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Disciplina Teoria da Literatura I Coordenador da Disciplina Prof.ª Ana Marcia Alves Siqueira 11ª Edição Copyright © 2010. Todos os direitos reservados desta edição ao Instituto UFC Virtual. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, dos autores. Créditos desta disciplina Realização Autor Prof. Cid Ottoni Bylaardt Sumário Aula 01: Fundamentos do texto literário ................................................................................................ 01 Tópico 01: Subsídios para um conceito de literatura ............................................................................. 01 Tópico 02: O que torna literário um texto? ............................................................................................ 03 Tópico 03: O que dizem os autores-críticos........................................................................................... 08 Aula 02: Conotação, recepção, autoria ................................................................................................... 12 Tópico 01: Denotação e conotação ........................................................................................................ 12 Tópico 02: Produção e recepção da obra literária .................................................................................. 14 Tópico 03: O autor e a intenção ............................................................................................................. 16 Aula 03: Literatura - O que diz, o que se compreende, o que se aprecia ............................................ 19 Tópico 01: Como compreendemos um texto literário? .......................................................................... 19 Tópico 02: A literatura, o mundo, a recepção ........................................................................................ 20 Tópico 03: Estilo e juízo de valor .......................................................................................................... 23 Aula 04: Metalinguagem e intertextualidade ......................................................................................... 26 Tópico 01: Metalinguagem .................................................................................................................... 26 Tópico 02: Intertextualidade .................................................................................................................. 29 Tópico 03: Intertextualidade e originalidade ......................................................................................... 33 Aula 05: Gêneros Literários .................................................................................................................... 36 Tópico 01: O gênero narrativo ............................................................................................................... 36 Tópico 02: O gênero dramático ............................................................................................................. 44 Tópico 03: O gênero lírico ..................................................................................................................... 48 Aula 06: Processos essenciais de linguagem figurada ........................................................................... 51 Tópico 01: Conotação e denotação ........................................................................................................ 51 Tópico 02: Metáfora e metonímia .......................................................................................................... 54 Tópico 03: Outras formas de linguagem figurada ................................................................................. 58 Teoria da Literatura I Aula 01: Fundamentos do Texto Literário Tópico 01: Subsídios para um conceito de literatura As concepções de literatura se alteram conforme a época, o lugar ou o grupo social. O chamado discurso literário já emprestou sua linguagem aos deuses, à aristocracia e às elites em geral, e até aos miseráveis e excluídos. Atualmente, parece predominar uma noção de que a literatura pertence mais às artes do que às ciências, e essa noção nos concede algumas pistas sobre a constituição do texto literário. A explicação semântica do termo “literatura” teve lugar na segunda metade do século XVIII: Por um lado, o termo ‘ciência’ especializa-se fortemente, acompanhando o desenvolvimento da ciência indutiva e experimental, de modo que deixa de ser possível abranger na ‘literatura os escritos de caráter científico; por outro lado assiste-se a um largo movimento de valorização de gêneros literários em prosa, desde o romance até o jornalismo, tornando-se necessária, por conseguinte, uma designação genérica capaz de abarcar todas as manifestações da arte de escrever. Essa designação genérica foi literatura. (AGUIAR E SILVA, 1968, p. 21) LEITURA COMPLEMENTAR “Sobre o significado da palavra ‘Literatura’” (BELINSKI, 1841). (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) Esse discurso sedutor dos que têm o poder de encantar as palavras, ainda hoje, funciona como um jogo de signos que desafia nossa inteligência, ou como um discurso de denúncia ou compromisso, ou como liberação ou purificação de nossos sentimentos e emoções, ou como veículo de conhecimentos os mais insuspeitados. Embora sejam tantas as possibilidades de conceituação e abordagem do texto literário, vamos tentar levantar aqui alguns elementos que nos permitam ter uma noção contemporânea do que seja a literatura, lembrando sempre que se trata de uma atividade artística. Iniciaremos com um esquema do processo que envolve a produção e a recepção do texto literário em nosso mundo: Descrição da imagem: Mundo + autor + leitor= obra (mundo ficcional) 1 O bosquejo acima permite a seguinte leitura: o autor, com sua cultura, sua experiência de vida, sua ideologia, escreve uma obra, que será lida por alguém cuja recepção estará também impregnada de uma cultura, uma experiência e uma visão de mundo. Essa obra abrigará um mundo descortinado pela imaginação do autor em seus momentos de criação. É evidente que, para que ocorra alguma interação entre os elementos da tríade autor-obra-leitor, é necessário que haja entre o emissor e o recebedor um mínimo de elementos culturais comuns, a começar pelo código utilizado na escrita, ou seja, o idioma. Se imaginarmos uma situação ideal em que não haja a menor interseção entre o campo cultural do escritor com o do leitor, não haverá comunicação literária. Alguma interseção é necessária, como mostra a área hachurada do diagrama abaixo: Descrição da imagem: Autor – experiências culturais comuns – leitor. FÓRUM Neste tópico, discute-se a constituição do texto literário. Observe que no primeiro diagrama apresentado acima aparece a expressão “mundo ficcional”. Discuta com os participantes deste fórum o que vem a ser o universo representado por essa expressão, tente enumerar suas características principais e confronte suas conclusões com a ideia de “mundo” que aparece no vértice superior do triângulo apresentado. 2 Teoria da Literatura I Aula 01: Fundamentos do Texto Literário Tópico 02: O que torna literário um texto? As várias abordagens e concepções que envolvem a determinação do texto literário podem levar o estudante a uma certa confusão inicial sobre o que é literário e o que não é, e essa confusão é normal e inevitável. Não obstante, tentaremos proceder a um levantamento de algumas características que se podem atualmente atribuir ao texto literário com certa segurança, e que o distinguem de outros tipos de textos, quais sejam: LIVRO - Instauração de um mundo ficcional ou supra-realidade. Esse mundo, que já foi discutidono fórum do tópico anterior, é a criação de um universo próprio, de um mundo em princípio autônomo. Esse universo, que tem existência no texto literário, apresenta seres e coisas muito semelhantes ao mundo real, mas às vezes esses habitantes extrapolam aquilo que em nosso mundo chamamos de “normal”. O universo ficcional é infinito, ilimitado, depende apenas da imaginação do criador, o escritor. - Relação não-imediatista entre o leitor e a obra. Diferentemente do texto não-literário, o discurso da literatura não estabelece necessariamente entre o autor e o leitor uma relação de efeito imediato. Um texto científico, jornalístico ou jurídico, por exemplo, perde sua validade dependendo do tempo decorrido entre a produção e a recepção. Isso não ocorre com a literatura; um texto de vários séculos atrás pode suscitar o mesmo ou até maior interesse nos leitores. 3 - Suspensão das convenções de significado corrente. A literatura lida com o imprevisível e com o imponderável. Enquanto a linguagem do dia-a-dia, ou a linguagem técnica, ou científica, ou jornalística, ou publicitária, ou pedagógica têm que ser relativamente previsíveis e conduzir a conclusões que satisfaçam e deem segurança a seus usuários, o discurso literário simula, finge, engana e seduz, não sendo, portanto, um discurso “confiável”, considerando nossas necessidades cotidianas, porque tende a afastar-se da previsibilidade das situações e usos característicos da linguagem não-literária. - Despreocupação com a sistematização e a transmissão de um saber, de uma experiência. Pode-se aprender muito com a literatura, sem dúvida; todavia, o ensino não é um compromisso do texto literário, e o saber e a experiência que ele eventualmente possa transmitir não são inteiramente fidedignos. O aprendizado científico sobre a seca no Nordeste, por exemplo, será possibilitado com muito mais eficiência numa obra de geografia ou de geopolítica do que num romance como Vidas secas, de Graciliano Ramos. - Irrelevância de provas documentais. A falta de “confiabilidade científica” do discurso literário advém exatamente do fato de que ele não tem que provar nada do que apresenta. 4 Os seres, os fatos e as coisas do mundo ficcional têm uma existência própria, que independe de comprovação considerando as verdades metafísicas do mundo em que vivemos. - Inexistência de compromisso com o mundo real. O compromisso a que nos referimos é o de verificação, de comprovação dos acontecimentos da supra-realidade tendo como referência a vida cotidiana. A literatura não tem que estar necessariamente ligada a um tipo de ideologia ou de julgamento em relação ao bom ou mau funcionamento do chamado mundo real. - Criação de um mundo com regras próprias, o mundo do possível, da ficção. O mundo da literatura, portanto, constrói uma realidade própria, que já chamamos de mundo ficcional, ou supra-realidade, que em muitos aspectos é bastante semelhante ao mundo real, mas cujo funcionamento obedece a regras que são suas, e não pode ser julgado tendo como fundamento a realidade de nosso mundo. - Diálogo com a realidade circindante e com a tradição passada. Embora o mundo criado pela literatura seja considerado autônomo, ele não pode ser sempre independente do mundo real. Afinal, ele é construído por seres humanos, e muitos de seus elementos são recriações do que ocorre na realidade. Pode-se dizer então que a literatura faz constantes referências ao mundo em que vivemos, e a nossa tradição histórica, cultural, social etc. Além disso, o texto literário remete 5 frequentemente a outros textos, também literários, ou mesmo não- literários, o que constitui importante recurso de produção do texto ficcional, a intertextualidade, que será estudada em um tópico à parte. - Inexistência de uma utilidade prática. Embora haja obras literárias que reivindiquem uma “interferência” ideológica no mundo das condições, essas intromissões via de regra não buscam produzir resultados práticos, embora o texto literário apresente em geral uma interpretação da vida humana. - Predomínio da linguagem conotativa. Como a literatura não tem um compromisso de fidelidade ao mundo real, como o texto ficcional não se assemelha a um manual de instruções, em que as coisas têm que “dar certo”, têm que “funcionar”, ele pode dispensar a linguagem denotativa, ou literal, e privilegiar a conotação, a polissemia, a ambiguidade, a plurissignificação, que serão abordados na próxima aula. Apresentamos acima, portanto, alguns traços que distinguem o discurso literário dos textos não- literários. É necessário que tais traços sejam sempre questionados na presença do que chamamos texto literário, para confirmarmos ou não sua adequação a tal ou qual texto. Quando dizemos, por exemplo, que não faz parte da obrigação da literatura transmitir um saber, será essa característica presente em qualquer tipo de obra a que chamamos literária, ou há exceções? Ou seria melhor modalizar a afirmação, dizendo que “em geral as obras literárias despreocupam-se com a transmissão de um saber”? Outra questão altamente controvertida é a da “função” da literatura no seio da sociedade. Até que ponto a literatura é ou não um artefato destinado a interferir na sociedade, como uma construção ética, ideológica, política, ou 6 até onde a presença de traços sociais e ideológicos é apenas um cenário para o exercício da linguagem? Essas questões deverão ser sempre discutidas e refletidas por quem estuda literatura, e neste nosso curso veremos que a abordagem literária é uma escolha do estudioso da literatura. No decorrer do século vinte, principalmente, surgiram várias tendências de abordagens do texto literário, como o formalismo, o new criticism, o estruturalismo, a literatura e a psicanálise, a literatura e a sociedade, a crítica biográfica, a crítica imanentista, os estudos culturais etc. O estudo da literatura, portanto, não apresenta respostas fáceis e prontas, é necessário que o estudioso esteja permanentemente fazendo suas críticas, suas autocríticas e suas metacríticas. Para tanto, é necessário assumir uma posição diante do fato literário e desenvolver seus argumentos em favor de sua crença. OLHANDO DE PERTO O texto abaixo, de Roland Barthes, coloca em evidência a questão do saber relacionado à literatura. Leia-o atentamente e depois discuta com seu grupo as questões propostas. [...] Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é o real, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ele permite designar saberes possíveis — insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre atrasada ou adiantada em relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que irradia de noite o que aprovisionou durante o dia, e, por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que chega. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza não é inteiro nem derradeiro: a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas — que ela sabe muito sobre os homens. O que ela conhece dos homens é o que se poderia chamar de grande estrago da linguagem, que eles trabalham e que os trabalha quer ela reproduza a diversidade dos socioletos, quer, a partir dessa diversidade, cujo dilaceramento ela ressente, imaginee busque elaborar uma linguagem-limite, que seria seu grau zero. Por que ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o saber reflete incessantemente sobre o saber, segundo um discurso que não é mais epistemológico mas dramático. (BARTHES, 2002, pp. 18-19) EXERCITANDO A respeito do texto acima, tente responder às seguintes questões. 1. Roland Barthes afirma a existência de todos os saberes no texto literário. Como se comportam esses saberes? 2. Explique a metáfora da “pedra de Bolonha” que o autor utiliza para relacionar saberes e literatura. 3. Qual é a diferença, no texto, entre “saber alguma coisa” e “saber de alguma coisa”? 4. Por que, segundo Barthes, o discurso literário é “dramático” e não “epistemológico”? 7 Teoria da Literatura I Aula 01: Fundamentos do Texto Literário Tópico 03: O que dizem os autores-críticos Acreditamos que é possível fundamentar uma teoria da literatura, uma poética, ou ciência geral da literatura, que estude as estruturas genéricas da obra literária, as categorias estético-literárias que condicionam a obra e permitem a sua compreensão, que estabeleça um conjunto de métodos suscetíveis de assegurar a análise rigorosa do fenômeno literário. (AGUIAR E SILVA, 1968, p. 56- 57) É possível analisarmos uma obra literária em sua forma abstrata, buscando determinar seus elementos fundamentais e, através do conjunto da obra, identificar sua forma e conteúdo. Esses dois elementos existem de modo interdependente, sendo passível de separação apenas na análise teórica. Forma Também denominada linguagem, é o elemento que fixa o conteúdo e permite sua transmissão de um espírito para outro. A forma é abstrata enquanto exclusivamente mental, mas pode materializar-se quando expressa (linguagem falada, escrita, mímica). A forma, nos mais variados aspectos, é o veículo do conteúdo. Conteúdo É a suprarrealidade concebida pelo artista, [...] é a imagem da realidade, mas da realidade que o artista conseguiu captar. [...] O conteúdo é o elemento imaterial da obra literária, pois que existe apenas na imaginação do artista e na do leitor: as personagens de um romance interessam-nos, empolgam-nos, e jamais poderemos vê-las em carne e osso. A partir da identificação da forma e do conteúdo da obra literária, podemos chegar à compreensão dos gêneros, tipos de composição literária ligadas à realidade ficcional e intuídos por um maior ou menor grau de realidade ou irrealidade estética. E a identificação e análise desses elementos, bem como de sua correlação, está na base de nossos estudos em Teoria da Literatura. Segundo Roberto Acízelo de Souza, a literatura sem uma problematização é apenas o óbvio. Vejamos o que o autor diz sobre isso no primeiro capítulo de seu livro Teoria da literatura (2007): “SEM UMA TEORIA, A LITERATURA É O ÓBVIO (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)”. Uma boa maneira de se familiarizar com as noções de literatura e, por extensão, de arte é ouvir o que os escritores têm a dizer sobre ela, seja em forma de poesia, seja em forma de prosa. Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores: é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas 8 d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com um mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. Considerei, por fim, que assim é o amor, oh minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz do teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico. (BRAGA, 1996, p. 120) Comentando a citação O autor do texto acima associa o esplendor do pavão à grandeza da obra de arte, ampliando-a depois para o tema do amor. O “luxo imperial” do pavão que exibe suas cores metaforiza a obra de arte, cujo trabalho tem no arranjo um de seus componentes mais importantes, isto é, a seleção e combinação de elementos que irão produzir a beleza da obra artística. Estendendo o mesmo raciocínio à obra de arte literária, constata-se que ela se faz de uma escolha e arranjo de palavras em que o escritor procura tirar o máximo efeito de sua utilização da língua, produzindo o que Roland Barthes chamou no texto do tópico 2 de encenação da linguagem. Consideremos agora um pequeno poema da poeta Henriqueta Lisboa, que também fala de literatura, porém de uma maneira mais hermética, menos óbvia: Descrição da imagem: Acidente Quebra-se o púcuro de fino cristal vibrante contra a lájea: restam avelórios feridos. Do vento escuto o balbucio por entre os galhos das árvores. Percebo-lhe o timbre, o ritmo. Porém não as palavras: interceptadas, interceptadas. (Lisboa, 2004, p.44) COMENTANDO A POESIA Que acidente terá sido esse, desagradável ou infeliz, ou simplesmente fortuito e inesperado? Há aí duas figurações essenciais, dois breves 9 momentos poéticos determinantes: a quebra do púcaro e o balbucio do vento entre os galhos das árvores. O púcaro é um utensílio que desempenha uma função necessária em nosso dia-a-dia. Esse implemento quebra-se contra uma superfície dura e lisa. A quebra do púcaro produz sua inutilização como instrumento útil, assim como a palavra, que só se torna poesia quando deixa de ter valor de uso. Após a quebra dessa satisfação das necessidades humanas, o púcaro torna-se um amontoado de “avelórios feridos”: vidrilhos, ninharias, bagatelas. O acidente transforma o utensílio em um monte de caquinhos irregulares sem utilidade. Assim, o púcaro quebrado de Lisboa perde seu valor de uso, certamente para inaugurar novas possibilidades. Estão estabelecidas as relações entre as imagens do poema e a linguagem: no momento em que as palavras da língua perdem sua função utilitária, elas se tornam “avelórios feridos”, fragmentos que não servem mais para compor a lógica ditada pela razão. É notável ainda a semelhança fonética entre “avelório” e a conhecida palavra “velório”; é impossível ler uma sem associá-la à outra. A sugestão evidente aí é de perda, de sofrimento. Além dessa conotação, exerce importante função o adjetivo “feridos”, que insinua lesão na integridade de um ser. Tem-se aí então a composição desse universo de privação, de ausência, de desaparecimento: o acidente mata a integridade da palavra, desviando-a para outras funções que não as usuais, tornando-a poesia. Penetrar na poesia é invadir o tempo do desamparo, da renúncia aos ídolos e à ordem, do desvio da palavra que edulcora e dá segurança. Na segunda parte do acidente, o vento entre os galhos das árvores pronuncia sons sem sentido, imperfeitos, hesitantes, lembrando a fala do oráculo, do sagrado, identificado aqui à palavra poética. Seu rumor não edifica, não se liga à ruidosa necessidade das tarefas do mundo, à impregnação histórica. Nessa palavra, o mundo recua, as metas cessam, os seres se calam. Fica apenas o balbucio, o significante. ATIVIDADE DE PORTFÓLIO São apresentados aqui (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) textos poéticos sobre literatura e arte, do livro Caderno H, do poeta Mário Quintana. Após cada um deles, faça uma interpretação do texto, comentando a relação entre forma e conteúdo de cada fragmento. O seu comentário deve ser enviado para o Portfólio Individual "Aula 01 - FUNDAMENTOS DO TEXTO LITERÁRIO”, com o nome "aula01_topico03.doc", e deve ter de sete a dez linhas aproximadamente. REFERÊNCIAS AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1968. 10 AMORA, Antonio Soares. Teoria da Literatura. 7. ed. São Paulo: Editora Clássico-Científica, 1967.BARTHES, Roland. Aula. 10 ed. Trad. Leyla-Perrone Moisés.SP: Cultrix, 2002. BELINSKI, Vissarion Grigoryevich. Sobre o significado da palavra “Literatura”. In: SOUZA, Roberto Acízelo (org.). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688- 1922). Chapecó, SC: Argos, 2011. BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. 13. ed. RJ: Record,1996. LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2004. QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 2001. SOUZA, Roberto Acízelo. Teoria da Literatura. 10. ed. São Paulo: Ática, 2007. Fontes das Imagens 11 Teoria da Literatura I Aula 02: Conotação, Recepção, Autoria Tópico 01: Denotação e conotação Imagine-se na condição de ter que se dirigir a um lugar que você não conhece em sua cidade. Você pede uma informação a um transeunte e toma o ônibus e a direção indicada por ele para chegar aonde você deseja. Você desce do ônibus e verifica que chegou exatamente aonde pretendia chegar. Sua sensação é de alívio, pois a informação dada foi precisa, e você obteve o que queria. A linguagem que a pessoa utilizou para lhe dar a informação é a denotativa, em que o significante (a palavra, escrita ou falada, imagem ou som) propicia a maior aproximação possível entre o significado (a ideia mental que fazemos quando lemos ou ouvimos um texto) e o referente (o objeto real sobre o qual fala o discurso). Assim, todos os textos referenciais se esforçam para que o leitor ou ouvinte tenha a noção mais clara possível, de maneira mais aproximada, do fato acontecido. Isso ocorre com a linguagem jornalística, técnico-científica, didática, jurídica etc. Embora elas nem sempre sejam claras como deveriam, os seus produtores se esforçam para ser o mais objetivos possível. A linguagem literária, por outro lado, funciona de forma diferente. Veja, por exemplo, os seguintes versos de Henriqueta Lisboa: Esta é a graça dos pássaros: cantam enquanto esperam. E nem ao menos sabem o que esperam. (“Esta é a graça”, in Flor da morte) COMENTANDO A POESIA No fragmento acima, o texto aparentemente nos fala de uma característica dos pássaros, embora possa parecer estranho os pássaros assumirem traços próprios dos seres humanos. Entretanto, o sentido do cantar dos pássaros pode perfeitamente ser ampliado para o “canto” da poesia e do poeta, por exemplo, e nos remeter à ideia do fazer artístico. O pássaro seria então a representação do artista, e o canto seria sua obra. Temos aí uma linguagem propositalmente ambígua, polissêmica. Não há, da parte da poeta, intenção de deixar as coisas bem claras. A indefinição é que confere a esse tipo de linguagem uma dimensão de amplitude, que desafia o leitor a buscar o significado, que acaba sendo produto de alguma subjetividade do receptor. Essa é a linguagem conotativa. PARADA OBRIGATÓRIA O texto abaixo é um verbete do Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés. Leia-o e compare-o com o texto de nossa aula, para complementar sua compreensão do assunto. Procure o citado dicionário na biblioteca de sua universidade, ou de sua cidade, e pesquise também outros termos relacionados, como denotação, ambiguidade e metáfora. Tire todas as dúvidas com o seu tutor. 12 CONOTAÇÃO POR MASSAUD MOISÉS Com + notação; Latim cum + notatione (m), notação, marca, ação de marcar conjuntamente. Equivalente moderno de compreensão (soma de caracteres abrangidos por um conceito), empregada pela filosofia escolástica, a ideia de conotação somente se deixa esclarecer quando posta em confronto com a denotação. Ambas, porém, constituem matéria ainda não assente, quer na área da Linguística, quer da crítica literária. De modo geral, a conotação, vocábulo largamente empregado pelos linguistas e críticos modernos, designa os vários sentidos que um signo linguístico adquire quando em contato com outros signos dentro do texto: por contiguidade, o sentido primitivo ou literal (denotativo) se altera e se amplifica, tornando-se plural ou multívoco. Ao mesmo tempo, por associação mental, encadeiam-se imagens ou alusões que remetem para significados fora do texto, sem contar a carga de subjetividade naturalmente presente no ato de assinalar os múltiplos sentidos das palavras. Em qualquer caso, a conotação se estabelece pelo contexto: equivale, na perspectiva linguística de F. Saussure, (Cours de linguistique general, 1962), ao plano da fala (parole), uma vez que pressupõe a linguagem afetiva e individual; e na perspectiva literária, ao plano do estilo. Literariamente, pode-se distinguir a poesia da prosa tomando-se por base a função e o alcance da conotação (ou conotações): a poesia é por natureza conotativa, ao passo que a prosa narrativa típica (não-poética) promove uma conciliação entre o processo conotativo e o denotativo. Enquanto num texto poético cada palavra pode assumir mais de um sentido, num texto prosístico o vocábulo isolado tende para a denotação, e só adquire matiz conotativo quando se leva em conta o conjunto da obra onde se inscreve. Assim, nos dois versos seguintes de Murilo Mendes — “Demoliram uma mulher / a sons de clarinete” (Poesias, 1959, p. 277) —, o sentido literal das palavras nos conduziria à sensação de absurdo, pois cada qual, graças à vizinhança das outras exibe uma variedade praticamente indeterminada de significações. Por outro lado, uma referência como a seguinte — “Quando Eugênio terminou de contar a sua história, o doutor Seixas coçou a barba intonsa e fitou no amigo os seus olhos azuis de criança” (Érico Veríssimo, Olhai os lírios do campo, 12ª. ed. , s.d., p. 190) —, apresenta à primeira vista um único sentido, mas a totalidade da obra nos revelaria outra(s) camada (s) semântica(s) por trás de cada pormenor referente ao Dr. Seixas (“coçou a barba intonsa e fitou no amigo os seus olhos azuis de criança”). V. AMBIGUIDADE E METÁFORA. 13 Teoria da Literatura I Aula 02: Conotação, Recepção, Autoria Tópico 02: Produção e recepção da obra literária VERSÃO TEXTUAL AUTOR -> OBRA -> LEITOR -> OBRA Considerando o mundo encenado pelo texto literário, constatamos que foi um ser humano que o construiu. A esse ser nós denominamos geralmente escritor, ou autor, ou poeta, ou romancista, ou contista. Entretanto, quando lemos um conto, ou um poema, ou um romance, escutamos uma voz que nos fala, que não é necessariamente a locução do autor real. A essa voz, que é fictícia, chamamos narrador, voz narrativa, locutor, voz poética, sujeito poético, eu-lírico ou eu-poético. Ainda pode acontecer, às vezes, de termos um escritor fictício, isto é, um personagem de uma obra, que é um ser de ficção, atuando dentro da escrita como um escritor. Do outro lado da obra, temos o recebedor do texto. Ele pode ser o leitor ou o ouvinte, ou expectador, e pertence ao mundo real. Ele é o ser que entra em contato com a obra, reflete sobre ela, recria o universo fictício a partir de sua própria experiência de vida e sua cultura. Esse ser pode apresentar várias denominações: leitor, recebedor, ouvinte, expectador, destinatário, alocutário... Às vezes, essa diversidade de seres que de alguma forma participam do mundo literário pode levar a alguma confusão quanto a quem é quem, e a que mundo este ou aquele ser pertence. Vamos então exemplificar com uma obra que pode provocar uma atrapalhação no reconhecimento dos seres e seus mundos. A obra em questão é Beira-Mar, do escritor Pedro Nava. O autor identifica a obra como memórias; é, portanto, um texto em que Pedro Nava, já mais velho, conta a história de um jovem personagem chamado Pedro Nava, que passa sua juventude em Belo Horizonte, nos anos em que cursou a Faculdade de Medicina. EXEMPLO Considerando que a narrativa do autor Pedro Nava não é sua vida, mas a representação escrita daquilo que o Nava idoso lembrou e escreveu sobre sua vida de jovem, podemos considerar aqui a existência de pelo menos três seres que se envolvem comessa escrita. Fonte [1] 14 Em primeiro lugar, temos o escritor, o autor Pedro Nava, que teve uma existência real, histórica, que nasceu em 1902 e morreu em 1984, vítima de uma profunda depressão que o levou a suicidar-se com uma bala na cabeça. Esse autor criou um narrador, também chamado Pedro Nava, que pertence ao mundo da ficção, e que relata a história do livro. Esse Pedro Nava narrador nos conta os eventos ligados à juventude de um personagem chamado Pedro Nava, também criado pelo autor Pedro Nava. Temos aí, portanto, três seres que coincidentemente possuem o mesmo nome, mas que têm existências próprias e diversas: há o Pedro Nava autor, o Pedro Nava narrador e o Pedro Nava personagem. O primeiro pertence ao mundo real, e os outros dois habitam o mundo ficcional. FÓRUM No início dos anos sessenta do século XX, surgiu no mercado editorial brasileiro um livro no mínimo curioso: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, negra, favelada, rudemente alfabetizada. O livro, na época, vendeu perto de um milhão de exemplares, um verdadeiro fenômeno editorial. A narrativa é o diário de uma favelada, também chamada Carolina Maria de Jesus, que relata momentos difíceis de sua vida miserável, com dois filhos para criar, sem marido. A linguagem utilizada por ela foi mantida na publicação do livro, e revela momentos de intensa poeticidade, embora apresente desvios da norma culta, como se pode comprovar no trecho abaixo: 1 de julho. Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. (...) Quando passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia pegar quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não gosta que pega. Quando descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar. Neste exercício, vamos refletir sobre a relação entre a obra e o mundo. Procure identificar, na situação acima descrita, os seguintes elementos, apontando alguns traços que os caracterizem: a autora; a narradora; a personagem principal; o mundo real; o mundo fictício. 15 Teoria da Literatura I Aula 02: Conotação, Recepção, Autoria Tópico 03: O autor e a intenção Como se viu no tópico anterior, o autor é o criador da obra literária. Na moderna concepção do fato literário, porém, não se atribui ao escritor o estatuto de senhor da obra, como se fosse um deus onipotente que cria seres e faz deles o que quer. A interferência da vida do autor no texto literário hoje é bastante relativizada. Sua biografia, seu estilo de vida, suas crenças são elementos de importância secundária na análise de uma obra. A compreensão do texto não se subordina mais nem à vida do escritor nem a sua intenção, ao seu “querer dizer”. Pode-se até admitir, como dizia Marcel Proust, importante escritor francês do final do século XIX e início do XX, que haja uma intenção existente no eu literário do escritor (um “outro eu”, um eu fictício), e não no eu físico. A obra literária, portanto, supera a intenção do autor — o texto sobrevive sem ela. Mesmo admitindo-se a intenção do “outro eu”, a significação de um texto nunca se esgota nesse propósito, o sentido do texto não é determinado necessariamente pelo “querer dizer” de quem escreveu. O abalo na autoridade do autor conforme a crítica literária atual derruba um outro mito do passado: o “primado das primeiras recepções”. Como a obra está cronologicamente mais próxima do autor, consideravam-se as primeiras leituras como as mais “corretas”, por serem circunvizinhas do autor e, portanto, de sua intenção ou de seu desejo. Atualmente, não se considera mais a primazia da primeira recepção sobre as demais. Ao contrário, as abordagens subsequentes tendem a enriquecer a obra, ou a diversificar a sua compreensão. Compreender uma obra fora de sua época de publicação significa compreendê-la diferente, e não pior ou melhor. Para um melhor entendimento da autonomia do leitor perante a obra de arte literária, leia o texto “A morte do autor (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)”, de Roland Barthes. Porém, há que se entender que a obra literária não paira absoluta sobre um tempo e um espaço e sua origem é, muitas vezes, ponto de enriquecimento para a interpretação, apesar de não ser obrigatória. Alguns autores, como o brasileiro José de Alencar, ao buscar formar uma identidade nacional na literatura brasileira, traçou um plano literário bem delineado e suas obras apresentam uma espécie de guia de leitura que vem a ser motivo de crítica por alguns pensadores contemporâneos. No entanto, para um maior enriquecimento do trabalho do autor, podemos entender que a interpretação de suas obras podem ser feitas de duas maneiras: 1.excluindo-se a intencionalidade do autor. 16 2.considerando o seu projeto de nacionalização da literatura, em um contexto histórico bem definido. ATIVIDADE DE PORTFÓLIO A QUESTÃO DA INTENCIONALIDADE A controvertida questão da intencionalidade do autor na obra literária é discutida no texto “Intenção e recepção em Iracema, de José de Alencar”, de Cid Ottoni Bylaardt, publicado na Revista de Literatura SCRIPTA, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em junho de 2008. Nesse ensaio, o autor trabalha a ideia de que o sentido de um texto supera sempre as intenções de seu autor, porque os intérpretes e leitores futuros terão uma carga de acumulação histórica adicional em relação a ele. Isso não significa que os intérpretes têm uma compreensão melhor, em que pese sua superioridade histórica em relação ao autor, mas uma compreensão diferente. É sob esse ponto de vista que o autor investiga as relações entre o texto de Iracema, de José de Alencar, as intenções de seu autor, e a recepção da obra no decorrer do tempo e, principalmente, na era contemporânea. Alencar teve para com seu texto cuidados especiais, tentando não permitir que ele errasse pelo mundo ao sabor de variadas interpretações. O que o ensaísta chama “cuidados especiais” são os textos adicionais que normalmente acompanham o romance. São eles: o “Prólogo da primeira edição”, o “Argumento histórico”, a “Carta ao Dr. Jaguaribe”, publicada como posfácio à primeira edição, o “Pós-escrito à segunda edição” e as 116 notas que acompanham os capítulos num montante de textos que seguramente equivalem ao tamanho do próprio romance, quase como se cada palavra da narrativa tivesse um correspondente metalinguístico a explicar-lhe a existência. O que o ensaio pretende demonstrar é que, apesar de tantos cuidados e explicações, o autor não conseguiu evitar que o tempo trouxesse novas visões e interpretações à obra. Antes de fazer a atividade, é necessário que você leia o romance Iracema, de José de Alencar, se ainda não o leu. Ele pode ser encontrado em qualquer biblioteca, ou na internet, no site da Biblioteca Nacional, que indicamos por apresentar o texto completo, e com todas as notas e comentários do autor: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/iracema.pdf [2] (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) Após a leitura da obra e do texto de Roland Barthes, “A morte do autor”, reflita e elabore um texto de aproximadamente 30 linhas, comentando as duas formas de abordagem de Iracema pelo leitor contemporâneo. 17 1. O papel da teoria da literatura; 2. A atitude que o autor de Gargântua espera dos leitores de seu livro; 3. Como as circunstâncias de produção podem ser responsáveis pela recepção da obra em “Pierre Ménard, autor do Quixote”; 4. Como Proust encara a questão de intenção na obra literária; 5. Como se colocam as relações entre texto e contexto na obra; 6. Qual a função do “querer dizer” do autor; 7. A concepção de hermenêutica de Gadamer; 8. A diferença entre “compreender diferente” e “trair” o texto; 9. O conceito de “história efeitual”; 10. Os “cuidados especiais” de Joséde Alencar com seu texto; 11. O conteúdo do “argumento histórico” de Iracema; 12. A preocupação de José de Alencar com a linguagem; 13. A língua “brasileira” de José de Alencar; 14. Alencar e a questão da verossimilhança; 15. As medidas de proteção ao “filho de minha alma”; 16. O primado da primeira recepção; 17. Mesmo com tantos cuidados, pode haver outras leituras de Iracema? 18. A irresistível “visão européia” alencariana; 19. As passagens de Iracema que denunciam o eurocentrismo; 20. A concepção de Sílvio Romero sobre os índios e o Indianismo; 21. As relações entre o que o texto diz e o que o autor quis dizer. Depois, baixe o texto “Intenção e recepção em Iracema", de José de Alencar, clicando aqui (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.). REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. Iracema. Lenda do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1985. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Fontes das Imagens 1 - http://www.ufmg.br/boletim/bol1386/PedroNav.JPG 2 - http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/iracema.pdf 18 Teoria da Literatura I Aula 03: Literatura - O que Diz, o que se Compreende, o que se Aprecia Tópico 01: Como compreendemos um texto literário? A compreensão do texto literário é produto de uma interação entre o leitor e a obra, que leva em consideração todo um acúmulo de experiências passadas tanto do leitor atual quanto de várias outras leituras que a obra sofreu. A ideia de compreensão está muito ligada à de apreciação. Vimos que a compreensão do texto literário não está necessariamente ligada ao querer-dizer do autor; por outro lado, como o discurso da literatura é rico em conotações, haverá, por conseguinte, várias formas de compreendê-lo, ou de apreciá-lo. Segundo T. S. Eliot [1]. Não amamos plenamente um poema se não o compreendemos; e, por outro lado, é igualmente verdadeiro que não compreendemos plenamente um poema se não o amamos. (ELIOT, citado por COMPAGNON, 1999, p. 87) Para o poeta Eliot, compreensão e amor são atitudes próximas quando se trata de literatura. Embora o texto em si seja a fonte privilegiada para a compreensão de uma obra, outros fatores interferem na leitura. Entre eles, alinham-se as circunstâncias da produção da obra, que podem ser importantes para sua compreensão; e as circunstâncias de sua recepção (época, lugar, sociedade etc.), que também podem determinar em grande parte sua compreensão e, consequentemente, a paixão que o texto suscita. É preciso, portanto, levar em conta que compreensão diferente não significa traição ao texto. Não existe, assim, o verdadeiro sentido de um texto; sua recepção certamente será influenciada pelo efeito de acumulação histórica e pelas idiossincrasias do leitor. FÓRUM Vamos estender nossa discussão sobre a constituição do texto literário fazendo uma leitura do conto “Cães, marinheiros”, do escritor português Herbert Helder. O texto foi publicado no livro Os passos em volta, que tem edição brasileira (v. bibliografia), mas pode também ser encontrado, em sua íntegra, no seguinte endereço eletrônico: http://cercarte.blogspot.com.br/2008/10/ces-marinheiros-de-herberto-helder-os.html [2] O texto pode ser lido, numa abordagem social, como uma alegoria da opressão, da falta de liberdade, ou pode ser lido enxergando os eventos narrados como uma reflexão sobre a escrita. Exercite sua percepção do texto literário, discutindo com os colegas as possibilidades de interpretação desse texto. Envie seus comentários sobre a narrativa dos cães e seu marinheiro para o Fórum e depois confira nossos comentários. 19 Teoria da Literatura I Aula 03: Literatura - O que Diz, o que se Compreende, o que se Aprecia Tópico 02: A literatura, o mundo, a recepção Fonte [3] A Poética [4], de Aristóteles, escrita no século IV a.C., é o primeiro texto conhecido de teoria da literatura. Seu autor acreditava que as relações da literatura com a realidade se processavam pela mimese [do gr. mimèsis, 'imitação'], termo mais geral que concebe essas relações. Segundo o pensador grego, a literatura devia imitar o mundo real, representando os homens e suas ações como seres melhores, piores ou iguais aos humanos reais, dependendo da intenção do texto. Até a segunda metade do século XIX, a concepção mimética da literatura predominou no pensamento ocidental, até que, a partir do século XX, principalmente, algumas tendências da reflexão sobre a literatura passaram a apresentar uma visão diferente, e preconizam a autonomia da literatura em relação à realidade, ao referente, ao mundo. O referente, ou assunto, portanto, passa, do ponto de vista dessas tendências, a um segundo plano, ensejando novas relações do texto com a realidade, e o surgimento de novas primazias, como a da forma sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da significação sobre a representação. A teoria da literatura utiliza uma série de termos ligados à relação entre o discurso literário e o mundo. O mito da referência, da mimese, entretanto, ao ser problematizado, principalmente pelas teorias que defendem a absolutização do discurso literário, perde-se na cadeia sem origem nem fim das representações. TERMOS “Imitação”, “representação”, “verossimilhança”, “ficção”, “ilusão”, “mentira”, “realismo”, “referente” ou “referência”, “descrição”. Alguns desses termos já foram usados várias vezes aqui neste estudo, e reaparecerão durante todo o nosso curso. A RELAÇÃO DA LITERATURA COM O MUNDO A PARTIR DE ANTOINE COMPAGNON O crítico e teórico francês Antoine Compagnon, em seu livro O demônio da teoria, assim se posiciona sobre a relação da literatura com o mundo: 20 Assim, na ficção realizam-se os mesmos atos de linguagem que no mundo real: perguntas e promessas são feitas, ordens são dadas. Mas são atos fictícios, concebidos e combinados pelo autor para compor um único ato de linguagem real: o poema. A literatura explora as propriedades referenciais da linguagem; seus atos de linguagem são fictícios, mas, uma vez que entramos na literatura, que nos instalamos nela, o funcionamento dos atos de linguagem fictícios é exatamente o mesmo que o dos atos de linguagem reais, fora da literatura. (COMPAGNON, 1999, p. 135) O mundo ficcional, portanto, passa a ser a referência do leitor quando este se instala nele, suspendendo sua incredulidade e passando a acompanhar a ação supra-real: Os textos de ficção utilizam, pois, os mesmos mecanismos referenciais da linguagem não-ficcional para referir-se a mundos ficcionais considerados como mundos possíveis. Os leitores são colocados dentro do mundo da ficção e, enquanto dura o jogo, consideram esse mundo verdadeiro, até o momento em que o herói começa a desenhar círculos quadrados, o que rompe o contrato de leitura, a famosa “suspensão voluntária da incredulidade”. (COMPAGNON, 1999, p. 137) A expressão “suspensão voluntária de incredulidade” (willing suspension of disbelief) foi cunhada pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, no início do século XIX, para se referir à relação que se estabelece entre o texto e sua recepção. Há, portanto, uma espécie de pacto entre a obra e o leitor, que garante a credulidade deste, por mais estranho que seja o mundo fictício, que normalmente estabelece uma relação de possibilidade com o universo real, a menos que o texto literário subverta o contrato. Considerando a recepção da obra, a literatura vem a ser aquilo que acontece quando o leitor lê, isto é, os recebedores é que determinam a recepção final do texto. Assim, pode-se considerar que os leitores recriam os textos que lêem. Os textos terminam por ser a leitura que os leitores fazem deles. A experiência da leitura é dual, ambígua, dividida, entre compreensão e amor, entre liberdade e imposição, entre a atenção ao outro e a preocupação consigo mesmo. Normalmente, o conjunto de recepções das obras literárias formam as chamadascomunidades interpretativas, que congregam experiências compartilhadas, tanto literárias como extra-literárias (convenções, um código, uma ideologia etc.). No dizer de Antoine Compagnon, As significações não são propriedades nem de textos fixos e estáveis, nem de leitores livres e independentes, mas de comunidades interpretativas, responsáveis ao mesmo tempo pelas atividades dos leitores e dos textos que essas atividades produzem. (COMPAGNON, 1999, p. 162) CHAT Após a leitura do texto da aula, do romance Iracema e revendo as aulas anteriores, reflita e discuta com seus colegas e com o tutor de sua turma, em Chat a ser marcado por ele, as seguintes 21 questões, que vão servir de base para seus comentários e suas perguntas, bem como de seus colegas, durante a conversa: 1. Qual é a diferença entre compreender e apreciar um texto literário? 2. Além do texto em si, que outras circunstâncias podem influenciar na compreensão de um texto literário? 3. No caso de um mesmo texto proporcionar diferentes interpretações de diferentes receptores, poderemos considerar esse traço como uma virtude ou um defeito do texto literário? 4. É possível atingir o verdadeiro sentido de um texto literário? 5. Qual é a concepção aristotélica de literatura e representação do mundo? 6. Que relação se pode estabelecer entre a obra e a recepção? 22 Teoria da Literatura I Aula 03: Literatura - O que Diz, o que se Compreende, o que se Aprecia Tópico 03: Estilo e juízo de valor O discurso literário é marcado por seu estilo. Mas o que é o estilo? Essa palavra assume diversas conotações no decorrer da história da literatura: pode ser a individualidade de um artista, a singularidade de uma obra, uma escola literária, um gênero. Desde Aristóteles (384 a 322 a.C.), a noção de estilo assume vários aspectos, conforme as crenças de uma época em determinada sociedade: Aspectos do estilo literário 1 - O estilo é uma norma Em certas épocas, como a clássica, considerava-se o “bom estilo” como um modelo a ser imitado, um cânone, isto é, uma obra consagrada por sua excelência. São autores dignos de imitação: Anacreonte, Sófocles, Dante Alighieri, Shakespeare, Camões etc. 2 - O estilo é um ornamento Variação contra um fundo comum, efeito ou “toque especial” conferido a uma determinada obra por um certo autor (a suspeita que plana sobre o estilo: bajulação, hipocrisia, mentira, imperfeição moral). 3 - O estilo é um desvio Em relação ao uso corrente da língua (“há várias maneiras de dizer a mesma coisa”). Essa concepção de estilo é que torna inconfundível, por exemplo, a escrita de Machado de Assis ou de Guimarães Rosa, a escrita que carrega a marca do gênio. 4 - O estilo é um gênero ou um tipo Nesse caso, o estilo é ditado pela conveniência do discurso segundo a necessidade da situação. Na retórica clássica, essas modalidades de discurso eram as seguintes: stilus humilis (simples); stilus mediocris (moderado); stilus gravis (elevado ou sublime). Conforme os objetivos do locutor, os discursos tinham como finalidade probere (provar), delectare (encantar) ou flectere (comover). Os estilos literários eram divididos desde a Grécia clássica em épico (relato de uma história), lírico (expressão da subjetividade e das emoções do locutor) e dramático (representação de um história). Essas três últimas modalidades serão estudadas num capítulo à parte, pela importância que assumem na teoria da literatura até os dias de hoje. 5 - O estilo é um sintoma, uma assinatura Nesse caso, o estilo é considerado como a visão singular, a marca do sujeito no discurso (a partir do século XVII, com a consolidação dos valores burgueses), a determinação de um cânone, do valor de mercado, a avaliação mensurável (a partir de fins do século XVIII). 23 6 - O estilo é uma cultura A alma de uma nação, de uma raça, a unidade da língua e as manifestações simbólicas de um grupo ensejam o aparecimento de um modelo global, um motivo dominante. Ainda segundo Antoine Compagnon, O estilo, pois, está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa, rica, ambígua, múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores à medida que adquiria outras, a palavra acumulou-as e hoje pode comportá-las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, é tudo isso que queremos dizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos de um estilo. (COMPAGNON, 1999, p. 173) A linguística condena a noção tradicional de estilo, baseada no dualismo, na noção de que determinada modalidade linguística é “boa” ou “ruim”. De forma semelhante, a literatura contemporânea não mais considera o julgamento de uma obra literária em termos de modelos ou de certas formas mais ou menos consagradas de “bom gosto”. Dizer de forma diferente uma coisa é dizer a mesma coisa? O estilo implica uma escolha entre diferentes maneiras de dizer a mesma coisa (tornando-as diferentes). A sinonímia, por exemplo, que é um rico recurso das línguas que admite várias maneiras diferentes de se dizer coisas semelhantes, pressupõe a referência (uma coisa a ser dita), e a intenção (uma escolha entre diferentes maneiras de dizer). Uma revisão do conceito de sinonímia pode salvar o estilo: Em outros termos, para salvar o estilo, não se é obrigado a crer na sinonímia exata e absoluta, mas somente admitir que há maneiras muito diferentes de dizer coisas muito semelhantes e, inversamente, maneiras muito semelhantes de dizer coisas muito diversas. Excetuando-se sua concepção como norma, prescrição ou cânone, o estilo continua vivo em três aspectos principais: a) como variação formal de um referente mais ou menos estável; b) como um conjunto de características de uma obra que permite a identificação do autor; c) como escolha entre várias escrituras. A discussão acerca do estilo nos leva a uma outra questão: as avaliações literárias podem ter um fundamento objetivo ou mesmo sensato? Em toda a trajetória da arte e da literatura na chamada civilização ocidental, deparamo-nos com conceitos ligados ao valor, tais como: cânone, tradição, clássicos, grandes escritores, panteão, obra-prima, autoridade, originalidade, revisão, reabilitação. 24 O cânone, por exemplo, é o patrimônio de uma literatura, que a memória coletiva consolidou como uma classificação relativamente estável. O valor literário, entretanto, é relativo, instável: as obras entram e saem do cânone ao sabor das variações do gosto, cujo movimento não se faz racionalmente. Conclui-se, portanto, que não há padrões definidos de excelência para uma obra literária. LEITURA COMPLEMENTAR O texto, de Antoine Compagnon, coloca em evidência a questão do valor relacionado à literatura. Clique aqui. (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) REFERÊNCIAS COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Edições Século XXI, 2000. Fontes das Imagens 1 - http://pt.wikipedia.org/wiki/T._S._Eliot 2 - http://cercarte.blogspot.com.br/2008/10/ces-marinheiros-de-herberto-helder-os.html 3 - http://images.livrariasaraiva.com.br/imagemnet/imagem.aspx/?pro_id=3672824&qld=90&l=430&a=-1 4 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Po%C3%A9tica_(Arist%C3%B3teles) 25 Teoria da Literatura I Aula 04: Metalinguagem e Intertextualidade Tópico 01: Metalinguagem Metalinguagem é a linguagem utilizada para falar sobre outra linguagem. Ela compreende todo discurso acerca de uma língua. Na literatura, a metalinguagem é praticada por um crítico que investiga as relações e estruturas presentes na obra literária, ou por um autor que explica seu próprio fazer literário ou de outrem. Temos, assim, basicamente dois tipos de metalinguagem: a metalinguagem linguística (definições dos dicionários, regras gramaticais, explicações de textos etc) e a metalinguagem literária, da qual nos ocuparemos mais detidamente aqui. Essa última ainda pode ser subdividida em metalinguagemliterária ensaística (artigos e ensaios que falam sobre a literatura e sobre obras literárias) e ficcional (obras literárias que falam sobre a linguagem literária). Temos então a poesia que fala da poesia, ou a narrativa sobre a narrativa, por exemplo. São termos relacionados: metapoema, metanarrativa, metapoesia, metarromance. OUTRA DEFINIÇÃO DE METALINGUAGEM O exemplo abaixo consiste em um texto retirado do Dicionário Houaiss, em que o verbete metalinguagem é definido, sendo portanto um texto metalinguístico, uma metalinguagem linguística. Metalinguagem s.f. (sXX cf. AGC) LING linguagem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial [As línguas naturais podem ser us. como sua própria metalinguagem.] <a m. gramatical e a m. lexicográfica> ETIM met(a)- + linguagem, por infl. do fr. Métalangage (1963) ‘id.’, voc. Us. por Roman Jakobson; no fr., o voc. deve-se prov. à influência do pol. Metajezyk (1931) ‘id.’, voc. Empregado por Tarski; o t. foi emprestado ao al. metasprache (1935) e ao ing. Metalanguage (1936) ‘id.’ 26 SIN/VAR metalíngua. O ensaio que você leu na aula 2, chamado “Intenção e recepção em Iracema, de José de Alencar”, é um exemplo de metalinguagem literária ensaística. No caso, temos um discurso, produto de uma pesquisa e de uma reflexão, que disserta sobre um outro discurso, o discurso literário de José de Alencar. A seguir, apresentamos dois poemas que falam sobre a poesia, constituindo exemplos de metalinguagem literária ficcional. Poema 01 Desencanto Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... Remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. ─ Eu faço versos como quem morre. (BANDEIRA, 1993, p. 43) O texto acima apresenta uma concepção de poesia. Para o eu-lírico, seus versos são altamente subjetivos, contêm alta dose de emoção e são fruto do sofrimento do poeta. Poema 02 Vejamos agora um outro texto que fala sobre o fazer poético, do poeta português contemporâneo Herberto Helder. O poema Um poema cresce inseguramente na confusão da carne. Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue nos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes mi- núsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, rios, a grande paz exterior das coisas, folhas dormindo o silêncio — a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as casas deitadas nas noites e as luzes e as trevas em volta da mesa e a força sustida das coisas e a redonda e livre harmonia do mundo. — Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. — E o poema faz-se contra a carne e o tempo. (HELDER, 2004, p.28) 27 No poema acima, Herberto Helder estabelece uma relação entre o poema e o mundo. Ele nasce da carne, sua origem é humana, mas à medida que se forma separa-se do mundo, com suas gêneses, suas violências, seus amores e elementos naturais. O poema, em sua trajetória, abarca o mundo, supera-o, torna-se infenso a seu poder, diante do olhar perplexo de seu criador, que “ignora a espinha do misté-rio”. O poema é imaterial e intemporal. ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Você tem abaixo atividades relacionadas ao assunto metalinguagem. Você deverá fazer as quatro, e enviar suas respostas para o Portfólio do Ambiente Solar. Para visualizar a atividade, Clique aqui (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.). 28 Teoria da Literatura I Aula 04: Metalinguagem e Intertextualidade Tópico 02: Intertextualidade A intertextualidade consiste na apropriação de um texto por outro. Essa apropriação se dá por meio da citação, da epígrafe, da alusão ou referência, da imitação (servil ou não) de um estilo, etc. O processo intertextual está na percepção do leitor de relações entre um texto e outros que o precederam, isto é, o reconhecimento num texto de palavras, expressões, frases, versos, parágrafos, às vezes páginas inteiras de outros textos. Esses “outros textos” podem ser outras obras de ficção ou não, mitos, provérbios, escritos publicitários, orações, letras de canções populares, histórias da tradição oral etc. Atualmente, a literatura é vista muitas vezes como um mosaico de citações, tal a intensidade com que os textos dialogam entre si. Assim, mais do que estabelecer uma relação entre as palavras e as coisas, a escrita estabelece muitas vezes relações entre um texto e outro texto, entre uma palavra e outra palavra, entre um signo e outro signo. Nessa concepção, toda escrita é intertextual, principalmente se considerarmos como intertextualidade a própria reutilização de cada signo. A intertextualidade conduz, então, à noção de dialogismo, às relações que todo enunciado mantém com outros enunciados. Há, evidentemente, determinados textos que nos mostram com mais clareza a presença de outros discursos; conforme sua intenção, esses textos podem ser chamados de paráfrase ou de paródia. LIVRO Paráfrase A paráfrase consiste no diálogo com outros textos conservando-lhes basicamente o sentido do escrito primitivo, como uma homenagem ao texto original, ou com intenção didática. 1. Exemplo: “Passando-me a mão pelos cabelos, falou o poeta irônico: ‘Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução.’ Com os olhos postos no céu, braços erguidos, o poeta místico indagava: ‘─ Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco? ─ Eu tenho as mãos cansadas o barco voa dentro da noite.’ E, saltitando, cantarolava o poeta sem nome: “Pirolito que bate, bate, Pirolito que já bateu, 29 Quem gosta de mim é ela Quem gosta dela sou eu...” Depois, braços dados, volteando em redor de mim e acompanhados pelo chefe de trem, que soprava um grande trombone, cantavam a una voce: ‘Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração’.” (ANJOS, 2000, p. 226) Nesse exemplo, retirado do romance O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, o narrador conta um sonho que teve, em que fazia uma viagem de trem e três passageiros se apresentaram a ele como poetas, recitando os trechos reproduzidos. No texto do amanuense, os poemas, respectivamente de Carlos Drummond de Andrade, de Emílio Moura, da cultura popular e novamente de Drummond, trazem para o sonho do personagem o clima original das obras citadas, ou seja, a ironia, o misticismo, o divertimento infantil. A mistura dos estados de espírito dos textos compõe a atmosfera confusa e instável do sonho. A paródia é um recurso intertextual que produz uma transformação, ou uma deformação das ideias do texto original, com a intenção de ridicularizar, contestar, desafiar, ou simplesmente inverter o sentido do texto parodiado. TEXTO ORIGINAL: CANÇÃO DO EXÍLIO “Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite - Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores 30 Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras Onde canta o Sabiá.” (DIAS, 1998, p.15) TEXTO PARODÍSTICO CANÇÃO DO EXÍLIO Minha terra tem madeiras da Califórnia Onde canta gaturamos de Veneza. Os poetas da minhaterra São pretos que vivem em torres de ametista, Os sargentos do exército são monistas, cubistas, Os filósofos são polacos vendendo a prestações. A gente não pode dormir com oradores e pernilongos. Os sururus em minha família têm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia. Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade E ouvir um sabiá com certidão de idade! (MENDES, 1988, p.21) A “Canção do exílio” de Gonçalves Dias foi escrita em 1843, quando o escritor se encontrava em Coimbra, Portugal. Aquele era um momento de afirmação da nacionalidade brasileira, e o patriotismo ufanista era uma temática constante; o poema, portanto, reflete essa supervalorização da pátria por parte do poeta. A grandeza do Brasil é aqui reafirmada pela utilização de signos de amor à pátria: palmeiras, sabiá, estrelas, flores. A referência ao poema de Gonçalves Dias é óbvia no texto de Murilo Mendes, a começar pelo título homônimo. Aqui, o lugar designado por minha terra é um mosaico de elementos locais impregnados de cultura européia e norte-americana, a começar pelas macieiras e pelos gaturamos. À estabilidade dos símbolos pátrios citados por Gonçalves Dias, opõem-se elementos diversificados que apontam para um identidade cultural brasileira ainda bastante indefinida. A diversidade étnica e cultural varia dos poetas pretos aos filósofos polacos; militares são influenciados por teorias cientificistas do século XIX - monismo - e por propostas estéticas futuristas - cubismo. Os oradores constituem uma praga comparável à dos pernilongos, e as brigas de família são emolduradas por obras de arte, como a Gioconda. Ainda assim, o estrangeiro sufoca o poeta, que se sente exilado em sua própria terra, e sonha em usufruir de uma pátria verdadeira, com flora e fauna autênticas. 31 FÓRUM Releia a canônica “Canção do exílio” de Gonçalves Dias. Clique aqui (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) para baixar o poema de José Paulo Paes, que estabelece um diálogo intertextual com o texto do poeta romântico. Redija um comentário de aproximadamente dez linhas, explicando como se dá essa intertextualidade, e se ela tem caráter parodístico ou parafrásico, e por quê. Poste no Fórum e discuta as diferenças entre os comentários com seus colegas. Fontes das Imagens 32 Teoria da Literatura I Aula 04: Metalinguagem e Intertextualidade Tópico 03: Intertextualidade e Originalidade Chamaremos intertextualidade esta inter-ação textual que se produz no interior de um único texto. Para o sujeito cognoscente, a intertextualidade é uma noção que será o indício do modo como um texto lê a história e nela se insere. O modo concreto de realização da intertextualidade num texto preciso dará a característica maior (‘social’, ‘estética’) de uma estrutura textual. (AGUIAR E SILVA, 1968, p. 620). Formas de apresentação da intertextualidade Quanto à forma como a intertextualidade aparece em um texto,ela pode se chamar... Citação Citar um texto é transcrevê-lo tal como ele aparece em seu original. Esse recurso é muito comum em trabalhos científicos, por exemplo, em que outros autores concorrem para conferir autoridade a um determinado estudo. Epígrafe A epígrafe é um tipo de citação de outro autor que antecede um poema, um conto, um capítulo de um livro, um romance etc. O texto que aparece na epígrafe em geral guarda alguma relação com o texto que se vai escrever. Alusão Aludir é fazer referência a um texto, ao seu autor, a algum personagem de outra obra, ou a algum acontecimento marcante que aparece em algum livro. Bricolagem A bricolagem é uma montagem feita de vários textos para produzir outro. Pastiche Fazer um pastiche é imitar o estilo de outro autor. Num sentido mais antigo, o pastiche era considerado uma imitação de baixa qualidade, subalterna, que um escritor “menor” fazia de um texto de um escritor “maior”. Numa concepção contemporânea, a ideia de pastiche não envolve juízo de valor. É importante lembrar que as formas de intertextualidade comentadas acima não devem ser confundidas com paráfrase e paródia, que pertencem a outra categoria. Assim, podemos ter uma citação parafrásica ou parodística, ou uma alusão idem, e assim por diante. A questão da originalidade O recurso à intertextualidade remete a uma questão polêmica na arte e na literatura: a questão da cópia, do plágio, que contemporaneamente é bastante relativizada. Um caso curioso de acusação de plágio é o que aconteceu com o Macunaíma, de Mário de Andrade. 33 Em 20 de setembro de 1931, Mário de Andrade publicou no jornal Diário Nacional uma carta pública dirigida ao antropólogo Raimundo de Morais. Este, agindo com malícia dissimulada em ingenuidade defensora, comenta, num verbete de seu Dicionário de Cousas da Amazônia, que pessoas “maldizentes” insistiam em que o livro Macunaíma era plagiado da obra do naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, Von Roraima zum Orinoco. O dicionarista acata o boato, mas diz que duvida de sua veracidade, pois acredita que o romancista paulista “possui talento e imaginação que dispensam inspirações estranhas”. Raimundo de Morais esperava, naturalmente, que Mário se defendesse, mas o pai adotivo de Macunaíma surpreendeu os defensores da originalidade intelectual declarando solenemente sua condição de plagiador (1999, p. 165): Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa. Neste mea culpa, Mário investe descaradamente sobre a noção de propriedade textual, de autoria e de originalidade até então considerados, pelos guardiães do texto sagrado, do texto peça de museu, elementos fundamentais do processo de criação. Em sua exposição, o romancista de Macunaíma revela a ignorância dos eruditos “maledizentes”, entre os quais se inclui o próprio Raimundo de Morais, que não perceberam que o plágio era de toda uma cultura, e não apenas de um livro, comparando-se aos “rapsodos de todos os tempos”, que “transportam integral e primariamente tudo o que escutam ou lêem para seus poemas” (1999, p. 164). Mário, em Macunaíma, copia o Brasil, mostrando sua cara e satirizando-o, mas não abre mão de sua autoria: “Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar”. Do livro do alemão, Macunaíma se libertou e ampliou suas fronteiras inicialmente nortistas, agregando a si e a sua ação “modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosíssima língua portuguesa” (1999, p. 165). Fica aí declarada a condição parodística da escrita, a escrita de segunda mão, a apropriação dos enunciados, tantos e tão diversos que compõem um patchwork linguístico proposital. EXERCITANDO Clique aqui (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.). REFERÊNCIAS AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1968. ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo (inclui Alguma poesia e Brejo das almas). Rio de Janeiro: Record, 2001 ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Madrid: Scipione Cultural, 1997. ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo. Secretaria do Estado da Cultura, 1990. ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2000. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1993. 34 BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.DIAS, Antônio Gonçalves. Primeiros cantos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1995. MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. 21 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. MENDES, Murilo. Poemas e Bumba-meu-poeta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. PAES, José Paulo. Melhores poemas. São Paulo: Global, 2000. PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993. 35 Teoria da Literatura I Aula 05: Gêneros Literários Tópico 01: O gênero narrativo A divisão dos textos literários nos três gêneros hoje conhecidos foi proposta na Renascença a partir das considerações do filósofo grego Aristóteles, que viveu no século IV a. C. Os textos foram então divididos em três grandes gêneros: épico, dramático e lírico. Em sua Poética, Aristóteles descreveu os gêneros épico e dramático, mas não chegou a detalhar o gênero lírico. Supõe-se que ele o tenha feito em outra obra, que se perdeu. Gênero Épico Ou narrativo, é o relato da história de um povo, representado por um herói que vivencia um espírito de coletividade com seu povo. Tinha caráter didático. Evoluiu da conceituação clássica para a contemporânea como “narrativa”. Gênero Dramático É a representação, a encenação de uma história de um herói nobre, ainda ligado à coletividade, mas em uma luta individual. Atualmente caracteriza os textos teatrais. Gênero Lírico Considerado pelos gregos como uma modalidade menor, por ser mais condizente com o temperamento feminino, é a expressão da subjetividade, das emoções. Essa tripartição caracterizava-se pela pureza: os elementos definidores de cada gênero deviam ser preservados de forma integral pelos bons autores. A manutenção dessa pureza era uma das condições de excelência dos escritores da época. Com a modernidade (século XVIII), inicia-se a violação dos gêneros; atualmente, eles são questionados, transgredidos, mas não estão mortos. Mesmo com a violação generalizada de hoje, percebe-se que a noção de gêneros continua pertinente, ainda se consegue perceber uma atitude predominante nos textos, ou seja, uma narrativa continua sendo uma narrativa, um texto lírico apresenta características inconfundíveis, e a atitude dramática predomina com evidência em determinadas obras. Há, entretanto, obras quase inclassificáveis pela teoria clássica dos gêneros, pelo grau de hibridismo de atitudes que apresentam, como o Romanceiro da inconfidência, de Cecília Meireles, o “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias, Eles eram muitos cavalos, de Luís Rufatto, Não entres tão depressa nesta noite escura, de António Lobo Antunes, O livro das comunidades, de Maria Gabriela Llansol e muitas outras. O GÊNERO ÉPICO OU NARRATIVO Podem-se identificar os seguintes elementos como característicos da narrativa: o narrador, a ação, os personagens, o tempo e o espaço. Tentemos perceber esses elementos nos textos abaixo. O socorro 36 Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, veio o silêncio das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: “O que é que há?” O coveiro então gritou, desesperado: “Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!” - “Mas, coitado!” - condoeu-se o bêbado - “Tem toda a razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!” E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente. Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para quem se apela MILLÔR FERNANDES O texto acima, de Millôr Fernandes, pode ser encontrado no seguinte site: http://www.lainsignia.org/2005/agosto/cul_004.htm [1] Comentário sobre o texto: Percebe-se no texto de Millôr Fernandes a voz de alguém que nos conta uma história. Esse alguém, que não pode ser identificado, é um narrador de terceira pessoa. A impressão que se tem é que o ser que narra presenciou os fatos relatados. Os fatos, por sua vez, constituem a ação, ou o enredo, e apresentam uma progressão bastante lógica e linear, o que favorece a surpresa humorística apresentada no desfecho. Os personagens são seres simples, bem definidos: o coveiro e o bêbado. O coveiro cava, enquanto o bêbado pratica atos típicos de estados alterados de consciência. O tempo da narrativa é cronológico, e pode ser estimado em algumas horas. Finalmente, o espaço do cemitério também é bem determinado e torna-se importante fator de suspense que conduzirá ao contraste com o humor do final. Vejamos agora outro texto, em que esses elementos não aparecem assim com tanta clareza: De como não fui ministro d’Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 . . . . . . . . . . . . . . . . . . (ASSIS, 1961, p. 376) O texto acima é um capítulo do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Graficamente, ele apresenta um título e vários “pinguinhos” no lugar da narrativa propriamente dita. Apesar de não propiciarem uma leitura convencional, os pontinhos querem dizer algo, e esse sentido está em grande parte condicionado à leitura do próprio romance. O autor-defunto, ou autor fictício, que funciona como narrador, é Brás Cubas, um sujeito vaidoso que morreu solteirão. Conhecendo o autor- personagem, percebemos que o título já deixa entrever a frustração de Brás Cubas, para quem a honraria de ser ministro de estado é algo de suma importância na vida social. A ação, portanto, é a negação de uma ação, ou seja, ele “narra” o que não aconteceu, mas que ele gostaria de que tivesse acontecido, e evidentemente o que é negativo na vida do narrador não merece ser relatado com profusão de detalhes. O leitor, se quiser, que adivinhe o que não aconteceu. Quanto aos personagens, o único que aparece é o próprio Brás Cubas, representado pelo pronome “eu” implícito na forma verbal “fui”. O tempo é indefinido, obviamente porque a ação não aconteceu, e o espaço, sabe-se que é o Rio de Janeiro da época do império, cuja elite se caracterizava pela vaidade e pela busca de honras, títulos e muito dinheiro. Os Elementos da Narrativa LIVRO NARRADOR A voz que conta uma história é de importância fundamental no gênero épico, visto que ela é que vai dar o tom ao relato, isto é, ela é que vai determinar o foco narrativo, o ponto-de-vista sob o qual os acontecimentos são veiculados ao leitor. Nas primeiras narrativas da civilização ocidental, tínhamos a voz das musas, a voz dos deuses, nos mitos e epopéias. Atualmente, a voz no romance é a que exerce maior fascínio sobre o leitor, o narrador é hoje um ser que não fala; ele escreve sobre si mesmo (primeira pessoa) ou sobre outrem (terceira pessoa). Ele apresenta uma visão de perto ou de longe, observação externa ou interna, em que penetra na psicologia da personagem. Essa voz é aparentemente poderosa, já que ela é que vai conduzir a narrativa. Entretanto, nem sempre ela se apresenta como auto-suficiente e autônoma, como ocorre geralmente com o narrador alencariano. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, temos o narrador que não sabe mas quer saber, e questiona os que acham que sabem, em Memorial de Aires, tambémde Machado de Assis, há o narrador sem feitos e sem ambições, em Dom Casmurro, ainda de Machado de Assis, há 38 o narrador claudicante, atormentado, que quer passar ao leitor a certeza de que foi traído e de que sua vingança é legítima, mas não convence ninguém, desviando a simpatia do leitor para a mulher supostamente adúltera; em Menino de engenho, de José Lins do Rego, apresenta-se uma voz narrativa vacilante entre menino e adulto; em Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, temos o monólogo da missão e do destino inalterável. NARRADOR Com relação à perspectiva sobre os fatos narrados, o narrador pode ser de primeira ou de terceira pessoa. No primeiro caso, pode haver variações: o personagem principal relata sua história, ou uma personagem secundária relata a história do protagonista. A atitude do narrador de terceira pessoa pode variar entre aquele que sabe de tudo o que acontece e o que apenas observa os acontecimentos. O primeiro é o narrador onisciente, conhece tudo sobre a história e a intimidade (inclusive psicológica) das personagens. Às vezes esse ser onisciente chega a interferir na história, dando conselhos aos personagens e influenciando em seu comportamento: esse é o narrador intruso. No segundo caso, temos o narrador observador, que se limita a observar e relatar os acontecimentos, comunicando apenas o que está ao seu alcance. Outra modalidade de apresentação do narrador é a que propicia focos narrativos múltiplos. É um recurso que aparece na narrativa moderna, e se torna mais frequente nos textos contemporâneos, contemplando a presença de pontos de vista variados, com mistura ou não de pessoa. Em Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo, o protagonista, na “Carta pras Icamiabas”, assume a narrativa, que até então se fazia em terceira pessoa. Em Um copo de cólera, de Raduan Nassar, o narrador masculino dos seis primeiros capítulos cede a condução do texto no sétimo e último capítulo a uma voz feminina, que encerra a novela e revela a fraqueza e a carência do narrador masculino anterior. Em Nove noites, de Bernardo Carvalho, há a presença de dois narradores que relatam os acontecimentos relacionados ao suicídio do etnólogo norte-americano Buel Quain em épocas e locais diferentes, assumindo, evidentemente, pontos-de-vista também diferentes. Outro autor importante da literatura portuguesa contemporânea, António Lobo Antunes, usa frequentemente o recurso de narradores múltiplos, embaralhando as “verdades” ficcionais. Quanto às atitudes do narrador, pode ser de envolvimento com o leitor, com quem ele dialoga, como ocorre em Machado de Assis; de autoridade em relação aos fatos narrados (ou mesmo de ausência de autoridade narrativa); ele pode ser um narrador memorialista, cuja atitude é de recordação; ele pode assumir uma postura crítica e irônica, ou lírica e melancólica; pode apresentar maior ou menor grau de subjetividade (introspecção) ou de objetividade (extroversão); pode ser alguém otimista, ou pessimista. NARRADOR X AUTOR 39 Uma questão importante na narrativa é não se confundir autor com narrador. Este pertence ao mundo ficcional, enquanto aquele tem sua existência no chamado mundo real. Quando Brás Cubas declara, por exemplo ser um “defunto autor” em Memórias póstumas de Brás Cubas, ele é naturalmente um “autor ficcional”, e na narrativa em questão ele faz as vezes de narrador. Nesse caso, o narrador chama-se Brás Cubas e o autor chama-se Machado de Assis. Sobre esse assunto, vamos relembrar aqui o Exercitando do tópico 2 da aula 2. Se você refletiu bem sobre o exercício na época, você deve ter achado que a autora é a Carolina Maria de Jesus, uma favelada negra e semi-analfabeta que viveu em São Paulo em meados do século passado, um ser do mundo real que escreveu um livro chamado Quarto de despejo. A narradora também se chama Carolina Maria de Jesus, mas esta é o ser de ficção que fala nas páginas do livro mencionado, a voz ficcional que ouvimos ao ler a obra. A personagem principal é também um ser chamado Carolina Maria de Jesus, mas esta é o ser fictício sobre a qual a Carolina Maria 2 conta a história. Assim, a Carolina Maria 1 acima mencionada pertence ao mundo real, enquanto as Carolinas Marias 2 e 3 pertencem ao mundo ficcional. A prova disso é que a primeira já morreu, e as outras duas não morrerão jamais. Para terminar, o mundo real é a São Paulo verdadeira onde viveu a Carolina Maria 1, enquanto que o mundo fictício é a São Paulo descrita nas páginas do relato. AÇÃO OU ENREDO Enredo, ou ação, ou trama é uma sequência de acontecimentos ordenados de acordo com a vontade do escritor. O enredo tradicionalmente se inicia com uma situação estável; no decorrer da trama, ocorre um conflito, que conduz ao clímax, e finalmente ao desfecho. A narrativa pós-moderna tende a subverter essa fórmula, misturando esses elementos ou suprimindo algum (uns). A ação pode ser externa ou interna. A ação externa refere-se aos fatos palpáveis: uma viagem, uma luta, uma cena de amor, por exemplo, e sua predominância é própria da ficção linear. A ação interna compõe-se de reflexões, de introspecções, passando-se no consciente ou no subconsciente das personagens. Não há a ação interna ou externa em sua forma pura; podemos dizer que há em determinada narrativa uma predominância maior ou menor desta ou daquela. Outra questão que se coloca em relação à ação é a da verdade ficcional ou da verossimilhança. O universo ficcional possui leis próprias, e supõe-se que o leitor concorde com as regras da ficção, por mais absurdas que elas possam parecer; caso contrário, é melhor o leitor fechar o livro e abrir uma revista, ou um jornal. Mesmo que a obra não apresente uma correspondência de verdade com o mundo real, espera-se que ela tenha uma verossimilhança interna, de acordo com a proposta do escritor. Leia o depoimento da escritora Lygia Bojunga Nunes a respeito dessa liberdade de invenção do escritor: 40 “A liberdade de fazer uma cena, um parágrafo, um capítulo do jeito que a minha imaginação pedia e não do jeito que esperavam de mim. Era só eu cismar que botava o Maracanã cheinho dentro de uma cena. (...) E era só querer, que eu fazia cena atrás de cena só com um gato- pingado. Ou sem nenhum. Eu podia fazer um capítulo de três linhas. Ou de três páginas. Ou de trinta. Nossa! Querendo, eu botava um barco dentro do livro. Eu botava bicho. E ainda por cima fazia ele falar. E fazia o barco chorar, tá bem? Puxa, eu podia tudo". NUNES, 1988, p. 54 PERSONAGENS Personagens são seres inventados, fictícios, semelhante a seres humanos, ou a animais, ou mesmo a seres inanimados (que adquirem vida na narrativa). São classificados em dois grupos, conforme suas características básicas: Por um lado, há os personagens quadrados, bidimensionais, dotados de altura e de largura, mas não de profundidade; geralmente apresentam um só defeito ou qualidade. Em sua forma mais reduzida, são meros tipos ou caricaturas. São também chamados planos, chatos, rasos, superficiais ou simples. Por outro lado, há os personagens redondos ou tridimensionais: esses são dotados de profundidade, séries complexas de qualidades e defeitos (caracteres). Designam-se também como profundos ou complexos. APRESENTAÇÃO DOS DISCURSOS DOS PERSONAGENS Normalmente, o “dono” da voz narrativa é, como se viu, o narrador. Entretanto, o narrador concede eventualmente aos personagens o poder de se expressar. Isso é feito de três maneiras principais. O discurso direto é a representação exata do discurso falado ou pensado pela personagem. Geralmente o narrador apresenta a personagem, antes de transcrever seu discurso, que geralmente vem entre aspas ou precedido de travessão. No discurso indireto, o narrador nos conta, de seu ponto de vista, o que a personagem teria falado ou pensado. 41 O terceiro tipo, o discurso indireto livre, é umtanto ambíguo: a fala da personagem se funde à do narrador, sem o auxílio de um verbo dicendi (próprio do discurso indireto) nem de sinais gráficos como aspas e travessões (próprios do discurso direto). Temos aí a interferência da fala da personagem no plano do discurso do narrador. Exemplos: Discurso direto: “ (...) mas mesmo assim eu fui em frente “que tanto você insiste em me ensinar, hem jornalistinha de merda? que tanto você insiste em me ensinar se o pouco que você aprendeu da vida foi comigo, comigo” e eu batia no peito e já subia no grito, mas um “ó! honorável mestre!...” ela disse (...)” NASSAR, 1999, p.45 Discurso indireto: “Foi nesse sertão primitivo e rude que Arinos me contou ter sentido talvez a maior, a mais pura das sensações de arte.” CUNHA, 1981, p.451 Discurso indireto livre: “Não era a primeira vez que sucedia aquilo — o fiasco daquele engano. Amanhã, seriam os comentários na rodinha do sura antipático, sem rabo ainda, sem sem voz ainda, pescço pelado, e já metido a galo. Na do sura e na do garnisé branco — esse, então, um afeminado de marca, com aquela vozinha esganiçada e o passinho miúdo. João Fanhoso fechou os olhos, mal-humorado. A sola dos pés doía, doía. Calo miserável!” CUNHA, 1981, p.454 TEMPO O tempo em uma narrativa pode ser considerado sob três perspectivas principais: o tempo da narrativa (ou tempo do enunciado), o tempo da narração (ou tempo da enunciação), e o tempo da recepção ou da leitura. Com relação ao tempo da narrativa, ele pode ser histórico ou psicológico. O tempo cronológico ou histórico é marcado em horas, dias, meses, anos, estações etc. Ele pode apresentar digressões ou flash-backs (quebra da linearidade para introdução de episódios mais remotos ou reflexões). O tempo psicológico ou metafísico é o que flui dentro das personagens, sem começo, meio ou fim. ESPAÇO O espaço é o cenário onde se desenvolve a ação. Em alguns casos ele funciona como pano de fundo, sem muita interferência na narrativa; em outros, pode-se tornar um prolongamento da psicologia das personagens. 42 TEMA O tema é a proposição, a postura da voz literária diante do assunto tratado, o objetivo do locutor, aquilo que ele pretende desenvolver ou provar. Um possível tema para a narrativa do coveiro e do bêbado lida neste capítulo, por exemplo, seria “quem se entrega inteiramente ao trabalho arrisca a própria vida”, ou “é preciso ter cuidado ao pedir socorro a alguém que você não conhece”. ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Clique aqui (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) para ler os textos, identifique e classifique os seguintes elementos da narrativa: narrador, ação, personagens, tempo e espaço. Suas respostas devem ser enviadas para o Portfólio. 43 Teoria da Literatura I Aula 05: Gêneros Literários Tópico 02: O gênero dramático O texto dramático também apresenta características peculiares, a começar pelo fato de que esse tipo de texto surgiu para ser representado, e não propriamente para ser lido. Imaginemos o texto que segue sendo representado em um palco por atores: EXEMPLO PADRE: Você faz tudo? SACRISTÃO: Faço. MULHER: Em latim? SACRISTÃO: Em latim. PADEIRO: E o acompanhamento? JOÃO GRILO: Vamos eu e Chicó. Com o senhor e sua mulher, acho que já dá um bom enterro. PADEIRO: Você acha que está bem assim? MULHER: Acho. PADEIRO: Então eu também acho. SACRISTÃO: Se é assim, vamos ao enterro. (João Grilo estende a mão a Chicó que aperta-a calorosamente.) Como se chamava o cachorro? MULHER: Xaréu SACRISTÃO, enquanto se encaminha para a direita,em tom de canto gregoriano: Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum ab oomni vinculi delictorum. TODOS: Amém Saem todos em procissão, atrás do sacristão, com exceção do padre, que fica um momento silencioso, levando depois a mão à boca, em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja. Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do palhaço. SUASSUNA, 1959, pp. 70-71 44 Fonte [2] Esse texto é do final do primeiro ato da comédia Auto da compadecida, de Ariano Suassuna [3], e trata do enterro do cachorro da esposa do padeiro. A grande diferença desse tipo de texto para a narrativa é que ele não apresenta narrador. Os próprios personagens, representados por atores, é que conduzem a história, com suas falas e ações, que são presenciadas pelos espectadores. Entre parênteses, e em itálico, observam-se algumas indicações chamadas rubricas, sobre como os atores devem-se comportar. O texto que vai ao público, no entanto, é veiculado pelos personagens em discurso direto. O texto que segue é parte de um romance, Quincas Borba, de Machado de Assis. Embora não seja uma peça teatral, o fragmento transcrito tem uma estrutura dramática, com o predomínio do diálogo sobre a narração. EXEMPLO — Conhece? Disse Camacho apontando para o retrato. ― Não, senhor. ― Veja se conhece. ― Não posso saber. Nunes Machado? ― Não, acudiu o ex-deputado dando à cara um ar pesaroso. Não pude obter um bom retrato dele. Vendem-se aí umas litografias que me não parecem boas. Não; aquele é o marquês. ― De Barbacena? ― Não, de Paraná; é o grande marquês, meu particular amigo. (...) leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas; recebê-la-á em casa... ― Não, senhor. ― Por que não? Rubião baixou os olhos diante do nariz interrogativo de Camacho. ― Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a folha de graça... (ASSIS, 1961, p. 129) Os momentos em que o narrador faz ouvir sua voz nesse texto assemelham-se à rubrica, como se fosse uma recomendação de comportamento ao “ator”. 45 Com base nos fragmentos apresentados, vejamos as características principais do texto dramático. Inicialmente, a atitude básica do público do teatro é de expectativa, de tensão quanto ao futuro. O texto deve propiciar ao expectador um sentimento de tensão imediata, que o fará manter sua atenção à peça. A ação é toda conduzida pela presença de atores que representam personagens, o discurso direto predomina, os diálogos veiculam o sentido do texto. Não há a presença de narrador; eventualmente pode aparecer uma voz externa à cena fazendo algum tipo de comentário. O tempo no gênero dramático é reduzido, para que a tensão, o conflito não decresça e mantenha a expectativa. A presença física dos atores faz com que o efeito do texto sobre os expectadores seja de presentificação da ação. Não importa que as cenas se passem num tempo passado ou remoto; para os expectadores, a ação se desenrola diante de seus olhos. Como o gênero dramático relaciona-se intimamente ao teatro, leia o que diz Massaud Moisés sobre esse termo em seu Dicionário de termos literários. APROFUNDAMENTO TEATRO — Grego théatron, lugar onde se vê. O vocábulo “teatro” apresenta as seguintes acepções: 1) local onde se realizam determinados espetáculos, 2) os próprios espetáculos, 3) conjunto de textos produzidos por um autor, nação, época etc. O terceiro sentido se manifesta quando falamos em "teatro shakespeareano", "teatro clássico", "teatro grego", etc. As três acepções, reunidas, confluem para a ideia de que o teatro é a arte do espetáculo, mas nem todo espetáculo é teatro: constituem imperativos a pré-existência do texto e sua metamorfose em ação. Texto e ação caracterizam o teatro. Da perspectiva literária, interessa somente o texto, não a ação em que se concretiza: porque produto da imaginação, a peça escrita se inscreve nos quadrantes literários; no entanto, não se configura em teatro, porquanto necessita do espetáculo, da presença humana, cenários, etc., para se realizar completamente. Por outro lado, o exame do texto pressupõe o destino que o seu autor lhe conferiu, ou seja, a sua representatividade, o enredo, as personagens. E conforme seja o conteúdo da ação, a peça se classificará em comédia ou tragédia,ou apresentará hibridismos que conduzirão a tipos intermediários (V. COMMEDIA DELL’ARTE, MELODRAMA, TRAGICOMÉDIA, VAUDEVILLE). Nascido na Grécia, o teatro foi levado para Roma e de lá para a Europa e o resto do mundo. No Oriente, o Japão desenvolveu formas autônomas e diferenciadas da atividade cênica (v. KABUKU, KIOGEN, NÔ). Evoluindo através dos tempos de modo o mais variado possível, o teatro continua a ser um espetáculo culturalmente válido e apreciado: em nossos dias, são de notar o teatro épico, de Brecht, para quem a representação pode compelir o espectador, pelo “distanciamento” da ação, ou seja, pela certeza reiterada de que acompanha o desenrolar de situações ilusórias ou fictícias, — a dar-se conta de um estado de coisas que implica uma tomada de posição ideologicamente orientada no rumo do marxismo (Petit organon pour le théatre, 1949); e o teatro do absurdo, expressão cunhada pelo crítico norte-americano Martin Esslin, para designar o moderno teatro de vanguarda, escrito por Samuel Beckett, E. Ionesco e outros, caracterizado 46 por toda sorte de mudanças e liberdades em cena, dando a impressão de que o nonsense, o sem-sentido, reina sobre os homens e as coisas, num flagrante desrespeito a qualquer ordem, sistema ou noção de verossimilhança (v. DRAMA). ― (MOISÉS, 2002, pp 490-491 47 Teoria da Literatura I Aula 05: Gêneros Literários Tópico 03: O Gênero Lírico Enquanto os gêneros épico e dramático correspondem a um olhar para o mundo exterior, a lírica lança um olhar para dentro, em que predomina a subjetividade. Vejamos as características líricas no texto abaixo. EXEMPLOS DE CARACTERÍSTICAS LÍRICAS NO TEXTO CONSOADA Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: — Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrarás lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. (BANDEIRA, 1993, p. 223) O texto acima não relata nem representa uma história. O que temos aqui é a expressão de um sentimento, de uma emoção, ligada à chegada da morte. O eu-lírico, ou seja, a voz que se apresenta no texto lírico (equivalente ao narrador na épica), expressa um comportamento hipotético relacionado ao momento final da vida. O poema é perpassado de dúvida, de mistério, de ambiguidade. Refere-se a uma “sonora ou silenciosa canção”. Será a arte? A poesia? O discurso não é claro, mas há a sugestão de algum tipo de manifestação que se opõe aos ”espetáculos infatigáveis”, que podem ser compreendidos como representação da vida cotidiana, da labuta diária das pessoas. Há sugestões, alusões, possibilidades, as coisas não são estipuladas com objetividade e clareza, exatamente porque a concepção expressa é subjetiva, individual. Vamos examinar mais dois poemas, de Cecília Meireles: Epigrama n° 1 48 Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis Uma sonora ou silenciosa canção: Flor do espírito, desinteressada e efêmera. Por ela, os homens te conhecerão: por ela, os tempos versáteis saberão que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente, quando por ele andou teu coração. (MEIRELES, 1982, p. 18) Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, ― não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: ― mais nada. (MEIRELES, 1982, p. 14) Já este poema trata do poeta e da poesia. O artista é o “irmão das coisas fugidias”, das coisas indeterminadas e imponderáveis. O que importa, afinal, não é o poeta: este passa, quem fica é sua obra, a poesia, o lirismo. 49 Os textos apresentados veiculam, portanto, a expressão de um “eu” muito particular. Ao invés de descrições e relatos objetivos, temos evocações e projeções de emoções. A linguagem é predominantemente conotativa, construída por imagens (“indesejada das gentes” por morte, por exemplo). Os textos têm natureza não-narrativa, não-dialogada, de caráter estático. Espaço, tempo e personagens, quando aparecem, são indefinidos, e servem como pretexto para a expressão dos sentimentos. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Jackson, 1961. ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Jackson, 1961. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 9 ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1981. JESUS, Maria Carolina de. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2000. MEIRELES, Cecília. Viagem e Vaga música. Rio de Janeiro: Record, 1982. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2002. MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NAVA, Pedro. Beira-mar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1959. Fontes das Imagens 1 - http://www.lainsignia.org/2005/agosto/cul_004.htm 2 - http://arquivos.tribunadonorte.com.br/fotos/14812.jpg 3 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna 50 Teoria da Literatura I Aula 06: Processos essenciais de linguagem figurada Tópico 01: Conotação e Denotação Na aula 2, nós já tivemos oportunidade de estudar a linguagem conotativa. Vamos examinar os processos de conotação ou de linguagem figurada que aparecem no fragmento de poema abaixo: O degrau das igrejas é meu trono, Minha pátria é o vento que respiro, Minha mãe é a lua macilenta, E a preguiça a mulher por quem suspiro. (AZEVEDO, s/d, p. 132) LINGUAGEM FIGURADA OU CONOTATIVA A poesia é feita de figuras. Chama-se linguagem figurada, ou conotativa, aquela que não significa exatamente o que parece dizer. Degrau não é exatamente trono; pátria não é vento; mãe não é lua; preguiça não é mulher. No caso do degrau das igrejas, o eu poético, que se pretende um vagabundo, sugere que é o rei das ruas, que reina no alto de um degrau; como vagabundo que se preza, não tem uma pátria formalmente definida: o vento, o ar, a brisa lhe bastam como pátria; nem de mãe verdadeira ele necessita: a lua vela por ele com um cuidado maternal; seus desejos sensuais convergem para a curtição da preguiça. À linguagem que pretende significar exatamente o que diz costumamos chamar linguagem denotativa, em oposição à linguagem conotativa. É importante observar que existe uma gradação entre a linguagem mais denotativa e referencial, como a linguagem científica — que mesmo assim dificilmente vai significar a mesma coisa para todas as pessoas — e o outro extremo, o da linguagem essencialmente conotativa, que vai apresentar uma maior pluralidade de sentidos, mas terá ainda pontos comuns de compreensão. Consideremos os seguintes versos de Poema sujo, de Ferreira Gullar: um prato de louça ordinária não dura tanto e as facas e perdem e os garfos se perdem pela vida caem pela folhas do assoalho e vão conviver com ratos e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entes os pés de erva-cidreira. (GULLAR, 199, p.220) Nos fragmentos acima, o eu-lírico refere-se aos objetos da casa de seus pais em São Luís, quando era menino. As palavras que compõem os cinco versos traçam, de maneira bastante explícita, o destino das peças que povoam nossa vida familiar, principalmente louças e talheres de baixa qualidade, que tendem a se partir e a enferrujar, enfim, a se perder. Poderíamos dizer, então, que todas as pessoas que lêem o trecho acima enxergam as mesmas coisas, visto que as palavras compõem uma cena que pode ser reconstituídasensorialmente. O texto seria, por consequência, predominantemente denotativo. 51 Não obstante, podem-se extrair dos versos significações que estão “por trás” das significações primeiras das palavras. Considerando que o texto está inserido num contexto de recriação do passado pela memória, pode-se perfeitamente associar a fragilidade das coisas e sua suscetibilidade ao aniquilamento como uma característica da própria memória. Num sentido conotativo, podemos dizer que a lembrança se perdeu, as reminiscências perderam a nitidez. O destino das coisas não seria então o próprio esquecimento, que nos dificulta o resgate intato do passado? O texto acima é aparentemente mais referencial, mais “concreto”, mas mesmo assim ele nos permite aprofundar em sua significação, desestabilizando a relação entre as palavras e as coisas, o que, aliás, é prerrogativa da poesia. ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Transcreveremos abaixo quatro pequenos textos literários para você pensar sobre a linguagem conotativa e a denotativa e a classificação em gêneros. Para cada fragmento, você vai escrever um comentário em torno de cinco linhas identificando palavras, expressões ou frases que sejam predominantemente conotativas. Depois, identifique a que gênero pertence cada um dos textos LEIA OS TEXTOS AQUI Texto 1: Tudo era festa e ruído na vida deles. Acompanhados de grupos irrequietos, corriam para a luz, refugiavam-se na penumbra. Vidros e espelhos, tinham de sugar sofregamente o que a noite lhes oferecia. Pela madrugada, insaciados, abrigavam-se em casa e prosseguiam no ritual orgíaco até a explosão final do sexo. (O cemitério de copos e garrafas.)” (“AGLAIA”, RUBIÃO, 2000, p. 75) Texto 2: Palavras são feito gente, tem de todo jeito: bonitas, feias, gordas, magras, simpáticas, antipáticas, sérias, engraçadas, alegres, tristes; todo jeito. Beto diz que a gente pode aprender tudo com as palavras, mas para isso é preciso a gente gostar delas feito a gente gosta das pessoas. Eu também já pensei isso uma vez. Já reparou como é engraçado uma palavra, se a gente fica olhando para ela muito tempo e pensando nela? É engraçado, ela parece que começa a mexer, a viver; parece uma coisa viva. Palavras parecem uma porção de bichinhos brincando; brincando de serem palavras; já reparou isso? Fale uma palavra que você ache bonita... (“Françoise”, VILELA. 1998. p.84) Texto 3: “Meu desejo? Era ser o sapatinho Que teu mimoso pé no baile encerra... A esperança que sonhas no futuro, As saudades que tens aqui na terra...” (AZEVEDO, s/d, p. 145) Texto 4: 52 O ÚLTIMO POEMA Assim eu quereria o meu último poema Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação. (BANDEIRA, 1995, p.70) Disponibilize seus comentários no seu Portfólio. 53 Teoria da Literatura I Aula 06: Processos essenciais de linguagem figurada Tópico 02: Metáfora e Metonímia Metáfora A metáfora é tida tradicionalmente como a mais fundamental forma de linguagem figurada, e é bastante utilizada no gênero lírico. METÁFORA A palavra metáfora vem do grego metaphora, derivada de metaphero, ‘eu transporto’. Refere-se a um tipo de processo linguístico por meio do qual aspectos de uma determinada realidade são ‘transportados’, ou transferidos, para outra realidade VEJA O EXEMPLO Não chorem! que não morreu! Era um anjinho do céu Quem um outro anjinho chamou! Era uma luz peregrina, Era uma estrela divina Que ao firmamento voou! (AZEVEDO, s/d, p.19) No trecho acima, o morto é um anjinho, cujas características se transferem à “luz peregrina”, à “estrela divina”. Símile ou comparação Enquanto a metáfora assume que a transferência é possível ou já aconteceu, a símile ou comparação É mais óbvia do que a metáfora. O texto abaixo apresenta uma série de símiles. SÍMILE OU COMPARAÇÃO (que também faz parte do processo metafórico) propõe a transferência e a explica utilizando-se de conetivos (‘como’, ‘tal qual’), verbos (‘parece’, ‘assemelha-se’), ou adjetivos (‘parecido’, ‘semelhante’) VEJA O EXEMPLO 54 Uma noite metida na outra como a língua na boca eu diria como uma gaveta de armário metida no armário (mais embaixo: o membro na vagina) ou como roupas pretas sem uso dentro da gaveta ou como uma coisa suja (uma culpa) dentro de uma pessoa enfim como uma gaveta de lama dentro de um armário de lama. (GULLAR, 199, p. 243) Os elementos comparados são a noite e uma outra noite, uma contendo a outra. O poeta desdobra uma série de elementos de comparação, ressaltando o caráter erótico, sujo, estático, negro, pecador da noite. Poderíamos apresentar o desdobramento da relação noite/noite por meio da seguinte equação: Descrição da imagem: Noite/outra noite Língua/boca Gaveta/armário Membro/vagina Roupas pretas/gaveta Coisa suja (culpa)/pessoa Metonímia Outra imagem comumente utilizada na literatura, ao lado da metáfora e da comparação, é a metonímia. Enquanto o processo metafórico se fundamenta numa transferência de características de uma realidade para outra de natureza completamente diferente (anjinho = luz peregrina = estrela divina, por exemplo), METONÍMIA o processo metonímico se baseia numa contiguidade, ou extensão de uma realidade em relação a outra. 55 VEJA O EXEMPLO E se não era eterna a vida, dentro e fora do armário, o certo é que tendo cada coisa uma velocidade ........................................................ cada coisa se afastava desigualmente de sua possível eternidade. (GULLAR, 1999, p. 266) No exemplo acima, a palavra armário funciona como uma metonímia de casa, e pode ser desdobrada para cidade, país, mundo etc. O poeta se refere inicialmente ao pequeno mundo de Bizuza, personagem de sua infância, e em seguida amplia a ideia. Por que metonímia? Voltemos ao exemplo anterior, em que armário é relacionado a noite (processo metafórico). Observe-se que a associação é absolutamente livre, porque as duas coisas têm naturezas completamente diferentes. Já o armário da imagem acima se relaciona com casa, que é o imóvel que contém o móvel, ou seja, existe uma relação de contiguidade entre as duas realidades. Outra característica da metonímia é que a realidade a que ela conduz normalmente não é referida no contexto, dada sua proximidade com ela, enquanto na metáfora ela geralmente é citada, exatamente porque tem natureza diferente do ser com que ela se relaciona. Um caso particular do processo metonímico é a sinédoque, que consiste em tomar-se a parte pelo todo ou o todo pela parte. Muitas vezes o termo sinédoque é tomado como sinônimo de metonímia. VEJA O EXEMPLO MORRO DA BABILÔNIA À noite do morro descem vozes que criam terror (terror urbano, cinquenta por cento de cinema) ........................................................ Mas as vozes do morro não são propriamente lúgubres. Há mesmo um cavaquinho bem afinado Que domina os ruídos da pedra e da folhagem e desce até nós, modesto e recreativo, como uma gentileza do morro. (ANDRADE, 2001, P. 144) Nesse fragmento de poema, aparece a imagem das vozes que criam o terror, ao descerem do morro. Rigorosamente, as vozes representam as pessoas faveladas que descem do morro para horrorizar as pessoas da cidade. Nesse caso, as vozes são o som produzido pelas pessoas, ou seja, elas são algo que fazem parte dessas pessoas; têm com elas, pois, uma relação de contiguidade. 56 Quando a metonímia incorpora-se à linguagem do dia-a-dia, designando objetos por termos figurados por falta de termos próprios, denominamo-la catacrese (pernas da mesa; mão de pilão; embarcar num trem). 57 Teoria da Literatura I Aula 06: Processos essenciais de linguagem figurada Tópico 03: Outras formas de linguagem figurada Oxímoro, paradoxo,antítese. Elementos opostos ou contrastantes na escrita literária podem levar a efeitos dissonantes Aspectos do estilo literário 1. Antítese DEFINIÇÃO Consiste em se relacionarem oposições, como no fragmento de poema abaixo, em que se opõem as ações de bendizer e fornicar. EXEMPLOS "Há cinquenta anos passados, Padre Olímpio bendizia, Padre Júlio fornicava." (C. D. Andrade) “perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia” (GULLAR, 1999, p.219) 2. Paradoxo ou oxímoro DEFINIÇÃO Estabelece uma confusão maior entre os elementos antitéticos, evocando um conceito que é ou parece contrário ao senso comum: uma contradição, um contra-senso, um absurdo, um disparate, instalando na mente a ideia de fusão, de confusão. O oxímoro é, portanto, a expressão de um paradoxo. Embora seja construído por imagens antitéticas, o oxímoro representa uma intensificação em relação à antítese porque, enquanto esta apenas apresenta, ou confronta ideias contraditórias, aquela exprime uma contradição entre as partes apresentadas: os termos que o constituem excluem-se mutuamente. EXEMPLO Porque o único sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto nenhum. (F. Pessoa) “escuro / mais que escuro: / claro” (GULLAR, 1999, p. 218) 3. Sinestesia DEFINIÇÃO A sinestesia é um recurso sensorial, isto é, um recurso que lida com os sentidos, provocando uma fusão ou confusão entre dois ou mais entre eles (visão, audição, olfato, tato, paladar). No exemplo abaixo, o poeta mistura, nos dois primeiros versos, visão e olfato, e amplia a mescla sensorial no último verso envolvendo audição, visão e olfato. 58 EXEMPLO Nasce a manhã, a luz tem cheiro... Ei-la que assoma Pelo ar sutil... Tem cheiro a luz, a manhã nasce... Oh sonora audição colorida do aroma! Alphonsus de Guimaraens) 4. Personificação ou prosopopéia DEFINIÇÃO A personificação (ou prosopopéia) é a figura pela qual se dá vida e, pois, ação, movimento e voz, a coisas inanimadas, e se empresta voz a pessoas ausentes ou mortas e a animais, propiciando a integração de animais e coisas ao mundo dos humanos, como em “água sonhando na tina” (GULLAR, 1999, p.227). EXEMPLO Neste exemplo, de Álvares de Azevedo, os ventos e as noites praticam ações próprias de seres humanos: suspirar, beijar, delirar: E quando nas águas os ventos suspiram, São puros fervores de ventos e mar: São beijos que queimam... e as noites deliram, E os pobres anjinhos estão a chorar! (AZEVEDO, s/d, p.22) No trecho abaixo, o narrador empresta à cachorrinha Baleia, personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos, sentimentos e reflexões humanas: Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. 5. Animalização DEFINIÇÃO Apresenta um efeito contrário à personificação. Nela os seres humanos são guindados ou rebaixados à condição de animais, conforme a intenção seja positiva ou negativa. EXEMPLO: É o que acontece aos personagens humanos de Vidas secas: Olharam os meninos que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? Zumbiu sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. (Graciliano Ramos) 6. Hipérbole DEFINIÇÃO A hipérbole é uma figura por meio da qual se exageram, para mais ou para menos, as quantidades ou dimensões de um objeto, ou os efeitos de uma ação. EXEMPLO: Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta, Que impudente na Gávea tripudia?!... 59 Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto... C. Alves) EXERCITANDO Identifique uma figura de linguagem que aparece em cada um dos trechos abaixo. CLIQUE AQUI a) “Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul.” b) “A vida é uma ópera e uma grande ópera.” c) “Ao cabo tão bem chamado, por Camões, de Tormentório, os portugueses apelidaram-no de Boa Esperança.” d) “Uma talhada de melancia, com seus alegres caroços.” e) “o mar se estendia, como camisa ou lençol sobre seus esqueletos (...)” f) “Oh! Eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares.” g) “A felicidade é como a pluma...” h) “... as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga...” i) “Mal comeu os doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne e flor.” j) “Liso como o ventre de uma cadela fecunda, rio cresce (...)” k) “Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” l) “Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.” m) “... a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão.” n) "De repente do riso fez-se o pranto". o) “Uma bandeira que tivesse dentes: como um poeta puro (...)” 60 Oportunamente comunicaremos quando e onde encontrar as respostas deste exercício. Chegamos aqui ao término do curso de Teoria da Literatura I. Esperamos que você tenha tido o melhor aproveitamento possível, e que se saia bem nas avaliações. Antes da prova final, releia cuidadosamente todas as aulas, e procure tirar suas dúvidas conversando com seus colegas e com o professor-tutor de sua turma. Felicidades! REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985, p. 149. ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 75. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Jackson, 1961, p. 376. AZEVEDO, Manuel Antônio Álvares de . Lira dos vinte anos. Rio de Janeiro: Garnier, s/d. BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1978. COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário de literatura. 3 ed. Porto: Figueirinhas, 1973. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 9 ed. Rio de Janeiro: Padr] FARACO, Carlos. Trabalhando com narrativa. São Paulo: Ática, 1992. FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. São Paulo: Nórdica, s/d, p. 13. GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo, Brasiliense, 1991 MOISÉS, Massaud. A análise literária. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1999. MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 236. NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NUNES, Lygia Bojunga. Livro – um encontro com Lygia B. Nunes. Rio de Janeiro: Vozes, 1988. RUBIÃO, Murilo. O convidado. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 2 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1969. SÜSSEKIND, Flora. “Escalas e ventríloquos”. In Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 23/7/2000 VILELA, Luiz. de Tarde da noite. 61 Fontes das Imagens 62 LLPT_Capa_Creditos_Sumario impresso_parciais TeoriadaLiteraturaI_aula_01 TeoriadaLiteraturaI_aula_02 TeoriadaLiteraturaI_aula_03 TeoriadaLiteraturaI_aula_04 TeoriadaLiteraturaI_aula_05 TeoriadaLiteraturaI_aula_06 LLPT_contracapa