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ITA E IME JOÃO FILHO LINGUAGEM ATIVIDADE COMPLEMENTAR Diagramação e/ou salvo por último.: Gráfica CENTRO 08/09/2022 MANHÃ TARDE Os Ratos e os Rastros: a construção da realidade urbana a partir de palavras Débora Grando Schöffel1 Andrea Soler Machado2 Resumo: “Os Ratos”, narrativa de autoria de Dyonelio Machado fala sobre Naziazeno, personagem que passa o dia buscando pelas ruas da cidade de Porto Alegre dos anos 1930 o dinheiro para quitar a dívida com o leiteiro. A cidade no romance é um personagem muito ativo no desenvolvimento do enredo. A aproximação entre a história narrativa e a ficção demonstram que a continuidade ou linearidade temporal nem sempre é a única maneira de estruturar uma história. A temporalidade é manipulada várias vezes no livro, e se passa na mente de Naziazeno, já era uma técnica utilizada pelos gregos, pois a peça começava com a cena final. O presente trabalho terá como objetivo central a analise das informações encontradas no romance Os Ratos, percebendo até que ponto a literatura permitirá o maior entendimento do homem moderno e suas relações com a urbe. Palavras-chave: Cidade, literatura, percurso, Porto Alegre. O quê: o amanhecer Os bem vizinhos de Naziazeno Barbosa assistem o “pega” com o leiteiro. Por de trás das cercas, mudos, com a mulher e um que outro filho espantado já de pé àquela hora, ouvem. Todos aqueles quintais conhecidos têm o mesmo silêncio. Noutras ocasiões, quando era apenas a “briga” com a mulher, esta , como o um último desaforo de vítima dizia-lhe: “Olha, que os vizinhos estão ouvindo”. Depois, à hora da saída eram aquelas caras curiosas às janelas, com os olhos fitos nele, enquanto ele cumprimentava. (MACHADO, 2004, página 6.) O presente trabalho parte de uma proposta de dissertação em andamento, pretende trabalhar com as descrições da cidade de Porto Alegre na obra “Os Ratos” de Dyonelio Machado. A obra visa trazer a realidade das 24 horas de um funcionário público, Naziazeno, que recebe um ultimato do leiteiro para pagar-lhe os 53 mil réis. A cidade no romance assume um papel de personagem muito ativo no desenvolvimento do enredo. Naziazeno literalmente palmilha todo o centro da cidade, e calcula-se por alto, que ele tenha percorrido um percurso de pelo menos quinze quilômetros. Convém lembrar que mais de um estudioso da obra de Dyonelio Machado fez referencia ao extremo cuidado que o autor tinha com a verossimilhança de caráter realista, num viés flauberiano, uma espécie de desejo mimético. Quando adentramos nas atribulações do protagonista, passamos a perceber outra cidade, mais concreta, mais palpável, mais presente para o leitor, desde que transposto um primeiro nível de dificuldades relativo à referencialidade. O caráter orgânico que a cidade adquire, sua aparência de corpo vivo decorre, em grande parte, do fato de que as ações acontecem, em sua maioria, no espaço público, no âmbito da pólis. Existe também a ideia de recompor os caminhos de Naziazeno, e toda a sua odisseia atrás do dinheiro para o leite para comparar com a hipótese de que o nome do livro “Os Ratos” tenha partido também do percurso do protagonista. Ou seja, as horas que o personagem vaga pela cidade buscando alcançar o objetivo ele também seria como um rato, conformado com seu status social simplesmente buscando o que precisava para manter a sua família por mais um dia. A figura do animal rato pode ser considerada uma representação das pragas da modernidade e as relações da cidade ganham muito mais proporção se levadas neste sentido. Por quê? : a manhã Naziazeno vai andando... É a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura essa manhã. Esse relógio lá no alto, na torre, parece-lhe uma cara redonda e impassível... Já pôs o pé na calçada do mercado. O “café do Duque” fica na outra esquina. Toda essa calçada é uma sombra fresca e alegre, cheia de passos e vozes. Quando defronta o portão central, abre-se-lhe, lá dentro, uma perspectiva de rua oriental, cheia de bazares, miragem remota de certas gravuras... ou de certas fitas... que viu (MACHADO, 2004, página 23). A justificativa da escolha deste tema veio através da curiosidade de descobrir como era a cidade e a vida da população porto alegrense no inicio do século XX. Percebemos que a própria literatura ajudaria nesta compreensão, pois os romances de 30 eram considerados os “romances urbanos” ou até “romances neo-naturalistas” que se destacam por abordar de forma muito realista a rotina dos seus personagens. Depois dessa identificação de que os romances de 30 poderiam ser uma fonte de informação buscamos um livro que trouxesse a realidade da população porto-alegrense em 1930 e a resposta surgiu como Os Ratos, e através da leitura do livro percebemos que a cidade e arquitetura tinham papel de destaque na prosa com descrições bastante detalhadas, tanto que mereceriam um estudo de ponto de vista arquitetônico muito cuidadoso. Os Ratos é, aparentemente, uma trama trivial. No entanto, a obra relata muito mais que a história de um homem e sua dívida, exibindo uma crítica social sutil, mas muito eficiente. Este é o grande feito do livro: induzir ao pensamento. Tornou-se uma das obras mais influentes da segunda geração da literatura moderna no Brasil, recebendo o prêmio Machado de Assis, que é considerado o principal premio, da Academia Brasileira de Letras. Livro que surgiu como uma crítica a sociedade dos anos 30, porém ainda pode ser considerado atual devido às reflexões que este ainda leva aos leitores. Como: seguindo os rastros de Naziazeno "(…) se o historiador, na sua busca de construção de um conhecimento sobre o mundo, quer resgatar as sensibilidades de uma outra época, a maneira como os homens representavam, a si próprios e à realidade, como não recorrer ao texto literário, que lhe poderá dar indícios dos sentimentos, das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados, da gestualidade e das ações sociais de um outro tempo?" (PESAVENTO, 2000, p. 7, 8). Como Sandra Jatahy Pesavento (1991, p.14) afirma, as imagens urbanas trazidas pela arquitetura – ou pelo traçado da cidade, ou pela publicidade, pela fotografia, pelo cartaz, pelo selo, pela pintura, pelo desenho e pela caricatura – têm o potencial de remeter também, tal como a literatura, a outro tempo. É o caso de um momento que se edifica no passado, mas é pensado e sentido através do presente, uma vez que a leitura do livro trará a pele os percalços de Naziazeno no centro da cidade, descrevendo-a e fazendo com que o leitor compartilhe de sua angustia na procura do dinheiro. O espaço urbano e sua materialidade imagética torna-se um suporte do memorial social da cidade. http://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil http://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%AAmio_Machado_de_Assis http://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%AAmio_Machado_de_Assis http://pt.wikipedia.org/wiki/Academia_Brasileira_de_Letras 2 Pode-se considerar a literatura como uma representação do real, como uma fonte que traz novas perspectivas e uma sintonia fina da época: os rastros de uma época. As características principais estão na raiz dos modos de pensar, sentir, agir e de representar o mundo. A literatura é a melhor forma de entender o sistema de ideias e imagens do homem do outro tempo. Em muitos pontos, o urbanista e o historiador se aproximam, ao resgatar a essência da época e da cidade através de imagens urbanas e de representações das cidades. A materialidade das formas da arquitetura implica em uma relação complexa entre a forma física e as relações sociais de força, por sua vez expressadas por representações imaginárias. O conceito de representação foi enunciado por Mauss e Durkheim em 1903 e retomado por pensadores com Bourdieu (1980, p.113), Ginzburg (1995, p. 21), Chartier (1987, C.F.) e Hartog (1990), entre outros, como mediador teórico- metodológico dentro da Nova HistóriaCultural. A sua incorporação pela história permite, a partir de então, da volta à narrativa, a importância do indivíduo no social, o micro como porta de entrada para o macro, a subjetividade dentro do campo da história e o surgimento de uma teoria do imaginário, alternativa não necessariamente oposta, mas ampliadora de horizontes de cunho positivista e cientificista que subordinam a produção cultural às estruturas econômicas e sociais. A Nova História Cultural, por um lado, retoma a analogia entre história e a literatura de ficção que abalara os alicerces das teorias marxistas fundadas no cientificismo do século XIX, apontada há duzentos anos por Hegel e, de outro, a proposição de uma ideia de história alinhada com o pensamento de Walter Benjamin, segundo o qual, "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo" (1994, p. 224). Mesmo ainda sujeita a muitas críticas, a ideia de que o trabalho do historiador não reproduz o que realmente aconteceu já merece credibilidade intelectual. O argumento de Peter Burke (1992, p. 15) em favor das representações como fonte para a história é de que o mundo só é percebido como representação através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos culturalmente construídos. A utilização do conceito de representação implica uma abstração, se traduz em uma ampliação do conceito de história, de fonte histórica e na instauração de um campo de conhecimento fundada na negação das duplas antagônicas explicativas, porém simplificadoras, que opõe a realidade à irrealidade, como o bem ao mal. De acordo com Peter Burke (1992, p. 11-15), a Nova História Cultural baseia-se na consideração de que a história é socialmente construída por uma pluralidade de vozes, muitas vezes em oposição. Entre as vozes que compõe o coro social que canta para a história está o mundo das imagens, incluindo necessariamente a obra de arte -- e a arquitetura como obra de arte --como "matéria de pesquisa e de interpretação histórica" e como "categoria a ser pensada historicamente" (ARGAN,1995, p. 27). Admitir a imaginação de uma época como um fenômeno social revelador das sensibilidades, crenças e mitos, ou seja, da sintonia fina da mesma, conduz ao reconhecimento de identidades distintas e exige a redefinição da escrita da história. Através de novas abordagens teórico-metodológicas comprometidas muito mais com a verossimilhança que com a veracidade, instaura-se um campo epistemológico no qual, de acordo com Baczko, a imaginação não se opõe, ao contrário, está unida dialeticamente ao verdadeiro, tornando-se uma de suas faces (1991, p. 303). Para Chartier, "no espaço assim traçado se inscreve todo o trabalho situado no cruzamento de uma história das práticas, social e historicamente diferenciadas e de uma história das representações inscritas nos textos ou produzidas pelos indivíduos”(1994, p.179). Esta abordagem pressupõe a consideração dos aspectos estruturais da arte e das relações compositivas do objeto artístico como produto de seu tempo, descrevendo um movimento cognitivo que se inicia "proustianamente" no presente da percepção dos elementos capazes de despertar o passado. A arte atua como a madeleine de Proust, sobretudo a música, trilha sonora de gerações, pois evoca saudades e memórias, muitas vezes contribuindo na visualização de um quadro contextual histórico. Por outro lado, a silenciosa literatura reconstrói cenários e comportamentos, sempre um convite a viagens a tempos passados, enquanto a arquitetura abriga na pedra os ecos de vontades, desejos e utopias conjugadas a grandes esforços, confundindo-se com o próprio quadro histórico. Se “não há fatos puros”, mas “sempre uma interpretação teórica que nele está contida” (VIRIEUX- REYMOND, 1972, p. 98-99), é na distância existente entre uma e outra que surge a invenção, artística e histórica. O presente da narrativa define-se como construção de uma temporalidade distinta do passado, na qual o que parecia perdido é reconhecido, construído e reapresentado sob a forma de uma explicação datada do mundo, de uma atribuição de sentido, onde a verdade paira no ar como propósito e horizonte intelectual de expectativas, mas é a plausibilidade das coisas o que se tem para mostrar. Nesse aspecto, o texto histórico não se confunde, mas se aproxima do literário, como uma versão dos acontecimentos que parte de um olhar possível em relação ao passado, surgida de uma interpretação construída sobre a história, mas não por ela determinada. Uma narrativa histórica mais interpretativa que descritiva aproxima-se suficientemente do passado não vivido à medida que o representa, enquanto o historiador, construtor de tal aproximação, delimita seu campo de ação selecionando, articulando e cruzando o leque de informações disponíveis para que as fontes ou sinais do passado, à luz dos óculos dos conceitos e de um problema proposto, possam falar. Nesse sentido o historiador realiza um trabalho análogo ao do arquiteto, de recomposição de partes dispersas com o passar do tempo. Ambos podem ser vistos como produtores de artifícios ou artífices de conhecimento: anjos da história. Para Walter Benjamin, a cidade moderna se faz mais apreensível ao historiador, como objeto e como fonte de conhecimento histórico, através de suas representações simbólicas, -- incluindo a literatura, a arte, as metáforas, os mitos e as lendas --, que pela tentativa de abordagem direta de sua transitória concretude e lógica de funcionamento (1989. CF.). Como diz Sandra Pesavento, "Calíope pode ensinar a Clio, e vice-versa” (2000, p. 7, 8). Entretanto, o cruzamento entre literatura e história ainda hoje encontra resistências e suscita questionamentos. De maneira geral, a cidade em processo de modernização apresenta-se, não apenas como concretude, mas como abstração, pensamento e objeto de conhecimento através das suas representações. No mundo das representações não importa tanto o que é ou não real, mas sim como elas geram discursos que falam do que é vivenciado e percebido como real em uma determinada sociedade. As representações da cidade moderna não são apenas seu fruto, ao contrário, são imagens construídas a partir de sua problemática concretude e integram a sua construção como paradigma moderno. Neste sentido, textos -- ficcionais ou não -- imagens – caricaturas, pinturas, fotografias, projetos arquitetônicos, mesmo os não realizados, etc --, colocam-se no lugar da mesma, como presentificadores de sua ausência e podem ser lidos como vestígios ou sinais do passado, capazes de responder às questões colocadas pelo historiador desde o tempo presente: o tempo do narrador e da narrativa histórica, do historiador e da sua história. Para quê: a tarde na roleta Entrando pouco a pouco na calma outra vez. Raciocinante. É conveniente comprar fichas. Com quinze mil-réis em fichas já tem margem pra muito jogo. Encaminha-se para o guichê. Volta com uma pilha de rodelas na mão. Agora, vai fazer a coisa estudada. Mas, se tivesse seguido a sua inspiração...? (MACHADO, 2004, página 23). O presente trabalho tem como objetivo central a analise das informações encontradas no romance “Os Ratos” de Dyonelio Machado, observar até que ponto a literatura permitirá o maior entendimento do homem moderno e suas condições de existência. Devido a sua formação em medicina e especialização em psicanálise o autor vai fundo em sua análise da realidade, em especial da moderna sociedade brasileira, extremamente convulsionada neste final de século no que se relacionam às suas grandes concentrações urbanas. 3 A cena da desumanização das grandes cidades já estava muito presente no romance, e Naziazeno pode ser considerado um típico herói da modernidade. Ao estudar o percurso de Naziazeno e perceberemos como era a cidade por volta do anode 1935, quando o livro foi escrito e lançado entendendo quais foram as alterações na vida dos moradores de Porto Alegre com a implantação da modernidade, através das ricas descrições urbanas encontradas no livro. Conforme a Figura 1, a qual mostra todo o percurso de Naziazeno que exemplifica bem a quantidade de locais pelos quais o personagem passou na procura dos seus 53 mil reis. Figura 1. O percurso de Naziazeno. 1. Café do Mercado - Café do Centro 2. Café do Centro – Cais 3. Cais – Repartição 4. Repartição - Café do Mercado 5. Café do Mercado - Café do Centro 6. Café do Centro – Repartição 7. Repartição - Café do Centro 8. Café do Centro - Independência (Andrade) 9. Independência (Andrade) - Café do Centro 10. Café do Centro - Rest. Operários/Ladeira/Cassino 11. Rest. Operários/Ladeira/Cassino - Café do Centro 12. Café do Centro - Voluntários da Pátria 13. Voluntários da Pátria - Docas 14. Docas - Voluntários da Pátria 15. Voluntários da Pátria - Café do Mercado 16. Café do Mercado - Café do Centro 17. Café do Centro - Rua Clara (Fernandes) 18. Rua Clara (Fernandes) - Rua Nova (Assunção) 19. Rua Nova (Assunção) - Café do Centro 20. Café do Centro - Rua da Ladeira (Martinez) 21. Rua da Ladeira (Martinez) - Travessa (Martinez) 22. Travessa (Martinez) - Rua da Ladeira (Martinez) 23. Rua da Ladeira (Martinez) - Rua do Rosário (Dupasquier) 24. Rua do Rosário (Dupasquier) - Café da Esquina 25. Café da Esquina - Bolão 26. Bolão - Cinema 27. Cinema – Mercado O trabalho pretende reconstruir, ou construir uma versão, já que também essa será uma representação da Porto Alegre de “Os Ratos”: de certa forma, isso significa construir, através de textos e imagens, o cenário do livro, um espelho da realidade urbana da cidade a partir de trechos do livro, passagens que são de certa forma como cenas urbanas cinematográficas: Treme o ar, toda a rua treme com o calor, tremem as casas, como um pedaço de paisagem submarina, ondulando através da água movediça. As habitações têm colorido. Pequenos jardins. Bairro elegante. Naziazeno disfarça o cansaço, porque tem uma esperança. Segue o trilho estreitíssimo e quebrado da sombra das casas na calçada, bem junto das paredes. Toda a rua está balizada num lado e noutro por uns blocos metálicos, dum brilho sombrio: limousines em descanso. O “sujeito” mora no número 357. É o fim da rua, lá no alto (MACHADO, 2004, página 32). Às costas de Naziazeno se acha uma pequena rua transversal que vai ter às docas em construção. É uma rua inacabada, que, poucos passos depois da esquina, se perde na areia. Ele toma essa rua. Dum lado e doutro ela é margeada agora de umas construções de madeira, compridas e baixas, pintadas de negro. Dois ex-trapiches. Um deles — o da esquerda — continua ainda por uma ponte pela areia adentro. Do meio pra o fim, o piso da ponte desapareceu: estão somente as estacas, deixando escapar apenas de sobre a areia um pequeno esquadrão de cubos de madeira, avançando em filas escuras até quase à linha do dique. A cidade se recorta sobre a claridade avermelhada que tem o céu para os lados onde está se escondendo o sol. O semicírculo do horizonte que Naziazeno abraça com o olhar está pesado de vapores. O rio, que reflete e baralha as cores escuras e claras do céu, tem um movimento lento e espesso de óleo. Bem à direita, lá longe, quase sobre as ilhas baixas, as sombras dos grandes navios ancorados no largo cavam buracos pretos na água grossa. Naziazeno vê-se rodeado de areia, perdido naquele pequeno deserto. Ensaia safar-se pela esquerda, alguns metros mais abaixo. Tem grandes passadas. Arrasta enormes pés de chumbo... (MACHADO, 2004, página 56). Na citação acima, encontra-se a descrição das obras do porto de Porto Alegre, bem como as ruas que davam acesso a este. São descritas também as estruturas conhecidas como trapiches que eram estruturas de madeira que precisam de manutenção praticamente anual e que segundo a descrição do autor estavam sendo negligenciadas. Percebe-se nesta parte do texto a procura da margem do Guaíba, a vista a distancia dos navios ancorados no porto e da sensação calmante da beira d’agua para acalmar os ânimos do protagonista, que teve o seu pedido de empréstimo na repartição negado pelo chefe. Na seguinte descrição Naziazeno consumido pela angustia do final do dia e as incontáveis tentativas de conseguir o dinheiro para quitar a sua divida descreve o entorno do café, como o relógio da prefeitura, que foi usado diversas vezes durante o dia visto que o personagem não possuía dinheiro para ter um relógio, e o restante dos edifícios altos que construíam o entorno da praça e tapavam o sol poente: O relógio da Prefeitura — aquele relógio que lhe parecera de manhã uma cara redonda e impassível — e que ele espia agora furtivamente, com o cuidado de não interromper a conversa, está marcando seis e vinte. À frente deles, uns edifícios altos, que fecham o “largo” nessa parte, não lhe deixam ver mais a moeda em brasa do sol. Está perdido o dia... Está perdido o dia... (MACHADO, 2004, página 64). Enfim, encontramos a descrição do centro, no cair da noite, quando as lojas encerram seu expediente e eles cruzam a Praça da Alfândega para chegar ao Cinema, onde trocarão o dinheiro do penhor do anel de bacharel de Alcides. Destaca-se a descrição da cidade, a presença de arborização, a calma e a determinação na qual se encontrava Naziazeno, após perceber 4 a solução aparente do seu problema. São descritos também grupos que estavam na frente do cinema, provavelmente olhando as vitrines e a espécie de “furor” social que existia em torno de tal edificação na época: Dobram a primeira esquina. Entram na rua principal. As vitrinas, raras ainda nessa “altura”, projetam nas calçadas retângulos de luz, que os passeantes pisam, pisam, com pés iluminados... Vai travada uma conversa na fila da frente. Naziazeno distingue perfeitamente as palavras de Martinez, que fala para os dois, sem contudo voltar nem uma vez a cabeça para o lado de um ou outro. O seu passo é ligeiro e firme, o olhar sempre em frente. Chegam ao canto da praça. Defronte dos cinemas, pequenos grupos, um que outro casal. Há sujeitos no guichê da bilheteria. Outros olham por um momento os cartazes. Uma pequena família vai entrando. O homem entrega as entradas. A mulher tem uma criança pela mão. Atravessam a praça. Olhando para o chão, para as fachadas, para a frente dos cinemas, para as árvores, é noite. Mas Naziazeno ergue os olhos. Bem lá em cima, naquelas nuvens esbranquiçadas, há ainda um ar de dia... As nuvens agora — os pedaços delas que ainda se podem distinguir — têm uma luz esmaecida, lívida... (MACHADO, 2004, página 74.) Configura-se também, como objetivo desta pesquisa, obter dados importantes para a ideia patrimonialista do centro da capital, realçando-a ainda mais, descobrindo marcos importantes para a população simples que frequentava o centro da cidade. Caminhando feito rato A pesquisa se desenvolverá a partir de revisão bibliográfica, pois se considera este o método mais adequado para o alcance dos objetivos pré-definidos, devido à quantidade de obras sobre este tema disponíveis para leitura. Principalmente porque as principais fontes encontram-se na literatura e em arquivos de historiadores, se pretende remontar a realidade arquitetônica e urbanística através do relato do romance “Os Ratos” e do restante do material encontrado. Existe uma parte que pode ser considerada uma pesquisa laboratorial fenomenológica, pois usaremos as fotos que o autor batia da cidade e comprar com as descrições do livro. Estuda-se a possibilidade, dentro do processo de fenomenologia, que é preconizado por Husserl, nem dedutivo nem indutivo. Preocupa-se com a descrição direta da experiência tal como ela é. A realidade é construída socialmente e entendida por cada indivíduocomo o compreendido, o interpretado, o comunicado. Então, a realidade nunca será única: existem tantas quantas forem as suas interpretações e comunicações. O sujeito/ator é reconhecidamente importante no processo de construção do conhecimento. Por isso existe a ideia de ler alguns trechos das descrições do livro para arquitetos e graduandos para que estes desenhem a sua percepção da cidade através das palavras do autor, depois comparar os desenhos a realidade percebendo de que forma as palavras de Dyonelio realmente se materializam para os indivíduos, e qual a percepção dos leitores da cidade através dos relatos do autor. Ratos e os rastros reais A pesquisa ainda encontra-se em fase de revisão bibliográfica, porém, neste período, já encontramos muito material que comprova que existe, sim, verossimilhanças entre a literatura, a história e a arquitetura e que sim, encontraremos em “Os Ratos” rastros para o reconhecimento da realidade de uma das primeiras classes sociais de trabalhadores modernos de Porto Alegre. Pois segundo Claudio Cruz (1994, p. 36), a repartição onde Naziazeno trabalha, descrita por Dyonelio Machado, realmente existiu. Por outro lado, o mapa traçado a partir dos locais descritos no livro corresponde à realidade da capital gaúcha da época. Entretanto, essa identificação é problemática nos dias de hoje, já que muitas ruas, com o passar dos anos, acabaram trocando de nomes. Outra conclusão é o caráter masculino que a cidade possuía em sua modernização. As figuras descritas na prosa eram em sua grande parte masculinas. Como o modelo da sociedade também era masculino, as poucas mulheres que existem no livro são mulheres acompanhadas de crianças, do marido ou empregadas. Essa informação é confirmada pelo mapa de percurso de Naziazeno, que mostra os inúmeros cafés e repartições de trabalho. Sandra Jatahy Pesavento (1991, p. 296) afirma, citando vários nomes de cafés que se situavam junto à Praça da Alfandega, como o café Coaracy, que os cafés eram um reduto masculino da época, bem como as livrarias e quaisquer espaços culturais da cidade. E, para reforçar o pretexto de que a literatura pode ser descritiva, encontramos algumas afirmações de Sandra Jatahy Pesavento (1991, p. 281) dizendo que os textos que falam do urbano, sejam eles oficiais ou de usuários da cidade, expressam, por sua vez, expectativas, projetos e inquietações sobre a transformação da cidade. Por isso, acredita- se que, para conhecer a Porto Alegre dos anos 1930, é preciso, não apenas seguir, mas recompor os passos e os rastros de Naziazeno e de seus temidos ratos. Referências ARGAN, Giulio Carlo, História da arte como história da cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1995. BACZKO, Bronislaw, Imaginación Social, IN: Los Imaginarios Sociales, Buenos Aires: Nueva Visión, 1991. BENJAMIN, Walter, Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994. BENJAMIN, Walter, Paris, Capitale du XIX siecle, Le livre des Passages, Paris: CERF, 1989. CF. BOURDIEU, Pierre, O Poder Simbólico, Lisboa: Difel, 1980. CALVINO, Italo. As cidades Invisíveis. São Paulo: Cia. Das letras, 1990. CHARTIER, Roger, A História Cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel, 1987, C.F. CHARTIER, Roger, O Mundo como Representação, IN: Estudos Avançados, São Paulo: USP, 5(11), jan-abr. 1994. CRUZ, Claudio. 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