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Futuros da Plantação de Katherine McKittrick é publicado 
sob Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-
SemDerivações 4.0 Internacional.
Imagem da capa: detalhe da obra A Geometria à brasileira chega ao 
paraíso tropical, de Rosana Paulino (2018).
Coordenação Editorial:
Fecundações Cruzadas
Tradução:
Bru Pereira
Janaina Tatim
Lucas Maciel
Contato:
fecundacoes.cruzadas@gmail.com
2021
fecunda.org
Para citar:
McKittrick, Katherine. Futuros da Plantação. Trad. Bru Pereira, Lucas Maciel & Janaína 
Tatim. América Latina: Fecundações Cruzadas, 2021. 
3
Nota de tradução sobre o termo Plantation/Plantação
A palavra inglesa plantation, quando em textos em 
português, ora é traduzida por plantação ora mantida 
no original. Nesta tradução, optamos por utilizar 
o termo plantação, que aparece no texto com uma 
fonte distinta. Essa também foi a opção utilizada por 
Jess Oliveira, tradutora de Memórias da Plantação de 
Grada Kilomba e por Sebastião Nascimento, tradutor 
de Brutalismo de Achille Mbembe. Ademais, o termo 
plantação foi utilizado por Jota Mombaça no ensaio 
A Plantação Cognitiva. Ao utilizá-lo, nosso intuito é 
incidir na ampliação do campo semântico dessa palavra 
no português, buscando associá-la também aos modos 
de produção escravistas.
4
Em 1991, a Administração de Serviços Gerais dos 
Estados Unidos começou a desenterrar o que hoje é 
conhecido como o Cemitério Africano de Nova York, no 
número 290 da rua Broadway, na baixa Manhattan. Entre 
dez mil e vinte mil pessoas negras escravizadas foram 
enterradas no cemitério, usado entre o final dos anos de 
1600 e 1796, antes que o terreno fosse tapado e construído 
em 1827, ao lado de outros projetos de expansão urbana. 
Desde o desenterro em 1991, o manuseio e a lembrança 
envolvendo os corpos encontrados se desdobraram em 
uma série de contestações: conforme a comunidade negra 
reivindicou os restos mortais e o terreno em que estavam 
enterrados para ampliar a consciência política a respeito 
da escravidão, uma pressão imensa foi exercida sobre a 
comunidade científica para preservar os restos mortais e 
recolher dados em um espaço de tempo limitado (cerca de 
um ano). Inicialmente, pouques estudioses negres foram 
convidades a contribuir para a escavação e análise; na 
verdade, as condições em que os corpos foram desenterrados 
e preservados foram consideradas desrespeitosas e 
insensíveis, até que Michael Blakey, um antropólogo físico 
afro-americano, levou o projeto para a Howard University 
em 19941. Depois de analisados na Howard, os restos mortais 
foram devolvidos à baixa Manhattan, reenterrados em um 
local oficial do memorial e comemorados com a celebração 
do “African American Homecoming”. Claramente, as pessoas 
escravizadas mortas incitam, no senso comum, uma mistura 
de entusiasmo científico e luto comunitário. Aqui, a tensão 
1  Warren R. Perry, “Archaeology as Community Service: The African 
Burial Ground Project in New York City”, North American Dialogue: 
Newsletter of the Society for the Anthropology of North America 2, 
no. 1 (1997): 1–5.
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Lembrei do artigo do evento do Observacampos sobre arqueologia decolonial (ou algo assim).
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entre memorializar eticamente essa história de morte e 
aprender com ela é justificada por análises científicas que 
buscam encontrar, dentro e em torno dos corpos mortos, 
fatos autênticos que documentem a desnutrição, que 
evidenciem práticas religiosas e funerárias, que confirmem 
linhagens africanas por DNA, que mostrem os perfis de 
desenvolvimento muscular (e, portanto, conexões corporais 
com o trabalho escravizado) e evidenciem lesões e a violência 
antinegra, entre outras coisas2. O memorial, inaugurado em 
2005, é uma complexa lembrança da história negra, finalizado 
com um “portal de não retorno”; é também, de acordo 
com o site do National Park Service, destinado a educar, 
preservar, espiritualizar, mapear e ritualizar nossas memórias 
da diáspora negra em um contexto urbano e “retornar ao 
passado para construir o futuro”3.
2  Ver Jerome S. Handler, “Determining African Birth from Skeletal 
Remains: A Note on Tooth Mutilation”, Historical Archaeology 28, no. 
3 (1994): 113–19; and Michael L. Blakey, “The New York African Burial 
Ground Project: An Examination of Enslaved Lives, a Construction of 
Ancestral Ties”, Transforming Anthropology 7, no. 1 (1998): 53–58.
3  “The African Burial Ground: Return to the Past to Build the Future”, 
www.africanburialground.gov/ABG_Memorial.htm (accessed 6 September 
2010).
http://www.africanburialground.gov/ABG_Memorial.htm
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Começo com o Cemitério 
Africano de Nova York para 
vislumbrar o modo como 
ele é uma afirmação da vida 
na cidade, que abre uma 
continuidade espacial entre 
os vivos e os mortos, entre 
ciência e narrativa, e entre passado e presente. Embora 
muito possa ser dito sobre as reclamações, divergências, 
tristezas, esperanças e regenerações que se seguiram ao 
desenterro de 1991, o local também sublinha as formas em 
que os corpos mortos e esquecidos, e agora lembrados, de 
homens, mulheres e crianças negres ― ainda enterrados, 
ainda biologicamente apodrecendo e tocando no concreto, 
ainda ali ― são necessários para pensar sobre a cidade 
como um lugar onde novas formas de vida humana se 
tornam possíveis4. Na verdade, eu leio esse local como uma 
antecipação do que Stevie Wonder descreve como “viver 
apenas o suficiente/ apenas o suficiente para a cidade”: é 
um local de morte negra que contém em si uma paisagem 
sonora narrativa que também promete uma luta honesta 
pela vida5. As geografias da escravidão, pós-escravidão e 
4  Sobre desacordos acerca do Cemitério Africano, ver Nicholas 
Confessore, “Design Is Picked for African Burial Ground, and the Heckling 
Begins”, New York Times, 30 April 2005; e Kendall R. Phillips, “A Rhetoric 
of Controversy”, Western Journal of Communication 63, no. 4 (1999): 
488–510.
5  Stevie Wonder, “Living for the City,” Innervisions (Detroit: Tamla 
Records and Motown Records, 1973). Este ensaio também pode ser lido 
junto com Elvis Presley cantando, “Now come along with me / We’ll do 
the plantação rock / It’s easy as can be / ... Now do the plantation rock” 
[“Agora vem junto comigo / Nós tocaremos o rock da plantação / Mais fácil 
impossível / ... Agora faz o rock da plantação”]. Elvis Presley, “Plantation 
Rock,” Elvis: A Legendary Performer, vol. 4 (New York: RCA, 1983).
Tempo da 
Plantação
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da expropriação negra permitem perceber que o direito 
de ser humano carrega consigo uma história de encontros 
raciais e práticas inovadoras da diáspora negra que, de fato, 
espacializam atos de sobrevivência. Se, como se reivindica, o 
cemitério “proporcionou um raro ambiente no qual as pessoas 
escravizadas podiam afirmar sua humanidade e respeitar 
sua própria cultura” em um contexto de violência antinegra, 
o cemitério também revela que, nas Américas, é impossível 
desvincular o ambiente construído, o urbano, e a negridade6. 
Com isso, a contemporaneidade desses restos mortais, o 
cemitério da materialidade, o raro cenário de homenagem às 
pessoas mortas sob cativeiro e a memorialização intencional 
da negridade se impelem contra a ciência da tafonomia 
(o estudo da decomposição), da necrologia (o estudo da 
morte de um organismo) e da diagênese (as mudanças que 
ocorrem após o sepultamento final); isso traz os restos físicos, 
químicos e biológicos da negridade para a produção do 
espaço e da paisagem urbana, e para o solo. O cemitério nos 
conta que o legado da escravidão e o trabalho dos não livres 
tanto fazem parte quanto formam o ambiente que habitamos 
atualmente. Ele também aponta para o pedaço de terra 
onde pessoas escravizadas estão enterradas e fornece uma 
abertura para o que chamo aqui de “futuros da plantação”: 
uma conceituação de espaço-tempo que segue o rastro da 
plantação em direção à prisão e aos setores empobrecidos 
e destruídos da cidade e, consequentemente, coloca sob 
um foco mordaz as maneiras pelas quais aplantação é um 
locus contínuo de violência antinegra e morte, que não pode 
mais sustentar analiticamente essa violência. Para aquelus 
de nós interessades em lidar com raça, com espaço e com a 
6  Blakey, “New York African Burial Ground Project”, 53.
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Qual a diferença entre negritude e negridade?
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morte prematura e evitável, o futuro da plantação exige um 
pensamento decolonial baseado na vida humana.
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Em seus escritos sobre as 
populações e a economia 
da diáspora negra, George 
Beckford argumentou 
persuasivamente que o 
sistema da plantação, 
durante e após a escravidão 
transatlântica, permeou a 
vida negra ao contribuir para o funcionamento entrelaçado 
da expropriação e da resistência7. A pesquisa de Beckford, 
em particular aquela publicada ao longo da década de 1970, 
trouxe à tona os modos pelos quais as plantações estão 
ligadas a uma economia global mais ampla, que prospera 
através do “subdesenvolvimento persistente” e da “pobreza 
persistente” da vida negra8. Ao elaborar sobre a lógica 
socioeconômica das plantocracias, ele apresentou o que 
ficou conhecida como a “tese da plantação” ou a “tese 
da economia da plantação”, que, em parte, sugere que as 
plantações da escravidão transatlântica sustentaram uma 
economia global; que essa história da plantação não apenas 
gerou a riqueza metropolitana do Atlântico Norte e exacerbou 
a desapropriação entre pessoas não livres e servas, mas 
também instituiu uma economia racializada incongruente, 
que perdurou por muito tempo depois dos movimentos 
de emancipação e independência nas Américas; e que a 
7  George L. Beckford, The George Beckford Papers, ed. Kari Levitt 
(Mona: Canoe Press, University of the West Indies, 2000); George Beckford, 
Persistent Poverty: Underdevelopment in Plantation Economies of 
the Third World (1972; reimpr., Mona: Canoe Press University of West 
Indies, 1999).
8  George L. Beckford, “Institutional Foundations and Resource 
Underdevelopment in the Caribbean”, in The George Beckford Papers, 
242; Beckford, Persistent Poverty.
Contexto da 
Plantação
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Lembro da Janine Jones quando fala que o desenvolvimento e o progresso só podem - necessariamente - existir mediante a destruição de ambientes e pessoas.
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prolongada lógica colonial da plantação veio a definir muitos 
aspectos da vida pós-escravidão9. A pesquisa de Beckford 
a respeito da plantação lança luz sobre as maneiras como 
as dolorosas histórias raciais contêm em si a possibilidade 
de organizar nosso futuro coletivo. A tese da plantação 
revela o funcionamento entrelaçado da modernidade e da 
negridade, que culminam em geografias raciais desiguais e 
duradouras, ao mesmo tempo em que centraliza que a ideia 
de plantação é migratória. Assim, na agricultura, nas práticas 
financeiras e na mineração, no comércio e no turismo, e em 
outros espaços coloniais e pós-coloniais ― a prisão, a cidade, 
o resort ― uma lógica de plantação característica (mas não 
idêntica) da escravidão emerge no presente tanto ideologica 
quanto materialmente10. Com isso, modos diferenciais de 
sobrevivência emergem ― crioulização, o blues, marronagem, 
revolução e muito mais ― revelando que a plantação, em 
contextos escravistas e pós-escravistas, deve ser entendida 
juntamente com negociações complexas de tempo, espaço e 
terror11.
9  Beckford, Persistent Poverty; Lloyd Best and Kari Levitt, Essays on 
the Theory of Plantation Economy: A Historical and Institutional 
Approach to Caribbean Economic Development (Mona: University of 
the West Indies Press, 2009).
10  Beckford, Persistent Poverty; Ian Gregory Strachan, Paradise and 
Plantation: Tourism and Culture in the Anglophone Caribbean 
(Charlottesville: University of Virginia Press, 2002); Robert Staples, 
The Urban plantation: Racism and Colonialism in the Post Civil 
Rights Era (Oakland, CA: Black Scholar, 1987); Billy Hawkins, The New 
Plantation: Black Athletes, College Sports, and Predominantly 
White NCAA Institutions (New York: Palgrave, 2010); Angela Davis, 
Estarão as Prisões Obsoletas? (5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 
2018[2003]), 23-41.
11  Os temas da crioulização, marronagem, revolução e blues ― como 
resultados das plantocracias ― estão bem documentados. Os seguintes 
textos foram úteis para o meu pensamento: Clyde Woods, Development 
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É a plantação que ancora uma série de debates sobre 
o funcionamento do racismo antinegro e a organização 
crioulizada e cheia de nós da vida diaspórica no novo mundo 
― nós que emergem na vida vegetal e culinária, nas políticas 
e práticas representativas, em vínculos socioeconômicos 
transnacionais, no espaço-tempo do Atlântico negro e 
além12. The Philadelphia Negro, de W. E. B. Du Bois, aborda 
Arrested: The Blues and Plantation Power in the Mississippi Delta 
(New York: Verso, 1998); Edward Kamau Brathwaite, The Development 
of Creole Society, 1770–1820 (1971; reimpr., Kingston: Ian Randle 
Publishers, 2008); Edouard Glissant, Caribbean Discourse: Selected 
Essays, trans. J. Michael Dash (Charlottesville: University Press of 
Virginia, 1989); C. L. R. James, Os Jacobinos Negros (1938; reimpr., São 
Paulo: Boitempo, 2000); e Michaeline Crichlow, Globalization and the 
Post-creole Imagination: Notes on Fleeing the Plantation (Durham, 
NC: Duke University Press, 2009). Curiosamente, Crichlow procura fugir 
conceitualmente da plantação. Ela argumenta convincentemente que várias 
teorias de “crioulização” muitas vezes se originam e, portanto, permanecem 
vinculadas ao espaço da plantação escravista, consequentemente paralisando 
o funcionamento dinâmico e globalmente presente da crioulização pós-
escravidão. Ao mesmo tempo, ela também sugere que a plantação limita 
a forma como conceitualizamos as resistências ― precisamente porque 
ofusca a particularidade das lutas locais. No entanto, Crichlow na verdade 
não consegue fugir da plantação; nesse trabalho, ela permanece em dívida 
com a persistente promessa geográfica da plantação: uma promessa em que 
a plantação contém em si a possibilidade de re-historicizar a crioulização e 
trazer à tona as raízes/rotas globais de tais geografias negras no presente. 
Assim, este trabalho lembra cuidadosamente que a política de fuga é uma 
rejeição com sombras de retorno ao lar.
12  Paul Gilroy, O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência 
(2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2012[1993]); Judith A. Carney, In the 
Shadow of Slavery: Africa’s Botantical Legacy in the Atlantic 
World (Berkeley: University of California Press, 2009); Ntozake Shange, 
If I Can Cook, You Know God Can (Boston: Beacon, 1998); Stuart Hall, 
“Creolization, Diaspora, and Hybridity”, in Okwui Enwezor et al., eds., 
Creolite and Creolization (Germany: Hatje Cantz, 2003), 185–98; Rinaldo 
Walcott, “Pedagogy and Trauma: The Middle Passage and the Problem of 
Creolization”, in Roger I. Simon, Sharon Rosenberg, and Claudia Eppert, 
eds., Between Hope and Despair: Pedagogy and the Remembrance of 
Historical Trauma (Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 2000), 135–41.
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os “traços” das plantações em seu estudo das experiências 
e lutas de pessoas negras no espaço urbano13. A plantação 
também introduz notavelmente o ensaio Necropolítica de 
Achille Mbembe e, assim, fornece a base para sua discussão 
mais ampla sobre a mortalidade e violência da modernidade 
tardia (urbicídio, bombas suicidas, drones)14. Nicholas 
Mirzoeff, igualmente, começa seu projeto sobre colonialidade 
e visualidade refletindo cuidadosamente sobre a prática de 
“supervisionar”, simultaneamente, a negridade e as terras 
da plantação ― uma história que eventualmente leva à 
sua discussão sobre a gestão necropolítica tecnologizada e 
militarizada de corpos caóticos15. Dois esquemas da plantação 
surgem: as maneiras como a plantação revela uma lógica 
que emerge no presente e se dobrapara se repetir de novo ao 
longo das vidas negras e os modos como a plantação é um 
conceito significativo que, pelo menos em parte, lança teorias 
pós-escravistas/contemporâneas da violência e urbicídio.
A plantação, portanto, fornece o contexto para 
apresentar as seguintes questões interligadas: Quais são 
algumas das características notáveis das geografias da 
plantação e o que está em jogo em conectar um passado 
de plantação ao presente? O que decorre ao se posicionar 
a plantação como um limiar para refletir cuidadosamente 
a respeito de práticas de violência racial, duradouras e 
contemporâneas? Se a plantação, pelo menos em parte, 
conduziu como e onde vivemos agora, e assim contribuiu 
13  W. E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro: A Social Study (1899; 
reimpr., New York: Schocken, 1969).
14  Achille Mbembe, Necropolítica (São Paulo: n-1 edições, 2011[2003]).
15  Nicholas Mirzoeff, The Right to Look: A Counterhistory of 
Visuality (Durham, NC: Duke University Press, 2011).
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Duas maneiras pelas quais podemos compreender e abordar a plantation.
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para os contornos raciais de geografias desiguais, como 
poderíamos dar a ela um futuro diferente? Nesse ensaio, 
reflito sobre o trabalho conceitual das geografias negras e 
da plantação, observando que esta última é uma geografia 
histórica significativa, que forneceu uma estrutura teórica 
para pensar sobre as formas como a vida negra e as histórias 
negras se vinculam às conceituações pós-escravas da 
violência geográfica. Parte desse trabalho aborda as maneiras 
pelas quais a plantação regulamentou e normalizou a 
violência e instigou a resistência, ao mesmo tempo em que 
reconhece que ela pode ― pelo menos conceitualmente ― 
levar a um futuro totalizante de brutalidade. Na verdade, 
porque as desigualdades produzidas relativamente às 
plantações da escravidão transatlântica são antigas e a 
plantação forneceu um esquema teórico para pensar sobre 
uma série de lutas difíceis, também vale a pena perguntar se 
essas desigualdades devem antecipar negativamente como 
conceituamos nossos futuros coletivos.
A discussão não cita a plantação como um caminho 
conceitual que narra exclusivamente um esquema de 
opressão/resistência, nem situa a plantação como a âncora 
da violência antinegra e de futuros sombrios. Em vez disso, 
essas abordagens servem como sombra para o meu traçado do 
funcionamento geográfico da expropriação, o qual pretende 
contextualizar a plantação como um local que também pode 
abrir uma discussão sobre a vida negra no contexto das 
cidades e futuros globais contemporâneos. É importante notar 
aqui que eu mudo da plantação para a cidade com intenções 
menos rigorosas e com os movimentos da plantação-
urbicídio de Mbembe em mente. Embora o espaço-tempo seja 
digno de nota, também vale a pena abordar as maneiras como 
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a plantação ― precisamente porque alojou e historicizou 
violências raciais que exigiam resistências inovadoras ― 
se destaca como um palimpsesto conceitual significativo 
para as paisagens urbanas contemporâneas que continuam 
a abrigar as vidas das pessoas mais marginalizadas16. A 
cidade contemporânea, conforme apresentada aqui, não 
deve ser entendida ou teorizada como o ponto final singular 
para a teoria da plantação; em vez disso, espero que meu 
pensamento fomente outras considerações sobre as geografias 
negras e raciais ― rurais, suburbanas, confinadas atrás 
de muros, além das Américas, também ― que possam se 
beneficiar do tipo de imaginação de futuros da plantação que 
proponho.
Trabalhando com os escritos de Sylvia Wynter e 
Dionne Brand, e fundindo o teórico ao criativo, essa discussão 
imagina as geografias negras como os locais através dos 
quais forças particulares do império (opressão/resistência, 
imortalidade negra, violência racial, urbanicídio) trazem 
à tona uma poética que vislumbra um futuro decolonial. 
Nossos futuros modos de ser, se atados à plantação, ao 
império e à violência, podem não necessariamente seguir 
nossa necropolítica moderna-tardia do presente em direção 
à miséria futura, na qual a liberdade é despojada de vida e 
o terror racial é o ato para realizar essa liberdade17. Em vez 
disso, nossos futuros modos de ser podem depender de uma 
poética decolonial que lê a expropriação negra como uma 
“interrogação” ― pontuando as violências pós-escravidão 
e aquelas postas diante de nosso modo de ser atual ―, 
16  Mike Davis, Planet of Slums (New York: Verso, 2006).
17  Mbembe, Necropolítica. 
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fornecendo assim uma crítica do próprio processo histórico 
que trouxe o funcionamento maniqueísta da plantação como 
o “ápice das realizações”18. A leitura da plantação e seu 
futuro como apresentada aqui ― subscrito pela vida, pelo 
poético, o teórico e o criativo, e moldado por uma história de 
violência ― se guia pela esperança de que essa discussão irá, 
de uma pequena forma, permitir um novo espaço discursivo19. 
Na verdade, é precisamente porque a plantação tem “uma 
capacidade inerente para manter a si mesma” que faríamos 
bem em reimaginar seu futuro20.
18  Sylvia Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, Savacou, no. 5 
(June 1971): 97.
19  Scott, David. Refashioning Futures: Criticism After 
Postcoloniality.Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999, p. 96.
20  George Beckford, “Agriculture Organization and Planning in Cuba”, in 
The George Beckford Papers, 46.
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Encontros coloniais passados 
criaram geografias materiais e 
imaginativas que reificaram as 
segregações globais por meio 
da “maldição” dos espaços há 
muito ocupados por outres 
humanes do Homem21. Aqui, 
a maldição pode ser entendida 
de duas maneiras interligadas: como um cercamento e como 
uma condenação da diferença racial-sexual. O inabitável 
― em particular, as massas de terra ocupadas por aquelas 
pessoas que, nos séculos XV e XVI, eram inimagináveis, 
tanto espacial quanto corporalmente ― é a (não)localização 
geográfica de onde surgiu a plantação. Da ilha “inabitável” 
de Caliban em A Tempestade de Shakespeare, às regiões 
da África identificadas como quentes demais para serem 
habitadas, as massas de terra consideradas inabitáveis 
apresentaram uma situação geográfica problemática para 
21  Aqui, aponto para a terminologia do Homem de Sylvia Wynter, que 
é uma conceitualização dupla explorada em “Unsettling the Coloniality 
of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, after Man, Its 
Overrepresentation—An Argument”, CR: The New Centennial Review 
3, no. 3 (2003): 257–337. Esse ensaio chama a atenção para as formas 
como as expressões socioespaciais da modernidade ocidental ― encontros 
coloniais durante e após os séculos XV e XVI; a revolução copernicana 
e a ascensão da astronomia, física e geografia física; a secularização do 
Homem e sus outres humanes dentro de um ambiente judaico-cristão; 
expansão territorial e escravidão transatlântica; industrialização; a ascensão 
das ciências biológicas ― acumularam e formaram códigos governantes 
sobrepostos (Homem1 e Homem2) como sobrerrepresentações da 
humanidade. Esses códigos de governo produziram povos racializados/não 
europeus/não brancos/Novo Mundo/indígenas/africanes como, primeiro, 
cristãos falsos decaídos (nos séculos XV e XVI) e, mais tarde, como 
biologicamente defeituosos e condenados (mais marcadamente no século 
XVIII e séculos XIX).
Inabitável
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o “descobrimento”22. Como sabemos, as pessoas ocupantes 
do inabitável, indígenas da África e das Américas, foram 
consideradas bárbaras e irracionais, enquanto suas terras 
foram transformadas em postos e assentamentos coloniais 
lucrativos. Em vez de repassar em detalhes essa história 
difícil mas familiar, uma linha significativa para se pensar 
é como “as terras de ninguém” passaram a ser vinculadas 
a uma linguagem geográfica de condenação racial.As 
Américas e a África, por exemplo, foram marcadas como 
geograficamente inferiores, com base em um esquema 
temporal europeu de um “Velho” Mundo que considerava a 
matéria biosférica dessas regiões “mais nova” do que o solo, 
a terra, o ar e a água da Europa. Essa presunção geográfica, 
em parte, contribuiu para a “velha” visão de mundo europeia 
de que os nativos das “novas” massas de terra na África e 
nas Américas também têm visões de mundo nascentes e, 
portanto, pouco sofisticadas e subdesenvolvidas23. Assim, o 
que estava geograficamente em jogo quando o centro europeu 
se estendeu para fora, em direção a um espaço que estava ao 
mesmo tempo “em lugar nenhum” e habitado por “ninguém”, 
mas inesperadamente “lá” e “habitado”, são as raças e 
as geografias raciais. Na verdade, uma “nova construção 
22  Embora a ambientação da peça seja o “ainda atormentado Bermoothes”, 
o cenário (seguindo a lista de Dramatis Personae) em A tempestade de 
Shakespeare ― a terra-vida indígena de Caliban e sua mãe Sycorax ― é 
“uma ilha inabitada”. William Shakespeare, The Tempest (1623; reimpr., 
New York: Macmillan, 2008), 21, 32. Ver também Matthew Sparke, 
“Everywhere but Always Somewhere: Critical Geographies of the Global 
South”, Global South 1, no. 1 (2007): 117–26; Nicolás Wey Gómez, The 
Tropics of Empire: Why Columbus Sailed South to the Indies 
(Cambridge, MA: MIT Press, 2008).
23  Anthony Pagden, European Encounters with the New World: From 
Renaissance to Romanticism (New Haven, CT: Yale University Press, 
1994), 5–8, 116–18.
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simbólica de raça”, que coincidiu com os arranjos coloniais 
pós-1492, organizou grande parte do mundo de acordo 
com uma lógica racial24. Reservas indígenas, plantações e 
segregações formais e informais são apenas algumas das 
formas como as terras de ninguém foram divididas para 
distinguir e regular as relações das comunidades indígenas, 
não indígenas, africanas e coloniais, com algumas geografias 
ainda sendo consideradas inabitáveis para grupos específicos; 
locais como reservas, senzalas e plataformas de leilão foram 
considerados paralelamente às especificidades raciais. O 
processo geográfico, após a corrida para colonizar as terras 
de ninguém, se desfez em trocas culturais do Novo Mundo, 
que se estabeleceram em um modelo humano rigoroso e 
não homogêneo: geografias para homens brancos, mulheres 
brancas, homens indígenas, mulheres indígenas, homens 
negros e mulheres negras. É claro que existiam experiências 
geográficas e povos que se sobrepunham e perturbavam esses 
espaços aparentemente discretos, mas essa sobreposição é 
acompanhada por um sistema abrangente em que espaços 
específicos de outridade ― para fins deste ensaio, geografias 
negras ― foram designados como incongruentes com a 
humanidade.
O funcionamento entrelaçado do valor humano, da 
raça e do espaço demonstra como o inabitável ainda é válido 
no presente e continua a organizar os arranjos geográficos 
contemporâneos. A prática colonial do conhecimento 
geográfico mapeou “um modo de vida normal” medindo 
diferentes graus de humanidade e ligando diferentes versões 
24  Sylvia Wynter, “1492: A New World View”, in Vera Lawrence Hyatt and 
Rex Nettleford, eds., Race, Discourse, and the Origin of the Americas 
(Washington DC: Smithsonian Institution Press, 1995), 34 (grifo meu).
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da pessoa humana a diferentes lugares. Mais claramente, a 
extensão do que alguns exploradores europeus presumiam 
ser “inexistente” era um sistema geográfico que passou a 
organizar a diferença no espaço e a considerar esse processo 
diferencial como senso comum ou modo de vida normal. Esse 
modo de vida normal está enraizado na condenação racial; é 
espacialmente evidente em locais de toxicidade, decadência 
ambiental, poluição e ação militarizada que são habitados 
por comunidades empobrecidas ― geografias descritas como 
campos de batalha ou como queimadas, horríveis, ocupadas, 
sitiadas, insalubres, encarceradas, extintas, famintas, 
destroçadas, em perigo25.
Destacam-se as maneiras como podemos traçar o 
passado até o presente e o presente até o passado por meio 
da geografia. A constituição histórica das terras de ninguém 
pode, ao menos em parte, estar ligada aos espaços presentes 
e normalizados do outro racial; com isso, as geografias do 
outro racial são esvaziadas de vida precisamente porque a 
constituição histórica dessas geografias as moldou como terras 
de ninguém. Assim, em nosso momento presente, alguns 
vivem no invivível, e viver no invivível condena as geografias 
das pessoas marginalizadas à morte indefinidamente. A 
vida é, então, extraída de regiões específicas, transformando 
alguns lugares em geografias inumanas ao invés de humanas. 
Ou, aquelus que viveram fora do que é considerado normal 
e aquelus que continuam a habitar o inabitável estão tão 
25  Clyde Woods, “Life after Death”, Professional Geographer 54, no. 
1 (2002): 62–66; Laura Pulido, “Rethinking Environmental Racism: White 
Privilege and Urban Development in Southern California”, Annals of the 
Association of American Geographers 90, no. 1 (2000): 12–40; Mbembe, 
Necropolítica; Davis, Planet of Slums.
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perversamente fora da concepção burguesa ocidental do que 
significa ser humano que suas geografias são consideradas 
― ou passam a ser ― desumanas, mortas e moribundas. 
Podemos pensar coletivamente em vários lugares que são 
considerados sem vida ― sem história, sem geografia, ou 
alheios a sistemas capitalistas adequados de suporte à vida: 
países devastados pela guerra, reservas, guetos, o que é 
conhecido como “o Sul global”. Mais explicitamente, a pressão 
popular e, nem tão presente, para “salvar” a África em crise e 
seus filhos a revela como uma geografia humana continental 
que não é humana de forma alguma, mas um espaço 
inabitável, habitado por pessoas condenadas racialmente, 
por pessoas já mortas e moribundas. Isso sugere que os 
espaços da alteridade se enrigeceram ao longo do tempo, 
muitas vezes com corpos negros e “condenados” ocupando 
ou residindo fora do círculo mais baixo da humanidade e, 
portanto, habitando o que muitos consideram geografias 
desumanas ou inabitáveis. Essa é a patente construção 
mútua de identidade e lugar. Se alguns lugares são tornados 
sem vida na imaginação geográfica mais ampla, o que dizer 
daquelas pessoas que habitam o sem vida? E o que dizer 
da visão de mundo das pessoas que ocupam a categoria de 
condenadas ― essa visão de mundo também não tem vida 
porque as geografias que cercam as pessoas marginalizadas 
são tidas como mortas? De que modo a desumanização e a 
marcação racial de algumas comunidades seguem a lógica 
colonial de que o humano na geografia humana é uma 
referência direta ao Homem, que não apenas representa uma 
versão completa da humanidade (o nós, em nós e elus), mas 
no âmbito global habita naturalmente os países vivíveis, ricos 
e superdesenvolvidos? De que forma essa lógica colonial 
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implica que es outres humanes do Homem (o elus do nós e 
elus) naturalmente ocupam regiões mortas e moribundas, 
pois são considerades como as classes baixas desempregadas, 
cujos membros são feitos para funcionar como “resíduos” em 
nosso mundo global contemporâneo?26 Assim condenada, a 
maior parte da população mundial, uma população que Sylvia 
Wynter descreve como desclassificada/imperfeita/menos 
que humana, não habita cidades cosmopolitas, mas favelas27. 
Como, no presente, surgem as terras de ninguém e como 
normalizam um modo de organizar o planeta de acordo com a 
vida e a ausência de vida?
26  Sylvia Wynter, “On How We Mistook the Map for the Territory and Re-
imprisoned Ourselves in Our Unbearable Wrongness of Being of Désêtre”, 
in Lewis R. Gordon and Jane Anna Gordon, eds., Not Only the Master’s 
Tools: African American Studies in Theory and Practice (London: 
Paradigm, 2006), 123–24.
27  Wynter, “Unsettling the Colonialityof Being/Power/Truth/Freedom”, 
319.
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Meu retorno à plantação foi 
motivado pelo enunciado 
descritivo que identifica 
as geografias negras como 
espaços mortos de alteridade 
absoluta ― precisamente 
porque, em minha pesquisa, a 
plantação é considerada quase 
o último reduto de expropriação negra, violência antinegra, 
encontro racial e resistência inovadora. Na verdade, é a 
plantação que foi colocada no mapa das terras de ninguém 
e se tornou o local onde os povos negros foram “plantados” 
nas Américas ― não como membros da sociedade, mas como 
mercadorias que fortaleceriam as economias agrícolas28. 
Dentro desse sistema geográfico, em que a violência racial 
está ligada à administração do crescimento econômico, 
as “capacidades polimorfas” da humanidade negra são 
vividas29. Como apontei em Demonic Grounds, a plantação 
é frequentemente definida como uma “cidade”, com um 
sistema econômico lucrativo e com regulamentos políticos e 
legais locais30. A plantação normalmente contém uma casa 
principal, um escritório, uma casa de carruagem, celeiros, 
um bloco de leilão de escravos, uma área de jardim, senzala 
e cozinha, estábulos, um cemitério e um ou mais edifícios 
em que as colheitas são preparadas, como um moinho ou 
uma refinaria; a plantação também inclui uma área de 
cultivo e campos, bosques e um pasto. As cidades-plantação 
28  Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, 95.
29  Mbembe, Necropolítica, 35.
30  Katherine McKittrick, Demonic Grounds: Black Women and the 
Cartographies of Struggle (Minneapolis: University of Minnesota Press, 
2006), 75.
Lógica da 
Plantação
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estão ligadas a acessos ― rios, estradas, pequenas redes 
ferroviárias ― que permitem o transporte de safras, pessoas 
escravizadas e outras mercadorias. Esse é um processo 
geográfico significativo para se ter em mente, porque nos 
obriga a pensar sobre como a plantação se tornou a chave 
para transformar as terras de ninguém em terras de alguém, 
com o trabalho forçado negro impulsionando uma estrutura 
econômica que sustentaria a cidade e o desenvolvimento 
industrial nas Américas. Com isso em mente, a plantação 
espacializa as primeiras concepções de vida urbana no 
contexto de uma economia racial: a plantação continha 
zonas econômicas identificáveis; impulsionou o crescimento 
econômico e social ao longo dos canais de transporte; o uso 
da terra era para o crescimento agrícola e industrial; padrões 
de atividades especializadas ― do trabalho doméstico e no 
campo à ferraria, à administração e às atividades da igreja 
― foram levados a cabo; grupos raciais foram inseridos 
diferenciadamente na economia local, e assim por diante31. 
Em Cabin, Quarter, Plantation, Clifton Ellis e Rebecca 
Ginsberg examinam a arquitetura e a paisagem das cidades 
de plantação na América do Norte, contribuindo para a 
economia racial ao notar 
a mão dos trabalhadores escravizados em transformar 
(literalmente) a terra[,] [...] os esforços dos 
agentes pró-escravidão [moldando] ambientes que 
facilitassem o controle e a vigilância das atividades 
das pessoas escravizadas[,] [...] proprietários 
escravidores adapta[ndo] tipos de edifícios antigos e 
31  Os padrões do início da vida urbana observados aqui (crescimento e 
zonas econômicas identificáveis, transporte e atividades especializadas) são 
baseados nos temas apresentados em Nicholas R. Fyfe e Judith T. Kenny, 
eds., The Urban Geography Reader (Nova York: Routledge, 2005). 
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desenvolve[ndo] novos com o propósito de empregar 
a arquitetura para subjugar e controlar seus bens 
humanos32.
Essas características ― a economia, a paisagem, 
a arquitetura ― andam de mãos dadas com diferentes 
tipos de violência racial, o que Saidiya Hartman descreve 
como “cenas de sujeição”: o terror mundano da vida na 
plantação; as brutalidades perpetuadas sob a rubrica de 
prazer, paternalismo e propriedade; o sofrimento, estupro e 
despersonalização; o “brutal exercício de poder que deu forma 
à resistência”33.
Embora as plantações tenham diferido no tempo 
e no espaço, os processos pelos quais eram operadas e 
mantidas de maneira diferenciada chamam a atenção para 
as maneiras pelas quais a vigilância racial, a violência 
contra pessoas negras, a crueldade sexual e a acumulação 
econômica identificam o trabalho espacial da raça e do 
racismo. Em muitos sentidos, a plantação mapeia geografias 
negras específicas como reconhecidamente violentas e 
empobrecidas, normalizando, como consequência, a produção 
desigual do espaço. Essa normalização pode se desdobrar no 
presente, com a negridade e a geografia, e com o passado e 
o presente se enredando para revelar locais contemporâneos 
de inabitabilidade. No entanto, retornar à plantação, 
no presente, pode potencialmente convidar a análises 
32  Clifton Ellis and Rebecca Ginsberg, “Introduction” de Clifton Ellis 
and Rebecca Ginsberg, eds., Cabin, Quarter, Plantation: Architecture 
and Landscapes of North American Slavery (New Haven, CT: Yale 
University Press, 2010), 2–3.
33  Saidiya Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-
Making in Nineteenth-Century America (Oxford: Oxford University 
Press, 1997), 1–78, 62.
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inquietantes e contraditórias nas quais: o funcionamento 
socioespacial da violência antinegra define totalmente 
a história negra; esse passado é superado e acabado, e a 
plantação é considerada uma instituição “atrasada” que 
deixamos para trás; a plantação se move através do tempo, 
um anacronismo disfarçado que acarreta a prisão, a cidade 
e assim por diante. Essas contradições estratificam, para 
tomar emprestado de Kara Keeling, “imagens de memória 
comum” que são habitualmente invocadas para construir a 
negridade como silenciosa, sofrida e perpetuamente violada, 
assim como tentam apagar as formas como a violência 
antinegra é encenada no presente34. Em outras palavras, 
esse tipo de enquadramento analítico é inquietante porque 
simultaneamente arquiva o corpo negro violado como a 
origem das vidas negras do Novo Mundo, assim como coloca 
essa história em um continuum de espaço-tempo quase 
hermético, que traça um progresso linear que se move para 
longe da violência racista.
Dentro desse enquadramento, há um impulso 
subjacente de buscar consolo ao nomear a violência. 
Isso carrega em si a expectativa de que o caminho para 
a recuperação é uma evolução em direção a um modo de 
humanidade que é produzido por meio de iniquidades. 
Não estou sugerindo que esqueçamos a violência, ou 
que o retorno às brutalidades da vida na plantação seja 
antiético. Estou sugerindo que quando as terras de ninguém 
foram transformadas pela lógica da plantocracia, firmando 
34  Kara Keeling, The Witch’s Flight: The Cinematic, the Black 
Femme, and the Image of Common Sense (Durham, NC: Duke 
University Press, 2007), 74.
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as hierarquias raciais da humanidade, a questão do 
enfrentamento é muitas vezes lida através de nossa forma 
atual de humanidade, com os espaços para o nós (habitado 
por homens seculares, economicamente confortáveis e 
posicionados em oposição aos espaços empobrecidos 
e subdesenvolvidos para o elus) sendo considerados os 
locais que as pessoas oprimidas devem ambicionar. Nessa 
formulação, surgem três curiosidades: pessoas escravizadas 
que foram plantadas nas Américas e seu senso de lugar 
são consideradas normalmente sem vida, acabadas, não 
geográficas e deixadas para trás; é negado um contexto 
para nossas lutas contemporâneas com a violência racial e 
a negridade; e os contornos darwinianos mítico-biológicos 
de nossas práticas de leitura revelam que “o mais apto” é 
um modo de ser humano pelo qual ambicionamos. Essas 
curiosidades, como de costume, se articulam lado a lado 
com o discurso de que as coisas melhoraram com o passar 
do tempo. E se a plantação nos oferecesse outracoisa? E se 
suas práticas de segregação racial, exploração econômica e 
violência sexual mapeassem não um modo de vida normal, 
mas um modo de vida diferente? E se reconhecêssemos que a 
plantação é, como escreve Toni Morrison, um espaço de onde 
todo mundo foge, mas sobre o qual ninguém para de falar, e 
que é, portanto, um modelo persistente, embora feio, de nossa 
presente organização espacial que contém em si um novo 
futuro?35 Finalmente, se essa conceituação é possível, como as 
expressões contemporâneas de violência racial e espacial e as 
geografias das cidades negras podem ser apreendidas de uma 
nova maneira?
35  Toni Morrison, Amada (São Paulo: Companhia das Letras, 2018 [1987]), 
31.
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Em seu ensaio de 1971, 
Romance and History, Plot and 
Plantation, Wynter explica 
que não apenas o surgimento 
da plantação corresponde ao 
surgimento do romance ― 
que aponta para dois novos 
sistemas socioeconômicos de 
construção do mundo ―, mas que a própria plantação foi 
a ambientação contextual em torno da qual giraram muitos 
livros de ficção. Ela prossegue dizendo que a economia de 
mercado da plantação e as histórias que explicam o valor da 
economia da plantação se desdobraram em uma “história 
oficial e justificada da superestrutura” que escondeu ― mas 
não apagou ― o que ela chama de “histórias furtivas”36. 
Histórias furtivas podem ser encontradas nas tramas/roças37: 
a trama ou a narrativa central do romance da plantação 
que contextualiza sua superestrutura econômica enquanto 
desenvolve um espaço criativo para desafiar esse sistema; 
e os pedaços de terra que foram dados a algumas pessoas 
escravizadas para que pudessem cultivar roças para se 
alimentar e, assim, maximizar os lucros ― pedaços de terra 
que também se tornaram o foco da resistência ao sistema 
dominante da economia da plantação. Em ambos os casos, a 
trama/roça ilustra uma ordem social que se desenvolve no 
36  Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, 101.
37  [N.T.] O termo plot é usado por Wynter em seu texto tanto em 
referência à “sucessão de acontecimentos que constituem a ação, em uma 
produção literária” quanto a uma “porção de terra”. Em português não 
encontramos um termo que denote ambos os significados ao mesmo tempo, 
portanto, decidimos traduzir, dependendo do contexto, por trama ou roça; 
quando McKittrick usa a palavra referindo-se a ambos os significados, 
mantivemos a forma trama/roça.
Roça-e-Plantação
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contexto de um sistema desumanizador, pois espacializa o que 
seria considerado impossível sob a escravidão: o crescimento 
real de narrativas, alimentos e práticas culturais que 
materializam as profundas conexões entre negridade e a terra 
e promovem valores que desafiam a violência sistêmica. A 
roça e a plantação são, por um lado, geografias dicotomizadas 
e ambivalentes e, por outro, os locais de enraizamento da 
negridade nas Américas: 
Para as pessoas africanas do campo transplantadas 
para a roça[,] [...] o terreno permaneceu como terra. 
[... Elas] usavam o terreno para a alimentação [de si 
mesmas]; e para oferecer os primeiros frutos à terra; 
[o] funeral era o reencontro místico com a terra. [...] 
Em torno do cultivo do inhame, do alimento para a 
sobrevivência, [elas] criaram na roça uma cultura 
popular38.
Os insights de Wynter são úteis porque ela não 
retorna à plantação para nomear e, assim, dar centralidade 
à violência antinegra, nem nos fornece uma leitura do 
romance e da trama que celebra apressadamente a resistência 
subalterna. Ao mesmo tempo, suas provocações analíticas não 
são, a meu ver, fixadas a uma linearidade que depende de uma 
lógica de plantação que é informada por e inevitavelmente 
leva para a morte-negra sem fim. Em vez disso, ela produz 
o andaime teórico que repensa como nossas presentes lutas 
espaciais em torno da raça, segregação e violência podem 
ser reinventadas. Meu pensamento se ilumina lendo Plot and 
Plantation ao lado da discussão de Wynter sobre a “prática 
decifradora”:
38  Ibid., 99.
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Uma prática decifradora toma as desigualdades 
existentes em nossa ordem, tanto como a realização 
expressiva do código que rege vida e morte quanto 
como o índice das “mistificações retóricas” que devem 
estar em ação, a fim de determinar como essa ordem 
deve ser normativamente sentida e conhecida, se 
os comportamentos coletivos que dão origem aos 
processos de estruturação da ordem deverão ser 
induzidos dinamicamente e replicados de forma 
estável.
Uma prática decifradora propõe, portanto, que os 
modos pelos quais cada sujeito normal específico de 
uma cultura conhece e sente a sua realidade social [...] 
não devem, em nenhum caso, ser tomados como um 
índice do que a realidade empírica de nosso universo 
social é.39
Decifrar uma lógica da plantação, então, opera através 
de três temáticas: identifica a mecânica normalizadora da 
plantação, em que a subjugação negra e a exploração da terra 
andam de mãos dadas e conduzem à morte (presente) certa; 
considera nossa participação coletiva e compromisso retórico 
na reprodução desse sistema como se ele fosse natural, 
inevitável e um modo de vida normal; e imagina a roça & 
plantação como um novo terreno analítico que traz à tona 
um sistema de conhecimento, produzido fora dos domínios da 
normalidade, rejeitando assim as próprias regras do sistema 
que lucra com a violência racial, e nisso não vislumbra uma 
narrativa puramente oposicional, mas sim um futuro no qual 
uma perspectiva correlacional da espécie humana seja honrada.
39  Sylvia Wynter, “Rethinking ‘Aesthetics’: Notes towards Deciphering 
Practice”, in Mbye Cham, ed., Ex-iles: Essays on Caribbean Cinema 
(Trenton, NJ: Africa World, 1992), 271 (grifo no original).
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A implantação forçada de pessoas negras nas 
Américas está associada à consciência de como a terra e a 
alimentação podem sustentar visões de mundo alternativas 
e desafiar práticas de desumanização. Vale a pena repetir 
que essas visões de mundo alternativas não eram isoladas 
da plantação ou simplesmente produzidas em oposição a 
ela; em vez disso, estavam ligadas às geografias da economia 
da plantação e às brutalidades da escravidão. É por meio 
da violência da escravidão, então, que a plantação produz 
o enraizamento negro no espaço, precisamente porque a 
terra se torna a principal provisão por meio da qual os povos 
negros poderiam tanto sobreviver quanto serem forçados 
a abastecer a máquina da plantação. Analiticamente, o 
funcionamento simultâneo, em vez de dicotomizado, da 
roça e da plantação, entendidas juntamente com o trabalho 
criativo da trama da ficção, reformula a política de resistência. 
O ensaio de Wynter sugere que o futuro da plantação pode 
seguir dois caminhos ao mesmo tempo: primeiro, um no 
qual o sistema básico permanece intocado e nos resta sua 
defesa e justificação; e, um segundo, em que a consciência do 
funcionamento do sistema é engendrada em uma trama-vida 
(criativa e geográfica) e, ao mesmo tempo, desafia essa lógica 
de longa data40. Este último futuro que se oferece, sugiro, 
não é capaz de resistir à morte-negra inevitável porque 
pede que imaginemos a vida-negra como antecipatória. 
Nessa formulação, a figura do sujeito negro ― dentro das 
geografias escravistas e pós-escravistas, na vida e na morte ― 
é indígena, é plantada, no contexto de uma violência que não 
pode definir totalmente a agência humana futura.
40  Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, 102.
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Interessante pensar as resistências enquanto simultâneas e não necessariamente dicotômicas como tendemos a sistematizar e analisar.
31
Se acreditarmos que a cidade é a expressão comercial 
da plantação e de suas massas marginalizadas, e que a 
plantação é um modelo persistente, mas feio, de nossos 
problemas espaciais contemporâneos, o ensaio de Wynter 
solicita que procuremos históriassecretas que não estejam 
investidas em reencenar a falta de vida, o corpo negro violado 
e as práticas de resistência enraizadas na autenticidade. A 
cidade-plantação chama a atenção para uma narrativa da 
negridade implícita na modernidade e nativa das Américas ― 
e, portanto, para uma concepção da cidade imbuída de uma 
versão da história negra nem celebratória nem dissidente. 
Essa presença negra urbana ― vida negra ― revela um modo 
de ser humane que, embora muitas vezes expulso da história 
oficial, não é vitimado, despossuído e totalmente estranho 
à terra; em vez disso, ele redefine os termos de quem e do 
que somos vis-à-vis uma cosmogonia que, embora dolorosa, 
não busca habitar um local próximo do “mais apto”, mas em 
vez disso honra nossas versões mutuamente constitutivas 
e relacionais da humanidade. A plantação que antecipa a 
cidade, então, não necessariamente postula que as coisas 
ficaram melhores já que a violência racial assombra, mas 
sim que as lutas que enfrentamos, intelectualmente, são uma 
continuação das narrativas da plantação que dicotomizam 
geografias em nós/elus e escondem histórias secretas que 
desfazem as bases teleológicas e biocêntricas da espacialidade.
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Esse trecho me instiga a pensar na minha temática de pesquisa, ou seja, essa busca por histórias secretas, pelo não-dito...
Na minha tese, acredito que cabe pensar a plantation enquanto um sistema racia e generificado (???)
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Então, que tipo de futuro 
a plantação pode nos dar? 
Se as geografias negras 
são conceituadas como 
mutuamente constitutivas 
de processos geográficos 
mais amplos, como o 
enquadramento de Wynter 
nos permite apreender práticas historicamente presentes de 
exclusão racial sem condenar as pessoas mais marginalizadas 
a espaços de alteridade absoluta? Concluo recorrendo a 
Inventário [Inventory], poema longo de Dionne Brand, 
lendo-o como uma obra criativa que intervém na teleologia 
do senso comum acerca da violência racial. Ao estender 
a política decolonial e o pensamento decolonial ― o 
esforço assossiativo para compreender a descolonização 
e a modernidade como projetos inacabados ―, identifico 
Inventário como um texto de poética decolonial: tal poética 
se detém nas violências pós-escravistas a fim de fornecer o 
contexto através do qual os futuros negros são imagináveis41. 
O trabalho decolonial de Inventário não reside, portanto, 
em arquivar e nomear a violência, mas nas possibilidades 
analíticas que surgem da leitura dos dados sobre vítimas 
como amalgamados ao criativo. Com minha discussão 
anterior em mente, considero Inventário um trabalho criativo 
que é produzido fora do reino da normalidade, que rejeita as 
regras do sistema que lucra com a violência racial e que prevê 
um futuro no qual uma perspectiva correlacional da espécie 
41  Nelson Maldonado-Torres, “Thinking through the Decolonial Turn: 
Post-continental Interventions in Theory, Philosophy, and Critique — 
An Introduction”, Transmodernity: Journal of Peripheral Cultural 
Production of the Luso-Hispanic World 1, no. 2 (2011): 2.
Futuros da 
Plantação
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Comentário do texto
A teleologia é o estudo filosófico dos fins, isto é, do propósito, objetivo ou finalidade. Pode-se dizer que seria um determinismo.
33
humana é honrada. Quando o texto se volta para a pessoa que 
o lê é que as possibilidades de correlação emergem ― dando à 
plantação um futuro analítico diferente.
Inventário tem sete partes. A primeira parte começa: 
“Não acreditávamos em nada”42. Daí, Brand leva quem a lê a 
vários locais, desde as esperançosas decepções do movimento 
pelos direitos civis ao luto da cantora Nina Simone e da 
ativista Marlene Green. O poema passa do espaço urbano 
negro canadense criminalizado, os bairros de Jane e Finch em 
Toronto, para viajantes que tiveram suas impressões digitais 
recollhidas. Aqui, Brand também escreve as ruas do Cairo, 
Bagdá e Darfur. Através dessas ruas e narrativas, podemos 
rastrear o blues dos bairros empobrecidos de Stevie Wonder, 
as casas de Miami fincadas à terra, o Stellar Regions de John 
Coltrane, os incansáveis shopping centers e as histórias de 
democracia da ficção científica, os abrigos de tempestade 
de Nova Orleans e as bombas. O furacão Katrina, o 11 de 
setembro, os anos 1960 e a invasão do Iraque fazem aparições 
difíceis por todo esse poema longo. Na parte 3, a pessoa 
que narra senta-se ao lado da televisão, chorando, contando 
bombas e mortes por bombas: uma bomba incendiária em 
Nashville, uma bomba em um estádio de futebol, vinte e três 
mortos por um ataque suicida à bomba, oito mortos por um 
ataque suicida à bomba, dois homens e uma criança por um 
carro-bomba, sapatos cheios de bomba: 
42  Dionne Brand, Inventory (Toronto: McClelland and Stewart, 2006), 
3; doravante citada no texto. [Dionne Brand, “Excerto de ‘Inventory’”, 
Tradução de Ana Luísa Amaral, eLyra: Revista Da Rede Internacional 
Lyracompoetics, no. 16 (2020) Disponível em https://elyra.org/index.php/
elyra/article/view/356]
https://elyra.org/index.php/elyra/article/view/356
https://elyra.org/index.php/elyra/article/view/356
34
oitocentos todo mês 
durante o último ano, e cento 
e vinte em quatro dias brutais 
coisas, coisas se somam. (52)
Inventário é um texto difícil ― é difícil porque 
documenta, em um sentido empiricamente poético, nosso 
mundo insuportável. É difícil porque é uma lista inteligível e 
exaustiva de desespero:
Ela tem medo de matar alguém hoje, 
lavou roupa, comeu macarrão, 
e uma torta de limão, 
comprou um livro, dirigiu por uma rua. (76)
O poema longo de Brand pode ser facilmente 
identificado como uma tabulação de atos urbicidas:
Considere então a obliteração de quatro restaurantes, 
o desaparecimento de sessenta táxis, cada um com um 
passageiro 
de quatro salas de aula superlotadas, uma 
arquibancada de um estádio 
de futebol, a repentina falta de, digamos, esteticistas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
sumidos do mapa, duas ou três salas de espera 
do hospital, os coletores de lixo noturnos se foram. 
(78)
Na verdade, o poema longo convoca a pessoa que o 
lê para os atos violentos, o desespero e a desesperança que 
tornam possível o inventário da poeta ― pode-se coletar e 
calcular matematicamente a morte:
ainda em junho, 
no hiato, oito mortos por bomba suicida na 
estação de ônibus, pelo menos onze mortos em Shula em 
35
restaurantes, pelo menos quinze por carro-bomba. 
(25)
Se Inventário pode ser lido como uma tabulação 
sistêmica e uma enumeração da violência racial e da 
morte, também pode ser lido como uma fala pela vida. 
Mais especificamente, Inventário documenta e desfaz o 
progresso linear em direção à morte sem fim, mencionado 
acima. Talvez os inventários poéticos de Brand possam 
revelar o que Kenneth Hewitt chama de mortalidade do 
lugar. Em seu trabalho sobre o bombardeio de área, Hewitt 
identifica a conexão da vida humana biológica e do lugar: 
“Os lugares compartilham os problemas de sobrevivência e 
mortalidade em nossa existência biológica. Assim como a 
vida biológica pode ser chamada um conjunto de atividades 
feitas para resistir à morte, também nosso lugar e o mundo 
são, pelo menos parcialmente, meios de resistir à dissolução 
psicossocial e cultural”43.
Uma forma de expor a mortalidade do lugar é por 
meio de textos expressivos como o Inventário de Brand. Essas 
narrativas, textos que de outra forma seriam considerados 
não geográficos e politicamente desvinculados do trabalho 
empírico do planejamento da cidade, testemunham a 
destruição do lugar ao invocar o que está em jogo na luta 
humana. A leitura-trabalho que Inventário solicita que 
façamos não pode simplesmente ser o do consumo da 
enumeração transparente, mas sim de empreender esforços 
humanos cooperativos e direcionar a quem lê a prática 
43  Kenneth Hewitt, “Place Annihilation: Area Bombing and the Fate of 
Urban Places”, Annals of the Association of American Geographers73, no. 2 (1983): 258.
36
de explicar as brutalidades de nosso mundo. A leitura do 
texto ― “nossa dor vai secar lagos” (61) ― exige que quem 
o lê registre os dados se perguntando por que a poeta 
reconhece, torna claros e versifica esses dados. Voltar-
se para a poética decolonial produzida por comunidades 
diaspóricas que sobreviveram ao deslocamento violento 
e à supremacia branca nos permite identificar aspectos 
invisíveis e não cartografados da vida na cidade. Ao fazê-lo, 
retrata-se a morte na cidade não como um fim biológico e 
um fato biológico, mas como um caminho para honrar a vida 
humana e o que W.E.B. Du Bois chamou de nossas canções 
de lamento ― “a[s] expressão[s] da experiência humana” 
que foram negligenciadas, incompreendidas, desprezadas44. 
O poema longo de Brand sugere que as perspectivas negras 
sobre a cidade revelam que espaços de alteridade absoluta, 
tantas vezes ocupados por pessoas racial e economicamente 
condenadas, são geografias de sobrevivência, resistência, 
criatividade e luta contra a morte. Em outras palavras, 
podemos ler o poema não como um texto que segue uma 
progressão linear em direção à morte, mas sim como a 
consequência criativa da roça e da plantação ― uma 
concepção da cidade imbuída de uma narrativa da história 
negra que não é nem celebratória nem dissidente, mas 
enraizada em uma articulação da vida na cidade que aceita 
que as relações de violência e dominação tornaram possível 
nossa existência e presença nas Américas, pois reformula esse 
conhecimento para vislumbrar um futuro alternativo.
44  W. E. B. Du Bois, As Almas do Povo Negro (1903; reimpr., São Paulo: 
Veneta, 2021), 271.
garci
Realce
garci
Realce
37
Inventário exige um engajamento ético. O trabalho de 
Brand frequentemente recusa um compromisso com nossa 
atual ordem das coisas; ela escreve a geografia e as suas 
próprias afiliações políticas ao espaço como afirmações de 
humanidade ao invés de estarem coladas a um dos lados 
do mundo dos-de-dentro/dos-de-fora [insider/outsider]45. 
Esse posicionamento da poeta é importante, pois se recusa 
a venerar os confortos do paradigma nós/elus, uma vez 
que a própria Brand escreve cidades e outros espaços de 
uma forma nova frente a sua história negra diaspórica. 
Essa é, pelo menos para mim, uma política radical, na 
medida em que pede não apenas que tracemos a miséria do 
futuro, mas que testemunhemos nosso presente difícil para 
pensar a plantação e a cidade de maneira diferente. Leia 
sem uma certa afiliação a uma nação, leia sem os ganhos 
de testemunhar mortes enumeradas, leia como poética 
decolonial que lembra a violência antinegra e associa isso ao 
Projeto de Contagem de Corpos do Iraque, notícias e pássaros 
voando de árvore em árvore, as mortes na cidade compiladas 
em Inventário requerem ser lidas em um registro diferente.
As listas e catálogos, as pessoas mortas e moribundas, 
podem ser lidas como uma forma de identificar que atos 
de violência genocida e ecocida, voltando a Wynter, “em 
nenhum caso deveriam ser tomados como um índice do 
que a realidade empírica do nosso universo social é”46. A 
45  Leslie Sanders, “What the Poet Does for Us” (keynote lecture at “No 
Language Is Neutral: A Conference on Dionne Brand”, Toronto, Ontario, 
14 October 2006); Rinaldo Walcott, Black Like Who: Writing Black 
Canada, 2ª ed. (Toronto: Insomniac, 2003), 43–55; McKittrick, Demonic 
Grounds.
46  Wynter, “Rethinking ‘Aesthetics’”, 271 (grifo no original).
38
estética que Brand nos fornece em Inventário pode, portanto, 
ser imaginada como um caminho para perceber como a 
normalização da contagem de corpos e mortes na cidade 
de fato revela as formas como nossos sistemas atuais de 
planejamento urbano e seus modos de vida correspondentes 
― as cidades normalmente boas e as cidades normalmente 
más ― nos atam, efetivamente, a um processo de 
superioridade e inferioridade geográficas de um modo moral, 
onde a mortalidade de um lugar é considerada desvantajosa. 
Em outras palavras, a poética de Brand revela o trabalho 
normalizador que a morte humana e a morte da cidade podem 
fazer quando são descritas como um índice de como a vida 
humana é constituída. Segue-se, então, que o poema longo 
de Brand pode ser lido como um inventário que questiona os 
fundamentos pelos quais o urbicídio se torna tanto possível 
quanto parte do senso comum. Lida dessa forma, o que a 
poética decolonial de Inventário exige é que nós, que o lemos, 
sejamos responsabilizades pelos códigos morais e mortais 
que regulam, lucram e conceituam espaços de alteridade 
absoluta, uma vez que são habitados por não sobreviventes. A 
contagem de corpos que enquadra grande parte de Inventário 
― 800 a cada mês no último ano, 120 em quatro dias ― é, 
portanto, também sobre a sobrevivência e a vida humana, 
ou um novo espaço matemático, onde o cálculo das ações 
humanas e os esforços humanos cooperativos encontram 
poesia para reinventar a culminação inequívoca e sem saída 
que é tantas vezes associada às análises da violência (21-52). 
Trabalhar com Inventário requer honrar e viver a vida na 
cidade de maneira diferente. O difícil poema exige imaginar 
cidades e lutas globais, passados e futuros da plantação, 
como baseados no todo-da-vida-humana ― mesmo na morte 
39
― e no trabalho da sobrevivência. Aqui, vislumbramos uma 
vida no limite, uma geografia que exige que se permaneça 
vivo, ainda que ameace sua fisiologia, uma política espacial 
de viver apenas o suficiente, apenas o suficiente para a 
cidade: esta é uma localização política que promove práticas 
geográficas mais humanamente viáveis e alteráveis.
40
Simone Browne, Mark Campbell, Rinaldo Walcott, 
Sylvia Wynter, David Scott e as pessoas anônimas que 
foram pareceristas, cada uma delas, de maneiras diferentes, 
tornaram esse ensaio muito mais forte. Todos os defeitos são 
meus.
 Agradecimentos
41
Fontes utilizadas
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