). © Mariologia114 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Além dos títulos oficiais, a devoção popular atribui‑lhe tan- tos outros títulos, expressão do seu amor por ela. Um desses títu- los tão frequente no meio do povo é o de Santa, o que vem ao en- contro da doutrina de isenção de pecado do dogma da imaculada conceição e a noção de panagia, ou santíssima, da tradição orien- tal e reconhecida pela Lumen Gentium. O culto de hiperdulia surge da consciência da dignidade de Maria como Mãe de Deus e da ple- nitude de graça que daí deriva e que possibilita um culto especial a Maria comparado a outros santos que, por sua vez, recebem o culto de dulia (OTT, 1997). Esse culto especial vem justamente da consciência da suma santidade de Maria pelo povo de Deus. Os santos são amigos de Deus e, na comunhão deles, são também nossos amigos, protetores e intercessores junto a Deus. Nesse sentido, Maria é uma santa especial, que tem intercedido pelo povo e que tem vindo em socorro dos que a ela recorrem. Uma invocação tão comum entre o povo em uma hora de aflição é, por exemplo, “valei‑me Nossa Senhora!”. Na América Latina, Nossa Senhora de Guadalupe "tornou‑se o grande sinal de rosto materno e misericordioso, da proximidade do Pai e de Cristo com quem ela nos convida a entrar em comu- nhão" (DOCUMENTO DE PUEBLA, 282). Guadalupe é, também, um exemplo de como Maria, a primeira evangelizada, se tornou evan- gelizadora, pois, como em Caná da Galileia, ela continua dizendo: "fazei tudo o que ele vos disser" (Jo 2, 5). A ela podemos nos diri- gir dizendo que "queremos ver Jesus – caminho, verdade e vida", lema do Projeto Nacional de Evangelização (2004‑2007) da CNBB. Maria, com toda a propriedade, é aquela que nos pode mos- trar Jesus, pois ele é o bendito fruto do seu ventre (Lc 1, 42), de modo que, com toda a confiança, podemos ter Maria como a pa- trona desse projeto de evangelização tão importante para a Igreja do Brasil, sabendo que o desejo dela é que o seu Filho seja conhe- cido por todos e que a mensagem do Evangelho chegue a todos os corações. 115© O Culto a Maria 6. CULTO A MARIA HOJE Cristo, do alto da cruz, confiou, na pessoa do discípulo ama- do, a Igreja e toda a humanidade salva pela sua morte e ressurrei- ção, a Maria, sua mãe, dizendo‑lhe: “Mulher, eis o teu filho!” (Jo 19,26. Em contrapartida, entregou Maria, sua mãe, à Igreja e à hu- manidade represen tada na pessoa de João: “eis a tua mãe!”, como dom precioso de seu amor redentor, querendo, por certo, que ela tivesse lugar especial no culto cristão, dado o significado soterio- lógico decorrente do seu papel importante na história da salvação, mas também porque Maria é dom precioso, como os dogmas ma- rianos nos revelaram, oferecida como graça personificada para ser aceita na nossa vida e nosso coração. Usando a noção de soteriologia, estamos, com efeito, projetando sobre Maria um conceito cristológico. Ao falar em significado soteriológico de Maria, pensa-se no sentido salvíficode Maria, mas como decorrência e intimamente ligado à redenção operada unicamente pelo Cristo (MÜLLER, 1980). O culto a Maria será, então, a expressão de nossa gratidão e do nosso amor a Jesus Cristo, que a ofereceu como nossa mãe. Entretanto, a dignidade de seu culto decorre do fato de ser ela a: [...] mãe do Verbo encarnado, e por isto mesmo, Mãe de Deus, de uma pessoa divina que assumiu a natureza humana. Em vista de dignidade tão sublime, em vista dos merecimentos de seu Filho, ela foi concebida sem pecado, recebeu o privilégio da virgindade per- pétua e da assunção à glória celeste em alma e corpo logo depois da morte (GRASSO, 1977, n.p.). A sua presença no mundo e na Igreja é também presença efetiva, pois “pela sua materni dade divina, ela é também mãe es- piritual dos homens” (GRASSO, 1977, n.p.). Proclamada Mãe da Igreja por Paulo VI, cooperou de manei- ra pessoal na obra da redenção e continua ainda a cooperar pela sua solicitude maternal na intercessão e na distribuição das graças (cf. RM 21‑23). © Mariologia116 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Como se vê, o culto de Maria não é simplesmente o culto de modelo ou de exemplo a seguir, pois a sua presença na Igreja e na vida de cada cristão é ativa, de modo que o nosso culto à sua pes- soa é, também, culto ativo e dinâmico, o que pode ser constatado de maneira especial na religiosi dade popular, em que a presença de Maria é vivida como presença eficaz, o que fez com que o seu culto seja também tão rico em sentido e expressões. A tendência a considerar Maria um simples modelo a ser contemplado, sem que a sua participação na vida da Igreja e de cada cristão seja reconhecida, é uma tendência que começou com a influência do racionalismo. “Sob a influência do racionalismo, a veneração religiosa de Maria se atrofiou e caiu em uma pura apre- ciação humana de um sublime exemplo moral" (OTT, 1997). O Concílio Vaticano II, na sua Constituição dogmática Lumen Gentium, legitimou o culto de Maria nos seguintes termos: Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– “À Mãe de Deus Maria deve-se o culto de hiperdulia” (Sententia certa) (OTT, 1957). Segundo Pinto de Oliveira, com a evolução do cristianismo, no desenvolvimento, sobretudo, da ideia da comunhão dos santos, cada vez mais a Igreja viu que Maria está em relação com os santos que estão na glória, e procurou também compreender uma certa hierarquia nesses santos. Por isso que há o primado dos Apóstolos, e, a partir daí, chegou-se à compreensão do lugar privilegiado de Maria. O culto de Maria desabrocha, então, dentro desse quadro de uma compreensão de comu nhão dos santos, do culto dos maiores santos, sobretudo daqueles que são fundadores da Igreja, os apóstolos; nesse momento, viu-se que a fundadora das fundadoras, aquela que está mais próxima do fundamento, é a Mãe de Deus. O culto a Maria é compreensível dentro dessa lógica interna da história da Igreja, de sua liturgia e da Tradição. O Concilio Vaticano II, por sua vez, mostra que o culto mariano não é facultativo, porque procede da verdadeira fé: “saibam os fiéis que a verdadeira devoção não consiste num estéril e transitório afeto, nem numa certa vã credulidade, mas procede da fé verdadeira pela qual somos levados a reconhecer a excelência da Mãe de Deus, excitados a um amor filial para com nossa Mãe e à imitação das suas virtudes” (LG 67) ( DE FIORES, S. Maria nel mistero di Cristo e della Chiesa. Roma, 1984, p. 147). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A Vir gem Maria, que na Anunciação do Anjo recebeu o Verbo de Deus no coração e no corpo e trouxe ao mundo a Vida, é reconhe- cida e honrada como verdadeira Mãe de Deus e do Redentor. Em vista dos méritos de seu Filho foi redimida de modo mais sublime e 117© O Culto a Maria unida a ele por vínculo estreito e indissolúvel, é dotada com a mis- são sublime e a dignidade de ser Mãe do Filho de Deus, e por isso filha predileta do Pai e sacrário do Espírito Santo (LG 53). Continua o Concílio: “pelas graças que ela recebeu supera de muito todas as outras criaturas, celestes e terres tres” (LG 53). Ela é, além disso, a “Mãe dos membros de Cristo”, “membro su- pereminente e de todo singular da Igreja, como seu tipo e modelo excelente na fé e na caridade”. Em vista de tudo isso, “a Igreja ca- tólica, instruída pelo Espírito Santo, honra‑a com afeto de piedade filial como mãe santíssima” (LG 53). O culto a Maria não se trata de um culto de adoração (cultus latriae) devido somente a Deus, e tampouco do culto de dulia devido aos santos, e sim do culto de hiperdulia (cultus hyperduliae), um culto intermediário entre o culto devido a Deus e aos santos (OTT, 1957). Os fundamentos teológicos do culto de Maria segundo o Concilio são: a maternidade divina, que confere a Maria uma digni- dade e sobre‑eminência especiais; a participação nos mistérios de Cristo, que põe Maria em relação com a salvação de cada membro do povo Deus; e a sua santidade excelsa e glorificada (DE FIORES, 1984). Segundo o Concílio, haveria, ainda, outro motivo: Maria exerce incessante intercessão em favor dos homens (LG 66; MC 56), e a sua glória nobilita todo o gênero humano, pois “Maria, de fato, é da nossa estirpe, verdadeira filha de Eva, se bem que isenta da mancha, e nossa verdadeira irmã, que compartilhou plenamen- te, mulher humilde e pobre como foi, a nossa condição” (MC 56). Enfim: O culto da bem‑aventurada Virgem Maria tem a sua razão suprema de ser na insondável e livre vontade de Deus, que, sendo a eterna e divina Caridade (Jo 4,7‑9.16), realiza todas as coisas segundo um plano de amor: amou‑a por causa de si mesmo e por causa de nós e deu‑a a si mesmo e no‑la deu a nós (MC 56). © Mariologia118 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Historicamente, as testemunhas sobre o culto mariano nos três primeiros séculos são um tanto fragmentárias (DE FIORES, 1984). Nesse período, o culto de Maria esteve intimamente ligado com o culto devido a Cristo (OTT, 1957). O mais antigo testemunho escrito é o texto de uma oração: Sub tuum praesidium, em um pa- piro egípcio do final do século 3° (DE FIORES, 1984). Houve grande desenvolvimento do culto marial por meio da festiva legitimação da maternidade divina, defendida por Cle- mente de Alexandria no Concílio de Éfeso. Depois disso, Maria é glorificada em numerosas pregações e hinos; para a sua honra, constroem‑se igrejas e introduzem‑ se festividades (OTT, 1957). No curso da história, o culto marial conheceu altos e baixos, mas é inegável que o seu culto apareça como “fenômeno irresistí- vel que domina toda a história da Igreja” (SEMMELROTH apud DE FIORES, 1984). Esse desenvolvi mento é, no fundo, orientado pelo Espírito Santo, que dirige a Igreja e que anunciou na Escritura a convergência dos homens em tributar o louvor a Maria. De fato, a Escritura inspirada põe nos lábios de Maria as palavras proféticas: “Doravante as gerações todas me chamarão bem‑aventurada” (Lc 1,48). “A verdadeira fé, a história da Igreja e a profecia da Escritura dão ao culto mariano o selo da autenticidade” (DE FIORES, 1984, n.p.). Esse culto marial manifesta‑se hoje na Igreja na veneração cultual e existencial (BEINERT, 1980). As diretrizes traçadas por Paulo VI na Marialis Cultus, a fim de promover uma genuína refor- ma do culto mariano, procura situar esse mesmo culto no contexto do mundo contemporâneo, pois, como todo fenômeno, o culto de Maria consta de expressões ditadas pelas circunstâncias históricas, pela sensibilidade e pela psicologia dos fiéis e pelas diferentes tra- dições culturais dos povos (NUOVO DIZIONARIO DI MARIOLOGIA). Paulo VI ilustra, então, quatro notas que devem distinguir a devoção válida a Maria na Igreja de hoje: a nota trinitária (MC 25); a nota cristológica (MC 25; cf. LG 66); a nota pneumatológica (MC 26); e a nota eclesial (MC 28). 119© O Culto a Maria Para reforçar essas orientaçõesfunda mentais, Paulo VI tra- ça, ainda, outras orientações que a renovação do culto marial deve assumir. Segundo essas orientações, o culto marial deve viver do espírito da Sagrada Escritura (MC 30); deve orientar‑se segundo a liturgia da Igreja (MC 31); deve ser animado pela vontade de alcançar acordo ecumênico (MC 32s); e, finalmente, em sentido antro pológico, deve focalizar a humanidade genuína que a figura de Maria manifesta. Nesse sentido, Paulo VI diz: No culto à Santíssima Virgem, devem ser tidos em consideração também as aquisições seguras e comprovadas das ciências huma- nas; isso concorrerá, efetivamente, para que seja eliminada uma das causas de perturbação que se nota nesse mesmo campo do culto à mãe do Senhor; quer dizer, aquele desconcerto entre certos dados deste culto e as hodiernas concepções antropológicas e a realidade psicossociológica, profundamente mu dadas, em que os homens do nosso tempo vivem e operam (MC 34). Em harmonia com a orientação antropológica preconizada por Paulo VI é que o culto marial pode ser analisado também sob o enfoque psicológico, descobrindo, na figura de Maria, a possibi- lidade de um encontro com o feminino e a sua integração, abrindo a via para a dimensão existencial do culto marial. Se a veneração cultual se exprime na Igreja pelo culto litúr- gico (MC 1‑15), nos exercícios de piedade (tais como o Angelus Domini e o Santo Rosário) (MC 40‑45) e no culto das imagens (SC 125), a veneração existencial visa, por sua vez, ao relacionamen- to pessoal com a Virgem Maria, para aprender de sua vida de fé, porque ela é nossa mãe e irmã na fé; da sua disponibilidade e hu- mildade, de modo que o comportamento do cristão possa mani- festar‑se no abandono incondi cional e radical à palavra de Deus e à sua ação, acompanhado da esperança na sua fidelidade e no seu amor. Além disso, Maria representa a plenitude do feminino, o feminino totalmente redimido, de modo que o seu impacto exis- tencial como símbolo na convivência entre homens e mulheres e na psique humana em geral é vital. © Mariologia120 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Um dado muito importante que é possível constatar na his- tória do desenvolvimento do dogma marial é o fato de que o culto, os símbolos, a vivência e a experiência precederam as proclama- ções dogmáticas oficiais. Em outras palavras, na fase da fé implíci- ta, o cultual, o vivencial e o simbólico, como a linguagem simbólica dos padres, é que dominaram. Essa fé implícita tornou‑se explícita pela conceitualização dos conteúdos vividos nas formulações dog- máticas. Isso não quer dizer que o dogma não estivesse já pre- sente na fase da fé implícita. Mas o fato é que somente depois se passou do símbolo, do vivencial e do cultual ao nível de noções e de formulações teológicas, estéticas ou dogmáticas. Com o passar do tempo, o perigo é que se dê mais atenção e importância às formulações nocionais e se esqueça daquilo que as precedeu. Há, também, o perigo de que se esqueça de toda a gama de experiência da fé na presença viva e eficaz da Mãe de Deus no meio do Povo de Deus (sensus fidelium), e, ainda, o capi- tal imenso de senti mentos religiosos que jorram desse contato do povo e de cada cristão com ela. Assim, para que o dogma mantenha a sua vitalidade como símbolo da fé e, também, como arquétipo, impõe‑se que não se perca o contato com essa experiência viva da fé, pois, caso contrá- rio, corre o risco de se tornar fórmulas rígidas, endurecidas, sem nenhuma sintonia com a vida e com as disposições arquetípicas (JUNG). É preciso lembrar, segundo Pinto de Oliveira, que o vivido, ou seja, o implícito, é muito mais vasto do que aquilo que o formulado conceitualmente possa explicitar. Os dogmas são evidentemente necessários como pontos de referência para que não haja desvio da fé genuína, e para que não se perca no mundo das experiências subjetivas e do vivido. Seria necessário, então, estabelecer o contato do dogma com a experiência vivida, sobretudo da experiência arquetípica, mediante a análise da relação que existe entre essa experiência e o 121© O Culto a Maria “sensus fidelium”, pois o arquétipo Maria constela em si experiên- cias vitais, tal como a experiência da mãe – o arquétipo de maior carga emocional. 7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) O Novo Testamento reconhece a importância de Maria, colocando‑a no cen- tro da história juntamente com o seu filho Jesus Cristo. Explicite a importân- cia dessa relação e os seus fundamentos bíblicos e dogmáticos. 2) O culto a Maria tem fundamentos claros no Novo Testamento. Mostre os pontos principais dessa fundamentação, principalmente no Evangelho de Lucas. 3) O Concílio Vaticano II legitimou o culto a Maria. Quais os pontos principais dessa legitimação? 8. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, estudamos o culto a Maria, sua importância e sua presença na vida da Igreja. Com tais conhecimentos, estamos aptos a estudar, na próxi- ma unidade, Maria na devoção popular. Até lá! 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEINERT, W. Perspectivas teológicas da piedade mariana. In: ______. O culto a Maria hoje. São Paulo, 1980. DILLENSCHNEIDER, C. Le sens de la foi et le progrès dogmatique du mystère marial. Roma, 1954. DOCUMENTOS DA CNBB, 72. Projeto Nacional de Evangelização (2004‑2007). Queremos ver Jesus – Caminho, Verdade e Vida. São Paulo: Paulinas, 2004. GRASSO, D. A mensagem de Cristo: síntese de Teologia na perspectiva da história da salvação. São Paulo: s.d., 1977. © Mariologia122 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO JUNG, C. G. GW (Gesammelte Werke: Obras Completas em alemão) 11, 217 (294). TILLARD, J. M. R. Le sensus fidelium. Réflexion théologique. In: Foi populaire et foi savante. Paris, 1976. MÜLLER, A. Glaubensrede über die Mutter Jesu: Versuch ainer Mariologie in heutiger Perspektive. Mainz, 1980. OTT, L. Manual de Teología Dogmática. Barcelona: Herder, 1997. ______. L. Grundriss der Katholischen Dogmatik. 1957.