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8 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 3 2 O QUE É LITERATURA? ............................................................................................ 4 2.1 Abordagens teórico-críticas para o estudo do espaço na literatura ......................... 5 2.2 Texto e contexto em narrativas literárias em língua portuguesa .............................. 9 3 TEXTO LITERÁRIO ................................................................................................... 13 3.1 Valoração do texto literário .................................................................................... 15 4 A LINGUAGEM LITERÁRIA...................................................................................... 32 4.1 Literariedade .......................................................................................................... 34 5 GÊNEROS LITERÁRIOS........................................................................................... 17 6 GÊNEROS LITERÁRIOS ATUAIS: POESIA, ROMANCE E ENSAIO ...................... 25 6.1 Texto literário X texto não literário ......................................................................... 29 7 RECURSOS LINGUÍSTICOS DO TEXTO LITERÁRIO ............................................. 42 7.1 Linguagem literária — poesia e prosa ................................................................... 40 7.2 Prosa de ficção ...................................................................................................... 45 7.3 Ficção e discurso ................................................................................................... 50 7.4 Níveis do discurso .................................................................................................. 53 7.5 Níveis do discurso específicos da narrativa ........................................................... 57 7.6 Recursos técnico-discursivos utilizados nas narrativas literárias ........................... 58 8 NATUREZA E FUNÇÕES DA LITERATURA ............................................................ 61 9 NARRATIVA LITERÁRIA .......................................................................................... 67 10 O TEXTO LITERÁRIO NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO ................................. 74 10.1 Da compreensão à análise do texto literário .......................................................... 78 11 LITERATURA MARGINAL ........................................................................................ 81 12 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .............................................................................. 85 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 O QUE É LITERATURA? Fonte: pixabay.com A literatura tem origem do latim littera, que significa “letra”, trata-se de uma das manifestações artísticas do ser humano, ao lado da música, dança, teatro, escultura, arquitetura, dentre outras. Ela representa comunicação, linguagem e criatividade, sendo considerada a arte das palavras, ou seja, é uma manifestação artística, em prosa ou verso, muito antiga que utiliza das palavras para criar arte, assim como, a tinta é a matéria prima para o pintor, a palavra é a matéria prima da literatura. De tal maneira, o conceito de literatura também pode compreender o conjunto de histórias fictícias criadas por escritores em determinadas épocas e lugares, sejam poemas, romances, contos, crônicas, novelas. Os textos literários possuem uma função muito importante para o ser humano, de forma que provocam sensações e produzem efeitos estéticos os quais nos fazem entender melhor a nós mesmos, nossas ações bem como a sociedade em que vivemos. Segundo o crítico literário Afrânio Coutinho (2008, p.24). A Literatura é, assim, a vida, parte da vida, não se admitindo possa haver conflito entre uma e outra. Através das obras literárias, tomamos contato com a vida, nas 5 suas verdades eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque são as verdades da mesma condição humana (COUTINHO, 2008, p.24) Nesse sentido, devemos lembrar que o conceito de literatura foi alterando ao longo do tempo, e seu significado tal qual conhecemos hoje, é diferente da visão clássica de épocas passadas. Para o filósofo Grego Aristóteles, um dos primeiros a focar nos estudos sobre essa arte: “A Arte literária é mimese (imitação); é a arte que imita pela palavra”. Com efeito, o conceito de literatura foi se ampliando e abrangendo assim, diversos textos que englobam os gêneros literários que hoje conhecemos: literatura infantil, literatura de cordel, literatura marginal, literatura erótica, dentre outros. A arte literária representa recriações da realidade produzidas de maneira artística, ou seja, que possui um valor estético, de onde o autor utiliza das palavras em seu sentido conotativo (figurado) para oferecer maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto. Dessa forma, a literatura possui um importante papel social e cultural envolvido no contexto em que fora criada, posto que abarca diversos aspectos de determinada sociedade, dos homens e de suas ações, portanto, provoca sensações e reflexões do leitor. Para o filósofo francês Louis-Gabriel-Ambroise, Visconde de Bonald (1754-1840) “A literatura é a expressão da sociedade, como a palavra é a expressão do homem.” Isso nos faz refletir sobre dois aspectos: o poder de representatividade da literatura e o seu poder comunicativo. 2.1 Abordagens teórico-críticas para o estudo do espaço na literatura Se pararmos para analisar a categoria “espaço” na literatura, perceberemos que esse elemento adquire maior ou menor importância na obra dependendo da maneira como está descrito e construído. Seu papel na narrativa pode ter influência sobre os personagens, como no caso da obra naturalista O cortiço (1890), em que o ambiente forma e transforma a personalidade dos personagens. O personagem Jerônimo, trabalhador da pedreira de João Romão, vai morar no cortiço do patrão com a esposa Piedade e se transforma com a mudança de casa. Na obra, a influência do meio sobre o personagem fica evidenciada em muitos trechos, como: 6 Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição; para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidentee franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros. E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se (AZEVEDO, 1977, p. 44). A grande influência do ambiente também pode ser vista no romance inglês O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë. As moradias Wuthering Heights e Thrushcross Grange são os espaços do romance, e os personagens do primeiro espaço são mais livres e transgressores, convivendo com a natureza em seu estado mais selvagem, enquanto os do segundo seguem os normas de comportamento social esperados pela sociedade da época, vivendo em um local em que a natureza é mais domesticada e controlada pelo ser humano. Essas diferenças fazem com que os personagens se comportem de forma diferente ao frequentarem esses espaços do romance, como se, em certo sentido, se tornassem um pouco como eles. Bachelard (2000) propõe o termo topoanálise (topos em grego significa lugar) para o estudo da natureza da imagem poética. Não apenas as relações entre personagens e lugares devem ser pensadas, como também a construção. [...] visam determinar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados. O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação (BACHELARD, 2000, p. 28). O autor reflete sobre os espaços íntimos, sobre a relação simbólica da imaginação entre o mundo interior, ou o microcosmo individual, e o mundo exterior, ou o macrocosmo universal, para tratar dos espaços resguardados pela memória. Para ele, a topoanálise pode ser entendida como “[...] o estudo psicológico sistemático dos locais da nossa vida íntima” (BACHELARD, 2000, p. 28). Bachelard (2000), trata da ligação afetiva com a imagem dos espaços íntimos, como a casa, todos os seus cantos, do porão ao sótão, por exemplo. Ao autor sustenta 7 que “[...] só a fenomenologia — isto é, a consideração do início da imagem numa consciência individual — pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem” (BACHELARD, 2000, p. 3). Ao buscar compreender a imagem poética, o autor a coloca num espaço de transubjetividade, ou seja, que toca a sensibilidade de diversas consciências. Ele ainda defende que somente por meio da fenomenologia — o estudo da experiência subjetiva da consciência — pode-se medir a força da imagem poética. Além da casa em todas as suas partes, os chamados espaços da memória, como armários, cofres e gavetas, são tratados de início como microcosmos individuais. Em seguida, passa-se ao microcosmo das miniaturas e, por fim, à relação dialética entre mundo exterior e interior, macrocosmo e microcosmo. A topoanálise seria então um estudo psicológico e afetivo da relação humana com seus espaços íntimos. Borges Filho (2007) expande o conceito de topoanálise de Bachelard para abarcar também outras abordagens sobre o espaço, incluindo questões estruturais, sociológicas, filosóficas e culturais, que devem fazer parte da interpretação do espaço na obra literária. Para esse autor, o espaço é constituído de cenário, natureza e experiência, que é a vivência dos personagens nesses espaços. Ao pensarmos nessa experiência dos personagens, devemos ter em mente também a representação das transformações nas esferas pública e privada, a urbanização, a desterritorialização, os deslocamentos dentro das ruas de uma cidade, entre campo e cidade, entre oceanos e países. O fenômeno da segregação dentro das grandes cidades, o enclausuramento e o confinamento social, são elementos que devem ser levados em consideração na análise literária. Para desenvolver essa análise, um conceito muito importante é o de cronótopo (chronos = tempo e topos = lugar), de Mikhail Bakhtin (1975), que considera indissociáveis as categorias de tempo e espaço, como se manifestam nas representações literárias. Esse conceito evidencia o vínculo entre o mundo real e o imaginário, entre a literatura e a história, como explica Fiorin (2006): As pessoas organizam o universo de sua experiência imediata com imagens do mundo, criadas a partir das categorias de tempo e espaço, que são inseparáveis. [...] Os textos literários revelam-nos os cronótopos de épocas passadas e, por conseguinte, a representação do mundo da sociedade em que eles surgiram. 8 Figura-se o mundo por meio de cronótopos, que são, pois, uma ligação entre o mundo real e o mundo representado, que estão em interação mútua. O cronótopo brota de uma cosmovisão e determina a imagem do homem na literatura. A relação entre espaço e tempo é indissolúvel (FIORIN, 2006, p. 133). O espaço é, portanto, um dos elementos estruturantes da narrativa, ao lado do tempo, do enredo e dos personagens. Como categoria da narrativa em suas manifestações literárias, teve o conceito estudado pela teoria da literatura, modificado ao longo do século XX de acordo com as noções das diferentes correntes teóricas, que propõem desdobramentos e alternativas, que se configuram como leituras pertinentes a partir de diferentes prismas. Santos (2007), em seu artigo “Espaços literários e suas expansões”, apresenta quatro formas recorrentes de uso da categoria do espaço para análises literárias nos séculos XX e XXI: A representação do espaço — a abordagem mais recorrente nos estudos literários contemporâneos atribui ao espaço características físicas e concretas, cenário para as ações, locais de pertencimento ou trânsito dos personagens ficcionais. Considera-se ainda o espaço social como conjuntura histórica, cultural e ideológica, espaço psicológico das sensações, memórias, afetos e expectativas de personagens e narradores. Uma vertente bastante difundida é a de representação do espaço urbano e, nas aproximações com os estudos culturais, a reflexão e utilização de termos como margem, fronteira, território, rede e cartografias. O espaço como forma de estruturação textual — considera-se característica espacial os procedimentos formais que produzem efeito de simultaneidade. O texto é fragmentado, como um mosaico, e a forma estética baseia-se numa lógica espacial que requer a reorientação da atitude do leitor com relação à linguagem. Por meio da simultaneidade, atinge-se a totalidade da obra; as partes são autônomas, mas estabelecem articulações entre si. Esse tipo de construção textual fragmentada é recorrente em obras de autores modernistas, como James Joyce. Em Ulysses, por exemplo, toda a narrativa se desenvolve em um único dia. As cenas são entrecortadas de alusões à história, ao cotidiano dos dublinenses e a eventos que ocorrem fora das 24 horas em que o romance tem lugar. O contexto, que numa narrativa linear seria resumido para o leitor, precisa ser reconstruído por ele, a partir dos fragmentos espalhados por 9 todo o livro. Nesse sentido, o leitor precisa ler o texto como lê a poesia moderna, organizando mentalmente os fragmentos e alusões para reflexivamente fazer as associações a fim de poder compreender o todo a partir de suas partes. O espaço como focalização — nessa forma, a focalização é entendida como um recurso espacial. Aqui o espaço se desdobra em espaço observado e espaço que torna possível a observação. Por essa via é que se pode afirmar que o narrador é um espaço, ou que se narra sempre de algum lugar. A espacialidade da linguagem — aqui entende-se uma espacialidade própria da linguagem verbal, composta por signosque possuem materialidade. O texto literário é tão mais espacial quanto mais a dimensão formal, ou do significante, é capaz de se destacar da dimensão do conteúdo, ou do significado. O sentido da narrativa é dado pelas relações que se estabelecem entre os signos, numa operação de abstração a partir da imaginação do leitor. Como os signos possuem materialidade, eles podem exprimir outros significados, que subvertem a relação estabelecida inicialmente pelo leitor. 2.2 Texto e contexto em narrativas literárias em língua portuguesa Nas relações entre espaço e literatura, podemos utilizar uma abordagem extrínseca, que relaciona texto e contexto, aqui entendido como espaço. Para iniciar, podemos refletir sobre os espaços nas narrativas literárias. Temos o espaço físico, que é o cenário da ação e da movimentação das personagens; pode ser aberto e amplo ou fechado e reduzido. Há também o espaço social, em que as relações sociais se efetivam a partir das interações entre as pessoas; trazem descrições que normalmente criticam os vícios e deformações da sociedade. Por fim, temos o espaço psicológico, interno aos personagens, que retratam atmosferas densas e algumas vezes perturbadoras que se projetam sobre seus comportamentos (DIMAS, 1994). Alguns autores, como Lins (1976), diferenciam espaço e ambientação, ao compreenderem o primeiro como o lugar físico onde se desenvolve a ação e a segunda como um conjunto de processos que constroem na narrativa a noção de um determinado ambiente. Para se caracterizar um ambiente, levam-se em conta a época em que se passa a história, características físicas do espaço, aspectos socioeconômicos, 10 psicológicos, morais e religiosos. Nesse sentido, o espaço é denotativo e a ambientação, conotativa. Para Lins (1976), existem três tipos de ambientação: A ambientação franca, mediante a descrição do espaço pelo olhar do narrador; A ambientação reflexa, narrada em terceira pessoa, mas descrita pela focalização do personagem, sem a colaboração intrusiva do narrador, que acompanha a perspectiva do personagem, numa visão compartilhada; A ambientação dissimulada, ou oblíqua, em que os atos do personagem vão fazendo surgir o espaço. Como exemplo de ambientação franca, temos em O cortiço, de Aluísio de Azevedo (1997, p. 30): “Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas”. O olhar do narrador descreve o ambiente. Compare agora com um exemplo de ambientação reflexa, no romance Senhora, de José de Alencar (1997). A cena é narrada em terceira pessoa, mas a própria personagem Aurélia é quem vê a exuberância do ambiente: Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia não ser ela quem avançava; mas os outros que vinham ao seu encontro, e o espaço que ia-se dobrando humilde a seus pés, para evitar-lhe a fadiga de o percorrer. Se Aurélia contava com o efeito de sua entrada sobre o espírito de Seixas, frustrara-se essa esperança, porque os olhos do mancebo [...] não viram mais que um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no sofá (ALENCAR, 1997, p. 47). A ambientação dissimulada, ao contrário das outras duas formas, não suspende o relato para emoldurar o ambiente, pois: “[...] exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre espaço e ação” (LINS, 1976, p. 83). Veja na abertura do romance Mrs Dalloway, da autora inglesa Virginia Woolf, um exemplo desse tipo de ambientação: Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores. Quanto a Lucy, já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; pouco a pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway — fresca como para crianças numa praia! Que frêmito! Que mergulho! Pois sempre lhe parecera quando, com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bourton. Que fresco, que calmo, mas que hoje, não era então o ar da manhazinha; como o tapa de uma onda; como o beijo de uma onda; frio, fino e ainda (para a menina de dezoito anos que ela era em Bourton) solene, sentindo, como sentia, parada ali ante a janela aberta que alguma coisa terrível ia acontecer (WOOLF, 1980, p. 7). 11 Na narração dissimulada, não há pausa para se falar do ambiente e depois voltar à ação. É como se o espaço nascesse da própria personagem numa relação dialética. Nesse tipo de ambientação, tem-se a diluição da moldura do espaço e da ordem cronológica. No romance moderno, a ambientação dissimulada é incorporada como estrutura narrativa, juntamente com o fluxo de consciência, a fragmentação do enredo e a fusão de níveis temporais e espaciais. Na relação texto–contexto na narrativa, a configuração espacial estrutura, em muitos casos, aspectos extraliterários que expandem o sentido do texto, como no caso da obra do autor moçambicano Mia Couto, em que o espaço tem um valor político. Tanto em seus contos quanto em seus textos infantis, o espaço delineia uma paisagem cultural e valores da sociedade moçambicana que precisam ser discutidos com o novo público leitor. São questões importantes para o contexto de uma sociedade pós-colonial, como miscigenação, preconceito e alteridade, entre outros. Na obra de Mia Couto, a categoria espacial não funciona apenas como moldura para as cenas representadas, mas também como um elemento que se vincula à história da nação. Veja como o autor ilustra os conflitos sociais e a questão racial no livro O gato e o escuro (PINHEIRO, 2019). A obra narra a história de Pintalgato, um gatinho que queria transpor os limites de um espaço que dava para a escuridão. A despeito das advertências da mãe acerca dos perigos que rondavam aquele lugar, certo dia o gato não resistiu à curiosidade e passou para a outra margem. Logo percebeu que a sua pele ficava negra à medida que adentrava na penumbra; e, para seu espanto, ainda permanecia com essa cor quando retornava à luz. Receoso de expor as marcas da desobediência, o gato prefere não voltar mais para casa. Sua mãe, contudo, logo aparece no local e institui um diálogo amistoso com a obscuridade. Em determinado momento, ela chega mesmo a desejar que o escuro fosse um de seus filhos. É então que o felino Pintalgato acorda e descobre que tudo não passara de um sonho. Mesmo assim, já de pé, reconhece nos olhos da mãe uma dose considerável de breu, como se ela tivesse engravidado da noite (PINHEIRO, 2019). Em uma das passagens do texto, o autor mostra como o preconceito se refere ao discurso do observador, e não ao objeto em si: 12 — Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro. — Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós. — Não entendo, Dona Gata. — Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende? (COUTO, 2008, p. 25). Analisando outro exemplo, na obra de João Gilberto Noll temos uma configuração espacial que estrutura as narrativas. Os deslocamentos errantes de seus personagens em trânsito contínuo e ininterrupto por espaços fragmentados e vazios se alinham à fragmentação do próprio sujeito, anônimo e desenraizado, que não organiza suas experiências temporais linearmente em passado, presente e futuro. Nos romances Hotel Atlântico (1989) e A fúria do corpo (1981), o espaço revela o espaço flutuante e instável do sujeito contemporâneo. No caso do primeiro, a personagem inicia sua perambulação pelo Rio de Janeiro, se acomoda em um hotel, símbolo de transitoriedade e desenraizamento, e viaja a outros locais, como Florianópolis, levado pelo acaso e pelo destino, sempre marcados pela presença da morte, com quem o personagem se encontra no final da narrativa. No segundo, a configuração espacial traz a imagem de um labirinto, espaço opressivoe enigmático. A partir desses exemplos, podemos perceber que a configuração do espaço na narrativa pode tanto funcionar como uma moldura para as cenas representadas quanto adquirir uma relevância de estruturar a trama a partir dele. O cronótopo, que funde tempo e espaço, funciona muitas vezes possibilitando o enredo, como no cronótopo da estrada, por exemplo, em que espaço e tempo se articulam intensamente em função da referência que ela sugere: “[...] lugar no qual o tempo se derrama no espaço e flui por ele [...]. [Onde] o sustentáculo principal é o transcurso do tempo” (BAKHTIN, 1990, p. 350). Nesse caminho, vários tipos de encontros podem ocorrer quando as personagens se colocam em movimento. O mote do encontro é um dos mais universais não apenas na literatura (é difícil deparar com uma obra em que esse mote absolutamente não exista), mas também em outros campos da cultura, bem como em diferentes esferas da vida e dos costumes da sociedade. Nos romances, os encontros ocorrem frequentemente em travessia, na estrada. Para Bakhtin (1990, p. 223), é enorme o significado desse cronótopo na 13 literatura: “[...] rara é a obra que passa sem certas variantes do motivo da estrada, e muitas obras estão francamente construídas sobre o cronótopo da estrada, dos encontros e das aventuras que correm pelo caminho”. Assim como o cronótopo da estrada, outros propiciam o desenvolvimento da narrativa, e a sua identificação facilita a análise da obra literária. 3 TEXTO LITERÁRIO Fonte: novaescola.org.br O texto literário assume um papel importante na busca pela formação do sujeito com competência criativa, consciente social e culturalmente, a ele oportunizando uma nova maneira de repensar a sociedade e o mundo. De fato, a leitura do texto literário é um acontecimento que provoca reações, estímulos, experiências múltiplas e variadas, dependendo da história de cada indivíduo. Não só a leitura resulta em interações diferentes para cada um, mas cada sujeito poderá interagir de modo diferente com a obra em outro momento de leitura. A literatura também pode desenvolver o senso crítico. Mesmo na leitura silenciosa, levantam-se discussões mentais sobre um aspecto ou outro, enfrentam-se dilemas morais e se ampliam os conhecimentos e as opiniões sobre alguma situação ou tema. Quem escreve se posiciona, ou posiciona os personagens, contando algo a partir 14 de um determinado ponto de vista. Assim, entramos na história a partir da perspectiva de outra pessoa, e nos é possível concordar, discordar, acreditar, desconfiar, reelaborar as narrativas e pensar. A palavra, literário, tem origem no latim litterarĭus e significa “aquilo que é relativo à leitura, à escrita”. Já a palavra literatura significa “letra” e vem do latim littera. Observe que ela se refere mais ao ato de escrever, enquanto aquela diz respeito à leitura, ou seja, como ler as letras. Diante da origem das palavras, você já começa a notar as diferenças de um texto literário, que não é simplesmente um texto com informações a respeito de algo, mas um texto repleto de conotações, variações e estética. Isto é, trata-se um texto escrito para despertar as emoções no leitor pelo uso da linguagem poética com função estética, respeitando os estilos de cada escritor. Os textos literários apresentam características próprias a fim de criar uma interação entre o leitor e escritor. Para isso, faz uso de pontuações diferenciadas, figuras de linguagem e um vocabulário selecionado pelo escritor especificamente para atrair a atenção na hora da leitura, visando a conduzir o leitor pelas teias literárias da obra. Dessa forma, o escritor constrói uma musicalidade, um ritmo no texto para tocar a sensibilidade de quem o lê. Antes de vermos um exemplo, vamos retomar as funções de linguagem (Figura 1). Figura 1 – Funções da linguagem Fonte: https://bityli.com/s2fhi 15 Em relação às características da função poética, destaca-se o uso de: • linguagem elaborada; • figuras de linguagem; • palavras em sentido conotativo; • expressões do cotidiano com valor metafórico. Observe o seguinte fragmento de texto literário: “Antes bonita, olhos de viva mosca, morena, mel e pão. Aliás, casada. Sorriram- se. Viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor.” (Desenredo, Guimarães Rosa, 1967, p. 38-40). O fragmento da crônica de Guimarães Rosa apresenta uma linguagem simples, mas os arranjos metafóricos são evidentes. A metáfora da mosca atraída pelo mel, os olhos grandes e negros, como se fosse uma mosca, deixa claro a atração entre os personagens. A escolha de frases curtas demonstra a aceleração do coração de Jó ao ver a morena. Além disso, o escritor faz alusão a pegar o amor como se fosse um vírus. Contrariando a linguagem comum, a escolha vocabular surpreende o leitor e conduz a uma sensação diferenciada durante o ato de ler sobre o que seria apaixonar-se. Como você pode perceber, a linguagem literária é permeada de expressividade e beleza. Ainda que mais ou menos valorado, o texto literário é aquele que toca o leitor, que fala o que é simples, que define o que muitos de nós gostaríamos de dizer. 3.1 Valoração do texto literário Para que um texto seja validado, é preciso passar pelo consenso de determinadas instituições, uma vez que o conceito de texto literário é social e historicamente construído. Quando uma obra é lançada, ela passa pela apreciação da crítica especializada, pelo público leitor, pela instituição escolar, pela academia, que são instituições legitimadoras do saber. Após toda a apreciação é que o texto ganhará o estatuto de texto literário. 16 Muitas obras que hoje têm valor literário internacional levaram tempo para serem assim aceitas. Inclusive, Compagnon (2003), observa que a avaliação de textos literários deve ser diferenciada do valor da literatura em si mesmo. Mas é claro que os dois problemas não são independentes: um mesmo critério de valor preside, em geral, à distinção entre textos literários e não literários, e à classificação de textos literário em si”. Ou seja, o autor relaciona os critérios de avaliação de texto literário como operacionais. É possível, então, comparar um texto literário em relação ao outro. Por exemplo, pode- se afirmar que Iracema, de José de Alencar, é menos literário que O cortiço, de Aluísio de Azevedo. Tudo vai depender dos critérios de quem faz a análise. Porém, vale ressaltar que esses critérios precisam ser elucidados para justificar a sua complexidade. Como o conceito de ser ou não texto literário é social e historicamente construído, não se pode deixar de mencionar que, até o século XVIII, o público leitor era formado pela sociedade polida e elitizada (ZAPPONE; WIELEWICKI, 2005). Depois dessa época, começou a surgir uma classe intermediária, que não estava relacionada às discussões dessa camada mais intelectualizada. Portanto, os críticos precisam considerar para qual público leitor a obra é destinada. Candido (2006), ao discutir o sistema literário, afirma que: A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. (CANDIDO, 2006, p. 84). Dessa forma, o autor deixa evidente que há influência das obras sobre os leitores, bem como dos leitores sobre as obras. O aspecto social citado por Candido (2006) reitera que a literatura e o conceito de texto literário estão relacionados com a sociedade em que eles surgem. Não se pode deixar de destacarque os padrões de referência para uma obra ser considerada literária sempre foram os cânones da literatura. Por mais que a literatura tenha se distanciado desse purismo, hoje valorizando mais as questões culturais, a ideia de cânone permanece viva, sobretudo quando se refere às comparações. Aqui, convém trazer a concepção de cânone, porque está imbricada na valoração de poder: 17 “A formação de um cânone tem uma função específica: preservar uma estrutura de valores que seja considerada como fundamental seja para o indivíduo ou para o grupo; esses valores constituem uma norma, sob a qual este ou aquele se guia” (CORRÊA, 1995, p. 324). Assim, vemos que as verdades vão sendo reiteradas, construindo uma tradição que, muitas vezes, configura a tradição de uma literatura. Por isso, Corrêa (1995) destaca que o “[...] cânone obrigatoriamente reflete características positivas reguladoras de um comportamento compatível com a sociedade em questão”. Essa definição está atrelada a jogos de interesse e de poder dentro dos contextos históricos. 4 GÊNEROS LITERÁRIOS Fonte: gestaoeducacional.com.br Os gêneros literários são categorias da literatura que englobam os diversos tipos de textos literários segundo sua forma e conteúdo. Tanto o conceito de literatura se modificou ao passar do tempo como o de gênero literário, uma vez que os gêneros literários, abordado por Aristóteles, eram classificados de três maneiras, semelhante ao que conhecemos hoje, embora possua diferenças. 18 De acordo com o esquema proposto por Aristóteles, os gêneros literários eram divididos em: Lírico (“palavra cantada”), Épico (“palavra narrada”) e Dramático (“palavra representada”). (MUNIZ,2019) Atualmente, o gênero épico, que envolvia as narrativas históricas baseado nas lendas e na mitologia, foi substituído pelo gênero narrativo. Sendo assim, os gêneros literários são classificados em: • Gênero Lírico: possui um caráter sentimental com presença do eu- lírico, por exemplo, as poesias, odes e sonetos. • Gênero Narrativo: possui um caráter narrativo, ou seja, envolve narrador, personagens, tempo e espaço, por exemplo, os romances, contos e novelas. • Gênero Dramático: possui um caráter teatral, ou seja, são textos para serem encenados, por exemplo, tragédia, comédia e farsa. (MUNIZ,2019). A divisão literária em distintos gêneros teve origem na Grécia Antiga com os notórios filósofos Platão e Aristóteles. Platão é o primeiro a abordar a questão da mimese, ou seja, da imitação nas obras poéticas, o que é posteriormente aprofundado pelo seu aluno Aristóteles na célebre Poética. Nessa obra, Aristóteles desenvolve um tratado sobre as formas de imitação da natureza e do mundo pelos poetas, demonstrando as características que os diferentes tipos de imitação assumem na poesia épica e na dramática. A lírica, especificamente, não é abordada, de forma que só se consolida como parte dos três gêneros durante o Renascimento, no qual há uma valorização desse tipo de poesia. Rosenfeld (1985) reconstrói o texto de Aristóteles com vistas a visualizar os indícios da caracterização do que hoje conhecemos como gênero lírico. Ele percebe três maneiras de narrar em Poética: • a ligada ao épico, que conta com a ajuda de terceiros para narrar; • a dramática, na qual as próprias personagens estão em ação, sem a necessidade de narração; 19 • uma terceira, na qual “se insinua a própria pessoa [do autor], sem que intervenha outra personagem” (ROSENFELD, 1985, p. 16), relacionada à lírica. A seguir, especificaremos os traços fundamentais de cada um dos três gêneros literários e as distinções entre eles com base na divisão clássica. Lírico O surgimento da lírica fundamenta-se na tradição oral dos poemas cantados, geralmente acompanhados por um instrumento denominado lira, que motiva a denominação desse gênero (ABAURRE; PONTARA, 2005). Após a invenção da imprensa, no século XV, é que ocorre a separação entre a música e a escrita da poesia, visto que há uma inversão da prevalência da cultura oral pela cultura escrita. Segundo Abaurre e Pontara (2005), é somente a partir do Renascimento italiano que a poesia de característica subjetiva ganha reconhecimento semelhante aos gêneros épico e dramático. De acordo com Abaurre e Pontara (2005), as estruturas mais conhecidas da lírica são as seguintes: Elegia — poema surgido na Grécia Antiga que trata de acontecimentos tristes, muitas vezes enfocando a morte de um ente querido ou de uma personalidade pública. Écloga — poema pastoril que retrata a vida bucólica dos pastores em um ambiente campestre. Ode — poema que exalta valores nobres, caracterizando-se pelo tom de louvor. Soneto — é a mais conhecida das formas líricas e possui 14 versos, que se organizam em duas estrofes de quatro versos (quartetos) cada e duas estrofes de três versos (tercetos) cada. O gênero lírico, conforme Rosenfeld (1985), pode ser definido como o mais subjetivo dos três, pois a sua principal característica é justamente a presença de uma voz central que traduz no poema a expressão de um estado da alma, as suas emoções e também as suas reflexões sobre o ser humano e o mundo. Nesse sentido, a poesia lírica tem como ponto de partida a manifestação verbal das emoções e dos sentimentos do eu 20 lírico. A partir desse objetivo, o mundo, a natureza e as outras personagens que porventura apareçam nesse tipo de poema são evocados, apenas, para ressaltar os sentimentos do eu lírico. A esse respeito, Rosenfeld (1985, p. 23) afirma que “a bem-amada, recordada pelo eu lírico, não se constituirá em personagem nítida de quem se narrem as ações e enredos; será apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central”. Em relação às características formais da lírica, Rosenfeld aponta a curta extensão como um traço fundamental estilístico. Uma vez que não narra acontecimentos, mas sim emoções, a poesia lírica não é extensa como o poema épico, senão efêmera, como a metamorfose dos sentimentos e das sensações humanas. Outros dois traços estilísticos apontados pelo autor são o ritmo e a musicalidade das palavras e consequentemente dos versos. Esses traços se destacam de tal maneira que, por vezes, são priorizados em detrimento do sentido, de modo que o poeta se atém antes à sonoridade do poema que ao seu conteúdo. De acordo com Abaurre e Pontara (2005), o ritmo se define como “um movimento regular, repetitivo” que se marca na poesia pela alternância entre pausas e acentos (sílabas tônicas e átonas). Quando o esquema rítmico possui o mesmo número de sílabas, os versos são considerados regulares; quando possui números diferentes, são irregulares. Outro fator importante, embora não seja obrigatório, para a construção da musicalidade é a rima, que pode ser definida como “a coincidência ou a semelhança de sons a partir da última vogal tônica dos versos” (ABAURRE; PONTARA, 2005, p. 43). Ademais, na poesia lírica, ao contrário do que ocorre no poema épico, as ações não são situadas nem no tempo, nem no espaço. Prepondera a voz do presente, indicando uma ausência de distância que o passado traria. Assim, há a impressão de que a poesia trata sempre de um momento eterno. Rosenfeld (1985) apresenta um exemplo importante para a compreensão da temporalidade do gênero lírico: Apavorado acordo, em treva O tempo verbal, que não remete necessariamente ao passado, pode representar tanto uma situação presente quanto uma recordação que permanece, que não se restringe ao passado. Do contrário, a construção seria acordei. É essa construção que causa a impressão de um momento eterno, que tanto pode falar do hoje quanto de outro momento que ainda se faz presente; portanto, um momento eterno. (ROSENFELD, 1985, p. 23- 24). 21 Narrativo/Épico O gênero épico abarca os poemas narrativos extensos, cuja principalcaracterística é a presença de um herói responsável por feitos extraordinários sobre os quais versará a obra literária. Nesse sentido, a epopeia seria uma das artes da imitação que, juntamente com a tragédia, representa assuntos sérios e imita os homens melhores do que de fato o são. Para diferenciar a epopeia da tragédia, Aristóteles traça algumas diferenças entre essas formas literárias, dentre a quais está a dimensão do poema épico, que não teria a sua duração limitada como a tragédia. Abaurre e Pontara (2005) apresentam um excelente quadro-resumo da estrutura dos poemas épicos: Proposição — o poeta define o tema e o herói do seu poema. Invocação — o poeta pede à musa que lhe inspire para que desenvolva com maestria o tema do seu poema. Narração — o poeta narra as aventuras do seu herói. Conclusão — o poeta encerra a sua narrativa após relatar os feitos gloriosos que marcaram a trajetória do seu herói. Para Rosenfeld (1985), o poema épico retrata um mundo imaginário de modo objetivo. Ele não se preocupa em expressar as emoções do poeta, mas narra os estados de alma das personagens que compõem os seus poemas. Ao mesmo tempo em que narra o destino das personagens, o narrador está sempre presente por meio da sua narrativa, concedendo a palavra aos personagens por meio da sua própria voz. Assim, há certa distância entre o narrador e o mundo por ele narrado. Outra característica importante do poema épico é o enaltecimento de um herói. O conflito histórico é apenas pano de fundo para o desenvolvimento do herói, que enfrenta perigos e jornadas extraordinárias. No entanto, o foco dos poemas épicos não é o herói enquanto expressão da sua própria personalidade ou individualidade, mas sim da sua identidade pátria. Vejamos um exemplo de poema épico clássico (HOMERO, 1997): Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia; muitas cidades dos homens viajaram, conheceu seus costumes, como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma, para que a vida salvasse e a de seus companheiros a volta. 22 Notemos que, em fins do século XVI, a epopeia como gênero puro declina em detrimento de novas formas de narrativas derivadas dos próprios poemas épicos, todavia que passam a ser escritas em prosa. Surgem, assim, os gêneros narrativos modernos, como o romance, o conto e as novelas, que veremos de forma mais detalhada posteriormente. Dramático Ao propor os seus estudos sobre esse gênero, Aristóteles inspirou-se no drama grego da época para estabelecer alguns princípios do que seria o texto dramático por excelência. Nesse sentido, a tragédia estaria mais detalhadamente proposta por Aristóteles que a comédia. Aristóteles propõe a tragédia como sendo a imitação de homens, representando- os melhores do que de fato o são, por meio de personagens em ação. Para ele, a ação deveria se passar de forma concentrada em um espaço-tempo máximo de 24 horas, isto é, deveriam retratar episódios breves. Esses episódios retratariam o desenrolar de uma história já iniciada, enfocando o clímax e o desenlace dos conflitos apresentados. Segundo Aristóteles (2003): A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções. (Aristóteles, 2003, p. 8): Uma das principais diferenças do texto dramático em relação aos gêneros épico e lírico é a forma como é narrado, ou melhor, como não é narrado, já que o narrador é dispensável nesse formato literário. Isso porque os acontecimentos se dão por meio das falas e das ações das personagens (ROSENFELD, 1985). Para melhor ilustrarmos a questão, observemos o trecho a seguir, extraído da peça Édipo Rei, do dramaturgo ateniense Sófocles ([406 a.C.], documento on-line): Sacerdote: Realmente, tu falas no momento oportuno, pois acabo de ouvir que Creonte está de volta 23 Édipo: Ó rei Apolo! Tomara que ele nos traga um oráculo tão propício, quanto alegre se mostra sua fisionomia. Entra Creonte Creonte: Uma resposta favorável, pois acredito que mesmo as coisas desagradáveis, se delas nos resulta algum bem, tomam-se uma felicidade. Édipo: Mas, afinal, em que consiste essa resposta? O que acabas de dizer não nos causa confiança, nem apreensão. Creonte: (indicando o povo ajoelhado) Se queres ouvir-me na presença destes homens, eu falarei; mas estou pronto a entrar no palácio, se assim preferires. Édipo: Fala perante todos eles; o seu sofrimento me causa maior desgosto do que se fosse meu, somente. Contemporaneamente, a teoria teatral estabelece alguns pressupostos diferentes para o texto dramático. Segundo Magaldi (1991), até o início do século XX, aproximadamente, o texto teatral era considerado parte essencial do drama, consagrando-se soberano frente à encenação. Não se concebia teatro sem obra dramática. A partir do século XX, há um declínio do chamado textocentrismo, pois o espetáculo teatral passa a ser possível e reconhecido ainda que sem texto. Ganha espaço, então, a arte da encenação, colocando encenador e autor (dramaturgo) lado a lado. Portanto, reconhecemos que cada dramaturgo da nossa época adota um estilo diferente, assim como cada encenador, diretor ou ator podem adaptar esses estilos ao seu, conferindo um caráter mais amplo e um repertório múltiplo ao teatro. Vejamos o seguinte excerto do texto teatral O Auto da Compadecida, do escritor contemporâneo Ariano Suassuna (2014): Chicó e João Grilo estão na frente da igreja de padre João, querem convencê-lo a benzer o cachorro de sua patroa, a mulher do padeiro. Chicó Padre João! João Grilo Padre João! Padre João! Padre (aparecendo na frente da igreja) Que há? Que gritaria é essa? 24 Chicó Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro para o senhor benzer. Padre Para eu benzer? Chicó Sim Padre (com desprezo) Um cachorro? Chicó Sim Padre Que maluquice! Que besteira! João Grilo Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Padre Não benzo de jeito nenhum. Chicó Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho. João Grilo No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor não benzeu? Padre Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar. João Grilo É, Chicó, o padre tem razão. Uma coisa é benzer o motor do major Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major Antônio Morais. Padre Como? João Grilo Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio Morais. Padre E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais? João Grilo É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse. Padre (desfazendo-se em sorrisos) Zangar nada, João! Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro! João Grilo Quer dizer que benze, não é? Padre Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus. João Grilo Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo fica satisfeito. Padre Digam ao major que venha. Eu estou esperando (Entra na igreja). No exemplo, é possível visualizarmos partes do texto destacadas. Essas partes correspondem às indicações cênicas dadas pelo autor da peça para os atores e diretores 25 que porventura a encenarão. Esses trechos são denominados rubricas, que se somam aos diálogos para completar o texto dramático e podem servir como indicação cênica quando as peças são encenadas ou como complemento do texto quando lidas. Para Magaldi (1991), é necessário compreendermos o teatro como uma tríade que não funciona sem os seus três elementos:ator, texto e público. Ao assumir esses elementos como essenciais, podemos pressupor a existência de outros, como o gesto, a interpretação, o cenário, o espaço cênico, o figurino e a iluminação, por exemplo. 4.1 Gêneros literários modernos: poesia, romance e ensaio Como já aprendemos, a classificação em gêneros literários corresponde aos modelos clássicos da realidade grega antiga. Por esse motivo, no mundo contemporâneo, existem outras divisões possíveis para os textos literários. Martins afirma que um determinado tipo de sociedade (a grega) gerou a poesia épica, enquanto outro tipo de sociedade (o mundo contemporâneo) gerou o romance. Portanto, o autor expõe, com Lukács (2000), que um gênero literário não é “meramente o resultado da inventividade de autores ou de uma evolução isolada da forma, e sim um produto, um resultado de formas sociais de produção e de consumo de em um dado momento histórico” (MARTINS, 2012, p. 248). No mundo contemporâneo, convivem e imbricam-se as formas narrativas, líricas e dramáticas, dando origem a gêneros como o conto, o romance, o ensaio e diversos outros que deles derivam. Diante desse breve panorama, passaremos à análise de alguns dos principais gêneros que circulam nos nossos dias. Lírica moderna Na obra Estrutura da lírica moderna, Friedrich aponta os caminhos que a lírica percorre ao longo dos séculos XIX e XX. Para o autor, a lírica moderna atende a um objetivo comum às artes em geral: a dissonância, que seria a junção entre a incompreensibilidade e o fascínio, gerando uma tensão no leitor. Ele aponta que essa tensão se evidencia na lírica moderna tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, há uma convivência de traços “de origem arcaica, mítica e oculta com uma aguda 26 intelectualidade” (FRIEDRICH, 1978, p. 16), ao passo em que se misturam a simplicidade da forma escrita e a complexidade dos seus conteúdos. Outro ponto importante suscitado por Friedrich é a expressão do eu do poeta, que até meados do século XIX era essencial na poesia e passa a não ser mais um traço fundamental. O poeta participa dos seus poemas enquanto artista, frequentemente refletindo sobre o próprio poema. A língua, na lírica moderna, é tomada como um experimento no qual o vocabulário e a sintaxe assumem novas significações e formas. As figuras de linguagem, como a comparação e a metáfora, “são aplicadas de uma nova maneira, que evita o termo de comparação natural e força uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável” (FRIEDRICH, 1978, p. 18). Esteticamente, o conceito de belo é repensado e discutido, o que se reflete no grotesco. Em resumo, o que se dá na lírica moderna é um conjunto de inovações relativas à poesia clássica que predominava até então. Ela expressa as transformações sociais que provocam conflitos no sujeito moderno, por vezes chocando o leitor, levando-o a refletir e questionar as tradições. Exemplo disso são os poemas em prosa que lemos anteriormente. Além de Baudelaire e Pessoa, no Brasil os poemas de Carlos Drummond de Andrade são bons exemplos das inovações relativas à lírica moderna. Veja, por exemplo, o poema Mãos dadas (ANDRADE, 2000, p. 118): Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista pela janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes. 27 a vida presente. Pereira (2012) ensina que esse poema é um ótimo exemplo da disputa entre a tradição e a inovação presente na lírica do século XX. O eu lírico se debate na tensão entre o “mundo caduco”, ao qual não quer ser associado, e o mundo futuro, mas explicita a sua filiação ao “tempo presente”. Além disso, o poema questiona os temas sentimentais ao expressar que não dirá “suspiros ao anoitecer”, em uma tensão entre negar a tradição lírica de fundo subjetivo ao mesmo tempo em que alude a ela, como nos trechos finais: “não distribuirei cartas de suicidas”, “nem serei raptado por serafins.” Romance O romance surge da necessidade do mundo moderno de traduzir a sociedade por meio de uma forma literária que correspondesse ao momento histórico. Lukács (2000, p. 59) traça um comparativo entre a epopeia e o romance: “O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. Apesar de ter surgido séculos antes, apenas em meados do século XIX o romance se consolida como um gênero literário, resguardando a epopeia ao passado. Tal fato está diretamente relacionado às Revoluções Francesa e Industrial e ao consequente surgimento de novas classes sociais, como a burguesia. Essa reconfiguração social levou, naturalmente, ao surgimento de novas demandas, sobretudo culturais. Nesse contexto, as longas narrativas, como as epopeias, estavam ligadas ao clássico, que não representava a classe burguesa emergente. Assim, surgem os folhetins, que eram novelas publicadas diariamente nos jornais. Como expressão desse período histórico, o romance apresenta um indivíduo que, segundo Martins (2012), busca a sua essência, porém converge para o encontro das estruturas sociais, pois não há tempo para a subjetividade. Assim, “[...] o romance completa o homem que é alheio a esse mundo alheio à subjetividade. O romance é a forma que representa uma realidade interior não encontrada nas estruturas sociais que 28 nos regem e que nos sufocam” (MARTINS, 2012, p. 252). Nesse sentido, o romance é um gênero de reflexão, que proporciona ao homem desvendar-se. Estruturalmente, o romance também atenderia a esses anseios do mundo contemporâneo. Por esse motivo, o limite do romance deve ser o limite da vida do herói, pois a sua trajetória tem a função de enfocar uma parcela do mundo. Dessa maneira, podemos distinguir duas características essenciais do romance em contraponto à epopeia: o herói, que agora é um homem comum, dividido e que poderia representar qualquer um de nós; e o tempo, que não mais retrata necessariamente o passado, mas se direciona para o futuro, adotando certo caráter de imprevisibilidade que não se configurava na epopeia (MELLO; OLIVEIRA, 2013). Nesse sentido, também o espaço adquire outra importância: conquanto na epopeia a ação se dava em um espaço restrito, no romance o espaço extrapola a questão dimensional. Se essas são características ligadas ao momento fundador do romance ou, ainda, a uma análise relativa ao século XIX e ao início do século XX, o romance contemporâneo transformou-se e desprendeu-se de tais pressupostos. As noções de tempo, espaço e a própria estrutura da narrativa têm sido constantemente reinventadas pelos autores. Virginia Woolf e James Joyce são dois autores bastante apontados como precursores de uma nova forma de narrativa. Uma dessas inovações é o uso do fluxo de consciência, que, no Brasil, tem em Clarice Lispector uma forte representante. Como vimos, também a prosa poética é uma forma de inovação no romance. João Guimarães Rosa, juntamente com Clarice Lispector e outros escritores, representam a narrativa contemporânea com a desconstrução do convencionalismo até então vigente e um caráter de experimentação que segue até os dias atuais. Ensaio Na teoria literária contemporânea, o ensaio adquire um estatuto curioso e não evidente, uma vez que esse gênero já foi demasiadamente debatido entre osteóricos, chegando-se até mesmo ao ponto de considerar que já se havia dito tudo a seu respeito. Posto isso, seria consenso que o ensaio possui lugar entre o literário e o estritamente teórico. 29 Nesse entremeio entre literatura e teoria, poderíamos compreender o ensaio como um “irmão” da literatura, ao mesmo tempo em que se distancia das formas artísticas por abordar conceitos e possuir uma certa “pretensão à verdade desprovida de aparência estética”, conforme afirma Adorno (2003, p. 18). Carvalho (2012), por sua vez, defende que o ensaio é um tipo de texto que parte da experiência pessoal para gerar um pensamento conceitual. Assim, o autor afirma que no ensaio há um exercício de liberdade e espaço para a criação, convertendo o gênero em algo pouco científico, diferindo, portanto, da monografia ou do artigo científico, por exemplo. Apesar de situar-se próximo ao artístico, parece sempre tangenciá-lo. Ainda segundo o autor, o ensaio é “o texto teórico que pode ser lido como literatura”, res saltando ainda que neste gênero a forma é tão importante quanto o conteúdo (CARVALHO, 2012, p. 196). Em O ensaio como forma, Adorno escreve um ensaio sobre o próprio ensaio. Observemos que no trecho destacado, a seguir, ele cita o autor Max Bense. Vejamos como a linguagem é construída por ambos de forma literária e também argumentativa: O ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça, em um traço particular, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada. [...] ‘Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever (ADORNO, 2003, p. 36). Assim, o ensaio apresenta um ponto de vista, que corresponde à perspectiva do autor, sobre determinado assunto, procurando debatê-lo com vistas a defender uma hipótese ou uma tese sobre o assunto. No entanto, ao contrário de um artigo científico, nele não se exige a adequação a aspectos formais. Logo, o ensaio é o discorrer livre e fundamentado de um autor sobre algum assunto. Em função dessa liberdade, ele encontra-se entre os gêneros chamados literários e não entre os gêneros científicos 4.2 Texto literário X texto não literário A literatura é definida como uma expressão artística realizada por meio da palavra, no entanto, é preciso tomar um cuidado: nem todo texto é considerado literário. 30 Basta se lembrar que a finalidade da literatura / de obras literárias é entreter o leitor. Se determinado texto não tiver como finalidade o entretenimento, ele não será considerado literário. De modo geral, um texto não literário se caracteriza por ter as seguintes características de maneira marcante e facilmente identificáveis: • Função utilitária, com a finalidade de fornecer alguma informação ao leitor; • Uso de linguagem denotativa, o que torna o texto objetivo; • Preservação da impessoalidade e imparcialidade, sem expressar opiniões; • Ausência de recursos estilísticos, como as figuras de linguagem, reforçando a objetividade do conteúdo. Tais características são encontradas em textos jornalísticos, bulas de medicamentos, entrevistas, artigos científicos, dicionários, guias técnicos de equipamentos e eletrônicos, entre outros (CORTES, 2019). Para elucidar essa questão, separamos exemplos de criações que são consideradas textos literários e não literários. Confira, a seguir, quais são eles: Texto literário “QUADRILHA” João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”. 31 Quadrilha. Carlos Drummond de Andrade (1930). Texto não literário INFORMAÇÕES AO PACIENTE 1. PARA QUE ESTE MEDICAMENTO É INDICADO? Este medicamento é indicado como analgésico (medicamento para dor) e antitérmico (medicamento para febre). 2. COMO ESTE MEDICAMENTO FUNCIONA? Dipirona é um medicamento à base de dipirona, utilizado no tratamento das manifestações dolorosas e de febre. Os efeitos analgésico e antitérmico podem ser esperados em 30 a 60 minutos após a administração e, geralmente, persistem por, aproximadamente, 4 horas. (Trecho da bula do medicamento Dipirona, disponibilizada pela Anvisa.) 32 5 A LINGUAGEM LITERÁRIA Fonte: mundoeducacao.uol.com.br Existe uma infinidade de formas e estilos literários surgidos desde a origem da escrita. Entre os teóricos da literatura, há certa afinidade no sentido de reconhecer o que é e o que não é literário. Porém, nota-se uma divergência muito grande para identificar, pontualmente, quais aspectos são, de fato, essenciais à constituição do texto literário. Por conta disso, ao longo dos séculos, surgiram muitas descrições, hipóteses e prescrições em relação ao literário. Isso se deve ao fato de que a própria literatura muda ao longo do tempo. Mesmo assim, parece haver um consenso: a especificidade da literatura está na linguagem empregada. A literatura, para existir, se vale dos mesmos recursos linguísticos necessários à comunicação do cotidiano a saber, o domínio de uma língua (português, espanhol, russo, grego) e da linguagem em todos os seus níveis (vocabulário, organização textual, sentidos). A linguagem é um produto social, que só existe por meio da interação entre seus usuários. Daí que, ao fazer uso da linguagem, sempre se leva em consideração o destinatário da comunicação e os efeitos pretendidos. Contudo, há 33 uma preocupação estética na linguagem literária que é inexistente ou secundária em textos não literários. E é aí que as diferenças começam a se estabelecer. Um conceito mais ou menos abrangente de literatura é o que a define como uma arte verbal. De fato, na literatura há um esforço criativo em relação à linguagem cotidiana. Além disso, a definição de literatura também está relacionada à ideia de uma representação de mundo. Enquanto a linguagem em uso cotidiano corresponde à ideia de uma verdade, a uma informação, a linguagem literária corresponde a uma representação da realidade. Justamente por ser uma representação, não é a realidade. Nesse processo de representação está o olhar particular do artista, como revela Massaud Moisés (1995, p. 314): Dado ser impossível captar a realidade por via direta, só resta conhecê-la por meio de um sinal que a represente, não como tal, visto ser impossível, mas como pode ser expressa, ou seja, enquanto se submete à expressão: assim, conhecemos a representação da realidade, não ela própria. Mas fazê-lo implica “mentir”, “fingir” a realidade que se mostra, de modo que a realidade espelhada na representação não é a que se deseja conhecer, mas como aparece na mente do artista; ou seja, como se reflete na sua imaginação. Daí a concluir que Literatura é ficção, ou imaginação. “Mentir” e “fingir” aqui não são empregados em sentido pejorativo, mas com o propósito de mostrar que a literatura não é a realidade, e sim uma representação (metafórica, multissignificativa, subjetiva) desta, que se vale das potencialidades da linguagem para produzir novos sentidos. Tal conceito está ancorado na ideia aristotélica de mimese, ou seja, a arte literária como imitação da realidade, com meios próprios (linguagem) e também como possibilidade, como imaginação daquilo que poderia acontecer. Nesse sentido, toda imitação é criação, não cópia. Outro ponto que você deve considerar em relação à constituição da literatura é seu caráter de fruição, ou seja, seu componente lúdico, sua capacidade de seduzir o leitor,de dar-lhe prazer, de fazê-lo experimentar outras situações, esquecendo-se, muitas vezes, da realidade. Isso não significa, de modo algum, que a literatura aliena. Pelo contrário, é também por meio da experiência de leitura que o homem descobre a si mesmo, o mundo e a sua relação com ele. Nesse processo, o texto literário assume uma 34 função essencial, de redimensionamento da realidade, de valores, de organizações sociais, levando o leitor, inclusive, a posicionar-se criticamente. 5.1 Literariedade Para compreender o que é um texto literário, ou seja, o que o distingue dos demais tipos de linguagem, é interessante retomar o conceito de literariedade. Como você já viu, diante de um objeto de estudo tão amplo e diversos quanto a literatura, não se pode atribuir a um aspecto único (pontual e concretamente expresso) o ser literário. Trata-se, portanto, de um conjunto de características, expressas com mais ou menos evidência na constituição do texto literário. O termo literariedade é bastante amplo e parece dar conta da necessidade teórica de se estabelecer um objeto de estudo. Ele surgiu entre os formalistas russos, mais especificamente referido por Roman Jakobson, em 1919. O termo surge pela necessidade de se analisar a literatura por meio da identificação de seus traços poéticos. Isso não significa que os traços definidores da literariedade sejam os mesmos para todos os textos, nem que não mudem ao longo do tempo. Pelo contrário, é justamente a ampla variabilidade inventiva e as várias formas de expressão que tornam possível pensar a literatura como um objeto de análise tão singular. Para compreender um pouco mais sobre os traços que podem constituir a literariedade e como a compreensão desse conceito variou ao longo da história, considere os dois textos reproduzidos a seguir. Texto 1 EXPANSÃO MARÍTIMA PORTUGUESA Com os descobrimentos, a Nação vai tornar-se consumidora de bens produzidos fora dela, ou da riqueza que através desses bens consegue. Isso explica que o início do período das grandes navegações coincida com o termo do período das guerras civis. A expansão passa a constituir desde então uma espécie de grande projeto nacional, ao qual todos aderem porque todos esperam vir a ganhar com ele. E explica também que a 35 política de expansão ultramarina tenha repercutido tão profundamente sobre tantos aspectos da vida portuguesa (SARAIVA, 1979, p. 132-133). Texto 2 MAR PORTUGUÊS Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deram, Mas nele é que espelhou o céu (PESSOA, 2008, p. 82). Em ambos os textos, você pode perceber aspectos comuns: o emprego da mesma língua (português) e a referência ao mesmo fato histórico (o impacto das expansões marítimas portuguesas na era dos descobrimentos). Como, então, distinguir os textos? É provável que você saiba quem é Fernando Pessoa, e isso já o leva a concluir que o que é escrito por ele pertence ao campo da literatura. O título das obras das quais os textos foram retirados também já dá pistas de quais são seus enquadramentos. No entanto, do ponto de vista teórico, as distinções são mais complexas, envolvendo uma observação mais atenta. O Texto 1 possui uma linguagem referencial, ou seja, visa a apresentar um fato, descrever uma situação com a maior especificidade possível, sendo, portanto, um texto informativo, não ficcional. O Texto 2, busca representar as impressões e sensações decorrentes da percepção artística acerca do mesmo fato descrito pelo Texto 1. Pode-se afirmar que há, entre ambos, propósitos distintos e, portanto, ações diferentes entre seus autores. No caso do texto de história, para que seja validado como tal, deve haver uma correspondência clara entre o que é dito e a realidade. Qualquer “invenção” ou “exagero”, nesse caso, tornaria autor e obra desacreditados, um grande problema para a história, o que não significa que um texto histórico não esteja sujeito a mais de uma interpretação 36 ou a equívocos em relação a fatos e narrativas. O historiador, em seu compromisso com a verdade, busca evitar ao máximo esse tipo de ocorrência. Fernando Pessoa (2008), por sua vez, na condição de poeta, ao compor o verso “Por te cruzarmos, quantas mães choraram”, não precisa apresentar provas de que isso, de fato, aconteceu. No entanto, o leitor percebe a legitimidade disso, na medida em que aceita a ideia da separação como uma fonte de saudade. O mar, no poema, adquire múltiplas significações, sendo, ao mesmo tempo, motivo de dor (composto de lágrimas, abismo, perigo) e glória (“Mas nele é que espelhou o céu”). A partir da leitura, você pode notar certa contradição entre a grandeza do mar e do futuro de Portugal ao desbravá-lo, por um lado, e a dor da separação que essa audácia implica, por outro. Ou seja, o texto de Pessoa é um modo poético de expressar a ideia do historiador José Saraiva (1979) de que a conquista marítima “[...] tenha repercutido tão profundamente sobre tantos aspectos da vida portuguesa”. Sob outro enfoque, o Texto 1 refere-se a uma realidade estanque, concreta, a um período específico da história. Já o Texto 2, justamente por sua literariedade, não se encerra em si mesmo, nem se fixa em um ponto específico. Para confirmar isso, basta você lembrar-se de quantas vezes leu ou ouviu a expressão “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” aplicada a diversos contextos de comunicação. Inclusive, é possível ouvir esse trecho num contexto qualquer, sem qualquer referência ao seu autor ou ao contexto português no qual o poema se insere. Isso explicita outros dois aspectos da linguagem literária: sua atemporalidade e sua universalidade. Ao contrário da linguagem cotidiana, de emprego puramente comunicativo (como no caso de um texto de história), a linguagem literária possui significação aberta, adapta-se, recebe novos sentidos, estimula reações e usos até mesmo nem pensados por seu criador. O poeta e crítico mexicano Octavio Paz (2012) afirma que “[...] a criação literária tem início como violência sobre a linguagem”, na medida em que há o “[...] desarraigamento das palavras”. Ou seja, a palavra literária, por ser empregada em sentidos e formas diferentes daqueles convencionais, provoca, causa estranheza, desperta admiração, choca. Daí que essa “violência” esteja associada à ideia de “desvio”, de quebra de expectativas. 37 Quanto mais esses aspectos de ruptura chamam a atenção, mais perceptível é o trabalho de criação e o efeito estético da obra. Essa ideia inicia com os formalistas, para quem a literatura envolveria traços diferenciais entre um discurso e outro. Portanto, não seria uma característica perene ou inerente, como explica Terry Eagleton (2006). A intenção dos formalistas, por essa razão, não era definir “literatura”, mas “literaturidade” (ou “literariedade”), “os usos especiais da linguagem, que não apenas podiam ser encontrados em textos ‘literários’, mas também em muitas outras circunstâncias exteriores a ele” (EAGLETON, 2006). O problema disso, para sustentar uma definição estável de literatura, é que essas características especiais (por exemplo, o uso de figuras de linguagem, como metáforas) também podem ser encontradas em outros textos não literários, como a fala cotidiana. Mesmo assim, para os formalistas, a “essência” do literário era sua estranheza, ou seja, o impacto que causa no leitor. Mais uma vez, porém, outros tipos de escritas também poderiam ser considerados “estranhas”, e nem por isso seriam percebidas como literárias. Ainda assim, um dos elementos que permanece como característicado literário é o predomínio da linguagem conotativa em oposição à linguagem denotativa, que caracteriza a linguagem comunicativa. No caso desta última, há um vínculo maior entre o que está sendo dito/escrito e a realidade. Já na linguagem conotativa predomina a representação da realidade, implícita, figurativa, interferindo, de certa forma, no sentido denotativo. Como exemplo, considere a palavra “mar”. No poema de Fernando Pessoa indicado previamente, a palavra faz referência a um significado conhecido por todos (sentido denotativo): uma extensão de águas salgadas. No entanto, vai além dele. O “mar” de Pessoa é “humanizado”, o eu lírico dialoga com ele, faz perguntas, o que coloca essa palavra em um plano de significação para além do seu sentido geográfico. Assim, o mar passa a envolver o mistério, a grandiosidade, o abismo. O sentido conotativo do texto requer que o leitor recorra a conhecimentos que estão além do domínio da estrutura da língua. Envolve questões culturais, míticas, filosóficas, entre outras. Assim, o texto literário torna-se atemporal na medida em que é sempre ressignificado no tempo (um mesmo leitor pode ler um texto em momentos diferentes de sua vida e construir sentidos diversos, assim como leitores diferentes em momentos diferentes). O texto literário também visa 38 ao universal, já que os temas e a linguagem são comuns a várias culturas. Pense em como os temas amor, viagem e guerra são tratados na literatura mundial desde os tempos mais remotos. São assuntos prontamente reconhecíveis, que impactam diretamente o leitor, em qualquer lugar ou época, ainda que constantemente recriados pela linguagem. Daí aquilo que Ezra Pound (2006, p. 33) infere: “Literatura é novidade que permanece novidade”. Você deve, ainda, considerar a ficcionalidade e a verossimilhança. Na medida em que a literatura é representação, figuração, é produto de uma imaginação (ficção). Por mais que um romance, por exemplo, seja histórico, não se pode exigir dele “verdade”, fidelidade aos fatos, e sim uma equivalência da verdade, a verossimilhança. Por verossimilhança entende-se a impressão que o texto passa de poder ser verdade, pode acontecer, mesmo que a história seja fantástica ou sobrenatural. O texto literário requer uma coerência interna. Ou seja, a pertinência e a consistência do texto seguem a lógica da imaginação proposta pelo autor. Assim é que, como leitor, você aceita que um homem seja transformado em inseto, como Gregor Samsa, em A metamorfose, de Kafka. Afinal, pela lógica interna do texto, você entende como isso se dá. Sobre essas questões, no entanto, também há questionamentos. Mesmo os textos históricos partem também de pontos de vista, ainda que possam ser a reunião de muitos pontos de vista convergentes, e sua “verdade” pode ser contestada. Além disso, há textos que não necessariamente nasceram como literatura, mas foram assim considerados posteriormente (como é o caso de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, identificado também como jornalismo literário). Na literatura, de qualquer modo, exaltam-se a liberdade de expressão e a criatividade do autor em ressignificar e reestruturar a linguagem referencial, dando forma à linguagem literária. Por conta dessa liberdade e dessa criatividade, há certa dificuldade para se descrever o texto literário ou para se prescrever como fazê-lo, já que os limites de criação inexistem. Logo, as expressões literárias são incontáveis. O poeta pode ou não se valer das convenções e buscar ressignificá-las, reordená- las. Na tentativa de classificar ou descrever esses muitos modos de literatura, pense em quantos estilos literários há, agrupados conforme o tema ou o público leitor (literatura 39 infantil, gótica, de aventura), ou conforme a época (medieval, barroca, romântica). Mesmo se você considerar apenas uma dessas subcategorias, há diferentes usos da linguagem. Considerando todas as características apontadas acima, é possível perceber que nem sempre todas estão presentes em todas as obras literárias. Há obras que nascem como literatura, e outras que apenas se tornam literatura depois de um tempo. Há obras que visam o belo e outras que são consideradas “marginais”. Há um uso especial da linguagem literária, mas outras linguagens podem por vezes utilizar os mesmos recursos. Assim, a identificação de um texto como literatura depende também do modo como alguém o lê, e do valor que lhe é dado. Podemos concluir disto que a literariedade como conceito passou por transformações ao longo da história. Para Antônio Candido, por exemplo, na Formação da literatura brasileira, a literatura é um sistema, ou seja, a literariedade também não dependerá de fatores imanentes à obra, mas sim de sua relação com a sociedade, partindo de uma tradição e gerando um público leitor. Nesse sentido, o sistema literário seria constituído por autor, obra e público. Qualquer desses aspectos que faltasse não geraria um sistema, mas sim apenas uma manifestação literária. Houve respostas a essa teoria, como a de Haroldo de Campos, em O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira, em que o autor argumenta contra a noção de história defendida por Candido e discute a importância do Barroco para a literatura brasileira, que teria sido excluído do cânone nacional a partir da teorização de Candido. Recentemente, estudiosos como Terry Eagleton (2006) chamam atenção para o fato de que, na seleção de um conjunto de obras consideradas literárias, entra em jogo também juízos de valor e ideologias. Antoine Compagnon, em Literatura para quê? (2009), por exemplo, assim define o conceito de literariedade: “qualidade da forma que estabelece a literatura como literatura mais que a função cognitiva, ética, pública da literatura” (2009, p. 24). Assim, reafirma que a forma é fundamental na composição do literário, mas também aponta que essa arte está além de outras funções, como a cognitiva ou a ética, talvez justamente por ser poética. Ela não se limita, portanto, a uma só função ou definição, mas é uma combinação de fatores e escolhas. Tudo o que você viu até aqui converge para a conclusão de que a literatura reúne elementos diversos e não um grupo homogêneo de características 40 definitivas. Porém, apesar desses traços serem variáveis, é importante descrevê-los e, mais ainda, discuti-los e questiona-los. A seguir, você vai ver que há diferenças em relação ao modo como os textos são organizados e aos seus efeitos. Em especial, notam- se caminhos específicos para a poesia e para a prosa. 5.2 Linguagem literária — poesia e prosa Você viu previamente que a linguagem literária se diferencia da linguagem convencional (mera comunicação) por conta dos sentidos e efeitos da palavra, que é empregada em sentido conotativo e envolve criação e imaginação. No âmbito da literatura, de forma mais específica, há ainda um grande número de recursos linguísticos e estruturais capazes de definir e organizar os textos. Isso leva a uma variedade bem significativa. Nesta seção, você vai estudar a linguagem literária por meio da análise de textos escritos em verso e em prosa. As características da linguagem literária já apontadas estão presentes em todas as obras literárias. Porém, há especificidades da linguagem perceptíveis na poesia que estão menos evidentes nos textos em prosa, e vice-versa. O principal diferenciador é a presença do verso na poesia e a ausência deste na prosa. Cada vez mais, no entanto, na literatura moderna e contemporânea, os limites entre uma e outra têm se diluído, com a supressão de rimas e paralelismos e a substituição pelo verso livre na poesia e com o maior uso de imagens e ritmo na prosa. Isso não impede, no entanto, que possa haver uma sistematização quanto a aspectos próprios a cada forma. Para diferenciar prosa e poesia, Paz (2012), apresenta metáforas interessantes
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