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1 2 Futuros da Plantação de Katherine McKittrick é publicado sob Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial- SemDerivações 4.0 Internacional. Imagem da capa: detalhe da obra A Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical, de Rosana Paulino (2018). Coordenação Editorial: Fecundações Cruzadas Tradução: Bru Pereira Janaina Tatim Lucas Maciel Contato: fecundacoes.cruzadas@gmail.com 2021 fecunda.org Para citar: McKittrick, Katherine. Futuros da Plantação. Trad. Bru Pereira, Lucas Maciel & Janaína Tatim. América Latina: Fecundações Cruzadas, 2021. 3 Nota de tradução sobre o termo Plantation/Plantação A palavra inglesa plantation, quando em textos em português, ora é traduzida por plantação ora mantida no original. Nesta tradução, optamos por utilizar o termo plantação, que aparece no texto com uma fonte distinta. Essa também foi a opção utilizada por Jess Oliveira, tradutora de Memórias da Plantação de Grada Kilomba e por Sebastião Nascimento, tradutor de Brutalismo de Achille Mbembe. Ademais, o termo plantação foi utilizado por Jota Mombaça no ensaio A Plantação Cognitiva. Ao utilizá-lo, nosso intuito é incidir na ampliação do campo semântico dessa palavra no português, buscando associá-la também aos modos de produção escravistas. 4 Em 1991, a Administração de Serviços Gerais dos Estados Unidos começou a desenterrar o que hoje é conhecido como o Cemitério Africano de Nova York, no número 290 da rua Broadway, na baixa Manhattan. Entre dez mil e vinte mil pessoas negras escravizadas foram enterradas no cemitério, usado entre o final dos anos de 1600 e 1796, antes que o terreno fosse tapado e construído em 1827, ao lado de outros projetos de expansão urbana. Desde o desenterro em 1991, o manuseio e a lembrança envolvendo os corpos encontrados se desdobraram em uma série de contestações: conforme a comunidade negra reivindicou os restos mortais e o terreno em que estavam enterrados para ampliar a consciência política a respeito da escravidão, uma pressão imensa foi exercida sobre a comunidade científica para preservar os restos mortais e recolher dados em um espaço de tempo limitado (cerca de um ano). Inicialmente, pouques estudioses negres foram convidades a contribuir para a escavação e análise; na verdade, as condições em que os corpos foram desenterrados e preservados foram consideradas desrespeitosas e insensíveis, até que Michael Blakey, um antropólogo físico afro-americano, levou o projeto para a Howard University em 19941. Depois de analisados na Howard, os restos mortais foram devolvidos à baixa Manhattan, reenterrados em um local oficial do memorial e comemorados com a celebração do “African American Homecoming”. Claramente, as pessoas escravizadas mortas incitam, no senso comum, uma mistura de entusiasmo científico e luto comunitário. Aqui, a tensão 1 Warren R. Perry, “Archaeology as Community Service: The African Burial Ground Project in New York City”, North American Dialogue: Newsletter of the Society for the Anthropology of North America 2, no. 1 (1997): 1–5. garci Realce Lembrei do artigo do evento do Observacampos sobre arqueologia decolonial (ou algo assim). 5 entre memorializar eticamente essa história de morte e aprender com ela é justificada por análises científicas que buscam encontrar, dentro e em torno dos corpos mortos, fatos autênticos que documentem a desnutrição, que evidenciem práticas religiosas e funerárias, que confirmem linhagens africanas por DNA, que mostrem os perfis de desenvolvimento muscular (e, portanto, conexões corporais com o trabalho escravizado) e evidenciem lesões e a violência antinegra, entre outras coisas2. O memorial, inaugurado em 2005, é uma complexa lembrança da história negra, finalizado com um “portal de não retorno”; é também, de acordo com o site do National Park Service, destinado a educar, preservar, espiritualizar, mapear e ritualizar nossas memórias da diáspora negra em um contexto urbano e “retornar ao passado para construir o futuro”3. 2 Ver Jerome S. Handler, “Determining African Birth from Skeletal Remains: A Note on Tooth Mutilation”, Historical Archaeology 28, no. 3 (1994): 113–19; and Michael L. Blakey, “The New York African Burial Ground Project: An Examination of Enslaved Lives, a Construction of Ancestral Ties”, Transforming Anthropology 7, no. 1 (1998): 53–58. 3 “The African Burial Ground: Return to the Past to Build the Future”, www.africanburialground.gov/ABG_Memorial.htm (accessed 6 September 2010). http://www.africanburialground.gov/ABG_Memorial.htm 6 Começo com o Cemitério Africano de Nova York para vislumbrar o modo como ele é uma afirmação da vida na cidade, que abre uma continuidade espacial entre os vivos e os mortos, entre ciência e narrativa, e entre passado e presente. Embora muito possa ser dito sobre as reclamações, divergências, tristezas, esperanças e regenerações que se seguiram ao desenterro de 1991, o local também sublinha as formas em que os corpos mortos e esquecidos, e agora lembrados, de homens, mulheres e crianças negres ― ainda enterrados, ainda biologicamente apodrecendo e tocando no concreto, ainda ali ― são necessários para pensar sobre a cidade como um lugar onde novas formas de vida humana se tornam possíveis4. Na verdade, eu leio esse local como uma antecipação do que Stevie Wonder descreve como “viver apenas o suficiente/ apenas o suficiente para a cidade”: é um local de morte negra que contém em si uma paisagem sonora narrativa que também promete uma luta honesta pela vida5. As geografias da escravidão, pós-escravidão e 4 Sobre desacordos acerca do Cemitério Africano, ver Nicholas Confessore, “Design Is Picked for African Burial Ground, and the Heckling Begins”, New York Times, 30 April 2005; e Kendall R. Phillips, “A Rhetoric of Controversy”, Western Journal of Communication 63, no. 4 (1999): 488–510. 5 Stevie Wonder, “Living for the City,” Innervisions (Detroit: Tamla Records and Motown Records, 1973). Este ensaio também pode ser lido junto com Elvis Presley cantando, “Now come along with me / We’ll do the plantação rock / It’s easy as can be / ... Now do the plantation rock” [“Agora vem junto comigo / Nós tocaremos o rock da plantação / Mais fácil impossível / ... Agora faz o rock da plantação”]. Elvis Presley, “Plantation Rock,” Elvis: A Legendary Performer, vol. 4 (New York: RCA, 1983). Tempo da Plantação 7 da expropriação negra permitem perceber que o direito de ser humano carrega consigo uma história de encontros raciais e práticas inovadoras da diáspora negra que, de fato, espacializam atos de sobrevivência. Se, como se reivindica, o cemitério “proporcionou um raro ambiente no qual as pessoas escravizadas podiam afirmar sua humanidade e respeitar sua própria cultura” em um contexto de violência antinegra, o cemitério também revela que, nas Américas, é impossível desvincular o ambiente construído, o urbano, e a negridade6. Com isso, a contemporaneidade desses restos mortais, o cemitério da materialidade, o raro cenário de homenagem às pessoas mortas sob cativeiro e a memorialização intencional da negridade se impelem contra a ciência da tafonomia (o estudo da decomposição), da necrologia (o estudo da morte de um organismo) e da diagênese (as mudanças que ocorrem após o sepultamento final); isso traz os restos físicos, químicos e biológicos da negridade para a produção do espaço e da paisagem urbana, e para o solo. O cemitério nos conta que o legado da escravidão e o trabalho dos não livres tanto fazem parte quanto formam o ambiente que habitamos atualmente. Ele também aponta para o pedaço de terra onde pessoas escravizadas estão enterradas e fornece uma abertura para o que chamo aqui de “futuros da plantação”: uma conceituação de espaço-tempo que segue o rastro da plantação em direção à prisão e aos setores empobrecidos e destruídos da cidade e, consequentemente, coloca sob um foco mordaz as maneiras pelas quais aplantação é um locus contínuo de violência antinegra e morte, que não pode mais sustentar analiticamente essa violência. Para aquelus de nós interessades em lidar com raça, com espaço e com a 6 Blakey, “New York African Burial Ground Project”, 53. garci Realce Qual a diferença entre negritude e negridade? garci Realce garci Realce 8 morte prematura e evitável, o futuro da plantação exige um pensamento decolonial baseado na vida humana. garci Realce 9 Em seus escritos sobre as populações e a economia da diáspora negra, George Beckford argumentou persuasivamente que o sistema da plantação, durante e após a escravidão transatlântica, permeou a vida negra ao contribuir para o funcionamento entrelaçado da expropriação e da resistência7. A pesquisa de Beckford, em particular aquela publicada ao longo da década de 1970, trouxe à tona os modos pelos quais as plantações estão ligadas a uma economia global mais ampla, que prospera através do “subdesenvolvimento persistente” e da “pobreza persistente” da vida negra8. Ao elaborar sobre a lógica socioeconômica das plantocracias, ele apresentou o que ficou conhecida como a “tese da plantação” ou a “tese da economia da plantação”, que, em parte, sugere que as plantações da escravidão transatlântica sustentaram uma economia global; que essa história da plantação não apenas gerou a riqueza metropolitana do Atlântico Norte e exacerbou a desapropriação entre pessoas não livres e servas, mas também instituiu uma economia racializada incongruente, que perdurou por muito tempo depois dos movimentos de emancipação e independência nas Américas; e que a 7 George L. Beckford, The George Beckford Papers, ed. Kari Levitt (Mona: Canoe Press, University of the West Indies, 2000); George Beckford, Persistent Poverty: Underdevelopment in Plantation Economies of the Third World (1972; reimpr., Mona: Canoe Press University of West Indies, 1999). 8 George L. Beckford, “Institutional Foundations and Resource Underdevelopment in the Caribbean”, in The George Beckford Papers, 242; Beckford, Persistent Poverty. Contexto da Plantação garci Realce Lembro da Janine Jones quando fala que o desenvolvimento e o progresso só podem - necessariamente - existir mediante a destruição de ambientes e pessoas. garci Realce 10 prolongada lógica colonial da plantação veio a definir muitos aspectos da vida pós-escravidão9. A pesquisa de Beckford a respeito da plantação lança luz sobre as maneiras como as dolorosas histórias raciais contêm em si a possibilidade de organizar nosso futuro coletivo. A tese da plantação revela o funcionamento entrelaçado da modernidade e da negridade, que culminam em geografias raciais desiguais e duradouras, ao mesmo tempo em que centraliza que a ideia de plantação é migratória. Assim, na agricultura, nas práticas financeiras e na mineração, no comércio e no turismo, e em outros espaços coloniais e pós-coloniais ― a prisão, a cidade, o resort ― uma lógica de plantação característica (mas não idêntica) da escravidão emerge no presente tanto ideologica quanto materialmente10. Com isso, modos diferenciais de sobrevivência emergem ― crioulização, o blues, marronagem, revolução e muito mais ― revelando que a plantação, em contextos escravistas e pós-escravistas, deve ser entendida juntamente com negociações complexas de tempo, espaço e terror11. 9 Beckford, Persistent Poverty; Lloyd Best and Kari Levitt, Essays on the Theory of Plantation Economy: A Historical and Institutional Approach to Caribbean Economic Development (Mona: University of the West Indies Press, 2009). 10 Beckford, Persistent Poverty; Ian Gregory Strachan, Paradise and Plantation: Tourism and Culture in the Anglophone Caribbean (Charlottesville: University of Virginia Press, 2002); Robert Staples, The Urban plantation: Racism and Colonialism in the Post Civil Rights Era (Oakland, CA: Black Scholar, 1987); Billy Hawkins, The New Plantation: Black Athletes, College Sports, and Predominantly White NCAA Institutions (New York: Palgrave, 2010); Angela Davis, Estarão as Prisões Obsoletas? (5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018[2003]), 23-41. 11 Os temas da crioulização, marronagem, revolução e blues ― como resultados das plantocracias ― estão bem documentados. Os seguintes textos foram úteis para o meu pensamento: Clyde Woods, Development garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce 11 É a plantação que ancora uma série de debates sobre o funcionamento do racismo antinegro e a organização crioulizada e cheia de nós da vida diaspórica no novo mundo ― nós que emergem na vida vegetal e culinária, nas políticas e práticas representativas, em vínculos socioeconômicos transnacionais, no espaço-tempo do Atlântico negro e além12. The Philadelphia Negro, de W. E. B. Du Bois, aborda Arrested: The Blues and Plantation Power in the Mississippi Delta (New York: Verso, 1998); Edward Kamau Brathwaite, The Development of Creole Society, 1770–1820 (1971; reimpr., Kingston: Ian Randle Publishers, 2008); Edouard Glissant, Caribbean Discourse: Selected Essays, trans. J. Michael Dash (Charlottesville: University Press of Virginia, 1989); C. L. R. James, Os Jacobinos Negros (1938; reimpr., São Paulo: Boitempo, 2000); e Michaeline Crichlow, Globalization and the Post-creole Imagination: Notes on Fleeing the Plantation (Durham, NC: Duke University Press, 2009). Curiosamente, Crichlow procura fugir conceitualmente da plantação. Ela argumenta convincentemente que várias teorias de “crioulização” muitas vezes se originam e, portanto, permanecem vinculadas ao espaço da plantação escravista, consequentemente paralisando o funcionamento dinâmico e globalmente presente da crioulização pós- escravidão. Ao mesmo tempo, ela também sugere que a plantação limita a forma como conceitualizamos as resistências ― precisamente porque ofusca a particularidade das lutas locais. No entanto, Crichlow na verdade não consegue fugir da plantação; nesse trabalho, ela permanece em dívida com a persistente promessa geográfica da plantação: uma promessa em que a plantação contém em si a possibilidade de re-historicizar a crioulização e trazer à tona as raízes/rotas globais de tais geografias negras no presente. Assim, este trabalho lembra cuidadosamente que a política de fuga é uma rejeição com sombras de retorno ao lar. 12 Paul Gilroy, O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência (2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2012[1993]); Judith A. Carney, In the Shadow of Slavery: Africa’s Botantical Legacy in the Atlantic World (Berkeley: University of California Press, 2009); Ntozake Shange, If I Can Cook, You Know God Can (Boston: Beacon, 1998); Stuart Hall, “Creolization, Diaspora, and Hybridity”, in Okwui Enwezor et al., eds., Creolite and Creolization (Germany: Hatje Cantz, 2003), 185–98; Rinaldo Walcott, “Pedagogy and Trauma: The Middle Passage and the Problem of Creolization”, in Roger I. Simon, Sharon Rosenberg, and Claudia Eppert, eds., Between Hope and Despair: Pedagogy and the Remembrance of Historical Trauma (Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 2000), 135–41. garci Realce garci Realce garci Realce 12 os “traços” das plantações em seu estudo das experiências e lutas de pessoas negras no espaço urbano13. A plantação também introduz notavelmente o ensaio Necropolítica de Achille Mbembe e, assim, fornece a base para sua discussão mais ampla sobre a mortalidade e violência da modernidade tardia (urbicídio, bombas suicidas, drones)14. Nicholas Mirzoeff, igualmente, começa seu projeto sobre colonialidade e visualidade refletindo cuidadosamente sobre a prática de “supervisionar”, simultaneamente, a negridade e as terras da plantação ― uma história que eventualmente leva à sua discussão sobre a gestão necropolítica tecnologizada e militarizada de corpos caóticos15. Dois esquemas da plantação surgem: as maneiras como a plantação revela uma lógica que emerge no presente e se dobrapara se repetir de novo ao longo das vidas negras e os modos como a plantação é um conceito significativo que, pelo menos em parte, lança teorias pós-escravistas/contemporâneas da violência e urbicídio. A plantação, portanto, fornece o contexto para apresentar as seguintes questões interligadas: Quais são algumas das características notáveis das geografias da plantação e o que está em jogo em conectar um passado de plantação ao presente? O que decorre ao se posicionar a plantação como um limiar para refletir cuidadosamente a respeito de práticas de violência racial, duradouras e contemporâneas? Se a plantação, pelo menos em parte, conduziu como e onde vivemos agora, e assim contribuiu 13 W. E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro: A Social Study (1899; reimpr., New York: Schocken, 1969). 14 Achille Mbembe, Necropolítica (São Paulo: n-1 edições, 2011[2003]). 15 Nicholas Mirzoeff, The Right to Look: A Counterhistory of Visuality (Durham, NC: Duke University Press, 2011). garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce Duas maneiras pelas quais podemos compreender e abordar a plantation. garci Realce garci Realce 13 para os contornos raciais de geografias desiguais, como poderíamos dar a ela um futuro diferente? Nesse ensaio, reflito sobre o trabalho conceitual das geografias negras e da plantação, observando que esta última é uma geografia histórica significativa, que forneceu uma estrutura teórica para pensar sobre as formas como a vida negra e as histórias negras se vinculam às conceituações pós-escravas da violência geográfica. Parte desse trabalho aborda as maneiras pelas quais a plantação regulamentou e normalizou a violência e instigou a resistência, ao mesmo tempo em que reconhece que ela pode ― pelo menos conceitualmente ― levar a um futuro totalizante de brutalidade. Na verdade, porque as desigualdades produzidas relativamente às plantações da escravidão transatlântica são antigas e a plantação forneceu um esquema teórico para pensar sobre uma série de lutas difíceis, também vale a pena perguntar se essas desigualdades devem antecipar negativamente como conceituamos nossos futuros coletivos. A discussão não cita a plantação como um caminho conceitual que narra exclusivamente um esquema de opressão/resistência, nem situa a plantação como a âncora da violência antinegra e de futuros sombrios. Em vez disso, essas abordagens servem como sombra para o meu traçado do funcionamento geográfico da expropriação, o qual pretende contextualizar a plantação como um local que também pode abrir uma discussão sobre a vida negra no contexto das cidades e futuros globais contemporâneos. É importante notar aqui que eu mudo da plantação para a cidade com intenções menos rigorosas e com os movimentos da plantação- urbicídio de Mbembe em mente. Embora o espaço-tempo seja digno de nota, também vale a pena abordar as maneiras como garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce 14 a plantação ― precisamente porque alojou e historicizou violências raciais que exigiam resistências inovadoras ― se destaca como um palimpsesto conceitual significativo para as paisagens urbanas contemporâneas que continuam a abrigar as vidas das pessoas mais marginalizadas16. A cidade contemporânea, conforme apresentada aqui, não deve ser entendida ou teorizada como o ponto final singular para a teoria da plantação; em vez disso, espero que meu pensamento fomente outras considerações sobre as geografias negras e raciais ― rurais, suburbanas, confinadas atrás de muros, além das Américas, também ― que possam se beneficiar do tipo de imaginação de futuros da plantação que proponho. Trabalhando com os escritos de Sylvia Wynter e Dionne Brand, e fundindo o teórico ao criativo, essa discussão imagina as geografias negras como os locais através dos quais forças particulares do império (opressão/resistência, imortalidade negra, violência racial, urbanicídio) trazem à tona uma poética que vislumbra um futuro decolonial. Nossos futuros modos de ser, se atados à plantação, ao império e à violência, podem não necessariamente seguir nossa necropolítica moderna-tardia do presente em direção à miséria futura, na qual a liberdade é despojada de vida e o terror racial é o ato para realizar essa liberdade17. Em vez disso, nossos futuros modos de ser podem depender de uma poética decolonial que lê a expropriação negra como uma “interrogação” ― pontuando as violências pós-escravidão e aquelas postas diante de nosso modo de ser atual ―, 16 Mike Davis, Planet of Slums (New York: Verso, 2006). 17 Mbembe, Necropolítica. garci Realce 15 fornecendo assim uma crítica do próprio processo histórico que trouxe o funcionamento maniqueísta da plantação como o “ápice das realizações”18. A leitura da plantação e seu futuro como apresentada aqui ― subscrito pela vida, pelo poético, o teórico e o criativo, e moldado por uma história de violência ― se guia pela esperança de que essa discussão irá, de uma pequena forma, permitir um novo espaço discursivo19. Na verdade, é precisamente porque a plantação tem “uma capacidade inerente para manter a si mesma” que faríamos bem em reimaginar seu futuro20. 18 Sylvia Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, Savacou, no. 5 (June 1971): 97. 19 Scott, David. Refashioning Futures: Criticism After Postcoloniality.Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999, p. 96. 20 George Beckford, “Agriculture Organization and Planning in Cuba”, in The George Beckford Papers, 46. garci Realce garci Realce 16 Encontros coloniais passados criaram geografias materiais e imaginativas que reificaram as segregações globais por meio da “maldição” dos espaços há muito ocupados por outres humanes do Homem21. Aqui, a maldição pode ser entendida de duas maneiras interligadas: como um cercamento e como uma condenação da diferença racial-sexual. O inabitável ― em particular, as massas de terra ocupadas por aquelas pessoas que, nos séculos XV e XVI, eram inimagináveis, tanto espacial quanto corporalmente ― é a (não)localização geográfica de onde surgiu a plantação. Da ilha “inabitável” de Caliban em A Tempestade de Shakespeare, às regiões da África identificadas como quentes demais para serem habitadas, as massas de terra consideradas inabitáveis apresentaram uma situação geográfica problemática para 21 Aqui, aponto para a terminologia do Homem de Sylvia Wynter, que é uma conceitualização dupla explorada em “Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, after Man, Its Overrepresentation—An Argument”, CR: The New Centennial Review 3, no. 3 (2003): 257–337. Esse ensaio chama a atenção para as formas como as expressões socioespaciais da modernidade ocidental ― encontros coloniais durante e após os séculos XV e XVI; a revolução copernicana e a ascensão da astronomia, física e geografia física; a secularização do Homem e sus outres humanes dentro de um ambiente judaico-cristão; expansão territorial e escravidão transatlântica; industrialização; a ascensão das ciências biológicas ― acumularam e formaram códigos governantes sobrepostos (Homem1 e Homem2) como sobrerrepresentações da humanidade. Esses códigos de governo produziram povos racializados/não europeus/não brancos/Novo Mundo/indígenas/africanes como, primeiro, cristãos falsos decaídos (nos séculos XV e XVI) e, mais tarde, como biologicamente defeituosos e condenados (mais marcadamente no século XVIII e séculos XIX). Inabitável 17 o “descobrimento”22. Como sabemos, as pessoas ocupantes do inabitável, indígenas da África e das Américas, foram consideradas bárbaras e irracionais, enquanto suas terras foram transformadas em postos e assentamentos coloniais lucrativos. Em vez de repassar em detalhes essa história difícil mas familiar, uma linha significativa para se pensar é como “as terras de ninguém” passaram a ser vinculadas a uma linguagem geográfica de condenação racial.As Américas e a África, por exemplo, foram marcadas como geograficamente inferiores, com base em um esquema temporal europeu de um “Velho” Mundo que considerava a matéria biosférica dessas regiões “mais nova” do que o solo, a terra, o ar e a água da Europa. Essa presunção geográfica, em parte, contribuiu para a “velha” visão de mundo europeia de que os nativos das “novas” massas de terra na África e nas Américas também têm visões de mundo nascentes e, portanto, pouco sofisticadas e subdesenvolvidas23. Assim, o que estava geograficamente em jogo quando o centro europeu se estendeu para fora, em direção a um espaço que estava ao mesmo tempo “em lugar nenhum” e habitado por “ninguém”, mas inesperadamente “lá” e “habitado”, são as raças e as geografias raciais. Na verdade, uma “nova construção 22 Embora a ambientação da peça seja o “ainda atormentado Bermoothes”, o cenário (seguindo a lista de Dramatis Personae) em A tempestade de Shakespeare ― a terra-vida indígena de Caliban e sua mãe Sycorax ― é “uma ilha inabitada”. William Shakespeare, The Tempest (1623; reimpr., New York: Macmillan, 2008), 21, 32. Ver também Matthew Sparke, “Everywhere but Always Somewhere: Critical Geographies of the Global South”, Global South 1, no. 1 (2007): 117–26; Nicolás Wey Gómez, The Tropics of Empire: Why Columbus Sailed South to the Indies (Cambridge, MA: MIT Press, 2008). 23 Anthony Pagden, European Encounters with the New World: From Renaissance to Romanticism (New Haven, CT: Yale University Press, 1994), 5–8, 116–18. garci Realce 18 simbólica de raça”, que coincidiu com os arranjos coloniais pós-1492, organizou grande parte do mundo de acordo com uma lógica racial24. Reservas indígenas, plantações e segregações formais e informais são apenas algumas das formas como as terras de ninguém foram divididas para distinguir e regular as relações das comunidades indígenas, não indígenas, africanas e coloniais, com algumas geografias ainda sendo consideradas inabitáveis para grupos específicos; locais como reservas, senzalas e plataformas de leilão foram considerados paralelamente às especificidades raciais. O processo geográfico, após a corrida para colonizar as terras de ninguém, se desfez em trocas culturais do Novo Mundo, que se estabeleceram em um modelo humano rigoroso e não homogêneo: geografias para homens brancos, mulheres brancas, homens indígenas, mulheres indígenas, homens negros e mulheres negras. É claro que existiam experiências geográficas e povos que se sobrepunham e perturbavam esses espaços aparentemente discretos, mas essa sobreposição é acompanhada por um sistema abrangente em que espaços específicos de outridade ― para fins deste ensaio, geografias negras ― foram designados como incongruentes com a humanidade. O funcionamento entrelaçado do valor humano, da raça e do espaço demonstra como o inabitável ainda é válido no presente e continua a organizar os arranjos geográficos contemporâneos. A prática colonial do conhecimento geográfico mapeou “um modo de vida normal” medindo diferentes graus de humanidade e ligando diferentes versões 24 Sylvia Wynter, “1492: A New World View”, in Vera Lawrence Hyatt and Rex Nettleford, eds., Race, Discourse, and the Origin of the Americas (Washington DC: Smithsonian Institution Press, 1995), 34 (grifo meu). garci Realce garci Realce 19 da pessoa humana a diferentes lugares. Mais claramente, a extensão do que alguns exploradores europeus presumiam ser “inexistente” era um sistema geográfico que passou a organizar a diferença no espaço e a considerar esse processo diferencial como senso comum ou modo de vida normal. Esse modo de vida normal está enraizado na condenação racial; é espacialmente evidente em locais de toxicidade, decadência ambiental, poluição e ação militarizada que são habitados por comunidades empobrecidas ― geografias descritas como campos de batalha ou como queimadas, horríveis, ocupadas, sitiadas, insalubres, encarceradas, extintas, famintas, destroçadas, em perigo25. Destacam-se as maneiras como podemos traçar o passado até o presente e o presente até o passado por meio da geografia. A constituição histórica das terras de ninguém pode, ao menos em parte, estar ligada aos espaços presentes e normalizados do outro racial; com isso, as geografias do outro racial são esvaziadas de vida precisamente porque a constituição histórica dessas geografias as moldou como terras de ninguém. Assim, em nosso momento presente, alguns vivem no invivível, e viver no invivível condena as geografias das pessoas marginalizadas à morte indefinidamente. A vida é, então, extraída de regiões específicas, transformando alguns lugares em geografias inumanas ao invés de humanas. Ou, aquelus que viveram fora do que é considerado normal e aquelus que continuam a habitar o inabitável estão tão 25 Clyde Woods, “Life after Death”, Professional Geographer 54, no. 1 (2002): 62–66; Laura Pulido, “Rethinking Environmental Racism: White Privilege and Urban Development in Southern California”, Annals of the Association of American Geographers 90, no. 1 (2000): 12–40; Mbembe, Necropolítica; Davis, Planet of Slums. garci Realce garci Realce garci Realce 20 perversamente fora da concepção burguesa ocidental do que significa ser humano que suas geografias são consideradas ― ou passam a ser ― desumanas, mortas e moribundas. Podemos pensar coletivamente em vários lugares que são considerados sem vida ― sem história, sem geografia, ou alheios a sistemas capitalistas adequados de suporte à vida: países devastados pela guerra, reservas, guetos, o que é conhecido como “o Sul global”. Mais explicitamente, a pressão popular e, nem tão presente, para “salvar” a África em crise e seus filhos a revela como uma geografia humana continental que não é humana de forma alguma, mas um espaço inabitável, habitado por pessoas condenadas racialmente, por pessoas já mortas e moribundas. Isso sugere que os espaços da alteridade se enrigeceram ao longo do tempo, muitas vezes com corpos negros e “condenados” ocupando ou residindo fora do círculo mais baixo da humanidade e, portanto, habitando o que muitos consideram geografias desumanas ou inabitáveis. Essa é a patente construção mútua de identidade e lugar. Se alguns lugares são tornados sem vida na imaginação geográfica mais ampla, o que dizer daquelas pessoas que habitam o sem vida? E o que dizer da visão de mundo das pessoas que ocupam a categoria de condenadas ― essa visão de mundo também não tem vida porque as geografias que cercam as pessoas marginalizadas são tidas como mortas? De que modo a desumanização e a marcação racial de algumas comunidades seguem a lógica colonial de que o humano na geografia humana é uma referência direta ao Homem, que não apenas representa uma versão completa da humanidade (o nós, em nós e elus), mas no âmbito global habita naturalmente os países vivíveis, ricos e superdesenvolvidos? De que forma essa lógica colonial garci Realce garci Realce garci Realce 21 implica que es outres humanes do Homem (o elus do nós e elus) naturalmente ocupam regiões mortas e moribundas, pois são considerades como as classes baixas desempregadas, cujos membros são feitos para funcionar como “resíduos” em nosso mundo global contemporâneo?26 Assim condenada, a maior parte da população mundial, uma população que Sylvia Wynter descreve como desclassificada/imperfeita/menos que humana, não habita cidades cosmopolitas, mas favelas27. Como, no presente, surgem as terras de ninguém e como normalizam um modo de organizar o planeta de acordo com a vida e a ausência de vida? 26 Sylvia Wynter, “On How We Mistook the Map for the Territory and Re- imprisoned Ourselves in Our Unbearable Wrongness of Being of Désêtre”, in Lewis R. Gordon and Jane Anna Gordon, eds., Not Only the Master’s Tools: African American Studies in Theory and Practice (London: Paradigm, 2006), 123–24. 27 Wynter, “Unsettling the Colonialityof Being/Power/Truth/Freedom”, 319. garci Realce garci Realce 22 Meu retorno à plantação foi motivado pelo enunciado descritivo que identifica as geografias negras como espaços mortos de alteridade absoluta ― precisamente porque, em minha pesquisa, a plantação é considerada quase o último reduto de expropriação negra, violência antinegra, encontro racial e resistência inovadora. Na verdade, é a plantação que foi colocada no mapa das terras de ninguém e se tornou o local onde os povos negros foram “plantados” nas Américas ― não como membros da sociedade, mas como mercadorias que fortaleceriam as economias agrícolas28. Dentro desse sistema geográfico, em que a violência racial está ligada à administração do crescimento econômico, as “capacidades polimorfas” da humanidade negra são vividas29. Como apontei em Demonic Grounds, a plantação é frequentemente definida como uma “cidade”, com um sistema econômico lucrativo e com regulamentos políticos e legais locais30. A plantação normalmente contém uma casa principal, um escritório, uma casa de carruagem, celeiros, um bloco de leilão de escravos, uma área de jardim, senzala e cozinha, estábulos, um cemitério e um ou mais edifícios em que as colheitas são preparadas, como um moinho ou uma refinaria; a plantação também inclui uma área de cultivo e campos, bosques e um pasto. As cidades-plantação 28 Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, 95. 29 Mbembe, Necropolítica, 35. 30 Katherine McKittrick, Demonic Grounds: Black Women and the Cartographies of Struggle (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006), 75. Lógica da Plantação garci Realce garci Realce garci Realce 23 estão ligadas a acessos ― rios, estradas, pequenas redes ferroviárias ― que permitem o transporte de safras, pessoas escravizadas e outras mercadorias. Esse é um processo geográfico significativo para se ter em mente, porque nos obriga a pensar sobre como a plantação se tornou a chave para transformar as terras de ninguém em terras de alguém, com o trabalho forçado negro impulsionando uma estrutura econômica que sustentaria a cidade e o desenvolvimento industrial nas Américas. Com isso em mente, a plantação espacializa as primeiras concepções de vida urbana no contexto de uma economia racial: a plantação continha zonas econômicas identificáveis; impulsionou o crescimento econômico e social ao longo dos canais de transporte; o uso da terra era para o crescimento agrícola e industrial; padrões de atividades especializadas ― do trabalho doméstico e no campo à ferraria, à administração e às atividades da igreja ― foram levados a cabo; grupos raciais foram inseridos diferenciadamente na economia local, e assim por diante31. Em Cabin, Quarter, Plantation, Clifton Ellis e Rebecca Ginsberg examinam a arquitetura e a paisagem das cidades de plantação na América do Norte, contribuindo para a economia racial ao notar a mão dos trabalhadores escravizados em transformar (literalmente) a terra[,] [...] os esforços dos agentes pró-escravidão [moldando] ambientes que facilitassem o controle e a vigilância das atividades das pessoas escravizadas[,] [...] proprietários escravidores adapta[ndo] tipos de edifícios antigos e 31 Os padrões do início da vida urbana observados aqui (crescimento e zonas econômicas identificáveis, transporte e atividades especializadas) são baseados nos temas apresentados em Nicholas R. Fyfe e Judith T. Kenny, eds., The Urban Geography Reader (Nova York: Routledge, 2005). garci Realce garci Realce garci Realce 24 desenvolve[ndo] novos com o propósito de empregar a arquitetura para subjugar e controlar seus bens humanos32. Essas características ― a economia, a paisagem, a arquitetura ― andam de mãos dadas com diferentes tipos de violência racial, o que Saidiya Hartman descreve como “cenas de sujeição”: o terror mundano da vida na plantação; as brutalidades perpetuadas sob a rubrica de prazer, paternalismo e propriedade; o sofrimento, estupro e despersonalização; o “brutal exercício de poder que deu forma à resistência”33. Embora as plantações tenham diferido no tempo e no espaço, os processos pelos quais eram operadas e mantidas de maneira diferenciada chamam a atenção para as maneiras pelas quais a vigilância racial, a violência contra pessoas negras, a crueldade sexual e a acumulação econômica identificam o trabalho espacial da raça e do racismo. Em muitos sentidos, a plantação mapeia geografias negras específicas como reconhecidamente violentas e empobrecidas, normalizando, como consequência, a produção desigual do espaço. Essa normalização pode se desdobrar no presente, com a negridade e a geografia, e com o passado e o presente se enredando para revelar locais contemporâneos de inabitabilidade. No entanto, retornar à plantação, no presente, pode potencialmente convidar a análises 32 Clifton Ellis and Rebecca Ginsberg, “Introduction” de Clifton Ellis and Rebecca Ginsberg, eds., Cabin, Quarter, Plantation: Architecture and Landscapes of North American Slavery (New Haven, CT: Yale University Press, 2010), 2–3. 33 Saidiya Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self- Making in Nineteenth-Century America (Oxford: Oxford University Press, 1997), 1–78, 62. garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce 25 inquietantes e contraditórias nas quais: o funcionamento socioespacial da violência antinegra define totalmente a história negra; esse passado é superado e acabado, e a plantação é considerada uma instituição “atrasada” que deixamos para trás; a plantação se move através do tempo, um anacronismo disfarçado que acarreta a prisão, a cidade e assim por diante. Essas contradições estratificam, para tomar emprestado de Kara Keeling, “imagens de memória comum” que são habitualmente invocadas para construir a negridade como silenciosa, sofrida e perpetuamente violada, assim como tentam apagar as formas como a violência antinegra é encenada no presente34. Em outras palavras, esse tipo de enquadramento analítico é inquietante porque simultaneamente arquiva o corpo negro violado como a origem das vidas negras do Novo Mundo, assim como coloca essa história em um continuum de espaço-tempo quase hermético, que traça um progresso linear que se move para longe da violência racista. Dentro desse enquadramento, há um impulso subjacente de buscar consolo ao nomear a violência. Isso carrega em si a expectativa de que o caminho para a recuperação é uma evolução em direção a um modo de humanidade que é produzido por meio de iniquidades. Não estou sugerindo que esqueçamos a violência, ou que o retorno às brutalidades da vida na plantação seja antiético. Estou sugerindo que quando as terras de ninguém foram transformadas pela lógica da plantocracia, firmando 34 Kara Keeling, The Witch’s Flight: The Cinematic, the Black Femme, and the Image of Common Sense (Durham, NC: Duke University Press, 2007), 74. garci Realce garci Realce 26 as hierarquias raciais da humanidade, a questão do enfrentamento é muitas vezes lida através de nossa forma atual de humanidade, com os espaços para o nós (habitado por homens seculares, economicamente confortáveis e posicionados em oposição aos espaços empobrecidos e subdesenvolvidos para o elus) sendo considerados os locais que as pessoas oprimidas devem ambicionar. Nessa formulação, surgem três curiosidades: pessoas escravizadas que foram plantadas nas Américas e seu senso de lugar são consideradas normalmente sem vida, acabadas, não geográficas e deixadas para trás; é negado um contexto para nossas lutas contemporâneas com a violência racial e a negridade; e os contornos darwinianos mítico-biológicos de nossas práticas de leitura revelam que “o mais apto” é um modo de ser humano pelo qual ambicionamos. Essas curiosidades, como de costume, se articulam lado a lado com o discurso de que as coisas melhoraram com o passar do tempo. E se a plantação nos oferecesse outracoisa? E se suas práticas de segregação racial, exploração econômica e violência sexual mapeassem não um modo de vida normal, mas um modo de vida diferente? E se reconhecêssemos que a plantação é, como escreve Toni Morrison, um espaço de onde todo mundo foge, mas sobre o qual ninguém para de falar, e que é, portanto, um modelo persistente, embora feio, de nossa presente organização espacial que contém em si um novo futuro?35 Finalmente, se essa conceituação é possível, como as expressões contemporâneas de violência racial e espacial e as geografias das cidades negras podem ser apreendidas de uma nova maneira? 35 Toni Morrison, Amada (São Paulo: Companhia das Letras, 2018 [1987]), 31. garci Realce 27 Em seu ensaio de 1971, Romance and History, Plot and Plantation, Wynter explica que não apenas o surgimento da plantação corresponde ao surgimento do romance ― que aponta para dois novos sistemas socioeconômicos de construção do mundo ―, mas que a própria plantação foi a ambientação contextual em torno da qual giraram muitos livros de ficção. Ela prossegue dizendo que a economia de mercado da plantação e as histórias que explicam o valor da economia da plantação se desdobraram em uma “história oficial e justificada da superestrutura” que escondeu ― mas não apagou ― o que ela chama de “histórias furtivas”36. Histórias furtivas podem ser encontradas nas tramas/roças37: a trama ou a narrativa central do romance da plantação que contextualiza sua superestrutura econômica enquanto desenvolve um espaço criativo para desafiar esse sistema; e os pedaços de terra que foram dados a algumas pessoas escravizadas para que pudessem cultivar roças para se alimentar e, assim, maximizar os lucros ― pedaços de terra que também se tornaram o foco da resistência ao sistema dominante da economia da plantação. Em ambos os casos, a trama/roça ilustra uma ordem social que se desenvolve no 36 Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, 101. 37 [N.T.] O termo plot é usado por Wynter em seu texto tanto em referência à “sucessão de acontecimentos que constituem a ação, em uma produção literária” quanto a uma “porção de terra”. Em português não encontramos um termo que denote ambos os significados ao mesmo tempo, portanto, decidimos traduzir, dependendo do contexto, por trama ou roça; quando McKittrick usa a palavra referindo-se a ambos os significados, mantivemos a forma trama/roça. Roça-e-Plantação garci Realce garci Realce garci Realce 28 contexto de um sistema desumanizador, pois espacializa o que seria considerado impossível sob a escravidão: o crescimento real de narrativas, alimentos e práticas culturais que materializam as profundas conexões entre negridade e a terra e promovem valores que desafiam a violência sistêmica. A roça e a plantação são, por um lado, geografias dicotomizadas e ambivalentes e, por outro, os locais de enraizamento da negridade nas Américas: Para as pessoas africanas do campo transplantadas para a roça[,] [...] o terreno permaneceu como terra. [... Elas] usavam o terreno para a alimentação [de si mesmas]; e para oferecer os primeiros frutos à terra; [o] funeral era o reencontro místico com a terra. [...] Em torno do cultivo do inhame, do alimento para a sobrevivência, [elas] criaram na roça uma cultura popular38. Os insights de Wynter são úteis porque ela não retorna à plantação para nomear e, assim, dar centralidade à violência antinegra, nem nos fornece uma leitura do romance e da trama que celebra apressadamente a resistência subalterna. Ao mesmo tempo, suas provocações analíticas não são, a meu ver, fixadas a uma linearidade que depende de uma lógica de plantação que é informada por e inevitavelmente leva para a morte-negra sem fim. Em vez disso, ela produz o andaime teórico que repensa como nossas presentes lutas espaciais em torno da raça, segregação e violência podem ser reinventadas. Meu pensamento se ilumina lendo Plot and Plantation ao lado da discussão de Wynter sobre a “prática decifradora”: 38 Ibid., 99. garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce garci Realce 29 Uma prática decifradora toma as desigualdades existentes em nossa ordem, tanto como a realização expressiva do código que rege vida e morte quanto como o índice das “mistificações retóricas” que devem estar em ação, a fim de determinar como essa ordem deve ser normativamente sentida e conhecida, se os comportamentos coletivos que dão origem aos processos de estruturação da ordem deverão ser induzidos dinamicamente e replicados de forma estável. Uma prática decifradora propõe, portanto, que os modos pelos quais cada sujeito normal específico de uma cultura conhece e sente a sua realidade social [...] não devem, em nenhum caso, ser tomados como um índice do que a realidade empírica de nosso universo social é.39 Decifrar uma lógica da plantação, então, opera através de três temáticas: identifica a mecânica normalizadora da plantação, em que a subjugação negra e a exploração da terra andam de mãos dadas e conduzem à morte (presente) certa; considera nossa participação coletiva e compromisso retórico na reprodução desse sistema como se ele fosse natural, inevitável e um modo de vida normal; e imagina a roça & plantação como um novo terreno analítico que traz à tona um sistema de conhecimento, produzido fora dos domínios da normalidade, rejeitando assim as próprias regras do sistema que lucra com a violência racial, e nisso não vislumbra uma narrativa puramente oposicional, mas sim um futuro no qual uma perspectiva correlacional da espécie humana seja honrada. 39 Sylvia Wynter, “Rethinking ‘Aesthetics’: Notes towards Deciphering Practice”, in Mbye Cham, ed., Ex-iles: Essays on Caribbean Cinema (Trenton, NJ: Africa World, 1992), 271 (grifo no original). garci Realce 30 A implantação forçada de pessoas negras nas Américas está associada à consciência de como a terra e a alimentação podem sustentar visões de mundo alternativas e desafiar práticas de desumanização. Vale a pena repetir que essas visões de mundo alternativas não eram isoladas da plantação ou simplesmente produzidas em oposição a ela; em vez disso, estavam ligadas às geografias da economia da plantação e às brutalidades da escravidão. É por meio da violência da escravidão, então, que a plantação produz o enraizamento negro no espaço, precisamente porque a terra se torna a principal provisão por meio da qual os povos negros poderiam tanto sobreviver quanto serem forçados a abastecer a máquina da plantação. Analiticamente, o funcionamento simultâneo, em vez de dicotomizado, da roça e da plantação, entendidas juntamente com o trabalho criativo da trama da ficção, reformula a política de resistência. O ensaio de Wynter sugere que o futuro da plantação pode seguir dois caminhos ao mesmo tempo: primeiro, um no qual o sistema básico permanece intocado e nos resta sua defesa e justificação; e, um segundo, em que a consciência do funcionamento do sistema é engendrada em uma trama-vida (criativa e geográfica) e, ao mesmo tempo, desafia essa lógica de longa data40. Este último futuro que se oferece, sugiro, não é capaz de resistir à morte-negra inevitável porque pede que imaginemos a vida-negra como antecipatória. Nessa formulação, a figura do sujeito negro ― dentro das geografias escravistas e pós-escravistas, na vida e na morte ― é indígena, é plantada, no contexto de uma violência que não pode definir totalmente a agência humana futura. 40 Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, 102. garci Realce garci Realce Interessante pensar as resistências enquanto simultâneas e não necessariamente dicotômicas como tendemos a sistematizar e analisar. 31 Se acreditarmos que a cidade é a expressão comercial da plantação e de suas massas marginalizadas, e que a plantação é um modelo persistente, mas feio, de nossos problemas espaciais contemporâneos, o ensaio de Wynter solicita que procuremos históriassecretas que não estejam investidas em reencenar a falta de vida, o corpo negro violado e as práticas de resistência enraizadas na autenticidade. A cidade-plantação chama a atenção para uma narrativa da negridade implícita na modernidade e nativa das Américas ― e, portanto, para uma concepção da cidade imbuída de uma versão da história negra nem celebratória nem dissidente. Essa presença negra urbana ― vida negra ― revela um modo de ser humane que, embora muitas vezes expulso da história oficial, não é vitimado, despossuído e totalmente estranho à terra; em vez disso, ele redefine os termos de quem e do que somos vis-à-vis uma cosmogonia que, embora dolorosa, não busca habitar um local próximo do “mais apto”, mas em vez disso honra nossas versões mutuamente constitutivas e relacionais da humanidade. A plantação que antecipa a cidade, então, não necessariamente postula que as coisas ficaram melhores já que a violência racial assombra, mas sim que as lutas que enfrentamos, intelectualmente, são uma continuação das narrativas da plantação que dicotomizam geografias em nós/elus e escondem histórias secretas que desfazem as bases teleológicas e biocêntricas da espacialidade. garci Realce garci Realce Esse trecho me instiga a pensar na minha temática de pesquisa, ou seja, essa busca por histórias secretas, pelo não-dito... Na minha tese, acredito que cabe pensar a plantation enquanto um sistema racia e generificado (???) garci Realce 32 Então, que tipo de futuro a plantação pode nos dar? Se as geografias negras são conceituadas como mutuamente constitutivas de processos geográficos mais amplos, como o enquadramento de Wynter nos permite apreender práticas historicamente presentes de exclusão racial sem condenar as pessoas mais marginalizadas a espaços de alteridade absoluta? Concluo recorrendo a Inventário [Inventory], poema longo de Dionne Brand, lendo-o como uma obra criativa que intervém na teleologia do senso comum acerca da violência racial. Ao estender a política decolonial e o pensamento decolonial ― o esforço assossiativo para compreender a descolonização e a modernidade como projetos inacabados ―, identifico Inventário como um texto de poética decolonial: tal poética se detém nas violências pós-escravistas a fim de fornecer o contexto através do qual os futuros negros são imagináveis41. O trabalho decolonial de Inventário não reside, portanto, em arquivar e nomear a violência, mas nas possibilidades analíticas que surgem da leitura dos dados sobre vítimas como amalgamados ao criativo. Com minha discussão anterior em mente, considero Inventário um trabalho criativo que é produzido fora do reino da normalidade, que rejeita as regras do sistema que lucra com a violência racial e que prevê um futuro no qual uma perspectiva correlacional da espécie 41 Nelson Maldonado-Torres, “Thinking through the Decolonial Turn: Post-continental Interventions in Theory, Philosophy, and Critique — An Introduction”, Transmodernity: Journal of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World 1, no. 2 (2011): 2. Futuros da Plantação garci Comentário do texto A teleologia é o estudo filosófico dos fins, isto é, do propósito, objetivo ou finalidade. Pode-se dizer que seria um determinismo. 33 humana é honrada. Quando o texto se volta para a pessoa que o lê é que as possibilidades de correlação emergem ― dando à plantação um futuro analítico diferente. Inventário tem sete partes. A primeira parte começa: “Não acreditávamos em nada”42. Daí, Brand leva quem a lê a vários locais, desde as esperançosas decepções do movimento pelos direitos civis ao luto da cantora Nina Simone e da ativista Marlene Green. O poema passa do espaço urbano negro canadense criminalizado, os bairros de Jane e Finch em Toronto, para viajantes que tiveram suas impressões digitais recollhidas. Aqui, Brand também escreve as ruas do Cairo, Bagdá e Darfur. Através dessas ruas e narrativas, podemos rastrear o blues dos bairros empobrecidos de Stevie Wonder, as casas de Miami fincadas à terra, o Stellar Regions de John Coltrane, os incansáveis shopping centers e as histórias de democracia da ficção científica, os abrigos de tempestade de Nova Orleans e as bombas. O furacão Katrina, o 11 de setembro, os anos 1960 e a invasão do Iraque fazem aparições difíceis por todo esse poema longo. Na parte 3, a pessoa que narra senta-se ao lado da televisão, chorando, contando bombas e mortes por bombas: uma bomba incendiária em Nashville, uma bomba em um estádio de futebol, vinte e três mortos por um ataque suicida à bomba, oito mortos por um ataque suicida à bomba, dois homens e uma criança por um carro-bomba, sapatos cheios de bomba: 42 Dionne Brand, Inventory (Toronto: McClelland and Stewart, 2006), 3; doravante citada no texto. [Dionne Brand, “Excerto de ‘Inventory’”, Tradução de Ana Luísa Amaral, eLyra: Revista Da Rede Internacional Lyracompoetics, no. 16 (2020) Disponível em https://elyra.org/index.php/ elyra/article/view/356] https://elyra.org/index.php/elyra/article/view/356 https://elyra.org/index.php/elyra/article/view/356 34 oitocentos todo mês durante o último ano, e cento e vinte em quatro dias brutais coisas, coisas se somam. (52) Inventário é um texto difícil ― é difícil porque documenta, em um sentido empiricamente poético, nosso mundo insuportável. É difícil porque é uma lista inteligível e exaustiva de desespero: Ela tem medo de matar alguém hoje, lavou roupa, comeu macarrão, e uma torta de limão, comprou um livro, dirigiu por uma rua. (76) O poema longo de Brand pode ser facilmente identificado como uma tabulação de atos urbicidas: Considere então a obliteração de quatro restaurantes, o desaparecimento de sessenta táxis, cada um com um passageiro de quatro salas de aula superlotadas, uma arquibancada de um estádio de futebol, a repentina falta de, digamos, esteticistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . sumidos do mapa, duas ou três salas de espera do hospital, os coletores de lixo noturnos se foram. (78) Na verdade, o poema longo convoca a pessoa que o lê para os atos violentos, o desespero e a desesperança que tornam possível o inventário da poeta ― pode-se coletar e calcular matematicamente a morte: ainda em junho, no hiato, oito mortos por bomba suicida na estação de ônibus, pelo menos onze mortos em Shula em 35 restaurantes, pelo menos quinze por carro-bomba. (25) Se Inventário pode ser lido como uma tabulação sistêmica e uma enumeração da violência racial e da morte, também pode ser lido como uma fala pela vida. Mais especificamente, Inventário documenta e desfaz o progresso linear em direção à morte sem fim, mencionado acima. Talvez os inventários poéticos de Brand possam revelar o que Kenneth Hewitt chama de mortalidade do lugar. Em seu trabalho sobre o bombardeio de área, Hewitt identifica a conexão da vida humana biológica e do lugar: “Os lugares compartilham os problemas de sobrevivência e mortalidade em nossa existência biológica. Assim como a vida biológica pode ser chamada um conjunto de atividades feitas para resistir à morte, também nosso lugar e o mundo são, pelo menos parcialmente, meios de resistir à dissolução psicossocial e cultural”43. Uma forma de expor a mortalidade do lugar é por meio de textos expressivos como o Inventário de Brand. Essas narrativas, textos que de outra forma seriam considerados não geográficos e politicamente desvinculados do trabalho empírico do planejamento da cidade, testemunham a destruição do lugar ao invocar o que está em jogo na luta humana. A leitura-trabalho que Inventário solicita que façamos não pode simplesmente ser o do consumo da enumeração transparente, mas sim de empreender esforços humanos cooperativos e direcionar a quem lê a prática 43 Kenneth Hewitt, “Place Annihilation: Area Bombing and the Fate of Urban Places”, Annals of the Association of American Geographers73, no. 2 (1983): 258. 36 de explicar as brutalidades de nosso mundo. A leitura do texto ― “nossa dor vai secar lagos” (61) ― exige que quem o lê registre os dados se perguntando por que a poeta reconhece, torna claros e versifica esses dados. Voltar- se para a poética decolonial produzida por comunidades diaspóricas que sobreviveram ao deslocamento violento e à supremacia branca nos permite identificar aspectos invisíveis e não cartografados da vida na cidade. Ao fazê-lo, retrata-se a morte na cidade não como um fim biológico e um fato biológico, mas como um caminho para honrar a vida humana e o que W.E.B. Du Bois chamou de nossas canções de lamento ― “a[s] expressão[s] da experiência humana” que foram negligenciadas, incompreendidas, desprezadas44. O poema longo de Brand sugere que as perspectivas negras sobre a cidade revelam que espaços de alteridade absoluta, tantas vezes ocupados por pessoas racial e economicamente condenadas, são geografias de sobrevivência, resistência, criatividade e luta contra a morte. Em outras palavras, podemos ler o poema não como um texto que segue uma progressão linear em direção à morte, mas sim como a consequência criativa da roça e da plantação ― uma concepção da cidade imbuída de uma narrativa da história negra que não é nem celebratória nem dissidente, mas enraizada em uma articulação da vida na cidade que aceita que as relações de violência e dominação tornaram possível nossa existência e presença nas Américas, pois reformula esse conhecimento para vislumbrar um futuro alternativo. 44 W. E. B. Du Bois, As Almas do Povo Negro (1903; reimpr., São Paulo: Veneta, 2021), 271. garci Realce garci Realce 37 Inventário exige um engajamento ético. O trabalho de Brand frequentemente recusa um compromisso com nossa atual ordem das coisas; ela escreve a geografia e as suas próprias afiliações políticas ao espaço como afirmações de humanidade ao invés de estarem coladas a um dos lados do mundo dos-de-dentro/dos-de-fora [insider/outsider]45. Esse posicionamento da poeta é importante, pois se recusa a venerar os confortos do paradigma nós/elus, uma vez que a própria Brand escreve cidades e outros espaços de uma forma nova frente a sua história negra diaspórica. Essa é, pelo menos para mim, uma política radical, na medida em que pede não apenas que tracemos a miséria do futuro, mas que testemunhemos nosso presente difícil para pensar a plantação e a cidade de maneira diferente. Leia sem uma certa afiliação a uma nação, leia sem os ganhos de testemunhar mortes enumeradas, leia como poética decolonial que lembra a violência antinegra e associa isso ao Projeto de Contagem de Corpos do Iraque, notícias e pássaros voando de árvore em árvore, as mortes na cidade compiladas em Inventário requerem ser lidas em um registro diferente. As listas e catálogos, as pessoas mortas e moribundas, podem ser lidas como uma forma de identificar que atos de violência genocida e ecocida, voltando a Wynter, “em nenhum caso deveriam ser tomados como um índice do que a realidade empírica do nosso universo social é”46. A 45 Leslie Sanders, “What the Poet Does for Us” (keynote lecture at “No Language Is Neutral: A Conference on Dionne Brand”, Toronto, Ontario, 14 October 2006); Rinaldo Walcott, Black Like Who: Writing Black Canada, 2ª ed. (Toronto: Insomniac, 2003), 43–55; McKittrick, Demonic Grounds. 46 Wynter, “Rethinking ‘Aesthetics’”, 271 (grifo no original). 38 estética que Brand nos fornece em Inventário pode, portanto, ser imaginada como um caminho para perceber como a normalização da contagem de corpos e mortes na cidade de fato revela as formas como nossos sistemas atuais de planejamento urbano e seus modos de vida correspondentes ― as cidades normalmente boas e as cidades normalmente más ― nos atam, efetivamente, a um processo de superioridade e inferioridade geográficas de um modo moral, onde a mortalidade de um lugar é considerada desvantajosa. Em outras palavras, a poética de Brand revela o trabalho normalizador que a morte humana e a morte da cidade podem fazer quando são descritas como um índice de como a vida humana é constituída. Segue-se, então, que o poema longo de Brand pode ser lido como um inventário que questiona os fundamentos pelos quais o urbicídio se torna tanto possível quanto parte do senso comum. Lida dessa forma, o que a poética decolonial de Inventário exige é que nós, que o lemos, sejamos responsabilizades pelos códigos morais e mortais que regulam, lucram e conceituam espaços de alteridade absoluta, uma vez que são habitados por não sobreviventes. A contagem de corpos que enquadra grande parte de Inventário ― 800 a cada mês no último ano, 120 em quatro dias ― é, portanto, também sobre a sobrevivência e a vida humana, ou um novo espaço matemático, onde o cálculo das ações humanas e os esforços humanos cooperativos encontram poesia para reinventar a culminação inequívoca e sem saída que é tantas vezes associada às análises da violência (21-52). Trabalhar com Inventário requer honrar e viver a vida na cidade de maneira diferente. O difícil poema exige imaginar cidades e lutas globais, passados e futuros da plantação, como baseados no todo-da-vida-humana ― mesmo na morte 39 ― e no trabalho da sobrevivência. Aqui, vislumbramos uma vida no limite, uma geografia que exige que se permaneça vivo, ainda que ameace sua fisiologia, uma política espacial de viver apenas o suficiente, apenas o suficiente para a cidade: esta é uma localização política que promove práticas geográficas mais humanamente viáveis e alteráveis. 40 Simone Browne, Mark Campbell, Rinaldo Walcott, Sylvia Wynter, David Scott e as pessoas anônimas que foram pareceristas, cada uma delas, de maneiras diferentes, tornaram esse ensaio muito mais forte. Todos os defeitos são meus. Agradecimentos 41 Fontes utilizadas OldNewspaperTypes Linux Libertine _GoBack _sw4ew0hykt5t _nsxvc1ovkxkn _dx2rd2j2qu6a _1pghip2toe57 _m63gkt5katyb _nrfjjcoohl4m _8m1ctw5s7nh0